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Reconstrução de um objeto sociológico

Reconstruction of a sociological object

RESENHA

Reconstrução de um objeto sociológico

Reconstruction of a sociological object

Sandro Ruduit Garcia

Sociólogo, Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. Colaborador no Grupo de Pesquisas "Trabalho na Sociedade Contemporânea" (UFRGS/ CNPq)

RESUMO

A Sociologia do Desenvolvimento foi, como se sabe, uma das áreas mais pujantes da disciplina nas décadas de 1960 e de 1970, atraindo a atenção de influentes sociólogos brasileiros naquele período. A despeito da importância que o debate sobre processos de desenvolvimento deteve àquela época, o mesmo esteve, nos últimos 25 anos, praticamente abandonado pela Sociologia no Brasil. O livro organizado por Ramalho e Santana constitui uma criativa e estimulante contribuição para a reconstrução do desenvolvimento como objeto sociológico, identificando e analisando, a partir da experiência do pólo automotivo Sul Fluminense, um conjunto de questões e argumentos em torno de processos de desenvolvimento no contexto de integração ao sistema global que esboçam novas teias de relações sociais e políticas, para além da esfera econômica.

Palavras-chave: Desenvolvimento industrial e regional. Relações de trabalho e de emprego. Sindicatos. Indústria automobilística.

ABSTRACT

It is common knowledge that the Sociology of Development was one of the most vigorous areas of the discipline in the 1960s and 1970s, attracting the attention of influential Brazilian sociologists during the period in question. Despite the importance given to the debate on processes of development at that time, in the last 25 years it has been virtually abandoned by sociology, in Brazil. The book edited by Ramalho & Santana is a creative and stimulating contribution to the reconstruction of development as a sociological object. Through the experience in the Sul Fluminense automotive complex, the book identifies and analyzes a number of issues and arguments on the processes of development, in a context of integration within a global system, that present new webs of social and political relations, beyond the economic sphere.

Keywords: Industrial and regional development. Labor and employment relations. Unions. Automotive industry.

Trabalho e desenvolvimento regional: efeitos sociais da implantação do pólo automotivo Sul Fluminense. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. 239p. RAMALHO, José Ricardo e SANTANA, Marco Aurélio (Orgs.).

A Sociologia do Desenvolvimento foi, como se sabe, uma das áreas mais pujantes da disciplina nas décadas de 1960 e de 1970, atraindo a atenção de influentes sociólogos brasileiros naquele período. A despeito da importância que o debate sobre processos de desenvolvimento deteve àquela época, o mesmo esteve, nos últimos 25 anos, praticamente abandonado pela Sociologia no Brasil.

Essa perda de prestígio tem razões históricas e intelectuais bem definidas. A década de 1980 foi marcada pela euforia em face das perspectivas encetadas pelo processo de democratização do Brasil. Porém, a estagnação econômica e industrial levou à crise fiscal do Estado, expressando o esgotamento do chamado "modelo de substituição de importações". Nos anos 1990, privilegiou-se a estabilização da moeda, a abertura e desregulamentação de mercados e a atração de investimentos estrangeiros, tendo em vista a integração do País ao sistema internacional. As estratégias de "desenvolvimento orientado para dentro" cederam o passo para estratégias de "desenvolvimento orientado para fora". Não obstante os avanços na conquista de direitos civis e na relativa estabilidade das instituições políticas, o déficit social tornou-se flagrante: serviços públicos essenciais não atendiam às necessidades da população, como educação básica, saúde, previdência social e segurança pública; a ameaça do desemprego, herdada dos anos 1980, persistiu; e as desigualdades socioeconômicas se agravaram. Os anos 2000 anunciam perspectivas em torno da agenda de crescimento econômico e de políticas sociais de combate à pobreza, no contexto de consolidação da inserção do Brasil ao sistema global.

