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Sociologia política e processos macro-históricos

Political Sociology and Macro-historical processes

Resumos

Neste artigo, parto de uma breve exposição sobre algumas das muitas maneiras de se fazer sociologia política, para ilustrar a diversidade da área. Em seguida, comento uma dessas várias abordagens - aquela que privilegia as análises macro-históricas, salientando a preferência dessa perspectiva pela observação de grandes processos de transformação. Por fim, adotando essa mesma opção, discuto algumas das transformações em curso para sugerir que elas colocam desafios teóricos e metodológicos consideráveis para a sociologia política. Reconhecendo que os desafios em questão se colocam para além dela e, efetivamente, interpelam todas as ciências sociais, argumento que a justificativa para meu exercício é a convicção de que a sociologia política macro histórica é especialização vocacionada a refletir sobre tais transformações e a lançar luz sobre a obsolescência de certos esquemas analíticos consagrados pela tradição sociológica.

Era global; Solidariedade social; Igualdade e diferença; Transformações ideológico-culturais


The article offers, initially, a brief comment on the many definitions of political sociology and their diverse approaches. Next, it focuses on one of such perspectives, the one that confers priority to macro-historical analysis, calling attention to its preference for long term processes of transformation. Finally, adopting this same analytical preference, it discusses some of the ongoing great changes, suggesting that they pose big theoretical and methodological challenges to political sociology. The author explicitly recognizes that, actually, the challenges in question address all social sciences, but argues that macro-historical political sociology is the branch of sociology that is perfectly tailored to reflect upon such transformations and to throw lights onto the obsolescence of certain long established analytical models.

Global era; Social solidarity; Equality and difference; Cultural-ideological transformations


1. Introdução

Circunscrever o universo da sociologia política não é tarefa fácil. Como recortar uma subárea tão vasta e diversificada? O simples exercício de identificar os diferentes entendimentos do que é esse ramo da sociologia, além de sua iniludível superposição com especializações da ciência política, constituiria matéria para um longo artigo. Poderíamos falar de uma especialidade no singular, ou seria mais pertinente falar das distintas concepções do que é fazer sociologia política como especializações paralelas? Nesse artigo opto por privilegiar a reflexão sobre uma das concepções de sociologia política, aquela que privilegia a análise macro histórica. Essa vertente tem longa tradição nas ciências sociais e, como comento mais à frente, na obra de nossos clássicos ela quase se confunde com a própria sociologia. Antes, porém, apenas para ilustrar a diversidade da área e deixar clara minha opção por explorar apenas uma de suas variantes, menciono brevemente nessa introdução algumas das concepções mais difundidas de sociologia política.

Na segunda parte do texto, procedo a uma discussão sobre a sociologia política de orientação macro histórica, salientando sua preferência por observar grandes processos de transformação. Finalmente, praticando um pouco da tradição que escolhi abordar, discuto algumas das transformações em curso para sugerir que elas colocam desafios teóricos e metodológicos consideráveis para a sociologia política. Na verdade, os desafios em questão se colocam para além dela, já que interpelam todas as ciências sociais. Minha justificativa para esse exercício é a convicção de que a sociologia política macro histórica é especialização vocacionada a refletir sobre tais transformações e a lançar luz sobre a obsolescência de certos esquemas analíticos consagrados pela tradição sociológica.

Partindo de uma situação hipotética, suponhamos que uma pessoa alheia ao ambiente acadêmico, ao ler um jornal tivesse ocasionalmente despertada a curiosidade de saber o que é sociologia política. Como buscaria se informar? É razoável supor que ela consultaria a Wikipedia. Se o fizesse, encontraria a seguintes observações: "Sociologia política é o ramo da sociologia que reflete sobre o poder, o Estado e o dever (sic) político. É o estudo das bases sociais da política. A Sociologia ajuda a entender a política em si".

Se insatisfeita diante das vagas indicações, a leitora hipotética insistisse em sua busca consultando na web outras fontes, poderia descobrir então em sítios de universidades, um grande número de programas de disciplinas designadas como sociologia política. Ao fazer esse exercício ela se depararia com uma grande variedade de temas e linhas de pesquisa que certamente se prestam à análise da sociologia política, mas que igualmente servem à prática de diversas outras especializações da sociologia ou da ciência política. Nada de errado nisso, pois afinal o que define uma área de especialização é o ângulo adotado, ou em outras palavras as perguntas que ela formula sobre temas e problemas que podem ser compartilhados com áreas concorrentes ou complementares. Mesmo se nos limitarmos ao universo de diversas maneiras de se recortar a sociologia política, embora as relações de poder estejam no centro das atenções de todas elas, formas muito distintas de analisar essas relações são privilegiadas.

Assim, por exemplo, a análise do comportamento político, uma das grandes linhas da ciência política, constitui também uma das principais vertentes da sociologia política. Se ambas podem, por exemplo, se dedicar à análise de aspectos políticos da cultura de uma população, compartilhando alguns interesses de pesquisa, também é verdade que cada uma delas mantém sua especificidade quanto ao foco de análise escolhido. É também rotineiro encontrar sociólogos e cientistas políticos buscando identificar as bases sociais do eleitorado de partidos políticos, mantendo uns e outros suas respectivas referências teóricas, e respondendo a questões distintas. Em resumo, tanto cientistas políticos como sociólogos podem estar interessados em identificar que variáveis explicam preferências eleitorais, mas em geral as perguntas básicas por trás dessa preocupação são bastante diferentes.

Outra variante da sociologia política bastante difundida no Brasil e em outros países da América Latina envolve a análise de conjunturas passadas ou presentes. Nesse caso, os pesquisadores conjugam análises de variáveis econômicas, políticas e sociais para interpretar momentos específicos e muitas vezes também explorar cenários futuros. Nem sempre é fácil distinguir aqui entre o sociólogo e o cientista político, mas, simplesmente para tipificar, podemos salientar que as análises dos cientistas políticos tendem a privilegiar atores e instituições, enquanto os sociólogos da política tendem a enfatizar estruturas e processos estruturais.

