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Literatura e sociologia: relações de mútua incitação

Literature and sociology: a mutual incitement relationship

Resumo

Este texto faz uma breve discussão da área da sociologia da literatura em âmbito internacional, trazendo uma síntese dos conflitos e indefinições que marcam sua institucionalização, bem como da produção acadêmica da área, ressurgida a partir da década de 1990, com vistas a introduzir e contextualizar o dossiê Literatura e conhecimento sociológico que compõe esta edição de Sociologias. Este dossiê pretende ser recebido como parte de um conjunto de trabalhos recentes que se vêm dedicando a redimensionar o escopo da sociologia da literatura. Os artigos nele encartados partiram de um tema específico: a relação entre literatura e conhecimento sociológico, o que põe em relevo uma reflexão sobre a natureza do conhecimento que se pode extrair de cada uma dessas formas de reconstrução do mundo social.

Palavras-chave
Sociologia da literatura; Conhecimento sociológico; Estudos literários

Abstract

This is a brief discussion on the area of sociology of literature internationally, bringing a synthesis of the conflicts and uncertainties that mark its institutionalization, as well as the resurgent academic production of the area as of the 1990s on, to introduce and contextualize the dossier Literature and sociological knowledge. This dossier is intended to be taken as part of a set of recent works that have been trying to redefine the scope of the sociology of literature. It comprises articles focused on a specific topic: the relationship between literature and sociological knowledge, which highlights a reflection on the nature of knowledge that can be drawn from each of these forms of reconstruction of the social world.

Keywords
Sociology of literature; Sociological knowledge; Literary studies

As relações entre a sociologia e a literatura sempre foram algo tensas, tendo, por vezes, assumido ares de disputa. É possível, mesmo, afirmar que a literatura tem-se mostrado um fenômeno social bastante insubmisso no papel de “objeto sociológico”, o que se percebe pela dificuldade tanto de submetê-la ao espaço mais amplo da sociologia da arte ou da cultura quanto de definir parâmetros claros e seguros para consolidá-la como área inteiramente independente das demais.

É bastante provável que esse atrito reiterado entre ambas tenha sua origem nos conflitos enfrentados pela sociologia em seu momento nascente. Se, tal como aponta Wolf Lepenies numa interpretação preciosa, é possível considerar que “desde a metade do século XIX, a literatura e a sociologia disputam a primazia de fornecer a orientação-chave da civilização moderna” (Lepenies, 1996LEPENIES, Wolf. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996., p. 11), com isso se coloca a literatura em face da sociologia como uma espécie de “concorrente”, muito antes de que as subáreas da sociologia se estabelecessem e se institucionalizassem, e, portanto, de que qualquer dimensão estética tivesse sido apreendida pelo olhar sociológico. Dessa forma, parece que o papel da literatura como uma possível concorrente da sociologia no trabalho de interpretação do mundo social antecedeu o seu papel como objeto de interesse sociológico, o que ajuda a compreender a dificuldade particular de “domesticar” a literatura dentro dos limites, ainda que dinâmicos e heterogêneos, das diversas sociologias.

As dificuldades em torno do pleno estabelecimento formal e institucional da sociologia da literatura não resultam apenas dos conflitos de seu passado compartilhado e, por consequência, da clivagem que, segundo Lepenies, teria se estabelecido no interior da sociologia, então cindida de maneira razoavelmente perene entre uma vertente hermenêutica e outra cientificista. Contemporaneamente, esse conflito se exprime também de forma institucional, por meio de uma pulverização disciplinar de tarefas que, em princípio, caberiam à sociologia da literatura. Em artigo dedicado a mapear as dificuldades no processo de institucionalização da sociologia da literatura, James F. English aponta o problema, ressaltando que, de fato, uma suposta sociologia da literatura “está espalhada por tantos domínios e subdomínios separados da pesquisa acadêmica, cada um com suas próprias e distintas agendas de teoria e método” (English, 2010ENGLISH, James F. Everywhere and Nowhere: The Sociology of Literature After “the Sociology of Literature”. New Literary History, v. 41, n. 2, mar/maio, p. v-xxiii, 2010., p. v), que as atribuições que lhe seriam específicas - “fornecer um relato de textos e práticas literárias relacionando-os às forças sociais de sua produção, os significados sociais de suas particularidades formais e os efeitos sociais de sua circulação e recepção” (English, 2010ENGLISH, James F. Everywhere and Nowhere: The Sociology of Literature After “the Sociology of Literature”. New Literary History, v. 41, n. 2, mar/maio, p. v-xxiii, 2010., p. viii) - acabaram por dissipar-se no interior de diferentes disciplinas.

