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Dilemas identitários no mundo dos serviços: da invisibilidade à interação

Identity dilemmas in the world of services: from invisibility to interaction

Resumos

O objetivo do artigo é analisar a construção das formas identitárias no trabalho em serviços. O repertório conceitual remete principalmente à sociologia do trabalho francesa e ao interacionismo simbólico. Uma breve reconstrução das teorias sociológicas da identidade laboral, com ênfase no mundo dos serviços, antecede a análise empírica de duas ocupações: serventes de limpeza e vendedores/as. A metodologia empregada recorre a uma triangulação de fontes, em que dados quantitativos de bases governamentais (Censo, PNAD e RAIS) são articulados com dados qualitativos primários e secundários. No caso de serventes de limpeza a contratação terceirizada afeta negativamente a dinâmica do reconhecimento, embora a depreciação do self remeta mais à construção cultural do "trabalho sujo" e à invisibilidade que caracteriza o trabalho em serviços, sobretudo em atividades que remetem ao trabalho doméstico, como limpeza, manutenção e conservação. Já os/as vendedores enfrentam dilemas relacionados a formas de interagir com o cliente, por sua vez influenciadas por estratégias gerenciais e de marketing, bem como deslocamentos identitários relacionados à crescente relevância da própria prática de consumir como marcador identitário na moderna sociedade de consumidores.

Sociologia do trabalho; Identidade laboral; Interacionismo simbólico; Setor de serviços


The aim of the article is to analyze the construction of identity in services work. The work draws mainly on the French sociology of work and on Symbolic Interactionism. It starts with a brief reconstruction of sociological theories on labor identity, emphasizing the services sector. This is followed by an empirical analysis of two service occupations: cleaning workers and retail sellers. The method was based on triangulation of sources, associating quantitative data from Brazilian government agencies (Demographic Census, PNAD and RAIS) and qualitative primary and secondary data. In the case of cleaning workers, outsourcing contracts have a negative impact on the dynamics of recognition, although the low self-esteem is better related to a cultural construction of "dirty work" and to the invisibility that characterizes these jobs, mainly in activities akin to domestic affairs, like cleaning, repairing and maintaining. The retail sellers, in turn, face dilemmas related to the way of interacting with customers, which are influenced by management and marketing strategies, and also by identity shifts related to the relevance of consumption practices as identity markers in the modern society of consumers.

Sociology of work; Work identity; Symbolic Interactionism; Service sector


ARTIGO

Dilemas identitários no mundo dos serviços: da invisibilidade à interação

Identity dilemmas in the world of services: from invisibility to interaction

Jordão Horta Nunes

Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil

RESUMO1 1 Este artigo tem como base uma comunicação apresentada no 36ºEncontro Anual da Anpocs, em outubro de 2012, no GT 36 (Trabalho, ação coletiva e identidades sociais). O texto foi adaptado reformulado levando em conta as considerações feitas pelos/as debatedores/as e colegas presentes.

O objetivo do artigo é analisar a construção das formas identitárias no trabalho em serviços. O repertório conceitual remete principalmente à sociologia do trabalho francesa e ao interacionismo simbólico. Uma breve reconstrução das teorias sociológicas da identidade laboral, com ênfase no mundo dos serviços, antecede a análise empírica de duas ocupações: serventes de limpeza e vendedores/as. A metodologia empregada recorre a uma triangulação de fontes, em que dados quantitativos de bases governamentais (Censo, PNAD e RAIS) são articulados com dados qualitativos primários e secundários. No caso de serventes de limpeza a contratação terceirizada afeta negativamente a dinâmica do reconhecimento, embora a depreciação do self remeta mais à construção cultural do "trabalho sujo" e à invisibilidade que caracteriza o trabalho em serviços, sobretudo em atividades que remetem ao trabalho doméstico, como limpeza, manutenção e conservação. Já os/as vendedores enfrentam dilemas relacionados a formas de interagir com o cliente, por sua vez influenciadas por estratégias gerenciais e de marketing, bem como deslocamentos identitários relacionados à crescente relevância da própria prática de consumir como marcador identitário na moderna sociedade de consumidores.

Palavras-chave: Sociologia do trabalho. Identidade laboral. Interacionismo simbólico. Setor de serviços.

ABSTRACT

The aim of the article is to analyze the construction of identity in services work. The work draws mainly on the French sociology of work and on Symbolic Interactionism. It starts with a brief reconstruction of sociological theories on labor identity, emphasizing the services sector. This is followed by an empirical analysis of two service occupations: cleaning workers and retail sellers. The method was based on triangulation of sources, associating quantitative data from Brazilian government agencies (Demographic Census, PNAD and RAIS) and qualitative primary and secondary data. In the case of cleaning workers, outsourcing contracts have a negative impact on the dynamics of recognition, although the low self-esteem is better related to a cultural construction of "dirty work" and to the invisibility that characterizes these jobs, mainly in activities akin to domestic affairs, like cleaning, repairing and maintaining. The retail sellers, in turn, face dilemmas related to the way of interacting with customers, which are influenced by management and marketing strategies, and also by identity shifts related to the relevance of consumption practices as identity markers in the modern society of consumers.

Keywords: Sociology of work. Work identity. Symbolic Interactionism. Service sector.

A expressão dilemas identitários tem algo de um oximoro, pois as alternativas contraditórias de um dilema contrastam com certos atributos específicos, perceptíveis que nos permitem identificar alguém ou algo. De fato, como poderia haver alguma dúvida ou indecisão ao se relacionar um signo tão indicial como as linhas digitais de um polegar a um indivíduo que é também reconhecido por nome e sobrenome? Entretanto, na maioria das interações e situações da vida social cotidiana não incorremos em identificações tão específicas, mas levamos em conta características mais comuns, como traços de gênero, idade, cor, características estéticas e também elementos que permitem inferir algo da posição social, do estilo e de preferências culturais, como formas de se vestir ou de falar, além de acessórios ou dispositivos tecnológicos. Sabemos, no entanto, que no mundo do trabalho algumas características são muito importantes, como a ocupação e o cargo, mas que uma identidade relacionada ao trabalho depende de outros fatores, como os tipos de formação e socialização escolar vivenciados nas trajetórias biográficas. Assim, o termo dilema identitário passa a transcender a dimensão retórica, oximórica e se deslocar para a própria construção intersubjetiva por trabalhadores e a interpretação da identidade laboral por pesquisadores e entidades encarregadas da normatização e regulamentação do trabalho.

Uma reconstrução das teorias sobre a identidade social seria inviável neste contexto. Entretanto, é imprescindível assumir algum posicionamento no campo híbrido dos estudos sobre identidade e na área emergente da investigação do trabalho em serviços para justificar as análises subsequentes, baseadas em pesquisas empíricas sobre as ocupações tão diferenciadas como serventes de limpeza e vendedores. O primeiro princípio que se adota aqui para compreender a identidade social é um tipo de dualismo metodológico que associa, de forma complementar ou dialética, o objetivo e o subjetivo, a estrutura e a agência, a explicação causal e a compreensão interpretativa, de certa forma presente em Bourdieu, Habermas, Norbert Elias, Giddens, além de outros. A dimensão objetiva da identidade reside em atributos institucionalmente conferidos, decorrentes de processos de socialização, como a educação familiar ou escolar e a capacitação profissional. O aspecto subjetivo é o reconhecimento, a identificação consciente, cognitiva e afetiva, dos atributos institucionalmente estabelecidos ou, em termos corriqueiros, do que os outros dizem que somos. Essa relação do que é "para nós" e o que é "para outros" conduz a valorizar epistemologicamente uma acepção linguística da identidade, que se encontra, por exemplo, em Goffman (1988, 2002), Honneth (2003), Ricoeur (1991) e Strauss (1999). Em organizações sociais mais simples, como encontros e reuniões, onde ocorrem interações e situações de fala, emergem identificações que enaltecem a autoestima, mas também estigmas e depreciações do self. Formas de nomear, classificar ou designar, "naturalmente" relacionadas a atributos fixos, impõem, mas também são resultantes de distinções que remetem a posições ou hierarquias sociais. Formas típicas de falar tornam-se "motivos" que orientam ações (Cf. Lyman, Scott, 1989) ou comportamentos que, culturalmente absorvidos e disseminados, podem caracterizar pessoas, grupos, classes e até nações. Assim, esses tipos de atos de fala que caracterizam, nomeiam, designam e fazem reconhecer, com frequência comportam uma função estratégica, pois constroem identidades, o que lhes confere uma dimensão de poder.

