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A Mobilidade Ambígua

The ambiguous mobility

Resumos

Ainda sem tradução no Brasil, o livro A mobilidade ambígua - Espaço, tempo e poder no cume da sociedade contemporânea, de autoria da socióloga italiana Laura Gherardi, é o resultado de um esforço teórico-metodológico no estudo dos sentidos da mobilidade na sociedade contemporânea. Com um universo de mais de 50 entrevistas com executivos, professores globais e artistas de renome internacional, realizadas nas cidades de Paris, Londres e Milão, o livro propõe uma análise da mobilidade nos termos de uma nova ética social do chamado "capitalismo avançado". Com o intuito de superar a antinomia dos esquemas clássicos oriundos da tradição marxista ou weberiana, Gherardi explora as possibilidades de uma análise das diferenciações sociais no seio da atual configuração do capitalismo, a partir da análise da relação entre poder e ritmo. O argumento central da autora aponta no sentido de uma ressignificação da noção de "mobilidade": antes colocada como repertório crítico pelos movimentos de contestação do capitalismo, a mobilidade se torna um elemento central na cosmologia de valores do capitalismo avançado e "por projetos". Assim, cooptada pelas forças as quais visava destruir, a mobilidade disciplinada, organizada e controlada passa a constituir uma ética social do chamado "novo espírito do capitalismo", repercutindo de forma ambígua no dia-dia dos indivíduos que vivenciam essa experiência de forma dúbia, ora como um recurso, ora como um imperativo, no contexto de um mundo conexionista.

Mobilidade; Capitalismo avançado; Sociologia pragmática; Laura Gherardi


Not yet translated in Brazil, the book "The ambiguous mobility - Space, time and power on the top of contemporary society," by the Italian sociologist Laura Gherardi, is the result of a theoretical and methodological effort towards understanding the meanings of mobility in contemporary society. Based on over 50 interviews with executives, global professors and world-renowned artists, held in the cities of Paris, London and Milan, the book proposes an analysis of mobility in terms of a new social ethic in the so-called "late capitalism". In order to overcome the antinomy of classical analyzes derived from Marxist or Weberian tradition, Gherardi explores the possibilities of studying social differentiations within the current configuration of capitalism, based on the analysis of the relationship between power and pace. The central argument of the author points towards a redefinition of the concept of 'mobility': initially set as a critical repertoire by anti-capitalist movements, mobility becomes a central element in the cosmology of values of late capitalism and "per project" capitalism. Thus co-opted by the forces which it once sought to destroy, the disciplined, organized and controlled mobility becomes integrated to a social ethic of the "new spirit of capitalism" and ambiguously affects the daily lives of individuals who live this experience in a dubious way, sometimes as a resource, sometimes as an imperative in the context of a connections driven world.

Mobility; Advanced capitalismo; Pragmatic sociology; Laura Gherardi


GHERARDI, Laura. La Mobilité Ambigue - Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contemporaine. Paris: Éditions universitaires européenes, 2009.

A tese sociológica que deu origem à obra aqui analisada foi defendida na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris (EHESS), nos quadros do grupo de Sociologia Política e Moral, no ano de 2009. Desde então, ela vem contribuindo para o debate acerca das possibilidades de uma sociologia da "mobilidade", à luz das múltiplas estratégias levadas a cabo pelos indivíduos com o objetivo de fazer face às exigências de grandeza impostas pelo "novo espírito do capitalismo", no que concerne à mobilidade geográfica e temporal. A tese problematiza, do ponto de vista cultural, o processo pelo qual a mobilidade vem descontextualizando-se do seu quadro original para tomar os contornos de uma ética afeita às recentes transformações do mundo do trabalho, tornando-se, assim, parte constitutiva dos valores que animam o discurso atual do capitalismo dito "avançado", característico do momento pós-fordista. No que concerne ao ponto de vista dos indivíduos, a autora analisa as diversas formas segundo as quais esses vivenciam a mobilidade. Por um lado, ela é tida como um recurso social passível de angariar múltiplos ganhos em termos de conexões e de inserção em redes e projetos. Por outro, um imperativo que constrange os indivíduos a uma rígida disciplina espaço-temporal, carregada de custos humanos, apontando no sentido de uma crescente individualização das relações de trabalho, consequência da internacionalização das carreiras e das novas formas de organização do trabalho no contexto da sociedade em rede (Castells, 2008CASTELLS, M. A Sociedade em rede. v.1, 11 ed., São Paulo: Paz e Terra, 2008.).