A diferenciação entre abordagens torna-se ainda mais difícil se observarmos que um mesmo objeto de análise pode ser enquadrado tanto na perspectiva do comportamento político como naquela da interpretação de uma dada conjuntura. Assim, por exemplo, análises sobre movimentos sociais e outras formas de participação política podem tanto privilegiar o comportamento político dos atores envolvidos, como centrar atenção no papel dos movimentos sociais em uma dada conjuntura.

Também constitui recorte legítimo como sociologia política a análise de políticas sociais. A formulação, implementação e resultados dessas políticas constituem um campo no qual análises de processos decisórios, determinantes políticos, e implicações sociais atraem igualmente praticantes da sociologia política e da ciência política.

Distinta das perspectivas de análise político sociológica, que privilegiam comportamento político e análises de conjuntura acima mencionadas, é a abordagem que privilegia a análise de processos históricos, cujo propósito último é explicar ou interpretar transformações de longa duração. Também essa sociologia política de viés macro histórico mantém fronteiras híbridas com a ciência política, particularmente com a subárea dessa última conhecida como economia política. Entre os que escolhem essa perspectiva, é frequente a preocupação explícita em se situar nos debates teóricos, reiterando a interdependência entre a análise de processos histórico-concretos e a elaboração teórica. Lembro, por exemplo, o trabalho de Theda Skocpol (1979)36. SKOCPOL, Theda. States and Social Revolutions: A Comparative Analysis of France, Russia, and China. New York: Cambridge University Press, 1979. que usa a indução histórica para propor uma teoria da revolução, ou Michael Mann (1986)26. MANN, Michael. The Sources of Social Power: a History of Power from the Beginning to AD 1760. Vol. 1, Cambridge University Press, 1986. quando se debruça sobre a história da humanidade para explicar as origens do poder.

Nessa terceira perspectiva, poderíamos mencionar, no caso do Brasil, análises como as empreendidas em Cardoso (1962)14. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. sobre o capitalismo no sul do país, Fernandes (1975)22. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.sobre nossa revolução burguesa, Werneck Vianna (1976)41. WERNECK VIANNA, Luiz J.. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976. sobre a formação do mercado de trabalho, Schwartzman (1982) sobre os obstáculos que a democracia liberal enfrentava no país, e tantos outros. Certamente tínhamos, anteriormente a essas análises, uma tradição de grandes interpretações históricas que nos inspiravam em maior ou menor grau. Lembro aqui obras que se tornaram clássicas entre nós como as de Buarque de Hollanda (1936)13. BUARQUE DE HOLLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1936., Prado Jr. (1943)28. PRADO JR.. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1943., Faoro (1958)21. FAORO, Raimondo. Os Donos do Poder, Formação do Patronato Político Brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1958., entre outros. Os trabalhos desses precursores se distinguem por um forte viés histórico, mas não constituem uma sociologia política no sentido mais canônico que falamos hoje de uma especialização sociológica. De qualquer forma, entre eles e os primeiros trabalhos de sociologia política macro histórica no Brasil há uma clara afinidade temática qual seja a complexa interação entre o Estado e os interesses sociais em disputa. Também é possível observar nessa tradição de análise a tendência a tomar o Estado nacional como um ator estratégico, diferentemente de perspectivas teóricas que o tomam primariamente como resultado das disputas sociais.

Não resta dúvida de que, como qualquer outra especialização disciplinar ou subdisciplinar, a especificidade da sociologia política ou a de suas diferentes concepções reflete o grau e o contexto do processo de institucionalização das ciências sociais. Bastaria tomar em conta a produção brasileira de meados do século passado para concluir que, na maioria dos casos, a distinção entre sociologia política e ciência política era praticamente impossível.

Naturalmente os exemplos poderiam ser muitos no caso de qualquer das grandes vertentes acima mencionadas, assim como de outras tantas que poderiam ser mencionadas. Aqui, porém, conforme salientado, busco apenas ilustrar as superposições e diferenciações mais recorrentes no âmbito da sociologia política para deixar claro o caráter limitado e arbitrário do recorte empreendido nas páginas seguintes.

2. História e reflexão sociológica

Os processos históricos em curso fornecem sempre matéria-prima para a reflexão sociológica. No caso em particular da sociologia política, o esforço de captar o sentido geral das grandes transformações sociais e, em alguns casos, até mesmo a pretensão de influenciar o rumo da história são características distintivas. De fato, como é plenamente reconhecido, a sociologia surgiu como reflexão crítica sobre a sociedade afetada pelas grandes transformações que marcaram a afirmação da era moderna. Nesse sentido, podemos dizer que ela era uma sociologia política. Refletindo sobre a vida coletiva ela identificava os problemas do presente, apontava tendências, e conferia grande relevância à dimensão poder que está sempre presente nas relações sociais.

Assim, no ambiente acadêmico, há consenso em que existe, de certa forma, uma sociologia política em Marx, em Tocqueville, em Weber. Em todos eles, tanto a análise das características positivas e negativas das transformações sociais em curso como a identificação das perspectivas para o futuro conferem papel de destaque à política para explicar seja a manutenção ou a transformação do status quo. Mesmo Durkheim, com frequência caracterizado como sociólogo que reduz o poder político a uma engenharia social, não nega essa vocação da sociologia clássica, pois, se levarmos a frente seu raciocínio, os profissionais que desenhariam as técnicas para organizar a sociedade, com vistas a minimizar a anomia e preservar a solidariedade, seriam portadores de uma forma específica de poder, já que competiria a eles planejar e intervir para corrigir erros e aperfeiçoar acertos.