Considerar a identidade a partir da linguagem e dos atos de fala conduz a concebê-la como processo construtivo e numa dimensão temporal, histórica, em que se pode identificar determinadas formas identitárias que são reconhecidas nos âmbitos da tradição, da cultura ou até do direito. Nessa linha, há aproximação com dois tipos de reconstrução teórico-metodológica correlatos, elaboradas na epistemologia das ciências sociais: a trajetória histórica da emergência e reconhecimento do self, ou da pessoa social, elaborada por Charles Taylor (Sources of the Self, 1989) e a fenomenologia das socializações identitárias construída por Claude Dubar (2005, 2006). Só se pode expressar algum conhecimento sobre a própria identidade ou pessoa, ou seja, só é possível o self e a capacidade de objetivar o eu mediante a narrativa que o sujeito faz de sua própria vida, e das razões que o levam a agir com certo sentido e a partir de certos motivos, no decurso do tempo. As experiências passadas, vivenciadas pelo sujeito ou por outras pessoas, reais ou imaginadas, tornam-se disponíveis, como estoques de conhecimento (Cf. Schutz, 2003, p.64-5)

no fluxo da memória e são selecionadas para orientar o curso de sua ação. Esse processo seletivo de imagens, valores que integram os "pré-supostos" da ação social não é apenas perceptivo e cognitivo e orientado a certas finalidades, mas é também moral. A identidade, nesse sentido equivalente ao que Richard Sennett (1999) designa como caráter, está relacionada com a construção dessas narrativas, que dependem do que se toma como bens constitutivos para direcionar, de forma contínua e coerente as ações no curso da vida. Inscrevemos nossas experiências singulares nos eventos e na trama de relações sociais que constituem o mundo, quando construímos, de forma narrativa, histórias sobre nós mesmos. Esse tipo de identidade narrativa caracteriza a identidade pessoal, ou o self, para Paul Ricoeur (1997, p. 424).

Se considerarmos essa concepção, diríamos, de atos de fala identitários e da identidade narrativa para o plano histórico, transcendendo a questão da narrativa e sua relação com o tempo vivido, constataremos que as condições de efetivação de uma identidade narrativa são mais recentes e que outras formas identitárias foram predominantes no passado e, de certa forma, podem ainda vigorar, em certas conjunturas ou situações, em certos grupos ou formas de organização social. A fenomenologia das formas identitárias elaborada por Dubar em Crise das identidades (2006) permite a compreensão das identidades múltiplas, inclusive no mundo do trabalho, que aqui nos interessa. A forma identitária mais antiga é a comunitária ou cultural, em que o indivíduo se define em função do pertencimento a uma família ou grupo local, do qual herda os costumes e tradições, ostentando, por exemplo, num sobrenome de família o peso simbólico desses valores. A segunda forma de identificação, societária, implica uma internalização de formas de socialização institucionais, realizadas na família, na escola, em instituições profissionais ou agências estatais. Pode ser também designada como estatutária, já que, em virtude dessa forma de identificação, somos classificados em diversos estratos, em relação a sexo, ocupação, religião, idade, filiação partidária etc. As bases de dados governamentais empregam preponderantemente, fins de regulamentação e classificação e para o planejamento de políticas públicas, essa forma identitária, traduzida empiricamente em variáveis que alimentam indicadores sociais, como "ocupação", "posição na ocupação", "natureza do vínculo" etc.

O trânsito histórico de formas comunitárias a societárias envolveu a racionalização da produção e da divisão social do trabalho também nos serviços (com a institucionalização do controle burocrático) e conduziu às primeiras crises identitárias modernas. No entanto, o aprofundamento da crise ocorre com o crescente reconhecimento das formas de identificação "para si", como a forma "reflexiva", em que o indivíduo não se acomoda a categorizações institucionais, mas argumenta, negocia, procura se colocar como pessoa, evidenciando disposições morais e procurando consolidar um caráter. A forma reflexiva também pode ocorrer na construção ou reformulação de identidades coletivas. Um bom exemplo é a participação crescente, no Brasil, de categorias sindicais e profissionais, bem como de profissionais ou trabalhadores isolados, com trajetória profissional significante, na formulação de suas categorias ocupacionais na CBO – Classificação Brasileira de Ocupações.

A forma identitária em que se manifestam a criatividade, a subjetividade e, quando efetivada com sucesso, a autoestima e a autenticidade em maior grau. é a identidade biográfica narrativa, em cuja formulação Dubar reconhece a influência de Ricoeur. Orientado por essa forma identitária o sujeito não somente reflete tendo em vista suas motivações e inclinações, que podem inclusive contrariar a visão social de mundo dominante, mas age em função de seu projeto de vida e do horizonte de expectativas disponível no estoque de conhecimento herdado da tradição e da cultura dominante e disponível na memória. Essa reserva de conhecimento, no caso específico de seu emprego em atos de construção ou reconhecimento de identidades, na acepção pragmática aqui privilegiada, compreende expressões linguísticas, referências, vocabulários de motivos que permitam implementar estratégias de identificação de si e dos outros (Dubar, 2006, p. 50, nota 72), constituindo o que Dubar designou como recursos identitários.

O esquema conceitual de Dubar, reconstruído com base na contribuição de outros autores, é empregado aqui como uma tipologia ideal, no sentido weberiano, para orientar a análise da construção de formas identitárias em dois tipos de ocupações em serviços que compreendem formas de reconhecimento social distintas: serventes de limpeza e vendedores/as. A metodologia empregada na elaboração do artigo recorreu a uma triangulação de fontes (Cf. Denzin, 1989; Flick, 2009), em que dados quantitativos de bases governamentais (Censo, PNAD e RAIS) são articulados a dados secundários provenientes da literatura produzida sobre a temática e dados primários qualitativos produzidos em projetos de pesquisa correlatos.

1 A identidade no trabalho em serviços

O avanço indubitável do número relativo de vínculos ocupacionais nos serviços, em relação a outros setores contrasta com as avaliações divergentes que se fazem em respeito a suas consequências econômicas e sociais. A esperança do trabalho em serviços com alguma dimensão identitária virtuosa ou positiva diante do esgotamento do modelo de produção fordista respaldado pelo Estado-previdência, alimentou, sobretudo, uma literatura voltada à sociologia das organizações ou à sociologia econômica (Gadrey, Zarifian, 2002; Granovetter, 2005) Do ponto de vista analítico, há ênfase na tríade empregador-empregado-consumidor, valorizando a dimensão discursiva ou simbólica que estrutura as relações sociais de serviço.O modelo preconiza a unidade entre processo de trabalho e trabalhador, o que requer iniciativa, conhecimento prático e capacidade comunicativa na relação intersubjetiva entre colegas, mas também no diálogo com os clientes. Assim, o planejamento das competências deve reconstruir as etapas do trabalho em função das necessidades do cliente, orientando a produção efetiva de um serviço.

Por outro lado, há uma produção mais recente volta a uma abordagem crítica da identidade no trabalho em serviços, nuançada por diversas tendências, como o marxismo, a herança bourdiana, o interacionismo simbólico e a sociologia compreensiva. As leituras inspiradas no marxismo focalizam principalmente as ocupações mais próximas à produção, como teleoperadores/as (Braga, 2009; Venco, 2009), mas também a questões de gênero no mundo dos serviços (Kergoat, 2005; Segnini, 1998). A reconstrução crítica da sociologia de Bourdieu, realizada por autores como Claude Dubar, Luc Boltansky e Bernard Lahire originou diversas pesquisas sobre o tema, inclusive no Brasil e na América Latina (Rosenfield, 2004, 2009; Battistini, 2004). Outra contribuição influente na sociologia crítica dos serviços foi a teoria da macdonaldização. Ritzer (1998), inspirado em Weber, via na burocratização institucional a síntese do processo de organização racional. A macdonaldização exemplifica, para Ritzer, esse processo nas sociedades contemporâneas, e sua aplicação não se confina às redes de fast food, mas invade outros setores e esferas da vida social. A tese da macdonaldização foi relativizada por alguns autores interacionistas, como Marek Korczynski (2002) que criticaram uma suposta submissão inconteste do servidor diante da "soberania do consumidor" como máxima operante nas cadeias de fast food. Esses autores ressaltaram, em suas pesquisas, o papel ativo do trabalhador em serviços interativos na negociação e afirmação positiva de seus selves ameaçados pela padronização de procedimentos ou frente à valorização das necessidades e expectativas do consumidor como estratégia da empresa.

