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Sociologia da Dádiva

Este dossiê trata da atualidade dos estudos sobre a dádiva para a teoria sociológica contemporânea, buscando situar sua contribuição no debate horizontal e interdisciplinar como assinalando seu interesse prático para entendimento dos sistemas sociais presenciais e virtuais. Esta atualização é tão mais relevante quando consideramos que apesar do aumento quantitativo da produção intelectual na sociologia e do número de sociólogos nos últimos tempos, observa-se que nada garante a sobrevivência da disciplina num mundo regido pela rentabilidade imediata e que abandona reflexões mais profundas sobre os temas do cotidiano para se extasiar com o modismo e com o consumismo. Basta se observar a diminuição dos espaços reservados nas livrarias comerciais para divulgação de obras sociológicas.

Apesar desse contexto preocupante, há de se ressaltar haver em curso avanços importantes nos estudos sociológicos e que estão vinculados a uma contestação crescente do raciocínio monológico que reduz toda a vida social a uma motivação utilitária e econômica, desprezando a complexidade dos demais fatores sociais, culturais, morais, estéticos e ambientais que interferem na mudança social. Exemplos dessas reações são aqueles estudos sobre gênero, reconhecimento, etnicidade, pós-colonialidade, direito, economias plurais e sobre novas mobilizações coletivas. Entre tais reações, devemos elencar os estudos sobre a dádiva que foram pioneiramente sistematizados pelo pensador francês Marcel Mauss no seu célebre Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.).

Durante algumas décadas, o interesse sociológico dos estudos sobre a dádiva ficou relativamente obscurecido. Uma das razões explicativas é dada pela associação feita pelo mais ilustre discípulo de Mauss, Lévi-Strauss, entre a dádiva e o campo antropológico, como se o dom fosse monopólio desta disciplina. Outra razão é que, diferentemente de outros grandes sociólogos, explica A. Caillé (1998)CAILLÉ, A. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. RBCS, São Paulo, v.13, n.38, p.5-38, 1998., Mauss nunca produziu uma grande obra que pudesse ser classificada como "clássica", como o fizeram autores como Marx, Weber e Durkheim, para nos determos apenas nos ícones tradicionais da sociologia. Mauss, porém, seguiu outra via, se dedicando preferencialmente a produzir ensaios e a divulgar ideias da escola francesa de sociologia, na condição de editor de L'Année Sociologique, sobretudo após o falecimento de seu tio, Emile Durkheim, em 1917. Isto não significa que sua contribuição teórica seja menos relevante que dos demais clássicos como o revelam suas reflexões não somente sobre a dádiva, mas sobre os sistemas simbólicos e rítmicos, em geral. Como diz Caillé, a ausência da "grande obra" em Mauss teria contribuído para alguns o definirem injustamente como um autor menor. Ainda gostaríamos de elencar outra dificuldade no reconhecimento da obra maussiana. Mauss se propôs a elucidar os fundamentos da solidariedade e da aliança num mundo, como aquele do século XX, dominado por grandes ideologias que privilegiavam o conflito e a competição, como foram os casos do marxismo e do liberalismo. Como valorizava muito as heranças de outras culturas e sociedades para explicar os fundamentos do vínculo social, Mauss ficou relegado à condição de etnólogo e antropólogo, pois era muito difícil para os sociólogos europeus do século XX reconhecerem outros parâmetros legítimos de organização da vida social fora do universalismo oferecido pelo pensamento eurocêntrico.

Por outro lado, deve ser assinalado que, além da importância da sua epistemologia da alteridade, Mauss também demonstrou ser um pensador implicado com a produção de um novo paradigma para a sociedade contemporânea, paradigma esse fundado na vida associativa. Nesse sentido, propõe David Graeber, Mauss prestou grande contribuição aos estudos sobre o socialismo ao afirmar algumas premissas importantes: a) que as primeiras relações voluntárias e contratuais não se deram entre indivíduos, mas entre grupos sociais (clãs, tribos e famílias); b) que os fundamentos dessas relações não eram econômicos ou mesmo políticos, mas variados: morais, religiosos, legais e igualmente econômicos; c) que a origem do contrato entre os homens, na fundação da sociedade, é anterior à existência do que chamamos de estado ou mercado (Graeber, 2006GRAEBER, D. O comunismo de Marcel Mauss In: P.H. Martins e R. Campos (Orgs.) Polifonia do dom. Recife: Editora da UFPE, 2006.).