É também amplamente observado que os clássicos de nossa disciplina compartilhavam uma percepção generalizante, pois viam as transformações em curso na Europa Ocidental como expressões de processos universais os quais, em longo prazo, afetariam toda a humanidade. Capitalismo para Marx, igualdade para de Tocqueville, racionalização para Weber, diferenciação de funções para Durkheim - cada um desses fenômenos é, naturalmente, observado no contexto europeu, mas todos são identificados como tendências mais gerais. Esse viés de generalização a partir da experiência da Europa Ocidental tem sido objeto de debates e críticas, essas mesmas quase sempre exercícios de sociologia política. Na verdade, não se nega que as transformações discutidas pelos clássicos tenham efetivamente impactado outras sociedades. O que, sim, se debate é o uso feito desses e de outros processos que tiveram lugar na Europa, e mais tarde nos Estados Unidos, para se construir modelos de etapas e sequencias que se repetiriam em outras sociedades. Lembro, nesse sentido, a crescente literatura sobre modernidades múltiplas (Eisenstadt, 196619. EISENSTADT, Shmuel. Modernization, Protest and Change. Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1966.; 200020. EISENSTADT, Shmuel (Ed.). Multiple Modernities. Daedalus, 2000.), processos civilizacionais (Arjomand e Tiryakian, 20042. ARJOMAND, Said e TIRYAKIAN, Edward (Eds.). Rethinking Civilizational Analysis. London: Sage, 2004.; Arnason, Eisenstadt e Wittrock, 20054. ARNASON, Johann; EISENSTADT, Shmuel e WITTROCK, Bjorn (Eds.). Axial Civilizations and World History. Leiden: Brill, 2005.), estudos pós-coloniais e teorias do Sul Global (Arjomand e Reis, 20133. ARJOMAND, Said e REIS, Elisa (Eds.). Worlds of Difference. Los Angeles: Sage, 2013.).

É também digno de nota que, por um lado, os analistas clássicos tendem a perceber a fusão ideológica entre o Estado e a nação como um processo evolutivo quase natural, daí a suposição explícita ou implícita de que o que ocorria na Europa antecipava o desenvolvimento de outros países. Por outro lado, muitos deles estavam preocupados em contribuir com esse processo, sugerindo, portanto, que a atuação humana podia influenciá-lo. No contexto europeu, os clássicos aqui lembrados refletiam sobre a sociedade tendo como referência imediata os estados nacionais em processo de consolidação. Em certo sentido, essa reflexão fazia parte do próprio processo de construção do Estado-nação. Ao proceder à sua interpretação, o analista elaborava um repertório que dava sentido à experiência em curso.

Assim, a sociologia política de Tocqueville exercita a comparação entre França e Estados Unidos (Tocqueville, 1998 e 200037. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2 volumes, 1998 e 2000.) e entre França e Inglaterra (Tocqueville, 200938. TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) tendo sempre em mira os prognósticos políticos franceses. Também é fácil detectar a preocupação de Weber com as perspectivas do jovem Estado nacional alemão. Embora ele se aplique em manter à parte da análise sociológica seu ideal nacionalista, Weber explicita claramente a preocupação em preservar a nação ao manifestar preocupação com a crescente incorporação de trabalhadores poloneses na agricultura da Alemanha oriental (Weber, 196714. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.). Situada no contexto original onde se consolida o amálgama cultural entre o Estado e a nação que dá origem aos estados nacionais, a sociologia Europeia é, ela mesma, expressão e reflexão intelectual em torno desse fenômeno histórico (Reis, 199830. REIS, Elisa. O Estado-nação como Ideologia. In: REIS, E. (Org.). Processos e Escolhas: Estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: ContraCapa, 1998.).

O exemplo de um clássico contemporâneo, Raymond Aron, que se definiu como um espectador engajado, é ilustrativo de que tende a persistir um compromisso político-moral explicito na tradição da sociologia política de orientação histórica (Aron, 19825. ARON, Raymond. O Espectador Engajado. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.). Mesmo no caso da academia norte-americana, geralmente refratária à politização, não é difícil captar essa característica da sociologia política. Exemplar nesse sentido é a análise de Margaret Somers que invoca a tragédia social desencadeada pelo furacão Katrina para refletir criticamente sobre a cidadania (Somers, 200835. SOMERS, Margaret. Genealogies of Citizenship: Markets, Statelessness, and the Right to Have Rights. New York: Cambridge University Press, 2008.). De formas variadas, praticantes da sociologia política com frequência tornam explícito seu viés normativo.

No caso dos países periféricos, esse compromisso por parte dos analistas torna-se ainda mais visível. Na esteira do processo de descolonização que tem lugar depois da segunda guerra, a sociologia se percebia comprometida com o processo de construção dos estados nacionais emergentes. A sociologia do desenvolvimento, que ganhou tanto espaço no então chamado Terceiro Mundo, era de fato uma sociologia política, preocupada em entender as razões do atraso e propor estratégias para superar o subdesenvolvimento. Simplesmente para exemplificar, lembro aqui Eisenstadt (1966)19. EISENSTADT, Shmuel. Modernization, Protest and Change. Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1966., Cardoso e Faletto (1969)15. CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependencia y Desarrollo en America Latina. Mexico: Siglo XXI, 1969.; e Gunder Frank (1967)25. GUNDER FRANK, Andre. Capitalism and Underdevelopment in Latin America. London: Monthly Review Press, 1967..