Na conjuntura de prolongada recessão econômica e de falta de perspectivas em termos do combate ao déficit social das décadas de 1980 e de 1990, o pensamento sociológico brasileiro acolheu, com entusiasmo, idéias e pressupostos da chamada "virada cultural da sociologia", no contexto de crise internacional do marxismo e de ascensão das alternativas pós-modernistas de análise sociocultural (DENNING, 2005), passando-se a privilegiar a compreensão de estruturas e interações simbólicas. Os sociólogos acharam-se, nesse contexto, desencorajados pelo approach universalista e pelo tom evolucionista no debate sobre desenvolvimento nas décadas passadas. Os economistas insistiriam naquele debate, dividindo-se entre "monetaristas" e "desenvolvimentistas". O tema deixou de ser atraente aos sociólogos brasileiros que se dedicaram ao estudo dos chamados novos movimentos sociais, das identidades socioculturais, das relações entre os sexos, da cultura popular urbana, entre outros temas, trazendo relevantes contribuições teóricas e metodológicas para o conhecimento de novos aspectos da sociedade brasileira. No entanto, percebe-se, presentemente, a insuficiência desse tipo de análise para compreender mudanças sociais e respostas institucionais face às perspectivas de crescimento econômico, no contexto de consolidação do processo de globalização e de transição para o paradigma das tecnologias da informação e comunicação. O "desenvolvimento econômico e social" volta à agenda de eventos científicos e de grupos de pesquisa da disciplina, tentando-se integrar dimensões macro e microssociais, pressões objetivas e disposições subjetivas, em face da complexidade e da diversidade das mudanças nas sociedades atuais.

O livro organizado por Ramalho&Santana contribui para o resgate dessa valiosa discussão para o País. O livro tem afirmação intelectual em duplo sentido. Em primeiro lugar, os capítulos expressam a maturação de idéias, de dados e de argumentos resultantes de 10 anos de pesquisas. Os organizadores lideram um grupo de investigadores que se debruça sobre o processo de formação e desenvolvimento do pólo automotivo Sul Fluminense. A Volkswagen instalou uma planta no município de Rezende, em 1996, e a Peugeot-Citröen, na cidade vizinha de Porto Real, em 2002. As fábricas inscrevem-se no novo contexto do setor automobilístico mundial de transferência de plantas industriais para países emergentes. Os pesquisadores têm acompanhado essa trajetória desde a sua gênese.

Em segundo lugar, a coletânea sustenta uma perspectiva teórica. Bem além das teses de que o capital estrangeiro seria capaz de impor de forma unilateral suas estratégias de produção, explorando, de forma pura e simples, capacidades locais, os argumentos propostos no livro tentam, em resumo, mostrar que essas "externalidades" acabam se "enraizando" e, sob certo aspecto, inovando no âmbito regional porque os agentes locais buscariam participar e tornar públicas as novas relações que se estabelecem, no esforço de proteger seus interesses e valores. Isso sem recorrer, de forma alguma, à idéia fácil de que o processo de globalização levaria, automaticamente, em trajetória única, à prosperidade econômica e social, como insistiam até pouco tempo agências multilaterais e o mainstream econômico. Ao contrário, os capítulos explicitam, como se espera da boa análise sociológica, conflitos e contradições sociais presentes em diferentes dimensões do processo de desenvolvimento regional.

Desse prisma, os argumentos propostos no livro são estruturados em três conjuntos temáticos: os capítulos 1 e 2 abordam o processo de instalação das montadoras e suas relações com a dinâmica institucional da região; os capítulos 3, 4, 5 e 6 referem-se à constituição da produção e do trabalho nas fábricas; e os capítulos 7, 8, 9 e 10 situam a participação dos sindicatos e a ação política dos trabalhadores no contexto de desenvolvimento regional.