A tese enquadra-se nos esforços de construção de uma teoria da mobilidade, amparada no arcabouço teórico da sociologia pragmática inspirada por Luc Boltanski, Ève Chiappelo, Laurent Thévenot, entre outros. Ao marcar uma ruptura com a sociologia crítica, dominante nos anos 1970, essa nova sociologia francesa tem por objetivo a construção de um quadro teórico orientado às questões de justiça, rejeitando as premissas de uma sociologia do "desvelamento", de epistemologia bachelardiana1 1 Blondeau, C.; Sevin, JC. Entretien avec Luc Boltanski, une sociologie mise toujours à l'épreuve. Ethnographiques.org. Revue en ligne des sciences humaines et sociales. n.5, abr. 2004. . A sociologia pragmática, portanto, apontando à rigidez da tradição da sociologia crítica no que concerne à supervalorização dos efeitos de dominação e da previsibilidade necessária do comportamento dos indivíduos dado pelo efeito de incorporação de sistemas de disposições, passa a analisar não o sistema, nem a estrutura, mas as ações e as práticas, não os atores nem os agentes, mas a situação; não os homens e as mulheres, mas seus momentos (Blondeau; Sevin, 2004BLONDEAU, C.; SEVIN, JC. Entretien avec Luc Boltanski, une sociologie mise toujours à l'épreuve. Ethnographiques.org. Revue en ligne des sciences humaines et sociales, [S.I.] n.5, abr. 2004.
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). Nesses termos, os autores almejam a construção de uma teoria social orientada para as questões de justiça, na qual os momentos críticos das pessoas comuns, no curso de situações ordinárias, tornam-se o universo empírico por excelência na busca pelos princípios de justiça, sob os quais os indivíduos buscam justificar ou criticar os preceitos gerais da ação corriqueira.

Assim, na esteira dos avanços da sociologia inaugurada por Luc Boltanski na ruptura com Pierre Bourdieu, Laura Gherardi lança mão do método pragmático, analisando os momentos críticos, e as justificações dos indivíduos lhe servem de objeto empírico. Nesse contexto, a autora evidencia as múltiplas estratégias (e os respectivos custos pessoais que as acompanham) que esses membros das classes superiores mobilizam no intuito de satisfazerem as novas provas de grandeza impostas pelo novo espírito do capitalismo, sobretudo no que diz respeito às exigências de mobilidade. A partir da sua adesão a uma disciplina espaço-temporal coerente com o novo discurso do capitalismo flexível e por projetos, Gherardi traz à luz evidências empíricas que permitem inferir o caráter normativo adquirido pela ética da mobilidade, que, cristalizada positivamente pelos manuais de gestão como um vetor de liberação, é vivenciada, na prática, pelos indivíduos, como um imperativo coercitivo repleto de tensões e custos humanos.

Segundo o argumento da autora, e recuperando um tema caro à sociologia pragmática - a antinomia entre a crítica artística e as práticas de gestão calcadas nos valores da burguesia mercantil (Chiappelo, 1998BOLTANSKI, L.; CHIAPPELO, E. O novo espírito do capitalismo. Paris: Gallimard, 1999.) -, a literatura romântica europeia do século XIX é responsável pela cristalização, no campo das representações coletivas, sobretudo na Europa, da ideia da mobilidade como um fator de liberação e expressão da autonomia individual e da superação dos limites impostos pela racionalidade e disciplina, ambas características do mundo burguês do fim do século XIX e início do século XX. Assim, não por acaso, a visão idílica da mobilidade presente no projeto literário do romantismo francês compõe o quadro das reivindicações da crítica estética de maio de 68, denunciando a racionalidade, o cálculo e o utilitarismo constitutivos da cosmologia de valores do modelo fordista em nome da mobilidade, da criatividade, da autonomia e da autenticidade.