A questão da identidade laboral e, especificamente, da identidade no trabalho em serviços, ganha novas perspectivas com a contribuição dos estudos sobre a cultura do trabalho e a sociologia do consumo. Pressupondo que o indivíduo contemporâneo não se identifica única ou primordialmente com o trabalho, mas se orienta por valores familiares, políticos e culturais relacionados a outras formas de socialização, é difícil não reconhecer a importância que o consumo tem assumido nas formas identitárias. Não se trata mais de possuir ou ter a propriedade de coisas, mas de experienciar o próprio consumo e de tornar possíveis situações de consumo distintivas de posição social e constitutivas de atributos identitários cultural ou socialmente valorizados: relações de crédito, serviços pessoais, e, sobretudo, acesso aos serviços mais diversos (médico-odontológicos, de turismo, educacionais, desportivos, artísticos, sexuais etc.), disponíveis para escolha e acesso individual no mercado. A experiência do consumo desloca a ênfase crítica na indústria cultural ou na publicidade que foca determinados produtos, para a própria sociedade de consumidores (Cf. Bauman, 2008), em que as identidades múltiplas e contingenciais desses consumidores é que impulsionam o marketing e orientam o que produzir e quando, e não o inverso. De fato, se a distância entre mercado e produção praticamente se desvanece com os sofisticados sistemas de comunicação e produção de informações, que possibilitam o controle da produção diante do fluxo das demandas e dos meios de distribuição disponíveis, diminui a eficácia de, digamos, uma indústria cultural que direcionaria as vontades e impulsos de consumo, diante da inesgotável capacidade reflexiva que as flutuações na identidade do consumidor apresentam para reorientar a produção e torná-la mais rentável.

1.1 Características do mercado do trabalho em serviços no Brasil

O Brasil, nos últimos dez anos, tem se equiparado aos países de economia mais desenvolvida, no que se refere ao crescimento relativo das ocupações em serviços no mercado de trabalho. Evidencia-se o deslocamento progressivo de vínculos no setor primário (agricultura e extrativismo) e do setor produtivo (indústria, construção e serviços industriais) para o terciário (comércio e serviços). No entanto, conforme já foi documentado em pesquisas anteriores (Melo, 1998; Nunes, 2009) há uma expressiva heterogeneidade no setor que agrupa ocupações de alto nível de qualificação e intensivas em conhecimento, mas preponderantemente vínculos de qualificação baixa e atividades elementares. Manifesta-se no Brasil uma das características mais pronunciadas do mercado de serviços: a orientação por gênero e a distribuição desigual de rendimentos em relação ao sexo. Agregando as ocupações de serviços com base na classificação de grandes grupos empregada pelo IBGE2 2 Houve uma mudança em relação à classificação brasileira de ocupações no Censo 2010, em relação ao Censo 2000. A Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares (COD), passou a ser empregada em pesquisas domiciliares pelo IBGE a partir do Censo de 2010, substituindo a CBO-Domiciliar. A intenção foi torná-lo compatível, pelos menos em dois dígitos, com a Clasificación Internacional Uniforme de Ocupaciones CIUO-08, criada pela Organização Internacional do trabalho. Para um detalhamento maior das diferenças entre as duas classificações e a comparação destas com a CIUO-08, consultar http://www.ibge.gov.br/home/ estatistica/indicadores/sipd/oitavo_forum/COD.pdf. em 2010, constata-se a presença das mulheres preponderante em ocupações de serviços administrativos (grosso modo, ocupações como secretárias, que integram o white collar), o grupo ligado a comércio e vendas, sendo minoritária no de diretores e gerentes que, ressalta-se, é o grupo bem remunerado.

Na Tabela 13 3 Na Tabela 1 não estão incluídas as "ocupações mal definidas", em que as respostas dos informantes não se adequaram à Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares (COD). O número de ocupações mal definidas no Censo de 2010 correspondeu a 7,8% do total, taxa particularmente alta em 2010, provavelmente em relação à mudança da grade de classificação. evidencia-se que o outro lado da feminização, isto é, a distribuição desigual dos rendimentos no mesmo grupo ocupacional, em relação ao sexo. Uma exceção é o caso dos militares, em que as mulheres aparecem com rendimento mensal médio superior ao dos homens. O resultado, no entanto, não daria margem para assegurar sequer uma isonomia, já que o número de mulheres é relativamente muito menor em relação ao de homens (5,8%), além de que a entrada das mulheres nas forças armadas, incluindo os bombeiros, é muito recente e as mulheres ocupadas provavelmente ingressaram em níveis superiores, já que o serviço militar não é obrigatório para mulheres. No grupo de profissionais da ciência e intelectuais, em que as mulheres são a maioria (59,5%), provavelmente se trata de professoras de níveis elementares (contingente que ingressou nesse grande grupo em 2010, com a mudança na classificação), pois a média salarial é quase o dobro para os homens. O grupo de ocupações elementares, que agrega o trabalho doméstico, mas também formas atípicas de trabalho, como vendedores ambulantes, reserva às mulheres, no campo em que a precariedade é maior, uma remuneração inferior à dos homens e ainda abaixo de um salário mínimo.

No entanto, o alto nível de agregação não nos permite ainda perceber a identidade ocupacional preponderante no Brasil e muito menos sua associação com o gênero. Quais são as ocupações que podem inequivocamente expressar a "cara" do trabalhador no Brasil? Uma análise dos microdados do Censo de 2010 mostrou que, dentre as 441 ocupações que integram a COD, empregada para classificar os 86.353.839 ocupados (de uma amostra de 20.635.472 entrevistados) a maioria é de empregados domésticos, beirando os 5 milhões (94,4% são mulheres). A seguir estão balconistas e vendedores, seguidos de pedreiros, que integram uma ocupação do setor produtivo tipicamente masculina. Em seguida figuram três ocupações no campo, sendo a primeira elementar e as seguintes um pouco mais qualificadas. As próximas são: motoristas, escriturários, comerciantes (destes, alguns provavelmente, já empregam vendedores e balconistas), trabalhadores de limpeza no interior de edifícios. Já fora da lista apresentada das dez ocupações mais frequentes, vem a tão importante categoria de professores de ensino fundamental.

Os resultados indicam uma distribuição ocupacional no Brasil que ainda reflete uma herança colonial, a despeito dos esforços de industrialização. O trabalho doméstico, remunerado ou não, está por trás de ocupações ligadas ao ramo de limpeza e conservação em edifícios, uma ocupação elementar, que está entre as dez primeiras. As ocupações de serviços mais frequentes estão ligadas ao comércio e a vendas, mostrando que o Brasil dos serviços não está preponderantemente relacionado a serviços sociais, como saúde e educação, mas a atividades relacionadas ao consumo de bens.

Nota-se que duas das ocupações de serviços que serão a seguir analisadas estão entre as dez mais características do trabalho no Brasil: vendedores/as e serventes de limpeza. A análise recorre a microdados de bases oficiais, como o Censo, a PNAD e a RAIS e à literatura disponível na área de sociologia do trabalho em serviços ou correlatas (economia, psicologia e administração), sobretudo artigos, teses e dissertações, já que o tema é bastante específico. Neste aspecto quero ressaltar a contribuição de duas orientandas, que defenderam suas dissertações e trabalhos finais de curso sobre a temática aqui considerada: Lúbia Gonzaga Dutra (2012) e Tatiele Pereira de Souza (2011).4 4 As transcrições de entrevistas realizadas por Souza (2011) e Dutra (2012) integram o banco de dados qualitativos no LAMPCS – Laboratório de Metodologia e Pesquisa da FCS//UFG. Tatiele P. Souza realizou 30 entrevistas com trabalhadoras/es serventes de limpeza, supervisoras e uma gerente de RH em instituições públicas e privadas nas cidades de Goiânia-GO e Campinas-SP, entre julho de 2008 a maio de 2010. Lúbia G. Dutra realizou , entre fevereiro e abril de 2011, 54 entrevistas com vendedoras/es e gerentes em estabelecimentos de comércio de duas empresas de varejo bens duráveis, além de entrevistas com clientes, também nas cidades de Goiânia-GO e Campinas-SP. As citações de entrevistas referentes aos dois projetos de pesquisa provêm do mencionado banco de dados qualitativos do LAMPCS e algumas trechos também estiveram presentes nas dissertações das duas autoras, elaboradas no contexto do projeto Trabalho, gênero e participação: identidade, associativismo e políticas de emprego e renda, que obteve financiamento do PROCAD – Programa de Cooperação Acadêmica Novas Fronteiras, associando dos programas de pós–graduação em Sociologia da UFG e em Ciências Sociais da Unicamp, de 2009 a 2013.