O capítulo de abertura, de José Ricardo Ramalho, analisa a formação de novos padrões de participação social em localidades onde ocorrem atividades industriais, tomando como referência a experiência do Sul Fluminense. O argumento central do autor seria o de que, mesmo que as grandes empresas tenham motivações oportunistas nos novos espaços industriais, a sociedade tenderia a criar mecanismos que buscam interferir na política industrial e fomentar o desenvolvimento da região. Ramalho distingue as formas de interação de antigas e novas plantas industriais com as instituições sociais. No fordismo, a fábrica seria o lócus de produção, significando que as relações sociais se realizavam em espaço privado. O desenvolvimento industrial era impulsionado por grandes empresas, apartadas da realidade local. Na produção flexível, a cidade seria o lócus de produção, significando que as relações sociais se realizam no espaço público. A dinâmica de desenvolvimento industrial estaria, hoje, assentada em redes sociopolíticas entre grandes empresas, seus fornecedores e instituições de apoio e de representação de interesses. Essa mudança de paradigma ofereceria brechas para a "publicização" das relações e dos conflitos entre capital e trabalho. Ademais, o capítulo aponta os limites do debate atual sobre desenvolvimento industrial cuja ênfase se acha no modelo dos distritos industriais italianos, assentados na cooperação entre pequenas empresas, enquanto novos aglomerados industriais teriam se constituído, assentados na cooperação entre grandes e pequenas empresas. Nesse novo contexto, os sindicatos de trabalhadores buscariam participar do debate sobre desenvolvimento regional, posicionando-se sobre formas de atração de investimentos, sobre ações regionais conjuntas entre os diferentes atores sociais, sobre meios de modernização das empresas locais e sobre a formação dos trabalhadores, expressando certo "acúmulo de relações políticas" na região. Neste sentido, Ramalho sublinha a importância das articulações políticas em contextos sociais específicos para a promoção do desenvolvimento, em favor de uma perspectiva atenta à reação criativa dos agentes sociais, tanto às forças do mercado quanto às estruturas de dominação simbólica.

No Capítulo 2, Raphael Jonathas da Costa Lima retoma a análise das relações entre instituições locais e processos de desenvolvimento regional, sob a perspectiva do papel das elites empresariais e políticas locais nesse processo. Segundo Lima, arranjos cooperativos, como os do Sul Fluminense, teriam origens anteriores à chegada de grandes investimentos. Elites locais teriam papel decisivo nessas articulações porque seriam capazes de mobilizar redes de relações políticas e corporativas em torno da construção do desenvolvimento regional. Ao reconstruir aspectos da história social e política do Sul Fluminense, o autor mostra que os planos de atrair a Volkswagen para a região remontam aos anos 1950. Nos anos 1980, políticos e empresários locais elaboraram um projeto de atração da montadora, sem sucesso. A privatização e reestruturação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) na década de 1990 agravou a crise do emprego e social na região, deflagrando novos esforços de líderes locais na atração de investimentos. Com a oferta de incentivos financeiros e fiscais, a Volkswagen e a Peugeot-Citröen instalam fábricas na região. A partir das contribuições de Putnam (1996) sobre comunidade cívica e capital social, Lima identifica "traços da presença de uma estrutura patrimonialista" (p.62), relacionada com a origem social de líderes empresariais locais ligados à antiga produção açucareira, nos anos 1950. Isso ajudaria a compreender aspectos da perspectiva atual de desenvolvimento formulada pelas elites locais (concessão de benefícios financeiros e fiscais, "gestão empresarial" do poder público municipal). Assim, o capítulo chama a atenção para as relações sociais historicamente construídas naquele contexto social.

