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Vidas precárias entre normalização e movimentação

Precarious lives between normalization and movement

LOREY, Isabell. Die Regierung der Prekären. 2012. Turia + Kant, Wien: (tradução inglesa, no prelo). State of Insecurity. London: Verso, 2014. (tradução espanhola, no prelo). El gobierno de los precários. Madrid: Traficantes de Sueños.

Resumos

O último livro de Isabell Lorey, teórica política e social da Alemanha, trata do entrecruzamento de precariedade como novo dispositivo governamental na era do pós-fordismo, por um lado, e por outro lado, como carregador de capacidades transformativas. Inspirada pela multiplicidade dos movimentos EuroMayDay e Occupy, Lorey amplia a noção de precariedade de Robert Castel e propõe uma reflexão sobre as alternativas políticas a partir da recusa à sensação de insegurança. Ressaltando a contribuição do livro para o estudo sociológico de protestos sociais recentes, assim como das relações de trabalho, o texto apresenta e discute a abordagem inovadora da autora.

Precariedade; Governamentalidade; Insegurança; Self. Movimentos Sociais


The recent book of Isabell Lorey, a German political and social theorist, draws on the overlap of precariousness as, on the one hand, a new governmental instrument in the postfordist era and, on the other hand, bearer of transformational power. Inspired by the multiplicty of the EuroMayDay and Occupy movements, Lorey widens Robert Castel´s notion of precariousness and proposes to devise political alternatives based on a refusal of the feeling of insecurity. While stressing the book´s contribution for sociological studies of recent social protests as well as of labor conditions, this review portrays and discusses the author´s stimulating approach.

Precariousness; Governmentality; Insecurity; Self. Social movements


Quando a noção de precariedade foi cunhada pela sociologia, os cientistas sociais da França estavam diante do desemprego massivo da primeira metade dos anos 90. Precarité era o termo usado por Robert Castel (1995)2. CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat. Paris: Fayard, 1995. para denominar a situação de uma grande massa populacional: em estado de flutuação, sem lugar determinado, que se manifestava pela localização na divisão social do trabalho bem como na posição social da vida. Diferente de outras abordagens sociológicas voltadas à questão da desigualdade social, a noção da precariedade permitiu entender que as experiências de carência material e social não eram simplesmente localizáveis em certas classes ou camadas. Pelo contrário, Castel conseguiu mostrar que a própria consolidação histórica do assalariado era constitutiva da precariedade, ou seja, como ameaça contínua de deslizar social e existencialmente. Prova disso era a situação de estagiários, artistas, moradores imigrantes dos banlieues, empregados temporários ou diaristas e muitos outros que não eram necessariamente captáveis como classe popular ou camada baixa.

No livro O governo dos precários, Isabell Lorey procura analisar a última extensão e a mutação da precariedade em face de regimes de crise, de exigências no trabalho bem como de novas linguagens dos movimentos populares. Lorey é uma cientista alemã que trabalha na interseção entre ciência política, filosofia e estudos culturais. Nos últimos anos, ela vem se dedicando ao estudo das mobilizações dos 'precários' como a rede EuroMayDay, os movimentos Occupy e os movimentos europeus democráticos subsequentes. Além de ser especialista das obras de Michel Foucault e de Judith Butler, Lorey busca superar as disjunções teórico-analíticas entre política, vida e trabalho, inspirando-se tanto no pensamento do pós-operaismo italiano como no pensamento feminista. A autora também integra o projeto kpD (abreviação de pequeno drama pós-fordista), um coletivo teórico-artístico de Berlim que indaga sobre a autoprecarização laboral por parte de produtores culturais, artistas e acadêmicos. A ideia perseguida pelo grupo é a de captar as experiências precárias, mas não como um caminho de mão única. Ou seja, eles não se limitam a denunciar a desestabilização econômica, mas também destacam as ameaças provenientes de regimes identitários. De acordo com o kpD, o neoliberalismo edificou um lema de realização pessoal que transfere para o indivíduo a responsabilidade de resolver as irreconciliabilidades por ele instigadas: ter que assumir, ao mesmo tempo, os papéis de ser mulher, migrante, mãe, trabalhadora, autónoma, ativista. Lorey explicita a extensão desta carga individual pelo aumento do receio instalado nos sujeitos. Sob a égide do neoliberalismo, estaríamos frente a um novo dispositivo do poder: um governo que produz a insegurança como preocupação central do sujeito (Lorey, 2012, p.8).