2 Serventes de limpeza: o salto na subalternidade

A ocupação de servente de limpeza, ou faxineiro(a), integra a família Trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações, da Classificação Brasileira de Ocupações. O serviço compreende atividades como lavar fachadas, limpar vidros, móveis e equipamentos, superfícies (paredes, pisos, etc.), aspirar pó, lavar pisos, encerar pisos, remover sujeira, varrer e secar pisos, limpar cortinas e persianas e recolher lixo. Tais atividades podem ser realizadas em recintos fechados ou a céu aberto; deve-se ressaltar que o serviço é realizado em instituições, empresas ou indústrias, isto é, fora do ambiente doméstico. Assim, o servente de limpeza distingue-se dos populares garis, que são trabalhador de serviços de limpeza e conservação de áreas públicas. São serviços de baixa qualificação, a que se associa, culturalmente, traços de servilidade. Alguns autores que analisaram serviços de baixa qualificação (low profile jobs) aproximam essas atividades do trabalho reprodutivo, doméstico, ligado à manutenção da pessoa e realizado sobretudo por mulheres, imigrantes ou negros/as. Tais serviços, considerados "sujos", são mantidos na invisibilidade, nos bastidores, assim como aqueles/as que os desempenham (Gleen, 1996; Duffy, 2007). Anna L. O. Almeida argumenta que os serviços de baixa qualificação, em geral, ainda comportam uma conotação pejorativa, remanescente do tempo em que uma minoria tinha a sua prestação garantida por relações de dominação: o poder de poupar-se dessas tarefas e comandar o trabalho de escravos ou vassalos na sua execução definia a posição hierárquica do membro da classe dominante (Almeida, 1976, p. 57).

Análises recentes de serviços de limpeza e conservação no Brasil (Diogo, 2005; Costa, 2008; Souza, 2011) ressaltam uma identidade social negativa, invisibilidade e a humilhação social a trabalhadores/as no setor. Essa característica, que também se verifica em outros países, é aqui acentuada por aspectos da formação social e do mercado de trabalho no Brasil. Pode-se constatar que o processo de formação do mercado de trabalho assalariado no Brasil perpetuou relações de poder baseadas em laços paternalistas e servis (Cf. Kowarick, 1994, p. 29)

Fernando Costa realizou, durante dez anos, um intensivo estudo incluindo observação participante e histórias de vida entre garis no campus da USP, ressaltando a invisibilidade pública de trabalhadores de baixa qualificação (2008a, 2008b), com base em estudo etnográfico sobre o trabalho dos garis e suas memórias quando aposentados. No entanto, remete a trabalhadores/as em outras ocupações que compartilham uma situação similar, como vigilantes e serventes de limpeza. Para o autor a invisibilidade pública é caracterizada pelo "desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens", resultante de se tratar uma pessoa apenas pelas funções que executa e abstraindo o sujeito que a executa. A situação está relacionada a dois fenômenos psicossociais: humilhação social e reificação. (Cf. Costa, 2008b, p. 17).

Maria Fernanda Diogo e Tatiele Pereira de Souza pesquisaram o trabalho de serventes de limpeza terceirizados em instituições públicas de ensino. Assim, aos marcadores de identidade negativa relacionados à invisibilidade em serviços de limpeza e conservação acrescenta-se a discriminação pelo fato de serem terceirizados e não efetivos. O atributo da invisibilidade e da imaterialidade é reforçado no caso dos serviços de limpeza e conservação, pois a "invisibilidade" da sujeira, dos resíduos e da desorganização dos objetivos atesta o bom trabalho executado. A fala de Silmara, servente entrevistada por Tatiele Souza que prestava serviço numa IES em Goiânia, é exemplar nesse sentido: porque igual eu acabei de explicar você morre de trabalhar e ninguém vê o que você fez, só vê o seu erro, você errou um pouquinho eles já vêem, é muito difícil alguém elogiar quem fez. (risos) Eu não me lembro de receber elogio não.

A invisibilidade torna-se ainda mais dramática quando se examina as condições em que são alojadas as serventes de limpeza, já que os homens serventes geralmente trabalham em espaços abertos, nos jardins e terraços dessas instituições, enquanto as mulheres ocupam os espaços internos dos prédios. A divisão sexual das atividades ilustra uma clara herança dos arranjos domésticos, em que o homem trabalha na rua, no domínio público e a mulher no espaço privado da casa. A descrição de Souza dos locais em que as serventes de limpeza são instaladas ilustra a precarização nas condições de trabalho:

Na IES pública da cidade de Goiânia, grande parte das trabalhadoras(es) leva a comida de suas residências; há outras trabalhadoras(es) que preparam a comida na instituição mesmo, nos chamados "quartinhos" que se localizam, geralmente, em baixo da escada, são locais pequenos, sem janelas e ventilação, compostos, na maioria das vezes, por uma mesa, um banco, um fogão e uma geladeira velha. Na IES-CG [IES privada confessional em Goiânia], grande parte das trabalhadoras(es) também levam sua refeição de casa e esquentam em locais que são destinados a seu descanso e ao almoço. Um desses locais, em que visitei, fica no último andar do prédio, em uma parte em que se encontram as tubulações; nesse local que estão um fogão, um sofá velho e uma mesa, em que as trabalhadoras (es) almoçam e também descansam. (Souza, 2011, p. 65)

A condição de efetivo funciona como marcador identitário nas instituições que empregam serventes de limpeza terceirizados/as. Diana Assunção, então diretora do Sindicato de Trabalhadores da USP, analisou o movimento grevista organizado pelas trabalhadoras de limpeza, com apoio de determinados segmentos estudantis e sindicais da própria universidade, motivado por salários e benefícios atrasados, além de péssimas condições de trabalho (2011). Assunção relata as queixas de trabalhadores/as sobre a forma como funcionários efetivos da USP e estudantes os/ as tratavam, como se fossem empregados deles. Impedidos de se alimentarem no restaurante universitário, em muitas unidades não havia sequer um "quartinho" para improvisarem suas copas e foram descobertos casos onde muitos deles não tinham onde almoçar e eram obrigados a comer suas marmitas em banheiros. (Assunção, 2011, p. 45)

Diogo ressalta que o conjunto dessas condições dificulta muito o estabelecimento de uma dinâmica de reconhecimento (Cf. Dejours, 2001):

Para a psicodinâmica do trabalho, este reconhecimento gera uma vivência de satisfação no indivíduo, equilibrando a relação prazer/desprazer, evitando ou diminuindo a carga de sofrimento e mantendo a mobilização subjetiva do/a trabalhador/a pró-trabalho (Diogo, 2005).

As serventes não são reconhecidas nem pela instituição pública em que prestam serviços, que as diferenciam de outros funcionários, nem pelo valor econômico e utilitário de seu trabalho, nem ainda pelos próprios pares, já que há funcionários que ainda são estatutários ou que ingressam como serventes estatutários e assumiram outras ocupações.

O perfil dos/as serventes de limpeza nos estados de Goiás, São Paulo e Santa Catarina, onde foram realizadas as pesquisas de Diogo, Souza e Costa, pode ajudar na caracterização identitária. A faixa de idade média dos trabalhadores é 40 anos e a feminização permanece na ocupação nos três estados, com predominância em Santa Catarina, onde chega a 83,4% de 43.261 serventes, para 76,2% de 330.999 serventes em São Paulo e 72,9% de 23.182 serventes em Goiás. Os salários variam pouco nos três estados, ficando em torno de 1,25 salários mínimos em média. O tipo de vínculo empregatício é predominantemente pela CLT. Os estatutários constituem 7,3% em Santa Catarina, 12,6% em Goiás e apenas 4,7% em São Paulo5 5 Os dados aqui apresentados são provenientes dos microdados da RAIS 2011. Daí se explica por que a condição de não terceirizado, nos casos aqui comparados de serventes terceirizados em instituições de ensino superior, representa um marcador identitário forte.