O Capítulo 3, escrito por Alice Rangel de Paiva Abreu, Huw Beynon e José Ricardo Ramalho, focaliza as inovações apresentadas por plantas industriais instaladas em países fora do tradicional eixo de produção automotiva Detroit-Tóquio-Wolfsburg. Os autores argumentam, a partir da experiência do consórcio modular da Volkswagen em Rezende, que novos tipos de sistema produtivo tenderiam a emergir em países da América do Sul, trazendo inovações no que se refere às relações de subcontratação, às fronteiras de atuação entre empresas e ao relacionamento entre mercados e hierarquias. No consórcio modular, a montadora seria responsável pelo design do produto, pelo marketing e pelas vendas, ao passo que os fornecedores realizariam as atividades de produção, constituindo um novo arranjo organizacional. A necessidade de controle da qualidade da produção e de monitoramento da produtividade obrigaria a montadora a se envolver com o processo e as relações de trabalho, no sentido de minimizar conflitos e de construir cooperação entre empresas e entre estas e trabalhadores. Por exemplo, a idéia inicial da montadora de que cada empresa do consórcio negociasse, separadamente, condições de emprego e trabalho com seus trabalhadores não prosperou, em razão da resistência sindical. A montadora viu-se obrigada não apenas a expandir suas responsabilidades de negociadora pelo conjunto das empresas como também a aceitar a constituição de uma comissão de fábrica, unificando a representação dos trabalhadores. Ademais, o envolvimento e o consentimento dos trabalhadores no consórcio seriam obtidos pela montadora mediante contrapartidas salariais e ênfase nas políticas de treinamento, em razão dos altos níveis de pobreza e do significado de um emprego em montadora no País. Em países desenvolvidos, isso seria obtido por outras formas de gestão, como "trabalho em time". Os autores mostram, pois, entre outros interessantes aspectos, como as inovações são construídas mediante relações de cooperação e conflito entre os agentes envolvidos, desfazendo-se uma suposta unilateralidade nas relações global-local.

No Capítulo 4, José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana esboçam o perfil do novo trabalhador da região, valendo-se da análise de um survey aplicado aos trabalhadores do consórcio modular da Volkswagen. Em resumo, o capítulo mostra a constituição de um novo contingente operário, com novas demandas sociais e com relativa disposição em participar de atividades sindicais, a partir dos investimentos na região. Os salários no consórcio seriam superiores ao padrão local, embora aquém dos salários no ABC paulista. Isso criaria novas demandas de consumo. As negociações das condições de emprego e de trabalho com a montadora seriam mais profissionais do que o padrão habitual das empresas da região, alterando estratégias sindicais. Esses trabalhadores teriam como principal preocupação a manutenção do emprego e a sua formação profissional, refletindo a crise do emprego na região e no País. Tratar-se-ia de trabalhadores relativamente jovens e escolarizados e sem experiência profissional. Esses dados suscitam a instigante discussão sobre o argumento de Sennett (2006) de que empresas flexíveis tenderiam a contratar trabalhadores pelo seu potencial de produção e crescimento futuros, em detrimento de suas experiências e realizações passadas. Isso alteraria o perfil e identidade dos trabalhadores.

No Capítulo 5, encontra-se uma análise de Carla Pereira sobre as relações de terceirização e seus reflexos para os trabalhadores no consórcio modular. O argumento central do texto seria que a terceirização naquele tipo de arranjo industrial tenderia a conjugar novas e antigas práticas de emprego e de trabalho. Haveria diferenças no perfil dos trabalhadores, especialmente escolaridade, e nas condições de emprego entre a mão-de-obra vinculada aos serviços de apoio à produção (manutenção, logística, inspeção de qualidade) e os serviços periféricos (transporte, limpeza, vigilância). Os grupos seriam igualmente afetados pela instabilidade no emprego. Contudo, esses empregos representariam ganhos materiais e simbólicos nas trajetórias profissionais desses grupos de trabalhadores. Tal divisão das condições de emprego analisada no capítulo é compatível com resultados de estudos internacionais sobre o setor automobilístico em diferentes contextos socioculturais, tais como o de Sallaz (2004) nos Estados Unidos e o de Lee e Frenkel (2004) na Coréia do Sul. Caberia referir que o estudo suscita a indagação sobre a pertinência e a precisão em falar-se, nas condições atuais, de "jovens operários", considerando-se a circulação dos jovens trabalhadores em diferentes funções (produção e escritório), empresas e até mesmo setores econômicos.