O resgate da obra maussiana se deu no contexto de surgimento de uma crítica anti-utilitarista importante contra o projeto de ocidentalização do mundo, a qual foi concretizada pela fundação do MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), fundado em Paris, no ano de 1981, tendo como um dos seus fundadores, Alain Caillé, que é autor presente neste dossiê. Poucos autores poderiam ser tão apropriados como Mauss - além de Polanyi - para servir como inspiração para a produção de uma crítica teórica consistente do neoliberalismo que se torna ideologia hegemônica a partir das últimas décadas do século passado.

Nesse sentido, vale assinalar que a dádiva oferece certos elementos decisivos para o desenvolvimento da crítica antiutilitarista na contemporaneidade. Em primeiro lugar, é uma teoria que coloca a realidade como uma totalidade, como um fato social total, no qual não há necessariamente algum elemento mais importante que outro na explicação dos fundamentos do contrato social. Vale aqui repetir uma reflexão de Mauss que é magistral:

[...] o que eles (as pessoas morais presentes ao contrato) trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e permanente (Mauss, 2003, 191-192MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.).

Tal entendimento é que leva Mauss, neste seu célebre texto, a avançar tanto na crítica ao utilitarismo ocidental como a propor que os contratos livres e obrigatórios presentes em todas as sociedades tradicionais - aqueles fundados na dádiva, no dar, receber e retribuir - continuam presentes nas sociedades contemporâneas, sobretudo, no plano da vida associativa onde predominam as relações familiares, de amizade, de associados, de vizinhos, enfim, de redes de pertencimento comunitário e associativo. Estudos mais recentes confirmam a dádiva igualmente como fator decisivo para esclarecer aspecto crucial para a sobrevivência das empresas e do mundo do trabalho, aquele da cooperação (Alter, 2009ALTER, N. Donner et prendre. La cooperation en enterprise. Paris: La Découverte/MAUSS, 2009.).

A difusão das interpretações sociológicas da obra de Mauss no Brasil vem sendo feita sistematicamente, há mais de uma década, devendo ser assinaladas como marcos simbólicos as publicações dos artigos de A. Caillé, Nem holismo, nem individualismo. Marcel Mauss e o paradigma da dádiva (1998) e de Jacques Godbout, Introdução à dádiva (1998) na RBCS (Revista Brasileira de Ciências Sociais), no ano de 1998. Desde então, os estudos sobre o dom vêm sendo difundidos de modo mais sistemático em diversos campos de pesquisa, como aqueles da economia, da saúde, da educação, da religião, do lazer entre outros.

Os artigos que compõem este dossiê são ilustrativos da riqueza dos estudos sobre o dom na atualidade. O texto de Paulo Henrique Martins, intitulado O ensaio sobre o dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crítica decolonial busca demonstrar como o fato de Mauss ter se inspirado em outros sistemas sociais para organizar suas reflexões sobre o dom e para fazer a crítica ao utilitarismo ocidental o coloca num lugar especial no interior da produção sociológica. Sobretudo em um contexto em que o desenvolvimento da teoria social europeia se voltava para entender o enigma do "sucesso" histórico do espírito europeu, se quisermos lembrar a preocupação hegeliana. Este fato é importante e contribui para demonstrar a atualidade de Mauss para a renovação da sociologia na sociedade global, quando a ideia de uma epistemologia da alteridade se apresenta como decisiva. No entender do autor, os estudos sobre a dádiva são testemunhos do fato de que os fundamentos dos estudos pós-coloniais (postcolonial studies) não dependem apenas de variáveis geográficas, isto é, de grupos de pesquisadores que são "filhos" de sociedades objetos da colonização planetária. Ao contrário, a leitura atenta do Ensaio sobre o dom... revela que essas teorias das "margens" constituem um campo de discussão mais amplo e que questiona o eurocentrismo tanto a partir "de dentro" como "de fora" do velho continente. Martins conclui que Mauss é um pioneiro do que se chama a crítica descolonial ou decolonial, termo que é preferido por Anibal Quijano, célebre estudioso do tema da colonialidade do poder, por sugerir a relevância da desconstrução crítica da colonialidade.

O artigo de Alain Caillé, intitulado Dádiva, Care e Saúdeconstitui uma reflexão muito interessante sobre a relação entre a teoria da dádiva e a teoria do cuidado (care studies) que, esclarece o autor, ficou um tempo ofuscada, na medida em que era um domínio sobretudo das mulheres. Assim, a relação entre dom e cuidado possui implicações teóricas e práticas amplas, pois valoriza e esclarece a complexidade das relações face a face, num mundo em que vicejam práticas de exclusão e de rejeição social. Embora focando preferencialmente sua atenção no tema da saúde, o texto de Caillé oferece elementos muito importantes para o entendimento da complexidade das práticas sociais, o que rebate necessariamente sobre os rumos das ciências e das políticas públicas.