Se o vínculo estatutário constitui um plus identitário na categoria, sua perda a partir de quando se intensificaram as terceirizações no Brasil, em meados da década de 1990, traduziu-se numa depreciação da auto-estima até o nível patológico, em muitos casos. Contudo, é preciso considerar com cuidado esse aspecto, pois houve também um movimento ativo de readaptação às novas condições que apresenta uma dupla face. Por um lado tratava-se de responder ao sentimento de desfiliação, para os que mantinham as mesmas funções, mas com menos direitos garantidos, sindicato menos combativo, substituição de formas de autoridade e subordinação. Por outro, a própria categoria de funcionários da IES, como secretários, técnicos etc., via-se na necessidade de "transformar" os colegas cuja condição estatutária havia sido mantida, para uma nova configuração identitária. O depoimento de Carina6 6 Os nomes de informantes são fictícios. Em todas as entrevistas citadas neste artigo foram respeitadas as diretrizes da CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, para pesquisas envolvendo seres humanos, inclusive a assinatura de um termo de consentimento pelos/as entrevistados/as. , funcionária aposentada da IES pública de Campinas, exemplifica esse processo:

A Universidade em nenhum momento fez um movimento 'vem cá, serventes, vamos fazer um curso de atendimento ao cliente e você pode ficar na recepção, vamos aprender o que é um processo você pode trabalhar nas coisas mais simples, formalização do processo'... Não! Foram movimentos humanitários mesmo. Nós demos aula na época de datilografia pra algumas delas. E fazia redação e voltava, então o que eu me lembro pra mim ficou uma divisão alguns sentiram preteridos porque achavam que podia varrer, podia limpar e outros...

Na IES de Goiânia também ocorreu processo similar. Estatutárias assumiram algumas funções administrativas, mas poucas chegaram ao nível funcional de secretárias, tornando-se funcionárias que realizavam ou ainda realizam funções mais simples, como atender ou efetuar chamadas telefônicas, transportar correspondência etc. O nível de escolaridade e o capital cultural de que dispunham não foi suficiente, mesmo com as tentativas solidárias de equiparação, para que lograssem desempenhar funções administrativas stricto sensu. Em alguns casos, houve não só a transformação de figuras identitárias, mas a própria constituição de uma nova seção administrativa, como ocorreu na IES de Campinas, com a criação de uma área de "serviços complementares", onde eram aproveitados perfis identitários híbridos diante da novas situações de trabalho e configurações de autoridade. Carina, que era sindicalizada atuante em seu tempo de estatutária, inclusive ainda na época da ditadura militar, saiu da sessão onde trabalhava, com a terceirização, para nova área que "historicamente nada tinha a ver com a limpeza":

Era uma área de protocolo, arquivo e patrimônio antigamente. Chamava complementar porque tinha essas diferenças. Quando eu fui para essa área, eu levei comigo esse serviço que ficava na Coordenadoria e não tinha onde ficar ali. Levei algumas coisas entre elas o contrato de limpeza. Aí já com o contrato mesmo! Qual o papel de serviço complementar hoje? O gestor é o responsável pela a área de Serviços Complementares que sou eu, e assim são os olhos para todos os espaços comuns. A gente tem uma zeladoria com pessoas que eram... O tapeceiro, que não tem mais tapeçaria, o almoxarife que terceirizou e ele veio pra cá... Agora os espaços comuns como corredor, banheiro, auditórios esses são a Isaura, como já trabalhou na limpeza eu confiei muito nos olhos dela para ajudar a compor o boletim único, e é ela quem fica.

A administração sutilmente transformou em "supervisores" serventes antigos estatutários que conheciam o corpo de funcionários de limpeza da instituição, ao mesmo tempo reconstruindo laços de sociabilidade para funções novas ou adaptadas, reerguendo a autoestima de selves descontextualizados devido à extinção da demanda institucional por suas qualificações originais.

Finalmente, destaca-se um tipo de dilema identitário que se deve mais ao aspecto subjetivo de reconhecimento do que a mudanças institucionais ou estratégias administrativas ou associativistas. Várias mulheres hoje ocupadas como serventes de limpeza trabalharam antes como empregadas domésticas, por vezes até sem remuneração. Muitas também alternam períodos em serviços domésticos intercalados com períodos como faxineiras ou serventes de limpeza. Há também as que sobrepõem os dois vínculos, como por exemplo como diaristas e serventes de limpeza. Prevalece, contudo, uma trajetória típica: origem em família pobre em pequena cidade do interior ou na zona rural; período de trabalho sem remuneração em casa de parente próximo ou afastado em situação de vida relativamente melhor; período de trabalho sem remuneração ou com alojamento e comida já em cidade grande ou capital, como empregada doméstica pega para criar, ou filha de criação; tempo de trabalho como doméstica mensalista, geralmente sem carteira assinada; início no trabalho registrado na ocupação de servente, geralmente em instituições que terceirizam serviços de limpeza; uma ou mais uniões conjugais estáveis, geralmente com filhos, em meio a esse tipo de trajetória. Ainda que esse percurso biográfico tenha sido mais comum nas instituições que Souza pesquisou em Goiânia-GO do que em Campinas-SP, o depoimento de Eliana, trabalhadora da IES-C, é eloquente. Nasceu no interior de São Paulo e começou a estudar com sete anos; ao mesmo tempo trabalhava: Eu estudava de manhã ou à tarde, se eu estudasse à tarde, de manhã eu ia para roça, voltava para casa, tomava um banho, almoçava e ia pra escola. E assim foi até os dezessete anos. A servente narra que intercalava o trabalho no campo com o serviço de doméstica, que começou a ocupar a partir dos doze anos:

parei de ir à roça e fui trabalhar de doméstica, fui babá, aí dei uma melhoradinha e tal, quando ficava desempregada voltava pra roça. O único trabalho lá era roça ou então doméstica. E doméstica era muito pouco na época pra mim.

Para conciliar o trabalho de doméstica com os estudos Eliana estudava no período noturno.

Há casos em que o trabalho infantil e a violência doméstica levam a que se considere o trabalho em condições subalternas, até não remunerado, como um tipo de favor. Maitê, trabalhadora da IES particular confessional em Goiânia, morava em Araçu, no interior de Goiás e veio para Goiânia com sua mãe gestante, que estava fugindo da violência do marido, aos oito anos de idade. Como a mãe da entrevistada não podia trabalhar, Maitê, ainda aos oito anos de idade, conseguiu uma ocupação (foi até minha tia que arrumou um trabalho para mim), mas a garota não tinha ainda estrutura física para suportar o tipo de trabalho doméstico. Assim, a tia deixou a menina aos cuidados de outra pessoa, uma senhora que procurava alguém para cuidar de seus filhos. A servente entrevistada considera que, nesse momento, sua vida começa a melhorar: essa mulher me ajudou muito, muito mesmo porque minha mãe veio grávida da minha irmã caçula, ela deu o enxoval todinho para minha mãe porque ela não podia trabalhar, era só eu (Souza, 2011, p. 140). Na interpretação de Tatiele P. Souza,

a trajetória da trabalhadora pautada na violência doméstica, na pobreza e na necessidade de trabalho permite que Maitê atribua sentidos positivos na inserção ao trabalho doméstico, ainda na infância. O trabalho aparece como uma salvação, pois, sua mãe não podia trabalhar e sua patroa é considerada boa, por ter ajudado sua mãe com o enxoval, entre outras coisas. (Souza, 2011, p. 140)

No entanto, essa constituição identitária paradoxal pode ser transitória, pois as inúmeras atividades do trabalho doméstico, aliadas à dupla jornada que surge com casamento e filhos, por exemplo, podem originar outro tipo de conformação identitária que se verifica na trajetória das serventes: a valorização positiva da identidade estatutária adquirida com o vínculo formal registrado, a carteira, os benefícios conquistados, como décimo terceiro, férias, auxílio doença, jornada fixa etc., diante da precarização exacerbada e da subalternidade que experimentara antes em sua trajetória. Em outras palavras, trabalhar como servente pode gerar alguma autoestima a mulheres que experimentaram uma forma identitária comunitária que lhes foi desfavorável e estigmatizante. Verônica, 44 anos, natural da Bahia, chefe de família com quatro filhos, escolaridade até a oitava série do ensino fundamental, atualmente solteira, trabalha como auxiliar de serviços de limpeza numa instituição de ensino superior confessional privada, em Goiânia. Com experiência no trabalho doméstico informal desde os doze anos, Verônica comenta as diferenças entre as duas ocupações:

Trabalhar de doméstica numa casa a gente é muito humilhada, eu acho que é porque eu já sofri muita humilhação. Vamos supor, se eles iam almoçar ou vinham pessoas para almoçar a gente tinha que esperar eles todos comerem depois, quando sobrava, que a gente ia comer> Quando eu trabalhava na casa dos outros a patroa explora você o máximo que pode, não é como a empresa hoje, que tem leis trabalhistas que nos defendem;, a gente que trabalha nesse serviço aqui as leis defende muito mais do que defende as domésticas. Então qualquer coisa a gente vai lá e reclama, vai no ministério do trabalho, vai na justiça do trabalho então eles caem em cima eles vem saber. Então eu acredito que há diferença sim! Doméstica eu não quero não.

