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De coadjuvante a protagonista? A reflexão epistemológica das Ciências Sociais para Século XXI

O positivismo, que se desdobrou de Comte ao Círculo de Viena, aprisionou, ao longo de todo o século XX, o imenso potencial das ciências sociais e humanas nas grades de um realismo humanista comprometido com a noção de causalidade. Esse foi o estopim para que os organizadores deste volume, no artigo A contribuição da Sociologia à compreensão de uma epistemologia complexa da Ciência contemporânea narrassem de modo crítico uma versão de um século de debates epistemológicos que culminaram, de forma irreversível, diriam, em abordagens epistemológicas pós-positivistas. O que se descortina do tímido século XX de incursões epistemológicas contra o positivismo são as imensas possibilidades, até aqui frustradas, de se praticar ciências sociais para fenômenos complexos.

De fato, acreditou-se que com a observação e com a experimentação seria possível chegar a todas as leis que compunham e determinavam os mundos "natural e social". Assim, guardou-se certa ingenuidade com relação à "profundidade" (ou complexidade) da própria realidade ("natural" ou "não-humana") dos objetos do mundo. Ian Hacking (20125. HACKING, I. La domesticación del azar. Gedisa: Argentina, 2012., p. 17), ao se referir à complexidade, à contingência e à probabilidade, mencionou que: "o acontecimento conceitual mais importante da física do século XX foi o descobrimento de que o mundo não está sujeito ao determinismo". Essa constatação, desde sempre, fora intuída pela Sociologia, que talvez não tenha tido, na sua origem, dadas as circunstâncias históricas, força suficiente, para impor uma outra epistemologia à Ciência.

Os diversos artigos aqui reunidos sugerem que formas não disciplinares de se praticar ciências seriam o que poderia surgir sob um regime inteiramente não positivista. Rodrigues, Neves e Anjos, em particular, discutem as demandas socionaturais que tornam irrelevante a oposição entre ciências naturais e sociais quando se está diante do aquecimento global, do esgotamento dos recursos naturais, da extinção de espécies, de novas patologias e infecções globais e da fragilidade cada vez mais (des)coberta da espécie que compõe o que se chama de humanidade.

Essas formas talvez até já estejam a eclodir, tanto nos giros pós-coloniais, como nos pós-estrutruralismos, nos pós-fundacionalismos e nos construtivismos de diferentes versões, apostas na subversão das fronteiras entre formas do conhecer, as quais desmontam, também, as oposições entre o local e o universal, metrópoles e periferias, conhecimento erudito e senso comum. Todas as investidas aqui indicadas, no sentido da subversão das grandes divisões, exigem forte reflexividade epistemológica para que novos territórios de investigação se instalem.

Robertt e Lisdero exploram as possibilidades de intensificação do giro reflexivo contra as heranças positivistas e neopositivistas ainda remanescentes na sociologia. O diagnóstico é de que não há suficiente reflexão epistemológica, em que pesem os cursos, disciplinas, congressos, debates. As pesquisas, particularmente na pós-graduação, estão automatizadas por uma livre e relativamente fácil utilização de entrevistas comprobatórias, o que carrega pressupostos positivistas indiscutidos. Os autores visualizam resíduos positivistas na proeminência das estratégias multimétodos, na excessiva utilização irrefletida de entrevistas, particularmente nas investigações em sociologia, e na herança da perspectiva do vetor epistemológico (que vai da teoria aos dados) que se pode encontrar, por exemplo, na obra de Pierre Bourdieu. Dos apontamentos em favor da superação desses resíduos positivistas, o que potencialmente emerge são as possibilidades de um reencontro entre as ciências sociais e o senso comum.

Pode parecer paradoxal que uma crítica incisiva à ostensiva utilização de entrevistas semiestruturadas nas pesquisas em Ciências Sociais possa ir em direção de um resgate do senso comum. Mas é disso mesmo que se trata: de livrar os pontos de vista nativos das cadeias que transformam a entrevista em mera ilustração de hipóteses já teoricamente asseveradas. O deslocamento de uma vigilância epistemológica exercida sobre os pesquisados para uma exigência de reflexividade intensificada por parte do pesquisador é uma desafiadora incursão contra a epistemologia consagrada pela obra de Pierre Bourdieu. Uma das consequências mais fecundas dessa incursão é uma proposta de reconciliação da sociologia acadêmica com aquilo que a sociologia de Bourdieu (2007)1. BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-C.; PASSERON, J. Ofício do sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. descartou apelidando de sociologia espontânea do senso comum.