Essa é a tese central que permeia as reflexões do presente livro. Não por último, Lorey sinaliza um desconforto com o cânone encaminhado pela sociologia francesa. Ainda que Castel reconheça o caráter móvel da precariedade, seu argumento do deslize social sugeriria que há posições realmente seguras bem como lugares completamente inviáveis. Para Lorey, este modelo representa uma redução terminológica do precário que deveria ser reaberta (Lorey, 20126. LOREY, I. Die Regierung der Prekären. Mit einem Vorwort von Judith Butler. Wien: Turia + Kant, 2012., p. 19). Enquanto proposta alternativa, a autora entende a precariedade como um instrumento governamental, uma sensação precipitada de estar sob ameaça que capturou a envergadura plena da vida contemporânea. O fato de ter um salário não seria mais garantia de se estar isento da precarização, pois a insegurança afetaria inclusive o centro - as camadas médias - das sociedades ocidentais.

A primeira inovação no caminho de reabertura que Lorey propõe é a de introduzir o pensamento de Judith Butler (2004) sobre precariousness. No rescaldo do 11 de Setembro, a filósofa americana tinha colocado a questão sobre o quanto uma vida era culturalmente digna de luto público, e assim, existencialmente habilitável ou não. Dessa maneira, a precariedade passa, de forma ampla, a englobar as condições da vida humana, um estado de carência que depende intrinsecamente do social: de redes sociais, de sociabilidade, e de trabalho de outros (Lorey, 2012, p. 33). Como alerta ainda Lorey, é mister não essencializar essa natureza existencial em termos da necessidade por ser resgatado, imediatamente, do medo e da ameaça. Isso, na argumentação da autora, renovaria facilmente as estruturas de exposição à dominação. É neste alerta que se situa a segunda inovação de O governo dos precários. Butler comenta no prefácio do livro:

De fato, Isabell Lorey nos convida a pensar alternativas à aceitação do medo e da insegurança como base de uma mobilização política, alternativas à aceitação de estados intencionalmente induzidos, dos quais aspiramos, a todo preço, por segurança (Butler em Lorey, 2012, p.11) [tradução minha]

Resumidamente, são dois estímulos marcantes que emitem o livro. Primeiro, a precariedade passa a ser compreensível enquanto efeito de técnicas de governo, abrangendo não só a insegurança econômica, mas também a regulação de subjetividade. Como afirma a autora, o objetivo está em entender como nós vimos sendo governados pela precarização e como nos mantemos governáveis por nós mesmos (Lorey, 2012, p.14). Segundo, que este conhecimento sobre o regime dos precários pode servir também de base para sua recusa. Como a própria heterogeneidade de diferentes mobilizações dos novos e dos velhos precários mostra, já estamos assistindo disputas e lutas por não estar mais governado e não governar mais a si mesmo, nem deste modo, nem por este preço (Lorey, 2012, p. 130).

Como ressoa também nesta formulação, Lorey trabalha com uma abordagem de poder apoiada em Foucault. O que se entende por O governo dos precários é que os processos de precarização não se restringem a instrumentos do estado ou de atores econômico-jurídicos. De acordo com a perspectiva foucaultiana, a modernidade ocidental burguesa propulsionou uma apreensão, pelos sujeitos, em disciplinar e regular a si próprios (Foucault, 20084. FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção Tópicos)). Em sintonia com teorias sociológicas da individualização, Lorey mostra também que a precarização governamental se está instalando nesta relação com o si, de modo ainda mais enfático na era do neoliberalismo. Resultaria numa técnica mais sofisticada de sujeição, diante da própria produtividade do poder, igualmente abrindo canais de habilitação.