O texto de Jean-Louis Laville, nominado Mudança social e teoria da economia solidária. Uma perspectiva maussiana oferece igualmente uma reinterpretação original da obra de Mauss para a economia solidária e plural. O autor chama a atenção sobre a importância dos estudos maussianos para a fundação de um novo paradigma econômico fundado no associativismo. Para ele, Mauss traçou os fundamentos de uma nova abordagem plural da economia, que é completada por Polanyi, e também de uma abordagem plural da democracia, que pode ser desenvolvida em diálogo com Hanna Arendt e com Jurgen Habermas. Considerando a importância deste autor para a divulgação dos estudos sobre a economia solidária, não podemos deixar de sublinhar o valor de seu texto para reforçar a atualidade da dádiva para se repensar, a partir de uma abordagem pluralista, o que entendemos como economia e como mercado.

Por sua vez, o artigo de Adrián Scribano, O dom entre as práticas intersticiais e o solidarismo, demonstra com um exemplo prático como, em certas situações, a dádiva é sabotada e subvertida por um "solidarismo" ambíguo que faz parte de certa religião neo-colonial a qual justifica o consumo mimético, gerando resignação coletiva. Para realizar sua demonstração, o autor considera o caso da Responsabilidade Social Empresarial (RSE) na Argentina. Contra a mensagem comprometedora da RES, o autor propõe a afirmação da reciprocidade como recurso para realinhar o dom. Para ele, a reciprocidade como base da alteridade (de um desfrute outro) pode quebrar o solidarismo a partir de três momentos articulados: um, à lógica do dom (do dar, do receber e do retribuir), o segundo, ao jogo do hetero-reconhecimento, o terceiro, ao compartilhamento.

Finalmente, Genauto Carvalho de França Filho e Vicente Macedo de Aguiar, no texto denominado Um trabalho a troco de nada? A ação de uma comunidade de hackers à luz da teoria da dádiva" fazem uma interessante incursão no tema muito atual da sociedade virtual. Para os autores, os hackers, ao contrário de certa imagem negativa comumente difundida, têm papel importante para disseminar processos de produção não-contratuais e colaborativos. Para o desenvolvimento do artigo, os autores tomam como base de reflexão o projeto GNOME (GNU Network Object Model Environment), que envolve mais de 300 colaboradores de diversos continentes. A tese dos autores é de que um novo tipo de dádiva surge das auto-estradas da internet e do mundo digital: um tipo de dádiva mediada pelo computador, a qual libera um tipo de engajamento não contratual que difere completamente daquelas lógicas do mercado e do Estado.

Para concluir, gostaríamos de assinalar que os textos reunidos neste dossiê convergem para uma mesma direção, a de propor reflexões ao leitor de Sociologias sobre a importância da dádiva no interior dos estudos sociológicos e para esclarecer como os estudos maussianos são atuais para teoria sociológica revelando alternativas cognitivas, morais, estéticas, políticas e econômicas ao paradigma mercantil e utilitarista dominante na sociedade global.

  • Paulo Henrique Martins - Doutor em Sociologia pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) com pós-doutorado na Universidade de Paris-Nanterre. Professor Titular do Departamento de Sociologia e Coordenador do NUCEM (Núcleo de Cidadania e Processos de Mudança) da Universidade Federal de Pernambuco. Presidente da ALAS (Associação Latino-Americana de Sociologia); Vice-Presidente da Associação MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales). pahem@terra.com.br
  • Antonio David Cattani - Doutor pela Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne. Professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Pesquisador 1A do CNPq. www.antoniodavidcattani.net

Referências

  • 1
    ALTER, N. Donner et prendre. La cooperation en enterprise Paris: La Découverte/MAUSS, 2009.
  • 2
    CAILLÉ, A. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. RBCS, São Paulo, v.13, n.38, p.5-38, 1998.
  • 3
    GODBOUT, J.T. (1998) Introdução à dádiva. RBCS, São Paulo, v.13, n.38, p.39-52, out. 1998.
  • 4
    GRAEBER, D. O comunismo de Marcel Mauss In: P.H. Martins e R. Campos (Orgs.) Polifonia do dom Recife: Editora da UFPE, 2006.
  • 5
    MAUSS, M. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014
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