No Brasil, como também em outros países Latino Americanos, essa vocação política da sociologia é mais precoce, dado que o desafio de construir o Estado nacional tem lugar mais cedo e obedece a uma dinâmica diversa. Assim, entre nós, a perspectiva política na interpretação dos processos sociais transparece com muita clareza nos ensaios pioneiros dos autores clássicos acima mencionados. Cada um deles, à sua moda, identifica problemas e pensa em alternativas para superar entraves a uma organização mais satisfatória da sociedade. Mais ainda, a possibilidade de alterar tendências e aperfeiçoar nossa sociedade se configura em cada um desses autores como uma proposta política. Mais tarde, com a institucionalização inicial da sociologia, a produção se torna menos ensaísta, mas a marca da sociologia política permanece claramente em obras que, durante muito tempo, constituíram referencia canônica na literatura brasileira.

Como bem o observou Peirano (1991)29. PEIRANO, Mariza. Uma Antropologia no Plural. Brasília: Editora da UNB, 1991. ao analisar a obra de alguns notáveis cientistas sociais brasileiros ativos já na segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em que esses autores buscavam compreender aspectos diversos de nossa sociedade, eles se tornavam participantes do projeto de construção nacional no país. É verdade que o próprio avanço desse projeto viria colocar novas questões para a sociologia política, mas também outros fatores redefiniriam o escopo e as questões-chave da sociologia política. Por um lado, internamente, a progressiva institucionalização das ciências sociais brasileiras estabelecia fragmentações disciplinares, novas especializações, e novos protocolos de pesquisa. Por outro, a aceleração dos processos globais introduziu novos desafios teóricos e epistemológicos.

O processo de institucionalização tornou cada vez mais nítida a fronteira anteriormente porosa entre a sociologia e a ciência política. Além disso, no interior da sociologia, ele propiciou as condições para o surgimento de novas especializações que, em certa medida, dividiram entre si temas e questões de pesquisa anteriormente englobadas na agenda da sociologia política. Para completar o quadro, o volume de informações hoje disponíveis, os avanços no rigor metodológico e a própria valorização da especialização na cultura acadêmica tornaram mais rarefeita a produção de interpretações político sociológicas de caráter macro nacional com que estávamos acostumados. Contudo, com características distintas, persiste a busca de interpretações mais abrangentes sobre mudanças em curso.

3. Sociologia política e processos globais

As profundas transformações em curso, frequentemente sintetizadas no linguajar comum como "globalização", envolvem processos múltiplos e, algumas vezes, até mesmo contraditórios. De qualquer forma, mesmo aqueles para quem os processos globais não constituem algo novo, e sim a continuidade de uma dinâmica multissecular, tendem a concordar que o escopo e o ritmo das mudanças em curso implicam rupturas e incertezas. Para a sociologia política de cunho macro-histórico, o desafio é oferecer grandes interpretações sobre os processos em curso. Esforços para captar o sentido e as implicações das transformações correntes revolvem, em grande parte, em torno da relação entre elas e a dinâmica moderna que deu origem inclusive às ciências sociais como forma específica de conhecimento. Sintomaticamente, essas discussões se referem hoje à "modernidade" e não mais à modernização, sugerindo, talvez, que o caráter expansivo incorporado pelo conceito teria se esgotado. Na verdade, esse é um dos pontos polêmicos que alimentam a discussão sociológica sobre o sentido e as implicações das mudanças correntes. Para alguns, não se trata efetivamente de um esgotamento, mas de uma nova forma de dinamismo: fala-se de segunda modernidade, modernidade tardia, alta modernidade e outras expressões sugestivas de inovações sem ruptura com a era moderna que se tornaram moeda corrente do léxico da sociologia (Beck, 200110. BECK, Ulrich. Cosmopolitan Vision. Cambridge, UK: Polity Press, 2001.; Giddens, 199124. GIDDENS, Anthony. Modernity and Self-Identity. Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge, UK: Polity Press, 1991.; Robertson, 200232. ROBERTSON, Rolan. Globalization: Social Theory and Global Culture. London: Sage, 2002.).

Para outros, porém, a modernização teria esgotado suas potencialidades, dando lugar a uma nova visão de mundo e novas dinâmicas sociais. Mas, é interessante ressaltar, os autores afinados com a sociologia política tendem a recusar um alinhamento com as correntes filosóficas pós-modernas. Martin Albrow (1977)1. ALBROW, Martin. The Global Age, State and Society Beyond Modernity. Stanford: Stanford University Press, 1977., por exemplo, insiste em que a era moderna chegou ao fim e vivemos agora algo completamente novo, designado por ele como a era global. Deixa claro, porém, que não há razão para ver nisso o esgotamento do dinamismo da história. Possibilidades e potencialidades sociais devem ser consideradas fora da moldura do moderno, donde a necessidade de descartar, inclusive, qualquer associação com o pós-moderno.

O debate em questão está longe de ser encerrado e certamente merece, ele próprio, análise cuidadosa que identifique os principais argumentos em disputa e examine também o poder crítico e interpretativo das posições em disputa. Entretanto, essa não é a tarefa que me proponho. Nas páginas que se seguem, concentro-me na discussão de três grandes transformações culturais em curso, mudanças essas que introduzem grandes desafios para as ciências sociais em geral e para a sociologia política em particular. Tais mudanças repercutem, em maior ou menor grau, em muitas interpretações em disputa que acabo de comentar, mas elas não são o foco dessa discussão. Tratam-se de mudanças que dizem respeito à maneira como percebemos o mundo e, nesse sentido, podemos nos referir a elas como mudanças ideológico-culturais. Elas dizem respeito à concepção das relações dos humanos com a natureza, à percepção dos recursos de organização social existentes, e à maneira como igualdade, desigualdade e diferença se relacionam.

Em conjunto, essas três mudanças ideológico-culturais corroboram a ideia de uma ruptura radical com a visão de mundo anteriormente vigente e devem ser vistas tanto como produto da transformação histórica em processo, como elas próprias agentes de transformação. Em outras palavras, tais mudanças de percepção constituem causa e efeito de transformações nas práticas dos atores. A justificativa para fazer delas objeto de uma discussão sobre sociologia política é a constatação de que elas têm impacto direto sobre a maneira como o poder político e os interesses sociais se articulam.