Uma reconciliação similar entre o senso comum e as possibilidades de uma sociologia que não despreza as competências críticas dos atores comuns é, de modo muito concreto, explorada pelo giro pragmático da sociologia francesa. É, também, contra a arrogância epistemológica da sociologia crítica de Pierre Bourdieu, que uma sociologia pragmática vem se consolidando na França desde a década de 1980.

Se essa corrente é caudatária de uma boa parte dos melhores discernimentos de uma certa microssociologia americana, o balanço crítico de meio século permite a Barthe et alii apresentarem, de forma consistente, soluções para os conhecidos problemas da etnometodologia e do interacionismo simbólico. Naqueles que nos parecem os mais decisivos entre os dez pontos elencados de respostas a possíveis críticas, a peculiar superação da oposição entre micro e macrossociologia e a reconstrução dos pressupostos ontológicos acerca da reflexividade dos atores merecem comentários adicionais.

Com relação a esses dois pontos é que mais comumente se atacam as vertentes norte-americanas de microssociologia. É comum se apontar, naquelas correntes, insuficiências quando o que está em jogo é o desafio de se analisar dimensões estruturais enquanto padrões institucionalizados, que se estendem no espaço e no tempo além de situações diretamente observáveis. Também se podem visualizar deficiências na exploração do quanto as disposições incorporadas pelos agentes ao longo do tempo tornam-se competências reflexivas diferenciadas. As respostas alternativas de Barthe et al. encadeiam-se em dez pontos sistemáticos que dão sustentação às possibilidades de extensão de análises micro para macrossociológicas, assim como para uma sociologia que descreve as disposições em lugar de apenas pressupô-las.

A globalização vista no modo como se compõe de performances concretas e localizáveis aproxima o sujeito que observa e o ator observado, no modo como este faz eclodir praticamente as redes globais. Esse apontamento é consistente com a ideia de que os atores são sempre reflexivos, devendo o analista, contudo, atentar para o fato de que varia a intensidade em que a reflexividade estará presente nos atos. Impõe-se aqui ao analista não subestimar as contradições e dispersão de sentidos por contraposição a uma concepção monolítica e excessivamente coerente das disposições do sujeito da ação. Não se rejeita a análise das disposições dos atores, mas complexifica-se a análise sob a injunção de que se investigue como os traços disposicionais podem ser rastreados nas ações efetivadas. Aqui, também, como nos apontamentos de Robertt e Lisdero, é preciso observar, em relação às entrevistas, que, ao enfatizarem a coerência do sujeito que fala, negligenciam o fato de ser esta coerência resultado de esforço performático em direção a um sentido coerente e unificado.

O artigo de Frédéric Vandenberghe localiza-se na tradição metateórica da sociologia, a qual, não se deve esquecer, sempre foi fonte de questões epistemológicas de maior alcance. Aqui, Vandenberghe busca superar o panorama mais geral da teoria crítica, em especial aquele que vai de "Adorno a Bourdieu, de Horkheimer a Honneth e de Foucault a Judith Butler", o qual se tornou, na visão do autor, "denuncista" e repetitivo. Essa superação necessitaria de um alicerce epistemológico que combinasse os avanços feitos pelo realismo crítico, pela hermenêutica e pelo antiutilitarismo. Tal empreendimento lembra-nos, antes de tudo, que a teoria sociológica avançou para além da perspectiva unidimensional a qual concebia o fenômeno social, em especial a ação social, como mera repercussão de estruturas de dominação e alienação. Lembra-nos, ainda, que o "determinismo" pressuposto naquelas formas pioneiras de teoria crítica mostrou-se limitado, devendo-se opor àquelas formas conceituais baseadas em uma epistemologia voluntarista que conceba o poder transformador da agência humana como seu fundamento. O centro da argumentação do autor, portanto, é a emancipação. Isto lhe exige outras reconstruções conceituais, em especial operadas sobre o conceito de cultura. É, neste processo de reconstrução - compare esse empreendimento com aquele trazido à tela no artigo de Rodrigues, Neves e Anjos, os quais localizam-no nas próprias dinâmicas sociais contextualmente circunscritas -, tributário do realismo crítico, que a cultura deve ser compreendida como um poder causal. Nas palavras do autor:

A insistência sobre a cultura como a totalidade de formas simbólicas que, sempre e inevitavelmente, mediam a relação entre os seres humanos e seu Unwelt, revelando a natureza, a sociedade e a personalidade como um ambiente humano, é essencial a qualquer teoria da ação que se recuse a reduzi-la à conduta instrumental e estratégica determinada "a partir de fora" pelas coações alienantes de um mundo (quase) desumano.

O resultado de tal investida para a reconstrução de uma teoria intencional da ação mediada pela totalidade simbólica da cultura é um chamado para a alteração dos pressupostos epistemológicos do fazer sociológico, pelo menos daqueles que se baseavam na compreensão do fenômeno social como "fato", atribuindo poderes causais somente às estruturas.

O texto de Vandenberghe, principalmente sua crítica ao positivismo e ao estruturalismo, encontra parcialmente eco no trabalho de Mendonça, Linhares e Barros, em sua reconstrução do pós-fundacionalismo. Ao tratar de tal perspectiva, os autores adentram as consequências epistemológicas da atitude que visa superar a busca por um ponto arquimédico, sobre o qual se assentaria todo o fenômeno social, a saber, o fundamento último. Como assumem, não se trata de contestar o fundamento, posto que teriam de prestar contas epistemológicas sobre o que fundamenta sua própria crítica. Trata-se, tão somente, de contestar um fundamento último, assumindo, portanto, que existam tantos fundamentos quanto forem os contextos de fundamentação eleitos na pesquisa sociológica. Tal perspectiva epistemológica estanca as diversas formas de universalização pretendida pela "Verdade" - positiva, utilitária, pragmática, finalística -, ao se travestir de um "dado natural" ou de uma "racionalidade pura".

Faz-se, na análise, o laço entre posturas epistemológicas e diagnóstico do momento histórico vivido. Segundo os autores, contestar o fundamento último é a atitude crítica da época atual; constitui-se numa postura permanente não apenas de "vigilância epistemológica", mas de desafios epistemológicos num espaço social autorreflexivo e marcado por movimentos de desessencialização, desnaturalização e desconstrução - nesse sentido, avesso a propostas estruturalistas e fundacionalistas. Ou seja, o movimento crítico da época atual, que se consubstancia em abordagens teóricas, tem exigido um deslocamento epistemológico para abordagens pluralistas nas ciências sociais.

O exercício empreendido pelos autores tem, no projeto de destruição da metafísica de Martin Heidegger, um ponto de partida, porque é a partir dele que, por exemplo, Jacques Derrida pôde prosseguir em seu projeto de desconstrução, o qual também serve de referência ao trabalho empreendido. Por meio deste caminho, o salto epistemológico proposto é considerar como "único fundamento possível [é] o próprio não fundamento, ou seja, uma falta constitutiva que permite a existência de fundamentos parciais". Isso nos remete ao projeto socioepistemológico não determinístico, como presente também no texto de Vandenberghe, pois, na possibilidade de múltiplos fundamentos, as cadeias de ação apresentam-se como múltiplas, dotando o agente de poder de escolha, embora limitado aos jogos das interações e dinâmicas sociais. Argumentam então, ao adotarem a "hipótese pós-clássica", conforme designa Oliver Marchart (2007) ao se referir a Derrida, pela superação da "estrutura centrada" em favor do "jogo fundado". Conforme Mendonça et al.:

Assim, enquanto que, para a hipótese clássica, a impossibilidade do fundamento é explicada pelo excesso de sentidos, na pós-clássica, o que ocorre é justamente o oposto. Nesta última, o que impede a fundamentação (no plano ôntico) é a falta constitutiva presente em um campo finito que, por essa razão, se abre a infinitas possibilidades: se não há fundamento último, qualquer fundamento parcial é, em tese, possível. Aqui voltamos para a noção de diferença ontológica de Heidegger: se o fundamento é o abismo (Abgrund) e o abismo é o fundamento (dimensão ontológica), não há qualquer archè ou telos que defina a priori as possibilidades de fundamentação.