Não surpreende que tal fragmentação de uma temática de pesquisa por diversos domínios disciplinares tenha imposto enormes dificuldades à institucionalização da sociologia da literatura como uma disciplina, ou subdisciplina. Nunca foi possível, como observa Jacques Leenhardt, nesta edição, que a sociologia da literatura estabelecesse “um corpo de leis e de regras que todo pesquisador poderia conhecer e as quais deveria respeitar” (Leenhardt, 2018LEENHARDT, Jacques. Existência e objeto da “sociologia da literatura”, hoje”. Sociologias , v. 20, n. 48, p. 30-46, 2018. doi http://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004802
https://doi.org/10.1590/15174522-0200048...
, p. 33).

Ora, se, por um lado, é certo que uma tal dissipação disciplinar dos estudos dedicados aos aspectos sociais que circundam a literatura por vezes significou a ausência de balizas institucionais claras dentro das quais os sociólogos pudessem trabalhar, por outro lado, não se pode negar que o interesse pela literatura demonstrado por um diversificado leque de disciplinas é expressão inequívoca da sua complexidade como fenômeno social, portanto, de sua riqueza como fornecedora de questões não só sobre o mundo social, mas sobre a sociologia como forma de conhecê-lo. Daí a frequência com que esses estudos buscaram investigar a dimensão epistêmica da literatura e assumiram ares de uma metacrítica sociológica (cf. Wolff, 1975WOLFF, Janet. Hermeneutic philosophy and the sociology of art: an approach to some of the epistemological problems of the sociology of knowledge and the sociology of art and literature. Londres: Routledge , 1975. 1 1 Em especial, veja o capítulo “The sociology of art and the sociology of knowledge”. ; Gaudez, 1997GAUDEZ, Florent. Pour une sócio-anthropologie du texte littéraire. Paris: L’Harmattan, 1997. 2 2 Veja especialmente o capítulo intitulado “Littérature et connaissance: de la problématique de la représentation”. ; Bennett, 2005BENNETT, Tony. Outside literature. Londres: Routledge, 2005. 3 3 Veja especialmente os capítulos “In the cracks of historical materialism” e “Inside/outside literature”. ). De uma tal dissipação, portanto, advêm não só as suas dificuldades envolvidas nessa área do conhecimento, mas também sua riqueza, já que a ela se deve inclusive o amplo espectro de diálogos possíveis que vão alimentando sua sucessiva necessidade de se reformular teórica e metodologicamente.

Essa questão adquire especial relevância num momento como este que atravessamos, em que transformações de toda ordem têm se processado no plano simbólico, em razão da hegemonia que as tecnologias digitais vão estabelecendo nas relações sociais, de forma que se impõe ao sociólogo a necessidade de refletir sobre as condições e os limites dentro dos quais a sociologia pode, a um só tempo, ler e dar legibilidade ao mundo social. Naturalmente, sociólogos de diferentes filiações teóricas debruçam-se recentemente sobre a reelaboração das possibilidades da apreensão sociológica do objeto literário, com vistas a averiguar a sua relevância para a compreensão de novas relações sociais. Nesse sentido, é possível falar no ressurgimento de um intenso e diversificado interesse de sociólogos pela literatura, pelo menos a partir do fim dos anos 1990, quando começam a surgir, no cenário de publicações internacionais, diferentes dossiês dedicados à sociologia da literatura, notadamente nos contextos de maior tradição na área.