Um recurso à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) pode demonstrar que dilemas como os de Verônica e Maitê, que experimentaram ou experimentam em suas trajetórias o trabalho doméstico, geralmente informal, e o trabalho como servente de limpeza são comuns no Brasil. Segundo os microdados da PNAD de 2011, das 47.595 serventes ocupadas estimadas no Brasil que tiveram um trabalho anterior no ano de referência, 37% delas trabalham na mesma ocupação, em outro emprego, mas 34%, ou seja, 16.225 haviam trabalhado em serviços domésticos. Dentre as 45.213 serventes que mantinham um segundo vínculo simultaneamente no ano de referência, 28,3% estavam no trabalho doméstico, enquanto 10,5% tinham outro vínculo como serventes de limpeza.

3 Serviços de vendas: identidade laboral e identidade do consumidor

O levantamento amostral do Censo de 2010 estima em 3.620.255 o número de trabalhadores/as ativos/as na família ocupacional de vendedores e balconistas, sendo 42,9% de homens e 57,1% mulheres, o que indica uma predominância feminina, ainda que não a ponto de considerarmos tal família ocupacional como significativamente orientada por gênero, como ocorre, por exemplo, em trabalhadoras/es domésticos/as ou motoristas. No mercado formal de trabalho a RAIS indica 3.100.852 trabalhadores/as em 2010, 52% homens e 48% mulheres. Verifica-se uma discrepância salarial de 22% entre sexos, com homens obtendo salário médio anual de 1,95 s.m. e as mulheres de 1,6 s.m. A faixa modal de escolaridade é o ensino médio completo (63,4%), com 30,3% até o ensino médio incompleto. O impressivo número de pessoas que trabalham no setor de vendas contrasta, no entanto, com uma relativa indefinição identitária, pois não há uma identificação imediata entre a ocupação e a imagem laboral assim como há, por exemplo, em empregadas domésticas ou motoristas. Há poucas categorias de vendedores em que ocorre autorreconhecimento identitário espontâneo, quando se indaga a respeito, talvez no caso de vendedores de carros ou de imóveis. É possível a identidade simbólica (religiosa, político-partidária etc.) predomine em atos identitários de vendedores ou balconistas, em relação à identidade ocupacional, pois é muito comum um tipo de identificação relacionado à atividade econômica, geral, ou ao estabelecimento ou empresa: trabalho com vendas, trabalho na empresa (ou loja) Tal.

A análise dos serviços de vendas interativos, como os de vendedores ou balconistas, trabalhadores "de chão de loja", parece requerer a investigação de relações entre empregadores, vendedores e clientes. Contudo, na literatura sobre serviços é comum a ênfase em um dos tipos de relações envolvidas, como entre a administração e os funcionários, privilegiada na análise de Hochschild dos serviços de atendentes, aeromoças ou recepcionistas (1983), ou das interações entre vendedores e clientes, como no livro Making Sales, de Robert Prus, sob a ótica do interacionismo simbólico (1989). Optou-se aqui por examinar a identidade de vendedores no contexto de uma sociedade de consumidores, onde ocorre um deslocamento identitário.

A identidade pessoal do trabalhador, no contexto do regime de acumulação fordista, amparado pelo Estado do bem estar social, está ancorada na naturalização do papel do homem provedor e da mulher reprodutora, no âmbito doméstico, de forma que a estabilidade do homem na esfera pública está relacionada a uma subordinação da mulher nos arranjos domésticos. A progressiva entrada da mulher no mercado de trabalho, por um lado, e a exigência de novas qualificações e da polivalência funcional nos regimes pós-fordistas, desencadearam um deslocamento identitário. A mulher moderna, já trabalhando "fora" ou vislumbrando o mercado de trabalho, não mais se reconhecia apenas como "dona de casa" e queria reduzir o tempo nos afazeres domésticos, em favor de uma nova identidade a ser conquistada já no campo público. A disponibilidade de eletrodomésticos no mercado impulsionava a transição. Esses utensílios tinham que ser práticos e acessíveis e valorizava-se o produto barato, funcional e durável. No entanto, a propaganda desse tipo de bens, como fogões, geladeiras, liquidificadores etc., não enfatizava tanto as qualidades do produto e o preço acessível, mas a "natural" compatibilidade com a imagem da dona de casa no arranjo doméstico então tradicional, que já incluía a mulher trabalhando sobretudo em serviços pessoais e administrativos, em que as jornadas mais curtas que favoreciam a conciliação doméstica com o "provedor".7 7 Goffman empreende, em Gender Advertisements (1979) uma análise pioneira da relação entre o enquadramento perceptivo relizado pela publicidade em revistas femininas e os arranjos domésticos nas sociedades urbanas pós-industraiais.

No entanto, se olharmos do ponto de vista do consumidor, pode-se constatar que a ideia do melhor preço ainda permanece para muitos. Lúbia Gonzaga Dutra (2012), que analisou a identidade e o trabalho de vendedores de bens duráveis, registrou alguns depoimentos nesse aspecto, como o de Emanuel (60 anos e cliente de uma loja de shopping de bens duráveis), que manifestou o desejo de encontrar "o produto que a gente quer e um preço que cabe no bolso da gente". Porém, a cultura numa sociedade em que a própria prática de consumo se torna um marcador de identidade altera significativamente o sentido dos termos que Emanuel empregou. "O que a gente quer" não é apenas o que o indivíduo deseja, mas o que seu self reconhece como apropriado no grupo social com que mais convive, seja a família extensa, a vizinhança, os colegas de trabalho ou até membros de redes sociais virtuais de que participa. O "bolso da gente" ficou consideravelmente maior com a expansão do crédito a camadas da população antes alijadas desses direitos.

Ainda assim, o consumidor deseja pagar o menor preço num mercado competitivo e seus recursos de pesquisa do mercado aumentaram muito com os mecanismos de busca na internet. Daí a mudança que se requer hoje no perfil do vendedor. Contudo, o modelo administrativo predominante, pelo menos no que se refere à venda de eletrodomésticos em lojas de rua e de shoppings de empresas do ramo suprarregionais ou nacionais, a exemplo de Ponto Frio, Ricardo Eletro, Casas Bahia e outras, ainda é aquele designado por vendedores e gerentes como o de "bater metas", que compreende, pelo lado da empresa, as seguintes estratégias:

estabelecer a remuneração dos trabalhadores de chão de loja como uma composição entre salário fixo e comissão sobre o valor da venda de produtos e serviços, estabelecer cotas e metas sobre o valor da venda de produtos e serviços e atrelar a comissão dos trabalhadores em vendas às metas (Dutra, 2012, p. 106).

Essa prática, relacionada a um estilo de vendas que se limita à pressão e persuasão para que o cliente compre em determinados momentos, é considerada hoje obsoleta em comparação a um marketing voltado às preferências e necessidades do consumidor.

Um dilema frequente entre vendedores de bens duráveis está entre adotar uma atitude mais orientada ao cliente ou privilegiar o modelo de metas, que lhe pode trazer imediatamente um rendimento maior, apesar de redundar em competitividade exacerbada e rivalidade entre colegas no ambiente de trabalho. Voltar-se ao cliente implica uma colocar-se em lugar de outro, uma abertura hermenêutica e compreensiva, visando a identificação do que pode agradar a um tipo de cliente que, no limite, resulta no esmaecimento da distinção entre funcionário e consumidor.