Se for verdade que o foco nas mudanças culturais não é suficiente para elaborar uma interpretação satisfatória sobre o presente e as perspectivas do futuro, ignorar essa dimensão de análise certamente torna mais opaco o cenário. Nesse sentido, as observações que se seguem têm a pretensão de oferecer elementos preliminares para uma reflexão sobre nossas próprias lentes de trabalho.

Talvez a transformação cultural que impacta mais decisivamente a perspectiva analítica macro histórica seja aquela que diz respeito à maneira como gradualmente vem se expandindo uma consciência da natureza como algo a ser preservado. Essa percepção substitui a visão da natureza como algo a ser conquistado, que no passado tinha substituído a visão tradicional do meio ambiente como algo a ser temido. De fato, olhando a história da humanidade, vemos que no mundo pré-moderno as forças da natureza eram percebidas como forças indomáveis, ou mesmo hostis, frente às quais a humanidade lutava para se proteger buscando abrigo, praticando magia, invocando proteção divina. A institucionalização de uma nova crença segundo a qual a natureza devia ser objeto de conquista e dominação graças ao uso da técnica e da ciência marca o advento da era moderna. O novo ambiente cultural instaura a fé na razão e a crença no poder inesgotável da invenção tecnológica. A ideia de desenvolvimento contínuo, ou seja, a convicção de que o mundo pode avançar continuamente substituiu a noção de que ele estava condenado a ciclos naturais de prosperidade e decadência.

Essa crença na possibilidade de constante progresso se tornou com o tempo uma segunda natureza. Ante o imenso progresso material baseado na tecnologia, a ideia do desenvolvimento como o resultado natural da intervenção humana sobre recursos naturais ilimitados tornou-se soberana. Não apenas na Europa Ocidental que se tornara hegemônica, mas também na periferia, difundiu-se a crença de que o progresso, ou desenvolvimento, é o curso natural da história, enquanto a decadência ou a estagnação constituiriam anomalias, distorções que deveriam ser corrigidas com recurso à ciência, a tecnologia, e a determinação política.

Com salientei acima, o que observamos agora é a substituição gradual dessa postura "conquistadora" frente à natureza, por outra "protetora" que vê os recursos naturais como um bem a ser cuidado. Sem abrir mão inteiramente da crença otimista de que o desenvolvimento pode e deve persistir, os humanos passam mais e mais a perceber que será necessário cuidar da natureza e não mais conquistá-la, sob pena de estancamento das possibilidades de crescimento, e mesmo ameaça à sobrevivência. A preocupação com a exaustão dos recursos e a busca de soluções que assegurem crescimento com sustentabilidade constituem a expressão mais difundida dessa nova visão de mundo. Entretanto, embora a passagem de uma postura agressiva para outra de caráter protecionista tenha avançado significativamente nas últimas décadas, certamente essa última encontra fortes resistências estando longe de ser dominante.

Os conflitos entre a visão exploradora e a protecionista se manifestam em diferentes contextos, de várias maneiras, e com consequências diversas. Os interesses competitivos que se defrontam nessa disputa, assim como as transformações objetivas nas condições e processos produtivos se multiplicam nos planos dos atores, das instituições, dos governos. Tensões e contradições incidem de forma inexorável sobre a sociedade, trazendo grandes incertezas e colocando novas questões para as ciências sociais. Para a sociologia política em particular, as novas equações culturais e materiais colocam o desafio de interpretar as configurações de poder que emergem no novo cenário mundial e explorar suas possíveis evoluções.

A segunda mudança ideológico-cultural que assistimos no presente envolve a inclusão da própria sociedade como repositório de um tipo de recurso de organização específico. Tal inclusão necessariamente substitui a percepção dicotômica, até há pouco vigente, quanto aos recursos básicos de organização social existentes, por uma tricotomia. Discutindo a conformação dos modernos estados nacionais, estávamos acostumados a pensar que as sociedades se estruturam através de combinações variáveis de autoridade e interesses. Nessa visão, a solidariedade era percebida como diluída na autoridade através do pertencimento a uma comunidade nacional, e no mercado através do compartilhamento de interesses entre vendedores e compradores. Assim, a partir da afirmação do processo de formação e consolidação dos estados,nacionais, as premissas que orientaram a reflexão social viam na articulação variável entre autoridade e interesse os dois princípios dinâmicos de coordenação da vida em sociedade (Reis, 199830. REIS, Elisa. O Estado-nação como Ideologia. In: REIS, E. (Org.). Processos e Escolhas: Estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: ContraCapa, 1998.). Empiricamente, sociedades nacionais passaram as ser distinguidas com base em seus usos variáveis de recursos de autoridade (Estado) e recursos de mercado (interesse).

Nas últimas décadas do século XX, mais e mais vimos aparecer referências à solidariedade como um terceiro tipo de recurso. Não mais diluída na identificação nacional ou nos interesses materiais, a solidariedade aparece agora nas análises da sociologia política como uma dimensão analítica própria, como algo que tem características distintivas. Uma das primeiras indicações de que nossa percepção mudava aparece no resgate do conceito de sociedade civil. Como diversos autores observaram, o conceito, que tinha praticamente caído em desuso, volta a ser amplamente usado. No âmbito empírico, foi exemplo claro disso o movimento polonês Solidariedade que clamava por uma alternativa aos recursos de autoridade. Também na América Latina os movimentos sociais ativos no processo de democratização clamavam por antídotos tanto ao Estado autoritário quanto ao capitalismo selvagem.