Nesses termos, Gherardi também se esforça para dar voz aos indivíduos, sobretudo àqueles que, a partir de seus momentos críticos e de suas justificações, denunciam a mobilidade geográfica exigida pela produção, sobretudo no plano transnacional, para, assim, relançar uma crítica capaz de trazer correções ao modelo vigente. Assim, as contribuições da autora podem ser importantes, sobretudo no que concerne à construção de um novo marco teórico-metodológico capaz de ler os diferenciais de mobilidade nos termos de recursos sociais que favorecem a exploração dos "pequenos" (rígidos e locais) pelos "grandes" (móveis e globais), que possuem como característica fundamental o diferencial de mobilidade e, consequentemente, a capacidade de tomar partido em novos projetos e mobilizar o capital social tributário das relações que daí advém. Dessa forma, uma teoria da exploração no contexto de um mundo reticular precisaria superar a simples noção de "exclusão" e levar em consideração a relação de exploração que ocorre quando existem diferenças no que concerne às possibilidades de mobilidade dos diferentes indivíduos. Assim, para contribuir à renovação da crítica social no contexto do "capitalismo avançado", é preciso compreender a relação entre os diferenciais de mobilidade e, especificamente, a relação entre a mobilidade de alguns e a imobilidade de outros.

Se, por um lado, Boltanski e Chiappelo já apontavam as principais características dessa dinâmica em "O novo espírito do capitalismo" (2009), Gherardi coloca para si a tarefa de compreender precisamente a maneira pela qual os "pequenos" (e, portanto, imóveis) contribuem para a formação de uma mais-valia para os "grandes" (móveis e flexíveis) ao permitirem a esses últimos, como veremos adiante, a acumulação de um capital social, disponível na exploração das redes e no consequente estabelecimento de novas conexões. No intuito de dar conteúdo empírico para essa relação de exploração no contexto de um universo reticular, que se articula em redes e por projetos, a autora escolhe três categorias profissionais que possuem um padrão de carreiras cosmopolitas, são elas: i) os executivos de empresas multinacionais; ii) os artistas de renome internacional; e, iii) os professores-teóricos globais.

A autora permite ao leitor a aproximação da realidade cotidiana dos indivíduos dessas três categorias profissionais, intercalando, ao longo do texto, longas passagens nas quais são privilegiadas a polifonia das vozes dos entrevistados e, consequentemente, seus momentos críticos e suas justificações. Nota-se que os sacrifícios realizados pelos indivíduos para atender às múltiplas exigências de uma mobilidade, que deve acompanhar o ritmo acelerado da produção, revestem essa ética do nomadismo de uma forte ambiguidade, sugerindo a existência de um lado obscuro do imperativo da "leveza" exigida ao "homem-camaleão", figura arquetípica da chamada "cidade por projetos" (Boltanski; Chiappelo, 1999BOLTANSKI, L.; CHIAPPELO, E. O novo espírito do capitalismo. Paris: Gallimard, 1999.), que tem no executivo, conexionista e mediador por excelência, a personificação da sua representação heroica.