Na cena francófona, a revista Sociologie de l’Art publica dois dossiês dedicados ao tema, em 2005 (“Littérature, Arts, Sciences”4 4 Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 6, 2015/1. e “Littérature, Ficcion/Réel”5 5 Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 7, 2015/2. ), ambos centrados na perspectiva “de reunir na mesma abordagem do objeto de arte a dimensão estética e a dimensão científica, ou seja, tentar mostrar como o texto literário [...] pode se exprimir enquanto tal e induzir possibilidades de discursos numa démarche de conhecimento" (Gaudez, 2015GAUDEZ, Florent. Éditorial. Sociologie de l’Art, OPuS 6, p. 9-13, 2015. , p. 9). A mesma revista publica outro dossiê dedicado à Sociologia da Literatura, em 2010 (“Théorie/Épistémologie/Littérature”6 6 Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 15, 2010/1. ), desta vez tomando o tema a partir de uma perspectiva que correlaciona literatura, teoria sociológica e os moldes do conhecimento. Por sua vez, em 2009, a revista Romantisme publica o Dossiê “Ethnocritique de la littérature”7 7 Romantisme, n. 145, 2009/3. , lançando uma perspectiva inovadora que conecta mecanismos de análise da sociologia da literatura com os da etnologia e da crítica literária, formulando como seu objeto privilegiado “a pluralidade cultural constitutiva das obras literárias tal como ela pode se manifestar na configuração de universos simbólicos mais ou menos heterogêneos e híbridos” (Privat; Scarpa, 2009PRIVAT, Jean-Marie; SCARPA, Marie. Présentation: la culture à l’œuvre. Romantisme, n. 145, p. 3-9, 2009., p. 3-4). Em 2016, também a revista Idées Économiques et Sociales dedica ao tema um número especial intitulado “SES (Sciences Économiques et Sociales) e Littérature”8 8 Idées économiques et sociales, n. 186, 2016/4. , buscando traçar algumas das formas como não só as ciências sociais, mas também as econômicas, se apropriam da literatura como objeto de interesse. Do ponto de vista da publicação de livros, vale mencionar a obra de Florent Gaudez Pour une sócio-anthropologie du texte littéraire, de 1997, Jean-Marie Schaeffer Pourquoi la fiction?, de 1999; o livro de Paul Dirkx Sociologie de la littérature, publicado em 2000; os dois livros de Bernard Lahire, La Condition Littéraire: la double vie des écrivains, publicado em 2006, e Franz Kafka: éléments pour une sociologie de la création littéraire, publicado em 2010; os livros de Pascale Casanova, La République mondiale des Lettres, de 1999, Kafka en colère, de 2011, e La Langue mondiale, de 2015; o livro de Nadège Veldwachter, publicado em 2012, Littérature francophone et mondialisation, o livro de Gisèle Sapiro, publicado em 2014, La Sociologie de la Littérature, apenas para citar alguns.

Nos países anglófilos, ganham destaque as publicações de dois dossiês, ambos com textos de embocadura eminentemente empírica, como é característico da sociologia de tradição anglo-saxã: a revista New Literary History publica, em 2010, o dossiê “New Sociologies of Literature”9 9 New Literary History. v. 41, n. 2, mar/maio, 2010. . Em setembro de 2015, a revista norte-americana Cultural Sociology publica o dossiê “Sociology of Literature in the Early 21st Century: Away From the Centre”10 10 Cultural Sociology. Sage Journals, v. 9, n. 3, set. 2015. , dossiê que busca explorar em contextos periféricos a eficácia analítica de categorias formuladas para literaturas produzidas em contextos ditos centrais. Do ponto de vista da publicação de livros, merecem destaque o livro de Arpad Szakolczai, publicado em 2016, Novels and the sociology of the contemporary; os dois livros de Wendy Griswold, Bearing Witness: readers, writers, and the novel at Nigeria (2000) e Regionalism and the reading class (2008), além do livro de Stephanie Newell, publicado em 2006, West African Literatures: ways of reading.