No ambiente acadêmico, o livro de Cohen e Arato (1994)16. COHEN, Jean L. e ARATO, Andrew. Civil Society and Political Theory. Cambridge, MA: MIT Press, 1994. que resgata o conceito gramsciano de sociedade civil exerceu enorme influência. Mas, talvez, quem de forma mais clara tenha sinalizado que a solidariedade passa a ser percebida como um recurso de análise específico tenha sidoWolfe (1991)42. WOLFE, Alan. Whose Keeper? Social Science and Moral Obligation. Berkeley: University of California Press, 1991.. Analisando a organização social nos Estados Unidos, no Japão e na Escandinávia, ele concluiu que nem o predomínio do Estado, nem o do mercado respondiam adequadamente às necessidades sociais, sugerindo então que um terceiro tipo de recurso, a solidariedade social, poderia suprir as deficiências dos outros dois. Wolfe não ignora que esses três princípios de organização sempre se combinam, mas, para fins heurísticos, aponta os Estados Unidos e o Japão como tipos ideais de sociedades que conferem prioridade respectivamente ao mercado e ao Estado. E vê as iniciativas voluntárias que observou nos países escandinavos como indicativas da necessidade de suprir as crescentes deficiências de ambos, Estado e mercado, para responder às necessidades sociais.

Finalmente, a terceira das grandes mudanças culturais que mencionei diz respeito à percepção social relativa à igualdade, desigualdade e diferença. É amplamente reconhecido que o valor da igualdade constitui um dos pilares da modernidade ocidental. No processo de consolidação do Estado-nação como um amálgama ideológico de autoridade e lealdade, a igualdade constituiu elemento central subjacente à institucionalização do moderno status de cidadania. Rejeitando a crença na existência de diferenças naturais entre as pessoas, que no mundo feudal justificava as rígidas hierarquias sociais, a cultura individualista moderna redefiniu o oposto de "igual" como "desigual" e não mais como "diferente" (Dumont, 197718. DUMONT, Louis. Homo aequalis: genèse et épanouissement de l'idéologie économique. Paris: Gallimard, 1977.).

Não há como negar o impacto revolucionário da ideologia igualitária que substitui a visão da sociedade como naturalmente estratificada. Em um movimento crescente, o valor da igualdade ganhou o mundo. Ele inspirou movimentos nacionalistas por independência, demandas por cidadania, e políticas redistributivas nos mais variados contextos. Também não se pode negar que a ideologia igualitária continua desempenhando um papel crucial na promoção da justiça social. Entretanto, essa definição ideológica da igualdade como o contrário de desigual teve custos ao ofuscar a noção de diferença e suas consequências sociais. No processo de construção dos estados nacionais, a igualdade dos co-nacionais vis-à-vis o Estado suprimiu identidades estabelecidas de longa data. Para serem reconhecidas como iguais, as pessoas não podiam ser pensadas como diferentes entre si. O compartilhamento da cidadania os tornava iguais entre si e diferentes dos não cidadãos. O processo de modernização Europeu que ensejou essa mudança de percepção foi lento e gradual, embora raramente nos lembremos disso. Na história mais recente, quando olhamos, por exemplo, para o processo de descolonização na África, a artificialidade da igualdade que ignora a diferença se torna flagrante e suas consequências muitas vezes trágicas.

A supressão da noção de diferença como dimensão relevante, e por vezes até a confusão entre diferença e desigualdade, teve sérias consequências teóricas e empíricas. Hoje, contudo, a ideia do reconhecimento da diferença como parte dos processos globais é crescentemente tida como um argumento legítimo e como condição necessária para se afirmar a igualdade. Para a análise que me interessa aqui, o ponto importante a salientar é a novidade histórica compreendida na coexistência possível da igualdade e da diferença como opostos de desigualdade. As mudanças culturais que experimentamos hoje sugerem que, em vez de reprimir a igualdade, o reconhecimento da diferença pode ser uma condição necessária, embora não suficiente, para afirmá-la (Benhabib, 200212. BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton: Princeton University Press, 2002.; Fraser, 199523. FRASER, Nancy. From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a 'Postsocialist' Age. New Left Review, 1995, p. 68-93.).

Retirando do armário as diferenças que contribuíram de longa data para manter desigualdades profundas e persistentes, nós nos confrontamos com questões e controvérsias políticas, mas igualmente questões que merecem análise cuidadosa das ciências sociais. É nesse sentido que questões de gênero, etnia, cor, religião e outros tantos marcadores de diferenças constituem temas legítimos de análise para a sociologia política.

Não se pode negar que o ressurgimento da diferença como uma característica social positiva é uma das profundas transformações observadas no mundo contemporâneo. A importância adquirida por questões relativas à identidade não deixa margem a dúvidas: a noção moderna de igualdade agora compartilha espaço com o reconhecimento de diferenças coletivas escolhidas pelos indivíduos como foco legítimo de lealdade. Ao invés das diferenças atribuídas, que no mundo pré-moderno justificavam a rígida hierarquização da sociedade, agora é com base na própria crença na igualdade dos indivíduos que as pessoas expressam sua subjetividade e reclamam o direito de escolherem livremente identidades que as diferenciam de outros.

Quando levamos em conta o desenvolvimento do ideal da igualdade e seu ofuscamento das diferenças, torna-se claro porque a demanda por reconhecimento, que se expandiu nas últimas décadas, tornou-se vital para grupos que eram, ou ainda são, privados de incorporação plena a seus contextos sociais. Em outras palavras, o reconhecimento se tornou componente indispensável nas lutas por igualdade. Minorias e grupos excluídos mobilizam precisamente sua especificidade para demandar inclusão e reparação por parte de comunidades nacionais.