Strictu senso, a abordagem de Lorey é uma teoria política que visa compreender a polifonia do poder, ou seja, sua simultaneidade efetiva de dominação e de resistência. Porém, a meu ver, são proveitosos os insights para a sociologia contemporânea. Quando a autora desloca a redução da precariedade à questão do assalariado, abre o espectro para a vida social que acompanha as articulações políticas contemporâneas. Se formos estudar, por exemplo, as mobilizações no Brasil, postas em andamento pelos protestos de junho 2013, poderíamos estender o instrumentário analítico voltado às transformações sociais pelo estilo de Lorey. Pois as tentativas de categorizar os protestos no sentido de pertencer a uma classe específica, ou de ser expressão de uma identidade política homogênea, não "explicaram", de maneira satisfatória, os agenciamentos surgidos (Cava, 20133. CAVA, B. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho - outubro). São Paulo: Annablume, 2013., p. 112). Levar a sério um dos pressupostos do presente livro, o de que as estratégias de recusa à precariedade não passam nem por identidades ou classes delimitadas nem por pautas unificadas, permitiria seguir melhor os fluxos que percorrem a multidão dos precários. Sob esta luz, as práticas políticas dos manifestantes podem falar de uma nova forma de democracia; não em termos de falta ou crise de representação, mas de invenções que retomam a sensação induzida pela intimidação governamental e a ressignificam por uma busca de alternativas que quebra com as fantasias de invulnerabilidade e de superioridade (Lorey, 2012, p. 140).

Lorey desenvolve sua proposta de uma nova teoria da precarização ao longo de sete capítulos. Além da associação de precariousness com precarité, sua concatenação de ideias se apoia na noção de governamentalidade de Foucault. A autora a usa para apontar para o entrelaçamento estrutural entre o governo de um estado e a condução do self nas sociedades modernas. Recorrendo a Lazzarato (2011)5. LAZZARATO, M. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCar, 2011., Lorey expõe a transformação neste exercício do poder. Na era neoliberal, ela argumenta, a desestabilização foi normalizada, ou seja, a precarização é efeito e suporte da nova governamentalidade, que não vê a necessidade de revogar as desigualdades. Pelo contrário, trata-se de um governo que não presta mais que uma garantia mínima e ameaça pela tática da incerteza (Lorey, 2012, p. 14). Com isso, a teórica alemã elabora sua crítica a Castel (capítulo 3). De modo contundente, Lorey ressalta o viés da sociologia francesa de reproduzir o cenário governamental da ameaça. A reiteração por maior inclusão na chamada sociedade de indivíduos não seria mais defensível, visto que serviria apenas ou novamente à normalização da precarização. Finalmente, a abordagem casteliana operaria por uma desautorização perigosa, já que não enxergaria as capacidades políticas presentes nas subjetividades precárias.

Lorey alega que Castel não estava completamente errado ao descrever a precariedade e a precarização como um vírus que infectava a sociedade. Porém, é o cerne da segunda parte do livro (capítulos 5 e 6) mostrar que as mobilizações dos precários estão usando um vocabulário que transcende as demandas comuns por inclusão social. É que as transformações produtivas no âmbito do pós-fordismo estão pedindo um manejo permanente com o imprevisível, com a contingência (Lorey, 2012, p. 96). As passagens porosas entre trabalho, vida e política se manifestam no que Paolo Virno chamou a virtuosidade das atividades (Virno, 20138. VIRNO, P. Gramática da multidão. Para uma análise das formas de vida contemporâneas. São Paulo: Annablume, 2013.): uma mudança tanto nos meios de produção quanto no modo de governo que resultam no valor acrescentado da personalidade, do intelecto e dos afetos. A abundância de sociabilidade produzida por esta esfera pública permanece, porém, ambígua, visto que nunca pode ser plenamente capitalizável. Como Lorey reforça no último capítulo, intitulado êxodo e constituição, as vidas e trabalhos precários não significam apenas estar sujeito ao imprevisível, à insegurança. Ao lidar com a contingência cria-se, ao mesmo tempo, a faculdade de poder ir embora e começar alguma coisa nova (Lorey, 2012, p. 133).

O presente livro se alimenta do conhecimento de movimentos e grupos ativistas sem ser um estudo estritamente empírico. Isto é, Isabell Lorey não usa uma metodologia das ciências sociais, ela observa o transcurso das mobilizações dos precários, principalmente europeias, por meio de discursos midiáticos e comentadores da ciência política, acrescentando experiências próprias do âmbito teórico-artístico. A força conceitual nasce do universo da teoria política. O leitor poderia acompanhar as referências da autora, além de Foucault, Hannah Arendt, releituras italianas de Karl Marx e o pensamento ético de Judith Butler.