As estratégias de venda atualizadas aos ditames da "sociedade de consumidores" requerem profissionais como consultores de venda, replicadores de estratégias ou programas de venda, além de outros. Os vendedores são apresentados e treinados nas novas técnicas de valorização do cliente por meio de cursos realizados na própria empresa ou desenvolvidos por entidades privadas do sistema S, como o Curso à Distância em Gestão do Varejo, oferecido gratuitamente pelo SENAC. Capacitando-se nessas novas áreas os vendedores "renovados" aprendem a "focar no cliente", a pesquisar necessidades e demandas de clientes típicos. Essa atitude não é contraditória ao tipo de socialização que vivenciaram muitos vendedores, conforme constatou Dutra em sua pesquisa. A maioria dos 54 vendedores entrevistados relatou que seus pais também trabalhavam em atividades de serviços. Há geralmente uma identificação positiva com a ocupação, geralmente com a justificação de que a atividade combina com seu self comunicativo e relacional, além de possibilitar ganhos pessoais, como reconhecimento e amizades, além de maiores ganhos econômicos, de acordo com o desempenho individual (Dutra, 2012, p. 66). Ora, ser comunicativo e relacional, ter competência para desenvolver com sucesso relações interpessoais constituem atitudes que se alinham à máxima de que "vender é fazer amigos, é fazer clientes", hoje tão propaganda em cursos de gestão no varejo. No entanto, essa postura contraria o empreendedorismo individualista que, num sistema de remuneração que combina salário fixo com comissões, prêmios e incentivos, acaba privilegiando quem "vende mais".

O sociólogo Paul du Gay analisou (1996) a transformação na identidade de trabalhadores em vendas no varejo diante de um tipo de consumo que também se modifica em razão de mudanças na produção e no mercado. Uma produção taylorizada que desencadeava a produção em massa de produtos estandardizados e, por seu baixo custo de produção e valor de venda, acessíveis a segmentos de baixo poder aquisitivo, dá lugar a um tipo de produção flexível, capaz de atender à demanda de consumidores estratificados e socialmente posicionados, pelo menos em alguma medida, em razão de suas preferências e gostos. Na esfera da produção surgiram estratégias de controle e otimização, como o processo just-in-time e os cartões kanban, em funções de fatores que estariam a montante ou a jusante da própria linha ou célula de produção, como disponibilidade e custo dos componentes nos fornecedores, viabilidade ou não de recursos para distribuição e flutuações na demanda. No entanto, a inspiração para sistemas como o kanban veio de um problema típico dos serviços distributivos, visível principalmente em estabelecimentos de maior porte, a exemplo de super e hipermercados: como controlar o estoque e os preços garantindo ao consumidor a reposição de mercadorias nas prateleiras para atender aos mais diversos gostos e faixas de poder aquisitivo? No campo dos serviços de venda de eletrodomésticos de linha branca ou marrom há um problema similar e mais complexo, pois há interação entre vendedor e cliente e o jogo situacional de interrelações que envolve a venda pessoal não foram eliminados. Assim, surge o marketing de relacionamento, desenvolvido a partir da crítica às estratégias tradicionais, nas quais o vendedor se adiantava, pressupondo um papel passivo por parte do consumidor. Trata-se agora de estabelecer, manter e ampliar o relacionamento com outros parceiros, para obter lucratividade, com base em objetivos comuns das partes envolvidas (Grönross, 1997, p. 91), o que requer a identificação de valores dos clientes, mas também a criação de novos valores que possam ser compartilhados em virtude das expectativas e necessidades dos consumidores.

Orientados por uma estratégia empresarial que valoriza o gerenciamento humano interpessoal, os trabalhadores são encorajados a se colocarem no lugar dos seus clientes, para oferecer um tipo de serviço que eles mesmos gostariam de receber. No entanto, o marketing de relacionamento não está ainda consolidado no Brasil e os estabelecimentos de venda de linha branca e linha marrom, até agora predominantemente localizados nas ruas do que em shoppings, ainda convivem ou até privilegiam o sistema de "bater metas", o que dá margem para a manutenção do dilema identitário.

Edson Crescitelli, em pesquisa recente sobre marketing de relacionamento, entrevistou 26 vendedores em lojas de rua e de shopping do Magazine Luiza e da Rede Ponto Frio no estado de São Paulo e constatou que muitos vendedores priorizam os incentivos de venda oferecidos em programas de desenvolvimento de vendas, em relação aos demais aspectos, inclusive do interesse do consumidor, em maior ou menor grau, dependendo da atratividade do benefício proporcionado (Crescitelli, 2003, p. 162).

A pesquisa realizada por Dutra também ilustra, em vários depoimentos de vendedores/as, que há uma distância considerável entre o que apregoa o marketing de relacionamento e as efetivas ações dos funcionários, ainda mais orientados pelo sistema de premiar o número de vendas. Aponta, ademais, para um tipo de distinção identitária relacionada à construção do gênero em arranjos domésticos. A venda de aparelhos de menor porte e valor agregado, como liquidificadores, tostadores, batedeiras, cafeteiras etc., era realizada apenas por mulheres nos estabelecimentos pesquisados. Essa "feminização" dos eletroportáteis tem consequências para o rendimento das vendedoras, pois deve-se alcançar um volume maior de vendas desses produtos para atingir a meta e obter comissões, dificultando às mulheres a obtenção de um rendimento mensal mais alto, apesar de todos/as partirem de um mesmo salário na mesma ocupação. No entanto, a diferença é justificada pela forma já consagrada da naturalização na construção do gênero. O depoimento da gerente Débora, 28 anos, formada em Ambiente Empresarial e gerente numa loja de shopping do setor pesquisado em Campinas, SP, revela a internalização desse tipo de construção social:

Cada um cuida do setor, ela cuida do setor de eletroportátil, mulher tem mais característica de cuidar da casa, então tem que estar mais focada nessa linha. O homem, ele tem um interesse maior por tecnologia, que é o foco da loja, realmente isso é uma constatação. Tecnologia chama mais atenção do homem (Dutra, 2012, p. 103).

Finalmente, é inegável uma distinção identitária laboral que está relacionada ao tipo de consumo praticado no comércio de rua e nas vendas em shoppings. Os consumidores entrevistados por Dutra que preferiam comprar nas ruas alegaram preços melhores e maior espaço para a negociação, ainda que constatassem melhor atendimento nos shoppings. Observou-se que entre os vendedores de rua há uma predominância de homens com escolaridade mais baixa e mais velhos, enquanto em nas lojas de shopping pesquisadas a escolaridade varia entre ensino médio completo a superior completo e os funcionários são relativamente mais novos Essa distinção não se verifica entre as mulheres vendedoras nas duas lojas. Por um lado essas diferenças podem ser explicadas pelo maior flexibilidade nos horários dos turnos em shoppings, permitindo que os jovens possam continuar a escolarização em outros períodos. No entanto, a construção de gênero também explica a distinção, pois além do "natural" pendor à técnica que é atribuído aos homens, há a tradicional incorporação de valores como a iniciativa, a coragem e o espírito de arriscar preferencialmente aos homens, e sabe-se que essas características estão associadas a uma cultura de trabalho que valoriza a competição.