Para o caso particular das ciências sociais, esta discussão, na visão dos autores, teria encontrado melhor desenvolvimento nas reflexões pós-estruturalistas e pós-marxistas de Ernesto Laclau e de Chantal Mouffe (1985)4. LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985., em específico na teoria do discurso, como apresentada no texto.

Os escritos acima apresentados podem ser claramente observados a partir da constatação da implosão do estruturalismo e do funcionalismo, talvez junto com o marxismo, as maiores correntes sociológicas do século passado. No entanto, vê-se, também, que parte das questões colocadas pelos autores encontra nessas correntes um ponto de passagem. Partindo desta constatação, Cadenas busca averiguar a possibilidade de uma teoria funcionalista da sociedade ao problematizar o conceito de função.

O funcionalismo legou à teoria uma imagem de sociedade organicista, relacional, determinista, na qual há uma afinidade necessária entre as partes e o todo, como se conhece de tradições que vão de Émile Durkheim a Talcott Parsons. Cadenas, lançando luz a essas questões, apresenta-nos as limitações de tais eixos analíticos utilizando-se das críticas que Robert Merton, antes, e Niklas Luhmann, depois, haviam feito. No caso de Luhmann - talvez a crítica mais incisiva ao funcionalismo feita em nosso tempo -, é através de sua teoria da complexidade que se podem constatar as limitações do funcionalismo. Segundo Cadenas, a imagem de sociedade que emerge dessas críticas é menos a de totalidade orgânica e mais a de fragmentação, mais a de contingência e menos a de necessidade, a instabilidade processual substitui a estabilidade funcional, o realismo parsoniano é substituído pelo construtivismo.

No esforço da explicitação de uma epistemologia complexa, o balanço do século pós-positivista, por Rodrigues, Neves e Anjos, tende também à conclusão em favor da dissolução das assimetrias entre as diferentes formas do conhecer. A avaliação avança no questionamento de uma tácita divisão do trabalho intelectual entre filósofos e cientistas, em que os primeiros se propõem a oferecer conceitos e pensar o fundamento da ciência, enquanto os últimos a praticam. Esse questionamento clássico articula-se, aqui, ao exame da geopolítica moderna do conhecimento, que divide o mundo científico entre um norte que oferece teorias e um sul global que as aplica. A relação entre essas grandes divisões, a persistência do positivismo nas ciências sociais, a resistência ao desmoronamento dos muros disciplinares e a reificação insistente das distâncias entre conhecimentos acadêmicos e locais, saberes do senso comum versus ciências é o que se explora no artigo.

O empreendimento de fazer ciências complexificou-se ao longo do século XX, não porque os fenômenos se tenham tornado mais densos, mas porque o acúmulo de conhecimentos elevou o nível de descontinuidades epistemológicas dos objetos de ciência. Nessa virada do milênio, consolida-se a percepção de que o conhecimento já existente penetra e subverte, continuamente, o conhecimento que está sendo feito, o ato de se apropriar do conhecimento morto assombra o conhecimento vivo e a retomada reflexiva desses efeitos do já conhecido é parte da complexidade como reflexividade. Talvez seja esse um dos pontos em que uma virada ontológica nas ciências sociais se encontra com um turn decolonial: as formas de epistemicídio, com que os conhecimentos colonizados têm sido negados, saqueados, localizados, são parte substantiva do que têm sido as ciências modernas como acontecimento colonial. O ponto decisivo de reflexividade sociológica, hoje, portanto, é a retomada da colonialidade do saber como fundo histórico-ontológico das ciências modernas e que precisa emergir de forma menos fantasmagórica, na complexidade do que pode ser o empreendimento científico no século XXI.

Referências

  • 1
    BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-C.; PASSERON, J. Ofício do sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
  • 2
    DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • 3
    DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humana. In: COELHO, E. P. Introdução. In: COELHO, E. P. (Org.). Estruturalismo: antologia de textos teóricos. São Paulo: Martins Fontes, 1967, p. 101-123.
  • 4
    LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985.
  • 5
    HACKING, I. La domesticación del azar. Gedisa: Argentina, 2012.
  • 6
    MARCHART, O. Post-Foundational Political Thought: political difference in Nancy, Lefort, Badiou and Laclau. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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