Além de evidenciar esse caráter ambíguo da ética da mobilidade, a autora também contribui para o avanço de uma teoria da dominação - fora dos quadros de uma sociologia da dominação clássica, calcada no arcabouço teórico marxista ou weberiano - quando se vale do conceito de "ubiquidade" para explicar a contribuição específica da imobilidade dos "pequenos" à mobilidade dos "grandes". Em outros termos, o estado de ubiquidade que remonta à ideia de "estar presente, ao mesmo tempo, em diversos cenários" é permitido a alguns justamente à custa da mobilidade de outros. No caso dos executivos, por exemplo, esses possuem sua mobilidade multiplicada pela imobilidade dos membros que compõem sua equipe. Ou seja, quando aquele precisa se deslocar para atender à exigência da sua presença em reuniões com acionistas ou demais financiadores, ele possui à sua disposição diversos membros de sua equipe que permanecem na sede local da empresa, assegurando, assim, a sua reputação. Além disso, ele ainda possui sob a sua subordinação outros colaboradores que podem aumentar ainda mais sua mobilidade, sendo enviados para encontros menores, ou obrigações de protocolo em outras cidades centrais fora da sede para "conservar" o capital social e manter conexões já consolidadas.

Nesses encontros, aos quais o manager envia subordinados e se faz representar por esses, o uso de diversas técnicas de controle vem à tona, evidenciando mais um dos aspectos ambíguos de uma mobilidade controlada e supervisionada à distância. Como argumenta Gherardi, o objetivo desse controle estrito é que os enviados não façam uma utilização "pessoal" do capital social que lhes é confiado, pois, em última análise, é desse capital social (e também informacional) que depende a posição do "grande" como o indivíduo que vai capitalizar as conexões e as informações que são mobilizadas por outros em seu nome.

Dessa forma, nota-se que a ubiquidade dos executivos é o resultado, por um lado, da imobilidade de seus colaboradores que permanecem na sede assegurando a sua reputação, e, por outro lado, da propriedade sobre o ritmo e o tempo de outros colaboradores que são enviados pelos executivos para que esses possam ser novamente "representados" - nos quadros de encontros cujo único objetivo é o de manter conexões e vínculos já estabelecidos (Gherardi, 2009, p.31GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.). Eis, portanto, o surgimento de um homem não apenas leve, camaleão, mas que também se faz onipresente através do poder de controlar a mobilidade de outros indivíduos.

Assim, a noção de ubiquidade contribui na compreensão das diversas relações de poder que perpassam as relações de trabalho no contexto do capitalismo flexível. A propriedade sobre o tempo e sobre a mobilidade dos "colaboradores" gera consideráveis diferenciais de mobilidade, condenando alguns à imobilidade, outros ao papel de meros representantes e, ainda, outros à ubiquidade. No entanto, é interessante notar que mesmo aqueles que enviam pessoas (nesse caso os altos executivos chefes de projeto), em alguma medida, também não escapam dessa lógica dúbia de "representação" de um outrem, já que mesmo esses indivíduos que se situam no topo da hierarquia profissional das grandes multinacionais são, em alguma medida, representantes dos acionistas que precisam contar com a mobilidade de seus executivos para que esses se desloquem até onde estão as informações, as conexões e os outros acionários - permitindo, dessa forma, a dispersão geográfica de um capitalismo em rede que opera em consonância com o ritmo acelerado dos fluxos transnacionais de investimentos (Gherardi, 2009, p. 59GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.).

A mobilidade, portanto, transformada em norma social, se distancia da ideia de liberação e de afirmação de si, tributária do ideal romântico e da crítica artística de 1968, em nome da qual serviu para denunciar a rigidez do modelo fordista. Assim, tendo sido cooptada pela atual cosmologia de valores do capitalismo, ela se torna um forte componente de sofrimento psíquico. Entrando na lógica de uma performance continuada, a mobilidade, tida como fonte de excitação, agora reconvertida em norma social, se torna, segundo Ehrenberg (1999), fonte de depressão e desencantamento. Nesses termos, em consonância com alguns dos argumentos de Ehrenberg em La fatigue d'être soi, para muitos dos executivos entrevistados, Gherardi nota que a esfera do trabalho tende a ocupar todos os espaços da vida dos sujeitos. A subordinação aos ritmos acelerados de uma vida nômade conduz o indivíduo a um isolamento social e, consequentemente, a esfera profissional tende a monopolizar todas as relações pessoais, tornando difícil o autorreconhecimento fora do contexto do trabalho. Em outros termos, a esfera profissional passa a se tornar o seu único mundo significante, a única comunidade que define aquilo que se é (Gherardi, 2009, p. 77GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.).