A noção segundo a qual as identidades podem ser escolhidas e contingentes ganha aceitação crescente não com uma negação, mas, sim, com a plena afirmação da individualidade. A ideia é que, incorporando o valor da diferença, ou da diversidade, torna-se mais fácil lutar pela igualdade, pela tolerância, por um mundo mais plural e, por isso, mais rico. Essa é, portanto, mais uma grande transformação que vem se processando em nossa visão de mundo. Na prática, articular igualdade e diferença não é tarefa fácil. As tensões e contradições introduzida nas disputas políticas concretas por esse novo enquadramento simultâneo da igualdade e da diferença constituem rico material de análise para a sociologia política. Por sua vez, a relevância das análises reside em sua capacidade de lançar luz sobre as implicações de possíveis resoluções empíricas de tais tensões e contradições (Silva e Reis, 201234. SILVA, Graziella e REIS, Elisa. The Multiple Meanings of Racial Mixing in Rio de Janeiro: From Whitening to Brazilian Negritude. In: Ethnic and Racial Studies, Vol.35, 2012, p. 382-399.).

As três inovações culturais que ressaltei são processos dinâmicos e certamente têm abrangência e impacto diferenciado. Mas, certamente, elas colocam para as ciências sociais em geral grandes desafios. Para ilustrar isso no caso particular da sociologia política, examinemos brevemente algumas implicações das três mudanças em curso para os estados nacionais. É impossível ignorar que eles têm sido profundamente afetados pelas transformações em curso (Axtmann, 20046. AXTMANN, R.. The State of the State: The Model of the Modern State and its Contemporary Transformation. International Political Science Review 25(3), 2004, p. 259-279.). Sem subscrever a tese sustentada por alguns, de que o Estado-nação está em vias de desaparecer sob o impacto das mudanças globais, meu argumento é que ele perde algumas de suas características, mas vem adquirindo outras, cuja compreensão e teorização competem à sociologia política.

Assim, a nova percepção da relação entre os humanos e a natureza, ao reconhecer a preservação do meio ambiente como condição fundamental para a sobrevivência, introduz necessariamente uma perspectiva diferente no tratamento da natureza como um bem público. Problemas como o aquecimento global e a redução da camada de ozônio tornam inadequadas decisões de política ambiental limitadas ao âmbito dos estados nacionais. Como todos os terráqueos são afetados por tais problemas, a coletivização das decisões de política pública para mitigá-los exige decisões globais. Evidentemente estamos longe de chegar a um consenso que coletivize as decisões em nível global, e os obstáculos existentes aparecem primariamente como resistências por parte de governos nacionais. Alguns veem na crescente necessidade de decisões globalmente articuladas um sinal de que os estados nacionais estão perdendo força e sua soberania encontra-se em processo de erosão (Van Creveld, 199939. VAN CREVELD, Martin. The Rise and Decline of the State. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1999.).

Contudo, contrariando aqueles que veem o Estado-nação como perdendo terreno no espaço global, é preciso ter em conta que os atores mais relevantes para se lograr estabelecer acordos globais são precisamente os estados nacionais. Eles são os interlocutores mais adequados nesses casos, quando se trata de discutir externalidades positivas e negativas. É também a eles que se dirigem as demandas de movimentos sociais em defesa do meio ambiente, dos direitos humanos, e outras causas baseadas em valores universais. Se, por um lado, os estados nacionais precisam ceder autonomia quando aceitam acordos coletivos, por outro, eles são os atores que têm voz no processo, i.e., os quais podem legitimamente acordar, o que lhes confere papel estratégico. Em outras palavras, se por um lado se reduz a autonomia decisória dos estados nacionais, por outro, eles se tornam atores mais requisitados no âmbito global.

Também no que diz respeito à percepção de que seriam três, e não dois, os recursos básicos de organização social, o impacto sobre o Estado-nação é digno de nota. Se, no passado, o Estado e a nação eram vistos como o amálgama estruturado em torno de combinações típicas de autoridade e interesses, agora, com a ideia de que a solidariedade pode ser vista como um princípio autônomo de organização, expandem-se as possibilidades de combinação de recursos. Para o Estado-nação, a consequência mais imediata é a emergência de identidades que desafiam a primazia da lealdade nacional. Na verdade, a introdução desse terceiro elemento, a solidariedade, parece corresponder a uma mudança cujo impacto altera a própria a visão convencional sobre os dois princípios de longa data culturalmente estabelecidos.

No momento, podemos observar um processo de diluição dos critérios tradicionais de distinção entre o Estado e o mercado. Do Estado, espera-se agora que adote critérios de gestão tradicionalmente associados ao mercado. A ideologia do new management ganha espaço como fórmula virtuosa para assegurar a eficiência no exercício de poder público (Barzelay, 19928. BARZELAY, Michael. Breaking through Bureaucracy: a new vision for managing in government. Berkeley: University of California Press, 1992.; 20019. BARZELAY, Michael. The New Public Management: Improving Research and Policy Dialogue. Berkeley: University of California Press, 2001.). Por sua vez, no mundo empresarial, ganha espaço o ideal da "responsabilidade social corporativa", sugerindo que também do mercado se espera um ethos coletivo (Carroll, 199917. CARROLL, Archie. Corporate Social Responsibility: Evolution of a Definitional Construct. Business and Society, 38, 3, 1999, p. 268-295.). No contexto brasileiro, chegamos mesmo à curiosa adjetivação "indústria cidadã". Ainda que o lean government e a "empresa cidadã" possam constituir, sobretudo, esforços de melhorar a imagem de ambos, i.e., do Estado e do mercado, podemos ver tal empenho como sugestivo de um rearranjo cultural quanto ao que se espera de um e de outro. Por sua vez, o princípio da solidariedade é invocado como fundante do que passamos a conhecer como "terceiro setor", "organizações não governamentais", "organizações da sociedade civil". Como bem sabemos, a heterogeneidade desse universo é extrema, mas, se algo dá unidade a ele, é precisamente o fato de as variadas organizações que o integram definirem sua identidade por contraste com o Estado e com o mercado.