No cenário nacional, dispomos de ampla gama de estudos de grande variação metodológica. Merecem destaque o dossiê “Figurações da violência”, publicado em Sociologias, em 2013, organizado por José Vicente Tavares dos Santos e Alex Niche Teixeira, no qual se recobre uma lacuna identificada pelos organizadores na sociologia brasileira que é um estudo sistemático do romance policial, e o dossiê “Literatura e memória”, publicado em Arquivos do CMD, em 2015, organizado por Andréa Borges Leão. Quanto à publicação de livros, surgem no período o livro de Patrícia da Silva Santos, Racionalidade moderna e Franz Kafka, de 2007; de Mariana Chaguri, surge, em 2009, O romancista e o engenho: José Lins do Rego e o regionalismo nordestino nos anos de 1920 e 1930; o livro de Andréa Borges Leão, Brasil em imaginação: livros, impressos e leituras infantis (1890-1915), é publicado em 2012; o livro de André Botelho, De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil, é publicado em 2012; em 2017, Alexandro Henrique Paixão publica Leitores de tinta e papel: elementos constitutivos para o estudo do público literário no século XIX; e poderíamos ainda continuar essa lista, se aí inseríssemos os inúmeros artigos que se filiam às mais diversas tradições sociológicas.

Este dossiê pretende ser recebido como parte desse conjunto de trabalhos recentes que se vêm dedicando a redimensionar o escopo da sociologia da literatura. Os artigos nele encartados partiram de um tema específico: a relação entre literatura e conhecimento sociológico, o que põe em relevo uma reflexão sobre a natureza do conhecimento que se pode extrair de cada uma dessas formas de reconstrução do mundo social. Buscando explorar essa temática, a proposta deste dossiê envolve uma dupla entrada analítica: de um lado, tratou-se de redesenhar a literatura como objeto particular no conjunto dos objetos estéticos, de forma a reivindicar um aparato conceitual específico, que não se confunde com aqueles dedicados à análise de outras formas de arte; de outro, tratou-se de recuperar a literatura como intérprete do mundo social, dotada da capacidade de formular questões que interessam à sociologia, ainda que o faça por meio de propriedades formais diversas.