Essa disciplina espaço-temporal, exigida aos chefes de projeto, mas também, como veremos em seguida, aos artistas e aos professores globais, possui, portanto, custos substanciais no que concerne à vida pessoal dos indivíduos. Nesse sentido, a abundância dos relatos trazidos pela autora constitui, nos parece, um dos achados empíricos da pesquisa. A mobilidade exigida pela globalização, pelo aumento da concorrência, pela pressão dos parceiros comerciais e também dos clientes, se traduz, no plano pessoal, em ausências prolongadas, inquietação em relação aos filhos, que, assim como os cônjuges, permanecem em casa, etc. Há também, por outro lado, o caráter angustiante de estar em diversos lugares em espaços de tempo curtos sem propriamente poder desfrutar do que cada lugar possui de novo.

Assim, a mobilidade desses indivíduos, longe daquela que marca o cosmopolitismo das elites constituídas pelos herdeiros e acionistas, é marcada por hotéis funcionais próximos aos aeroportos, restaurantes executivos, smartphones sempre conectados e a preocupação, constantemente presente, com minimizar todas as atividades que não são relacionadas ao trabalho propriamente dito. Nesse sentido, o trabalho dos executivos parece inserir-se naquilo que Heinich (1990), ao estudar os escritores, chama de "temporalidade total", ao evidenciar que, mesmo quando não estão escrevendo, estão em permanente contato com suas obras, seja avaliando-as, reformulando-as, formulando novos desfechos, etc. Em outros termos, trata-se de um "investimento total" que produz uma dificuldade em separar o tempo consagrado ao trabalho e o tempo fora do trabalho e, consequentemente, a esfera do trabalho passa a se sobrepor a todas as demais dimensões da existência.

Por outro lado, a mobilidade daqueles que não estão submetidos à disciplina espaço-temporal do capitalismo avançado, como é o caso, por exemplo, dos herdeiros, dos acionistas e dos demais membros das elites econômicas, é marcada pela liberdade que os mesmos possuem em determinar o emprego do seu próprio tempo e dos seus deslocamentos. Para esses, os locais frequentados quando dos deslocamentos são os círculos privados dos outros acionistas, castelos e sedes da diplomacia, em outros termos, os locais onde transitam os membros da aristocracia do dinheiro. É na esteira desse diferencial de propriedade sobre a sua própria disciplina espaço-temporal que Gherardi argumenta que o capitalismo também passa a ser uma questão de ritmo (Gherardi, 2009, p. 90GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.).

Nesse sentido, o poder que um indivíduo detém está calcado na oposição autonomia versus sujeição ao se determinar a duração e o destino dos seus deslocamentos geográficos, ou em outros termos, da natureza do seu dispositivo de mobilidade. Torna-se pertinente, portanto, a comparação que a autora traz à luz das diferentes disciplinas espaço-temporais dos indivíduos que pertencem a diferentes profissões no topo das respectivas profissões analisadas. No cume da pirâmide da subordinação ao ritmo da produção figuram os executivos, que, mesmo possuindo um alto nível de poder sobre a determinação da mobilidade dos seus colaboradores, eles mesmos são constrangidos a um ritmo frenético de mobilidade onde o imperativo do "homem leve", desenraizado, é vivenciado, na maioria das vezes, com angústia e sofrimento. Nesses termos, são esses indivíduos que sofrem em maior profundidade os efeitos do processo de individualização do trabalho, perdendo referências existenciais para fora do ambiente profissional e agravando a problemática dos vínculos, da confiança, e da busca de sentido (Ehrenberg, 2001). Poder-se-ia dizer, acompanhando o argumento da autora, que os executivos pagam com a própria subordinação ao ritmo da produção, o preço de poder determinar, em alguma medida, o ritmo de seus colaboradores e demais membros da equipe (Gherardi, 2009GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.).

