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EDITORIAL

Os tempos atuais descortinam sociedades encurraladas entre fundamentalismos.

De um lado, o fundamentalismo de mercado a submeter todos os aspectos da vida humana à lógica imediatista e desigual da mercadoria; a priorizar o superficial e o aparente; a cultivar o efêmero, distraindo o olhar das essências recônditas; a perverter e apropriar-se dos inconformismos, sob rótulos da alternatividade consumista; a apoderar-se de bens públicos, fabricar doenças e medicalizar a existência; a naturalizar as violências por meio de produtos culturais; a desfigurar a democracia; a solapar a ética e empresariar a fé.

De outro lado, os fundamentalismos religiosos, em guerra ferrenha contra a secularização da vida e a liberdade de credo, tratam de amordaçar o pensamento crítico; tirar proveito das perplexidades diante de desigualdades abissais e da esquizofrenia de um mundo que endeusa o ter e confisca as oportunidades; e tratam de vender a salvação eterna ao custo de renúncias terrenas a direitos conquistados a duras penas, tudo em nome da manutenção dos poderes patriarcais ainda e sempre dominantes.

As novas formas assumidas pelo "sagrado" estão a exigir o escrutínio dos cientistas sociais. Nessa busca de entender as mudanças no pensamento mágico e os novos fatores que impactam essa faceta da humanidade, oportuna é a retomada de clássicos da sociologia.

No ano em que se completa o centenário do desaparecimento de Émile Durkheim, Sociologias, em sua edição número 44, propõe um resgate do pensamento do sociólogo francês na perspectiva de alguns expoentes das ciências sociais e, particularmente, dos estudos durkheimianos.

O dossiê Cem anos sem Durkheim. Cem anos com Durkheim, coordenado por Raquel Weiss, Rafael Faraco Benthien e Clarissa Eckert Baeta Neves, busca dar conta de existência de três distintas leituras da obra de Durkheim por parte de seus analistas e seguidores e, ao mesmo tempo, sondar a persistência de suas teorias no campo atual das ciências sociais e as possibilidades de atualização do pensamento durkheimiano no contexto das sociedades contemporâneas. Ainda que transitando por toda sua obra, reunindo autores de Brasil, Canadá, Estados Unidos e França, o dossiê enfatiza As Formas Elementares da Vida Religiosa, último livro publicado em vida por Durkheim, e que serviu de objeto a diferentes análises da trajetória teórica desse que é considerado um dos pais fundadores da Sociologia.

A seção Artigos dessa edição abre com o trabalho de María Candelária Sgró Ruata sobre os debates que se estabeleceram no Congresso argentino, quando da votação do projeto de reforma do Código Civil, em 2010, o qual contemplou o reconhecimento de direitos iguais de matrimônio para casais do mesmo sexo. Em sua pesquisa, Sgró Ruata foca os discursos de oposição a essa reforma, buscando identificar neles os sentidos vinculados à dimensão religiosa ao justificar a oposição. A partir disso, discute o papel desempenhado pela religião no que ela denomina um público fuerte. No segundo artigo dessa seção, Elaine de Azevedo apresenta uma ampla revisão teórico-conceitual das interfaces entre alimentação, sociedade e cultura na contemporaneidade. Por intermédio de uma análise interdisciplinar de estudos sobre alimentação, a autora identifica cinco grandes eixos temáticos em que se podem enquadrar tais estudos, mas alerta para a frequente imbricação entre vários deles e para a necessidade de estudos empíricos, de caráter interdisciplinar, que possam legitimar essa categorização. No terceiro artigo, Maria Luiza de Santana Lombas apresenta uma análise sobre a mobilidade internacional acadêmica, através de um estudo sobre trajetórias de pesquisadores e pesquisadoras brasileiras entre os anos de 1996 e 2007. Lombas demonstra que a mobilidade internacional contribui para enriquecer a ciência brasileira, ao oportunizar vínculos entre pesquisadores no país e instituições de excelência em pesquisa no exterior, e que não tem um impacto de brain drain, posto que a grande maioria dos que saem para estágios no exterior retornam ao país e aqui permanecem por largo tempo pesquisando, principalmente, em instituições universitárias. Marco Bettine, no quarto artigo dessa seção, refaz o caminho teórico trilhado por Jürgen Habermas na construção de sua Teoria da Ação Comunicativa (TAC). Para isso, o autor estabelece um diálogo entre as considerações do próprio Habermas, na argumentação que fundamenta a TAC, e a literatura secundária que analisa a teoria.

A seção Interfaces traz a contribuição de João Márcio Mendes Pereira, com uma análise, ao mesmo tempo sucinta e abrangente, da trajetória da agenda política do Banco Mundial (BM) entre 1980 e 2014, focada nos condicionantes de ajuste estrutural, especialmente no continente latino-americano. A análise evidencia o caráter crescentemente politizado, abarcador e intrusivo das prescrições do BM e traz elementos ricos para a compreensão dos enlaces societais dessas intervenções com a evolução do contexto sociopolítico na América Latina. No segundo artigo dessa seção, Felipe Rangel de Souza Machado e Camila Furlanetti Borges analisam a questão da participação na formulação e controle social das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), sob a ótica da implantação das ouvidorias e das características assumidas por estas no estado do Rio de Janeiro.

Na seção Resenhas, Bernardo Caprara apresenta e discute a obra de Thomas Picketti, O capital no século XXI (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014) que examina a questão da persistência da desigualdade econômica nas sociedades contemporâneas. Para além de discutir a obra, Caprara busca propor uma agenda para a Sociologia atual, voltada a identificar "a gênese e a legitimação da reprodução das desigualdades de oportunidades no nosso tempo".

Esperamos com esse número retomar o debate teórico e sua característica de representação da realidade, propiciando frutíferas discussões sobre a sociedade contemporânea e suas muitas possibilidades futuras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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