O artigo de Jacques Leenhardt abre o dossiê, colocando em questão a sociologia da literatura quer como disciplina acadêmica, quer como teoria sociológica. Tomando-a, desde logo, no plural, o autor encaminhará uma reflexão sobre os dois termos que designam essa área do conhecimento, sociologia e literatura, tendo em conta a diversidade significativa de formulações teóricas que essa área produziu. Essa multiplicidade metodológica resulta, nos termos do autor, da significativa dificuldade epistemológica que cerca esse objeto, um dos suportes tradicionais da ficção e, como tal, locus de convergência do universo imaginário de nossas sociedades. Tratar dessa relação conduzirá o autor por um caminho que permite converter esse universo imaginário numa objetualidade analisável. Não se trata, por certo, de um caminho simples; ao contrário, Leenhardt estabelece uma série de interfaces críticas com vertentes teóricas bem sedimentadas, apontando sua insuficiência no tratamento da literatura como fenômeno social multidimensional, antes de propor seu caminho analítico. O passo inicial retoma o tratamento durkheimiano do fato social e aponta a sua reverberação na formulação bourdieusiana do fenômeno literário. A definição posta por Dukheim, de tratamento do fato social a partir de sua exterioridade, daquilo que o cerca, encontrou em Bourdieu a formulação da literatura como fenômeno inteiramente refratário, no limite irrelevante, à análise sociológica, que se deveria ater ao jogo e aos rituais estabelecidos pelos atores envolvidos no campo literário, de tal forma que a literatura dele resulta como objeto de valor cognoscente nulo. A sociologia produzida nesses termos arrasta a literatura para sua arena de combate, onde tem à mão suas ferramentas mais tradicionais, com as quais se sente mais confortável. Mas, ao fazê-lo relega para outras áreas do conhecimento toda especificidade literária - sua condição de captura e representação dos processos imaginários e, portanto, seu caráter constitutivo da sociedade -, atestando, desde logo, sua irrelevância para a análise sociológica. Leenhardt apresenta uma leitura crítica das perspectivas teóricas que se colocam no espectro analítico diametralmente oposto: aquelas que a definem por seus atributos exclusivamente imanentes, notadamente a noção de literariedade formulada por Roman Jakobson. As tentativas de constituição de uma ciência do texto levaram a inúmeras investidas analíticas que romperam a relação da literatura com qualquer forma de conexão social (autor, leitor, contexto etc.) e buscaram definir rigorosamente a distinção entre o texto literário e todas as outras formas textuais. Tomando-a como um objeto absoluto, para cuja compreensão todas as suas características intrínsecas seriam suficientes, formularam uma espécie de intransitividade literária, diante da qual, a vinculação contextual é lateral e desnecessária. Diante de ampla gama de possibilidades metodológicas, a saída analítica proposta por Leenhardt apreende a literatura a partir da relação estabelecida entre o autor e o leitor através do texto, ou seja, a leitura. A partir desse “contrato ficcional”, dessa relação de troca entre autor e leitor, constitui-se uma realidade singular, não coincidente com o mundo dos atores nela envolvidos, mas nele ancorada para que o jogo da leitura mantenha sua eficácia. Tal realidade é, para Leenhardt, o lugar de interesse sociológico, “um espaço mental ficcional em torno do qual podem se cristalizar as diferentes formas do mundo, modificando as representações sociais” (Leenhardt, 2018LEENHARDT, Jacques. Existência e objeto da “sociologia da literatura”, hoje”. Sociologias , v. 20, n. 48, p. 30-46, 2018. doi http://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004802
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, p. 42).

O sociólogo finlandês Erkki Sevänen apresenta uma reflexão sobre a possibilidade e a pertinência para a sociologia de investir a literatura de um valor epistêmico e cognitivo. Para tal, ele trilha um percurso pela fortuna crítica dessa temática, iniciando pelo enfrentamento da corrente teórica que teria, justamente, apostado na perspectiva contrária, afirmando que a literatura novecentista abdicou de qualquer forma de metacrítica ao obscurecer seus procedimentos criativos por meio de uma estética realista: falamos aqui do pós-estruturalismo construcionista, em especial aquele que se desdobra de Roland Barthes e Umberto Eco. De formas um pouco diversas, para ambos os autores, a “literatura deixa de ser uma rota epistêmica para o mundo” (Sevänen, 2018SEVÄNEN, Erkki. Literatura Moderna como forma de discurso e de conhecimento sobre a sociedade. Sociologias , v. 20, n. 48, p.48-85, 2018. doi https://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004803
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, p. 50), de forma que a dimensão epistemológica da literatura estaria restrita à sua capacidade de desconstruir diferentes discursos ou visões do mundo. Tomando essa perspectiva como propositora de uma concepção, a seu ver, restritiva tanto da literatura como da realidade social com a qual se conecta, Sevänen aponta a incapacidade dessa perspectiva de apreender a especificidade da relação sociocultural e da relação epistêmica específica que os atores sociais estabelecem com ela. Donde, o descarte incondicional da literatura moderna como mecanismo capaz produzir interpretações sobre o mundo e, portanto, de ocupar esse lugar de conexão. Na contramão dos estudos construtivistas, que ainda demonstram grande vigor analítico no século XXI, o autor buscará explorar a literatura moderna do século XIX, especialmente na vertente naturalista-realista, como prática discursiva dotada de propriedades epistêmicas - literatura que se debruçou sobre problemas resultantes do desenvolvimento histórico do mundo social, para os quais, inclusive, forjou as primeiras formulações. Tal procedimento implica considerar que “a sociologia da literatura deve, portanto, ser capaz de responder de que modo a literatura moderna trata da realidade sociocultural e que tipo de conhecimento dessa realidade os trabalhos literários modernos oferecem” (Sevänen, 2018SEVÄNEN, Erkki. Literatura Moderna como forma de discurso e de conhecimento sobre a sociedade. Sociologias , v. 20, n. 48, p.48-85, 2018. doi https://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004803
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, p. 52), o que implica, certamente, a consideração de que a sociologia não detém o monopólio da produção do conhecimento sobre o mundo social, mesmo após sua consolidação como ciência e como disciplina, e encontra na literatura possíveis caminhos perceptivos para o aprofundamento do conhecimento da sociedade.