Já no caso dos artistas, que se situam logo abaixo dos executivos na pirâmide de subordinação ao ritmo da produção, a mobilidade geográfica parece possuir contornos mais sutis, ainda que a circulação do renome de suas obras seja um fator determinante no que concerne ao seu reconhecimento artístico. Isso significa dizer que, para um artista ser reconhecido no mundo da arte, necessariamente, ele precisa que suas obras (e ele próprio) circulem nos espaços que possuem o monopólio da consagração artística. Assim, o acesso ao reconhecimento nessa esfera passa, obrigatoriamente, por um itinerário obrigatório, atendendo a convites e manifestações do mundo da arte, que, por definição, é transnacional. Como mostra um dos entrevistados da autora, há uma relação de dupla-troca entre mercadores e artistas, que dividem os ganhos financeiros e os ganhos em termos de renome, emprestando um ao outro a notoriedade e o reconhecimento obtidos em uma parceria.

Nesse sentido, a exposição em diferentes cenários constitui-se um caminho sem-volta, sobretudo no contexto atual, no qual expor é, sobretudo, a ocasião de estabelecer conexões e entrar (ou permanecer) nas redes que detêm o poder de multiplicar o reconhecimento e a notoriedade artística. De forma análoga aos executivos, aqueles artistas que ocupam as posições mais altas na pirâmide do reconhecimento do mundo artístico também são aqueles que se locomovem mais, em duração, no tempo e no espaço, atendendo ao "itinerário obrigatório" da notoriedade artística, difundindo suas obras e estabelecendo (e mantendo) conexões nas múltiplas redes.

O caso que mais se diferencia desse padrão de subordinação a uma disciplina espaço-temporal altamente controlada e de ritmo intenso parece ser o dos professores-teóricos globais. Conforme a autora, para esses, a mobilidade é vivenciada mais em termos de acúmulo de posições institucionais. Já que os professores possuem um nível de liberdade relativamente maior sobre os seus próprios ritmos de deslocamento, eles acabam investindo no exercício de funções paralelas ao espaço acadêmico ou científico. Nesse sentido, exercendo diversos papéis fora do ambiente acadêmico, como, por exemplo, o de consultores, jornalistas ou na direção de instituições de financiamento, os professores são móveis no espaço de posições institucionais que lhes possibilitam uma visibilidade social estendida, se comparada àqueles que exercem apenas a função de professor. Assim, dispor de tempo para investir em uma ou várias atividades paralelas é uma condição da capilaridade do poder acadêmico, e essa mobilidade institucional, característica dos teóricos globais, desenvolve de maneira exponencial a superfície social do indivíduo que tem acesso a múltiplas cenas, conexões e informações privilegiadas.

No caso dos professores, nota-se que a mobilidade geográfica não tem o peso que tem nas outras categorias profissionais analisadas, já que o renome dos intelectuais está mais relacionado com a mobilidade internacional das teorias. Essa, por sua vez, é alimentada por uma forte mobilidade de entrada (Gherardi, 2009, p. 108GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.), ou seja, pelo deslocamento geográfico de alunos ou colegas estrangeiros que se locomovem, entram em contato com suas obras e passam a difundi-las nos respectivos países de origem. No entanto, mesmo no caso dos teóricos, notamos que a disciplina espaço-temporal mais rígida recai novamente sobre aqueles que ocupam os altos escalões, ou seja, que acumulam mais de uma posição institucional, tornando-se diretores de instituições importantes, consultores ou atuando como porta-vozes de instituições de financiamento, grandes empresas, etc.