Lia de Mattos Rocha discute, no Capítulo 6, a emergência de um novo paradigma de qualificação, considerando a experiência do consórcio modular da Volkswagen. Segundo o testemunho da autora, seriam valorizados trabalhadores com conhecimentos técnicos, com ensino formal, com capacidade de pensamento estratégico e abstrato, e com postura pró-ativa diante do trabalho. O dado é contundente: 83,5% dos trabalhadores do consórcio teriam realizado cursos profissionalizantes. Isso contrasta com o perfil do trabalhador recrutado pelas montadoras do ABC paulista no final da década de 1950: boa parte era de imigrantes da zona rural com baixa escolaridade. Ademais, a autora entrelaça esses requisitos de qualificação com novas responsabilidades e demandas por participação da mão-de-obra, concluindo que "muitos desses requisitos não possuem meios de realização dentro da fábrica" (p.155), embora contribuam para aproximar gerência e trabalhadores. Assim, o estudo leva o leitor a refletir sobre se tais requisitos, particularmente a escolaridade, constituiriam simples exigências e imposições aos trabalhadores, em contexto de desemprego, ou representariam um novo patamar de cidadania no trabalho porque a escolaridade e o pensamento abstrato permitiriam o acesso do indivíduo aos códigos da modernidade.

O Capítulo 7, de Marco Aurélio Santana, analisa aspectos das relações entre sindicatos e movimentos sociais no Sul Fluminense, mais especificamente no município de Volta Redonda nos anos 1980. O texto mostra, entre outros aspectos, que a presença da CSN na cidade, desde a década de 1940, criou condições para o desenvolvimento do movimento sindical. Nos anos 1980, os sindicatos ampliam suas relações com diferentes movimentos sociais, elegendo um de seus líderes como Prefeito Municipal. Ademais, o poder dos sindicatos naquele momento teria permitido conquistas nas condições de emprego e trabalho na CSN, tais como reajustes de salários, redução de jornada de trabalho e readmissão de trabalhadores. Santana evidencia o quão duras eram as relações de trabalho na empresa: uso de tropas do exército para reprimir greves, perseguição a líderes sindicais e defasagem salarial. Porém, as relações entre sindicatos e movimentos sociais teriam se tornado tensas porque os sindicatos passariam a defender uma "política menos aguerrida" frente às obrigações na gestão pública e à privatização da CSN, distanciando-se das expectativas de movimentos sociais. A reconstituição proposta no capítulo contribui, pois, para se pensar: em que sentido "heranças" sócio-históricas do movimento sindical interfeririam nas suas relações com agentes externos na atualidade? Em que medida esse agentes acabariam impondo-se, ajustando-se ou inovando em termos do padrão de relações de trabalho e de emprego que se desenvolve na região?

No Capítulo 8, Sérgio Eduardo Martins Pereira examina um aspecto relativamente pouco explorado na produção científica brasileira, isto é, mudanças e conflitos nas relações entre líderes sindicais e trabalhadores em face da chegada de novos investimentos, tomando como referência a região Sul Fluminense. Pereira identifica a configuração de uma nova arena de lutas sociais com a chegada das montadoras na região, explicitando-se novos e antigos conflitos entre sindicalistas e trabalhadores. Retomando aspectos desenvolvidos no texto de Santana, o capítulo mostra que, antes da chegada das montadoras, os sindicatos já experimentariam um contexto hostil, marcado pelas duras relações na CSN que se agravariam, nos anos 1990, com a sua privatização. Isso teria levado, como antes referido, a uma reorientação de estratégias dos líderes sindicais, tornando-se menos agressivos. Por outro lado, a presença de novos investimentos na região teria diversificado o perfil operário e de suas demandas, com ênfase no desejo de manutenção do emprego. O movimento sindical também se diversifica, surgindo lideranças concorrentes entre si. Aproveitando-se desse contexto de fragilidades dos sindicatos, as montadoras resistiriam em reconhecer a representação sindical, especialmente a Peugeot-Citröen. Assim, o capítulo evidencia como agentes externos e internos vão reagindo ao contexto local, ajustando práticas e criando novas estratégias. Isso dá prosseguimento ao debate suscitado pelo capítulo anterior.