Wendy Griswold explora o aspecto relacional da produção em três áreas diversas: literatura, artes visuais e sociologia. Essa abordagem permitirá compreender a diversidade entre essas áreas, perceptível a partir das propriedades formais dos objetos formulados em cada uma delas. Selecionando um único objeto, a ganância, e explorando-a dentro dessas três áreas, a autora dá visibilidade às formas particulares com que cada uma delas molda o seu tema, introduzindo, assim, os atributos formais com que se definem, respectivamente.

Nesse trajeto, Griswold defende uma independência formal das três áreas, dissolvendo a possibilidade de compreender a literatura como uma produtora de conhecimento sobre o mundo social equiparável à sociologia: “se tanto a sociologia como a arte e a literatura podem operar análises do mundo social moderno, elas o fazem com capacidades variadas.” (Griswold, 2018GRISWOLD, Wendy. Capacidades formais e percepções relacionais: ganância na literatura, na arte e na sociologia. Sociologias , v. 20, n. 48, p. 86-104, 2018. doi https://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004804
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, p. 102)

Nesse sentido, seu argumento se diferencia tanto da perspectiva de Jacques Leenhardt quanto da de Erkki Sevänen: para ela, assim como para Leenhardt, a literatura não desafia a sociologia na produção de conhecimento sobre o mundo social, mas, diferentemente dela, pensa que o interesse sociológico da literatura reside em sua capacidade de permitir entrever algo da dinâmica de produção e recepção literária em determinado contexto social. O seu conteúdo não deteria, assim, um valor epistêmico per se, o que a distancia ainda mais de Erkki Sevänen, para quem a literatura francesa novecentista foi, justamente, a primeira a dar legibilidade a problemas oriundos de configurações sociais emergentes, de onde se desdobra seu incontornável teor epistêmico.

O artigo de Florent Gaudez põe-nos diante de um ângulo diverso da relação entre sociologia e literatura, qual seja, o da interrogação do potencial revolucionário da arte por meio da relação entre forma e conteúdo, problematizada em sua dimensão estética. Trabalhando a partir da controvérsia criada em finais dos anos 1960 entre Julio Cortázar, Oscar Collazos - escritor recém chegado de um período em Cuba - e Roberto Fernandez Retamar - escritor cubano -, Gaudez retoma uma discussão cara a uma parte considerável dos artistas ligados à esquerda em todo mundo, a da necessária vinculação da arte com o povo, dado o seu caráter intrinsecamente político, e, com isso, de uma restrição das possibilidades estéticas ao espectro do realismo.

Na discussão proposta por Gaudez, ganha o primeiro plano a figura do autor Cortázar como um intelectual concatenado com as lutas políticas de seu tempo, cuja obra, no entanto, permite o encontro da vanguarda estética com a vanguarda política, desqualificando a restrição ao realismo posta por seus opositores.