A partir da comparação das diferentes disciplinas espaço-temporais dos executivos, dos artistas e dos professores, emerge aquela que talvez seja a maior contribuição da tese, qual seja: a de ler a atual morfologia social do chamado "capitalismo avançado" através de dois eixos que opõem, de um lado, a liberdade ou a subordinação ao ritmo imposto pela produção capitalista e, de outro, o poder ou a impotência na determinação do ritmo dos outros. A ambiguidade da mobilidade convertida em imperativo do "novo espírito do capitalismo" não reside apenas nos custos humanos que ela comporta àqueles que a vivenciam no seu cotidiano, mas também, e, sobretudo, no fato de que ela se torna uma moeda com a qual se paga o poder de determinar a mobilidade dos outros, conforme argumenta a autora. O caso ilustrativo dessa relação entre poder e subordinação, é o dos executivos que, somente à custa de uma alta mobilidade que lhes é imposta, se tornam capazes de definir o caráter dos deslocamentos de seus subordinados. A mesma situação de impotência ante ao ritmo ditado pela produção é vivenciada pelos artistas que, compelidos à manutenção do seu renome e do seu reconhecimento, gozam de pouca liberdade no que concerne à determinação do ritmo de seus deslocamentos.

Além de elucidar essa morfologia social que faz da mobilidade uma espécie de capital, como argumentaria Kaufmann (2009), a autora também aponta para a importância da origem social - medida pela herança em forma de fortunas, móveis ou imóveis - na possibilidade de conjugar tanto uma liberdade em relação aos seus deslocamentos como um alto poder na determinação do ritmo de outros indivíduos. Assim, os herdeiros constituem os únicos indivíduos capazes de agirem com autonomia nos dois eixos, sendo, portanto, capazes de determinar, por um lado, a sua própria disciplina espaço-temporal e, por outro, a de outros indivíduos.

Se a tese é bem sucedida em oferecer ao leitor uma interpretação genuína sobre o papel dos dispositivos de mobilidade na atual morfologia social do capitalismo avançado, ela também tem sucesso no que diz respeito à denúncia dos custos humanos envolvidos no imperativo de leveza que se torna parte da subjetividade do "homem camaleão", representado pelo manager, chefe de projetos e, por excelência, a figura de apoio da "cidade por projetos" (Boltanski; Chiappelo, 1999BOLTANSKI, L.; CHIAPPELO, E. O novo espírito do capitalismo. Paris: Gallimard, 1999.). Além disso, o estudo pode ser altamente relevante para as ciências sociais em geral, na medida em que propõe uma nova abordagem, fora dos esquemas clássicos marxistas e weberianos, para se pensar as relações de poder e as estratificações sociais no atual contexto da sociedade em rede e do capitalismo por projetos.

  • Fernando Marcial Ricci Araújo - Mestrando em sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil). fernandomraraujo@gmail.com
  • 1
    Blondeau, C.; Sevin, JC. Entretien avec Luc Boltanski, une sociologie mise toujours à l'épreuve. Ethnographiques.org. Revue en ligne des sciences humaines et sociales. n.5, abr. 2004.

Referências

  • 1
    BLONDEAU, C.; SEVIN, JC. Entretien avec Luc Boltanski, une sociologie mise toujours à l'épreuve. Ethnographiques.org. Revue en ligne des sciences humaines et sociales, [S.I.] n.5, abr. 2004.
    » Ethnographiques.org
  • 2
    BOLTANSKI, L.; CHIAPPELO, E. O novo espírito do capitalismo Paris: Gallimard, 1999.
  • 3
    CASTELLS, M. A Sociedade em rede v.1, 11 ed., São Paulo: Paz e Terra, 2008.
  • 4
    CHIAPPELO, E. Artistes versus managers. Le management culturel face à la critique artiste Paris: Editions Métailié, 1998.
  • 5
    EHRENBERG, A. O culto da Performance: Da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida: Idéias & letras, 2010.
  • 6
    EHRENBERG, A. La fatigue d'être soi. Dépression et société.Paris: Odile Jacob, 2000.
  • 7
    GHERARDI, L. La mobilité ambigué. Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contempiraine. Paris: Édition universitaires européennes, 2009.
  • 8
    HEINICH, N. Être ecrivain. Paris: La Découverte, 2013.
  • 9
    KAUFMANN, V. Motility: mobility as capital, International Journal of Urban and Regional Research, v. 28, p. 745-756, Dec. 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2013
  • Aceito
    01 Ago 2013
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