Os debates quanto a esse "terceiro setor" expõem claramente algumas das novas questões colocadas no terreno dos estados nacionais. Assim, por exemplo, para alguns, a aceitação das ONGs como parceiras na condução de políticas sociais sinaliza que a autoridade está se omitindo, abrindo mão do que deveria ser legítima obrigação governamental. Mais ainda, salienta-se que os interesses de mercado, ávidos para cortar impostos, é que estariam impondo o encolhimento do estado de bem-estar. Para eles, o novo dinamismo da sociedade civil seria fruto da onda neoliberal. Para outros, ao contrário, a efervescência da sociedade civil, a importância crescente das organizações não governamentais seriam indicações de que a democracia estaria fazendo progressos nos estados nacionais. Na visão deles, a expansão dessas novas organizações indicaria que o componente cívico da cidadania está se expandindo.

Quer optemos por um ou outro dos lados do debate quanto às novas organizações da sociedade civil, é forçoso reconhecer que elas têm consequências para os estados nacionais. À nova percepção cultural da solidariedade que informa a noção de um terceiro setor, correspondem novas formas de participação política, novos espaços de discussões, novos tipos de demanda ao Estado nacional. É mister observar que, a exemplo do que ocorre com a nova percepção de nossa relação com a natureza, com a emergência de um terceiro princípio de organização social os estados nacionais enfrentam novos desafios. Mas, também nesse caso, novas possibilidades de renovação e articulação com a sociedade se abrem para reestruturar a autoridade.

No caso da terceira transformação que mencionei - a postulação da diferença como compatível com a igualdade - as implicações mais imediatas dizem respeito a como conciliar o individualismo que fundamenta a noção moderna de cidadania com as demandas crescentes por direitos de minorias, ou direitos coletivos. Alguns analistas temem que a busca de reconhecimento de diferenças coletivas avance em detrimento da igualdade (Barry, 20017. BARRY, Brian. Culture and Equality: an Egalitarian Critique of Multiculturalism. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001.; Benhabib, 200212. BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton: Princeton University Press, 2002.). Também veem com desconfiança as reivindicações por reconhecimento de identidades coletivas, os que chamam atenção para o risco dessas acabarem por favorecer a criação de comunidades segmentadas que debilitem a solidariedade nacional.

Já para outros, as demandas por reconhecimento de identidades particulares não necessariamente conflitam com identidades nacionais. Na visão desses, levar em conta diferenças coletivas permite avançar o princípio da igualdade. Em certo sentido, tais demandas evocam as demandas pelo direito de combinação pelo qual lutaram com sucesso os trabalhadores europeus no passado. Como bem lembra Bendix (1964)11. BENDIX, Reinhardt. Nation Building and Citizenship. Berkeley: University of California Press, 1964., a luta dos operários pelo direito de se unirem em sindicatos teve que vencer a resistência moderna às representações coletivas ou corporativas. No caso dos trabalhadores, a reivindicação do direito de combinação não tinha como base características adscritas. Pode-se argumentar, porém, que, ao basearem as reivindicações em suas características distintivas, minorias estejam efetivamente convertendo tais características em recurso de combinação que torne possível afirmar sua igualdade/individualidade como seres humanos (Reis, 201131. REIS, Elisa. Equality, Inequality, and Difference. New Cultural Frontiers (2), 2011. Disponível em: www.newculturalfrontiers.org
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).

Não há respostas definitivas para as dúvidas e polêmicas que envolvem as tensões emergentes nas relações entre igualdade, desigualdade e diferença. Da mesma forma, os estados nacionais que enfrentam hoje reivindicações aparentemente contraditórias não têm soluções exclusivamente técnicas para elas. São mobilizações de forças e disputas contingentes de poder que vão construindo gradualmente novos arranjos institucionais.

4. Considerações Finais

A visão de mundo emergente envolve transformações culturais as quais fazem lembrar outra grande transformação, aquela a que se referia Polanyi (1944)27. POLANYI, K.. The Great Transformation. New York: Farrar and Rinehart, 1944.. Conforme ele argumentou, uma grande revolução cultural ocorreu concomitante à transformação material que, ao viabilizar o capitalismo, também colocou em risco a solidariedade social. Como se sabe, ele argumentava que a conversão da atividade humana natural em "trabalho" e da terra (ou natureza) em capital correspondeu a uma transformação tão radical que, ao ameaçar o tecido social, colocou em ação a "mão invisível da sociedade". Faço essa observação, porque Polanyi reverte Adam Smith para postular a existência de mecanismos auto-protetores que automaticamente restauram o equilíbrio social ameaçado pelas forças destrutivas do mercado. Sem subscrever a visão sistêmica funcional de Polanyi, sugiro que estamos assistindo a uma redefinição bastante profunda em alguns dos postulados básicos sobre a sociedade.

Às ciências sociais, cabe incorporar os novos supostos culturais como objetos de análise e dar sentido aos processos em curso. Se, de um lado, as exigências metodológicas atuais impõem a necessidade de recortes mais e mais específicos, por outro, as incertezas do presente clamam por interpretações macro como as que emergiram com o advento da modernidade. No contexto atual, a diversidade de fontes de informação disponíveis e a complexidade crescente da sociedade, concorrem para tornar mais árdua a agenda de pesquisa. Porém, na medida em que as dificuldades e oportunidades são compartilhadas em escala global, vemos emergir um estímulo poderoso ao diálogo transnacional que poderá concorrer para renovar a sociologia e contribuir para uma produção efetivamente cosmopolita. Para a sociologia política macro-histórica o desafio é renovar-se sem perder de vista sua vocação para combinar história e teoria.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2014
  • Aceito
    18 Jul 2014
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