4 Observações finais

É conveniente incluir aqui esclarecimento metodológico, a respeito do emprego de alguns termos científicos. Os tipos ideais aqui utilizados são relativos à tipologia elaborada por Dubar para a compreensão das formas de identificação social: comunitária (cultural), estatutária (societária), reflexiva e narrativa. Já os dilemas identitários não são tipos ideais, mas alternativas de orientação normativa que podem surgir na trajetória dos trabalhadores, como: devo privilegiar os desejos e o bem-estar do cliente numa venda ou devo priorizar as metas, em relação ao número de transações bem sucedidas, exigidas pela empresa?; devo continuar trabalhando numa atividade em que meu trabalho não aparece e não é reconhecido, ainda que seja estável e regulamentada? Assim, as duas ocupações analisadas enfrentam dilemas diferentes e a tipologia das formas de identificação ajuda a compreender como esses questionamentos podem se apresentar, na trajetória de vida desses trabalhadores, até de forma contrafatual em relação à cultura do trabalho mais usual e reconhecida em cada uma delas, ou seja, tornar o trabalhador "invisível", no primeiro caso e fazê-lo interagir e criar empatia com o cliente, no segundo caso. Os perfis extraídos de bases governamentais nos auxiliam a compreender como a forma societária ou estatutária tem se manifestado em cada ocupação, e os dados qualitativos possibilitam interpretar como se efetivam as formas cultural, reflexiva e narrativa. Não há, no entanto, a intenção de aproximar as formas de identificação nas duas ocupações, mas, ao contrário, de evidenciar como o mundo dos serviços é multifacetado e como as representações culturais tradicionalmente associadas a certas ocupações podem não ser, por algumas razões ou motivos, institucionalmente valorizadas ou subjetivamente reconhecidas. Para isso, empregou-se o mesmo esquema conceitual, de maneira típico-ideal, em duas ocupações diferentes.

Os dilemas identitários que se manifestam nas duas ocupações de serviços analisadas são a princípio, de natureza diferente, ainda que se trate, grosso modo, de low profile jobs, requerendo habilidades que não demandam a priori um treinamento especializado. No caso de serventes de limpeza prevalece uma construção identitária sexuada, reproduzindo, de certa forma, os arranjos domésticos tradicionais, com as mulheres atuando em espaços internos e homens em áreas abertas. Entretanto, a construção simbólica prevalecente, para homens e mulheres, é a da invisibilidade, reforçada por estratégias empresarias empregadas pelas empresas, como rodízio periódico das equipes em cada unidade acadêmica, dificultando a manutenção de contatos interativos e de vínculos socioafetivos. Ainda assim, nesse contexto de segregação funcional e administrativa, o trabalho na limpeza traz uma valorização do self a mulheres que, em suas trajetórias de vida, experimentaram o trabalho doméstico não remunerado, a violência nos arranjos domésticos e formas de contratação irregulares no trabalho doméstico. Por outro lado, a terceirização ou subcontratação de serviços de limpeza em instituições públicas veio a originar tipos híbridos de identidade ocupacional, com a transformação estratégica de funções ou ocupações tecnico-administrativas. Esse deslocamento identitário, por vezes benéfico para a realocação de funcionários estatutários que seriam demitidos ou funcionalmente isolados, tem seu reverso na desmobilização associativista da categoria, gerando distinções entre trabalhadores no mesmo espaço laboral que, embora desempenhem funções consideradas mais simples, adquirem os mesmos direitos que outros recentemente admitidos com nível de qualificação ou escolaridade mais elevado.

A questão do gênero não é tão pronunciada na construção identitária de vendedores/as de eletrodomésticos duráveis, ainda que se evidenciem resquícios de uma "naturalização" na orientação preferencial das mulheres para a venda de eletroportáteis tecnologicamente menos avançados. Trata-se de um serviço interativo, em que o dilema identitário não está mais relacionado a uma desvalorização cultural do serviço executado, com extensão inclusive às pessoas que o desempenham, mas às estratégias de interação com o cliente/consumidor. No caso de mulheres serventes, constitui um difícil dilema decidir entre a submissão privada nos afazeres domésticos, ou como empregada doméstica remunerada e trabalhar na esfera pública, com mais diretios e autonomia, embora na condição da invisibilidade, subcontratada como servente de limpeza. Já os/as vendedores/as enfrentam outro tipo de decisão que, embora menos demandante do ponto de vista emotivo ou psicológico, é complexa no aspecto cognitivo e acarreta consequências na trajetória ocupacional. O serviço presencial de venda a varejo de eletrodomésticos duráveis, no contexto de uma sociedade de consumidores e do comércio eletrônico não-presencial emergente recorre a estratégias de marketing de relacionamento, o que implica uma identificação maior entre vendedores e consumidores. Assim, os/as trabalhadores/as no setor encontram-se diante de outras atitudes a levar em conta diante dos potenciais clientes, além da forma tradicional de persuadi-los a comprar determinados produtos, enaltecendo suas propriedades e proporcionando, no limite, formas acessíveis de pagamento e crédito, para que os clientes, "que têm sempre razão", sintam-se satisfeitos com a compra realizada por seu intermédio. Porém, tal postura alinhada à motivação que orientou por décadas o comércio a varejo, de "soberania do consumidor", concorre com a atitude individualista e proativa de "bater metas" e a "prospecção de clientes" e, em outro extremo, com a "sintonia com o cliente", postura que implica maior interrelacionamento entre vendedores e consumidores. A construção da identidade ocupacional do vendedor de eletrodomésticos em lojas de varejo torna-se ainda mais difícil com a relevância que a própria prática do consumo individualizado vem adquirindo como marcador identitário numa sociedade de consumidores.

Recebido em: 19/02/2013

Aceite final: 07/08/2013

Jordão Horta Nunes. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1985), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (1995), doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2000) ; realizou estágio pós-doutoral na Unicamp em 2009. Atualmente é professor da Universidade Federal de Goiás, jordão@cienciassociais.ufg.br

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  • 43. ZARIFIAN, P. A quoi sert le travail? Paris: La Dispute, 2003.
  • 1
    Este artigo tem como base uma comunicação apresentada no 36ºEncontro Anual da Anpocs, em outubro de 2012, no GT 36 (Trabalho, ação coletiva e identidades sociais). O texto foi adaptado reformulado levando em conta as considerações feitas pelos/as debatedores/as e colegas presentes.
  • 2
    Houve uma mudança em relação à classificação brasileira de ocupações no Censo 2010, em relação ao Censo 2000. A Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares (COD), passou a ser empregada em pesquisas domiciliares pelo IBGE a partir do Censo de 2010, substituindo a CBO-Domiciliar. A intenção foi torná-lo compatível, pelos menos em dois dígitos, com a
    Clasificación Internacional Uniforme de Ocupaciones CIUO-08, criada pela Organização Internacional do trabalho. Para um detalhamento maior das diferenças entre as duas classificações e a comparação destas com a CIUO-08, consultar
  • 3
    Na
    Tabela 1 não estão incluídas as "ocupações mal definidas", em que as respostas dos informantes não se adequaram à Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares (COD). O número de ocupações mal definidas no Censo de 2010 correspondeu a 7,8% do total, taxa particularmente alta em 2010, provavelmente em relação à mudança da grade de classificação.
  • 4
    As transcrições de entrevistas realizadas por Souza (2011) e Dutra (2012) integram o banco de dados qualitativos no LAMPCS – Laboratório de Metodologia e Pesquisa da FCS//UFG. Tatiele P. Souza realizou 30 entrevistas com trabalhadoras/es serventes de limpeza, supervisoras e uma gerente de RH em instituições públicas e privadas nas cidades de Goiânia-GO e Campinas-SP, entre julho de 2008 a maio de 2010. Lúbia G. Dutra realizou , entre fevereiro e abril de 2011, 54 entrevistas com vendedoras/es e gerentes em estabelecimentos de comércio de duas empresas de varejo bens duráveis, além de entrevistas com clientes, também nas cidades de Goiânia-GO e Campinas-SP. As citações de entrevistas referentes aos dois projetos de pesquisa provêm do mencionado banco de dados qualitativos do LAMPCS e algumas trechos também estiveram presentes nas dissertações das duas autoras, elaboradas no contexto do projeto
    Trabalho, gênero e participação: identidade, associativismo e políticas de emprego e renda, que obteve financiamento do PROCAD – Programa de Cooperação Acadêmica Novas Fronteiras, associando dos programas de pós–graduação em Sociologia da UFG e em Ciências Sociais da Unicamp, de 2009 a 2013.
  • 5
    Os dados aqui apresentados são provenientes dos microdados da RAIS 2011.
  • 6
    Os nomes de informantes são fictícios. Em todas as entrevistas citadas neste artigo foram respeitadas as diretrizes da CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, para pesquisas envolvendo seres humanos, inclusive a assinatura de um termo de consentimento pelos/as entrevistados/as.
  • 7
    Goffman empreende, em
    Gender Advertisements (1979) uma análise pioneira da relação entre o enquadramento perceptivo relizado pela publicidade em revistas femininas e os arranjos domésticos nas sociedades urbanas pós-industraiais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Aceito
      07 Ago 2013
    • Recebido
      19 Fev 2013
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