Com este foco teórico, o livro, em alguns momentos, não consegue oferecer uma profundidade descritiva que ajudaria a exemplificar os mecanismos da precarização na vida social. As propostas mais específicas, como a tese de que a precariedade seria uma forma de desigualdade por othering (Lorey, 2012, p. 54) e de que o governo liberal passaria por hierarquizações e categorizações por corpo e cultura (ibid.), acabam sendo averiguações sem elaboração subsequente, especialmente no contexto no qual a autora insinua uma crítica feminista aos estudos sobre o trabalho imaterial (p. 107, entre outras). Seria proveitoso apreender melhor como a precarização governamental efetua e passa por certas corporalidades e, quais seriam, respectivamente, as diferenças históricas ou regionais de governamentalidades precedentes. Uma dificuldade semelhante se abre, certamente, com a exemplificação de empregos mais afetados pelo governo dos precários. Enquanto a mesma autora o aborda em outro texto dedicado às produtoras culturais (Lorey, 2006), falta aqui um retrato de como os atores sociais estariam elaborando seu êxodo dos (próprios) chamamentos precarizantes.

Contudo, O governo dos precários instaura, a meu ver, um deslocamento indispensável para a análise das vidas precárias. Quando se trata de apresentar estratégias de recusa ao governo precário do si, Lorey também se revela uma autora consideravelmente pragmática. O capítulo 6 se dedica ao grupo Precarias a la deriva, ativistas feministas de Madri que visam romper com as lógicas internalizadas entre segurança e insegurança. É por uma metodologia peculiar - andarilhar pela cidade e produzir entrevistas em movimento - que as ativistas tentam coletar e relacionar as vidas e trabalhos precários. Elas partem das experiências próprias e buscam ligá-las ao dia a dia das informantes encontradas nas ruas. O objetivo é estabelecer uma cuidadanía, uma sociedade que reinventa o cuidado além de um estado de segurança. Sua metodologia é peculiar: elas não buscam uma identidade conjunta, ou seja, uma unidade de expressão que permitiria, posteriormente, uma compreensão por modelos científicos preexistentes. De acordo com a inspiração em Spinoza, a multiplicidade dos precários singulares se cria pelo estabelecimento de termos comuns, isto é, pelas conexões afetivas de corpos, por um tipo do comum que se dá pela afeição mútua (Lorey, 2012, p. 119).

O Governo dos precários prima por uma linguagem concisa e por uma consistência conceitual que ajuda a compreensão de uma matéria ambiciosa. Lorey consegue abrir um espaço interdisciplinar para pensarmos melhor os processos de precarização. Partindo do esforço em fazer dialogar Robert Castel com Judith Butler, a autora nos convida a construir um transcurso de ideias que não se reduza a identidades e classes fixadas e que supere a reprodução da gramática dominante da ameaça. Se entendermos, com o apoio de Foucault, a ideia chave de que a precarização também é mobilizada pela condução de nós mesmos, a desobediência está igualmente compreendida. A esse respeito, as reflexões de Lorey se integram à atual virada afetiva nas ciências sociais e humanas, um projeto que intenta pensar o movimento, não o repouso. O caso da multiplicidade dos precários, além e aquém do Atlântico, é sintoma de fluxos em desdobramento. Assim, o livro de Isabell Lorey nos dá um caminho amplo para seguir, diante das transformações sociais que vêm contestando os poderosos dispositivos de segurança.

Referências

  • 1
    BUTLER, J. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London: Verso, 2004.
  • 2
    CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat. Paris: Fayard, 1995.
  • 3
    CAVA, B. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho - outubro). São Paulo: Annablume, 2013.
  • 4
    FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção Tópicos)
  • 5
    LAZZARATO, M. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCar, 2011.
  • 6
    LOREY, I. Die Regierung der Prekären. Mit einem Vorwort von Judith Butler. Wien: Turia + Kant, 2012.
  • 7
    LOREY, I. Gubernamentalidad y precarización de sí. Sobre la normalización de los productores y las productoras culturales. In: eipcp - European Institute for Progressive Cultural Policies, 01, 2006. [Online: http://eipcp.net/ transversal/1106/lorey/es]
    » http://eipcp.net/ transversal/1106/lorey/es
  • 8
    VIRNO, P. Gramática da multidão. Para uma análise das formas de vida contemporâneas. São Paulo: Annablume, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2014
  • Aceito
    20 Jan 2015
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