O Capítulo 9 envolve a análise, realizada por Elaine Marlova Venzon Francisco, da ação política da comissão de fábrica no consórcio modular da Volkswagen. A autora desvela, entre outros aspectos, como a ação política, em termos de negociação de interesses e de mediação de conflitos, seria fundamental para o funcionamento do sistema produtivo organizado na forma de consórcio modular. Isso requer uma "cadeia de negociações" entre empresas e destas com os trabalhadores na qual a comissão de fábrica tornar-se-ia instrumento mais importante do que o próprio sindicato porque estaria próxima ao cotidiano dos conflitos do chão-de-fábrica. O desafio seria maior do que em plantas tradicionais, em razão de se tratar de empresas diferentes, com políticas e culturas variadas, porém, atuando de forma integrada no processo produtivo. Por outro lado, a ação do Comitê Mundial de trabalhadores da Volkswagen levou a matriz a orientar a unidade de Rezende no sentido de convencer as demais empresas do consórcio a aceitar uma comissão de fábrica. Especificidades internas e pressões externas explicariam, sob certo aspecto, o aceite pelas empresas de uma comissão de fábrica, representando um ganho significativo para os trabalhadores, assim como uma inovação nas relações de trabalho no âmbito regional. Desse modo, o capítulo traz uma interessante contribuição ao sublinhar a relevância não só do conflito, como também da cooperação no avanço das relações de trabalho, conforme as circunstâncias envolvidas. Isso constitui um aprendizado político e social para empresas e para trabalhadores.

José Ricardo Ramalho, Marco Aurélio Santana e Julia Maçaira escrevem o último capítulo do livro, discutindo transformações em localidades face à presença de montadoras, com foco no estabelecimento de novas relações de trabalho e seus efeitos na constituição de movimentos organizados de trabalhadores na recente experiência da Peugeot-Citröen no Sul Fluminense. A unidade instalada em Porto Real, primeira da montadora no País, constituiria o chamado "tecnopólo", inspirado nos distritos industriais italianos, com a particularidade de envolver grandes empresas. Neste caso, as relações de trabalho seriam, politicamente, bastante duras: a montadora não aceitaria a constituição de uma comissão de fábrica; desconfiaria de representações de trabalhadores (sindicatos, CIPA); e utilizaria o valor material e simbólico dos empregos criados, para pressionar trabalhadores. O capítulo instiga o leitor a perquirir sobre os fatores sociais que motivariam essa diferença de conduta da Peugeot-Citröen em relação à Volkswagen: Qual a importância da cultura e de estratégias corporativas das empresas? Qual o significado de haver ou não experiências anteriores no País (caso da Volkswagen), em termos da construção de relações de confiança entre os agentes sociais? Em que medida o desenho organizacional das plantas ("consórcio modular" e "tecnopólo") interferiria nesse processo? O tempo de presença na região faria diferença?

Portanto, tem-se uma criativa e estimulante contribuição para a reconstrução de um objeto sociológico: o desenvolvimento industrial e regional. O livro de Ramalho&Santana mostra que processos de desenvolvimento no contexto de integração ao sistema global vão muito além da esfera econômica, esboçando-se novas teias de relações sociais e políticas. Trata-se de um tema cuja potencialidade teórica e social impõe-se à coletividade científica e intelectual. Os sociólogos do Brasil estão, justificadamente, convocados para esse debate.

Recebido: 25/10/2007

Aceite final: 31/01/2008

  • DENNING, Michael. A cultura na era dos três mundos. São Paulo: Francis, 2005.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
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