Na perspectiva de Gaudez, no entanto, a literatura não está restrita à atuação política dos autores. Muito ao contrário, ela se define como lugar onde se plasmam representações mentais que permitem vislumbrar certas dimensões do mundo social, antes que elas sejam inteiramente construídas. A literatura, nessa perspectiva, é investida de uma dimensão cognitiva, já que formaliza e, dessa forma, antecipa o que ainda está disperso, em processo: “dizer o que de outra forma é indizível e... contradizer.” (Gaudez, 2018GAUDEZ, Florent. Criar, resistir, escrever: arte, imaginário e engajamento. Sociologias, v. 20, n. 48 , p. 106-122, 2018. doi https://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004805
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, p. 120)

Daí a importância da escolha de um autor como Cortázar, para quem o lúdico é “a condição sine qua non do exercício da liberdade para o artista em geral” (Gaudez, 2018GAUDEZ, Florent. Criar, resistir, escrever: arte, imaginário e engajamento. Sociologias, v. 20, n. 48 , p. 106-122, 2018. doi https://dx.doi.org/10.1590/15174522-020004805
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, p. 112), para se pensar os voos da imaginação como um ingrediente estratégico para a formulação de uma política outra. Eis onde, para Cortázar, assim como para Marcuse, residiria o caráter revolucionário da literatura, não em sua excessiva proximidade com a práxis que a esvazia de suas possibilidades de subversão.

Por fim, procurei dar uma contribuição a este mapeamento das possibilidades do conhecimento sociológico em face da literatura, com o artigo que fecha o dossiê. Meu intuito ali foi o de abrir a possibilidade de tomar o autor literário como um analista da cultura, como um ator social cujo ofício lhe coloca, como um sismógrafo, em posição de apanhar determinados movimentos, quer estejam em seu momento incipiente, quer estejam já claros e amadurecidos, e construí-los literariamente.

O procedimento analítico envolveu o desmembramento e a reelaboração, a partir de três diferentes produções literárias oriundas de regiões periféricas do globo, do termo cunhado por Kafka em seus diários: o de pequena literatura. O manejo de textos produzidos por Franz Kafka, Fernando Pessoa e Mário de Andrade permitiu correlacionar forma estética, ação política e produção de conhecimento, destacando as formas como cada uma delas produziu uma grade analítica que deu legibilidade ao seu contexto, formulado em termos de cultura. Nesse sentido, procurei salientar a capacidade da literatura, em contextos como os acima mencionados, de atuar fora da dimensão estritamente artística e de se apresentar como uma leitora perspicaz do movimento político-cultural de seu contexto.

Trata-se de uma perspectiva que, em alguma medida, se aproxima da de Gaudez, mas se atém aos textos ensaísticos dos autores, conferindo a eles a possibilidade de construção de uma grade conceitual para apreensão de determinados aspectos de sua cultura e de uma posterior atuação no sentido quer de questioná-los, quer de contribuir para precipitá-los. Nesse movimento, o que pretendi enfatizar é a possibilidade de uma atuação política que se decide esteticamente, perspectiva metodológica que envolve, a um só tempo, o reconhecimento da dimensão epistêmica da literatura - porque entende que, por meio dela, se processa uma leitura do mundo social - e da atuação política de seu autor - já que é o próprio texto que surge como ferramenta de interferência nesse mundo.

Não se tratou de considerar que o autor possa ter o monopólio de interpretação de sua própria obra, de forma que ela não pudesse se prestar a nenhuma interpretação que não aquela pretendida por ele. De forma diversa, o que me moveu nesse artigo foi o reconhecimento dessa possibilidade, especialmente quando se trata de uma literatura produzida nas circunstâncias que envolvem o que Kafka denominou pequenas nações.

Referências

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  • 1
    Em especial, veja o capítulo “The sociology of art and the sociology of knowledge”.
  • 2
    Veja especialmente o capítulo intitulado “Littérature et connaissance: de la problématique de la représentation”.
  • 3
    Veja especialmente os capítulos “In the cracks of historical materialism” e “Inside/outside literature”.
  • 4
    Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 6, 2015/1.
  • 5
    Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 7, 2015/2.
  • 6
    Sociologie de l'Art. L’Harmattan, OPuS 15, 2010/1.
  • 7
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  • 8
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  • 9
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2018
  • Aceito
    30 Jun 2018
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