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Espectros da expulsão e as possibilidades de vida entre o Haiti e a República Dominicana

Specters of expulsion and the possibilities of life between Haiti and the Dominican Republic

Resumo

Neste artigo abordo duas dimensões da nova situação de deportabilidade que haitianos e dominicanos enfrentaram, na República Dominicana, a partir de 2015. Primeiro, analiso a experiência desses atores e como eles conceberam essa nova situação juntamente com o vocabulário político que mobilizaram. Em seguida, rastreio como o Estado dominicano e suas técnicas e tecnologias de contagem e controle, sobretudo a partir do censo nacional, em 2010, operaram uma espécie de política dúbia, ao não serem claros sobre o que estava sendo concebido e planejado em relação a um grupo específico considerado como “pessoas em trânsito”. Após a decisão 168-13 da Corte Constitucional, conhecida como la sentencia, o governo dominicano aproveitou o momento para encenar um espetáculo ambíguo de exclusão que produziu seletivamente a ilegalidade de pessoas e, ao mesmo tempo, promoveu sua própria imagem, nacional e internacionalmente, como uma das nações mais modernas do Caribe, produzindo não só a cidadania, mas a vida em si. A maneira como pessoas comuns enfrentaram essa nova situação a partir de uma epistemologia política fundada em lutas históricas é o tema principal deste artigo.

Palavras-chave
Haiti; República Dominicana; vida; cativeiro; censo

Abstract

In this article, I address two dimensions of the new deportability situation that Haitians and Dominicans faced in the Dominican Republic, starting in 2015. First, I analyze the experience of these actors and how they conceived this new situation together with the political vocabulary that they mobilized. Second, screening how the Dominican state and its counting and control technologies and techniques, especially after the national census in 2010, operated a kind of dubious policy by not being clear about what was being conceived and planned in relation to a specific group considered as “people in transit”. Following the decision of the Constitutional Court 168-13, known as la sentencia, the Dominican government took the opportunity to stage an ambiguous show of exclusion that selectively produced the illegality of people and, at the same time, promoted its own image, nationally and internationally, as one of the most modern nations in the Caribbean, producing not only citizenship but life itself. The way people managed to face this new situation through a political epistemology grounded in historical struggles is the main theme of this article.

Keywords
Haiti; Dominican Republic; life; captivity; census

Introdução1 1 Além dos pareceristas anônimos da revista Sociologias e dos editores, agradeço a Gabriela Read, Omar Ribeiro Thomaz, April Mayes, Federico Neiburg, Gabriel Gatti, Vincent Joos, Kiran Jayaram, Jean-Philippe Belleau, Nadège Mézié, Mélanie Montinard e Victor Macedo pelos diálogos, sugestões e críticas generosas. Evidentemente, quaisquer falhas e imprecisões são de minha responsabilidade. Ademais, gostaria de agradecer também aos amigos e amigas que conheci durante minhas estadias no Pequeño Haití. Cabe ressaltar ainda que todas as traduções, salvo quando indicado na bibliografia, são de minha autoria. Por fim, destaco que a pesquisa que deu origem a este artigo foi financiada pela FAPESP, processo n. 2019/04170-4.

Eske Christophe Colomb te gen alyenkat?

Michel-Rolph Trouillot

A literatura recente sobre migração e diáspora no Caribe e na América Latina revelou como a mobilidade está historicamente fundamentada e como os compromissos práticos e situacionais definem não apenas dimensões políticas da existência, mas também subjetividades (Richman, 2005RICHMAN, Karen. Migration and vodou. Gainesville: Univ. of Florida Press, 2005.; Khan, 2007KHAN, Aisha. Rites and rights of passage: seeking a diasporic consciousness. Cultural Dynamics, v. 19, n, 2-3, p. 141-164, 2007.; Bartlett; Jayaram; Bonhomme, 2011; Jayaram, 2014JAYARAM, Kiran. Hitting the books and pounding the pavement: Haitian educational and labor migrants in the Dominican Republic. Tese (Doutorado), Columbia University, Nova York, 2014.; Joseph, 2017JOSEPH, Handerson. Diáspora, refugiado, migrante: perspectiva etnográfica em mobilidade transfronteiriça. Sociedade e Cultura, v. 20, n. 2, p. 173–92, 2017.; Vieira, 2017VIEIRA, Rosa. O governo da mobilidade haitiana no Brasil. Mana, v. 23, n. 1, p. 229-254, 2017.; Montinard, 2019MONTINARD, Mélanie. Pran wout la: dynamiques de la mobilité et des réseaux haïtiens. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.). De Genova (2002DE GENOVA, Nicholas. Migrant “illegality” and deportability in everyday life. Annual Review of Anthropology, v. 31, p. 419-447, 2002.; 2013)DE GENOVA, Nicholas. Spectacles of migrant ‘illegality’: the scene of exclusion, the obscene of inclusion. Ethnic and Racial Studies, v. 36, n. 7, p. 1180-1198, 2013., por sua vez, tem enfatizado, em muitos de seus trabalhos, a forma como o Estado produz a ilegalidade na vida cotidiana e como a exclusão acaba engendrando formas específicas de inclusão baseadas na marginalidade, ao que ele denomina justamente de “o obsceno da inclusão”. Já Aisha Khan (2007)KHAN, Aisha. Rites and rights of passage: seeking a diasporic consciousness. Cultural Dynamics, v. 19, n, 2-3, p. 141-164, 2007., trabalhando com descendentes de indianos pertencentes a diferentes tradições religiosas, mostra como a mobilidade é enquadrada em cenários religiosos e espirituais que dão sentido e historicidade a situações de diáspora. Em uma publicação recente (Bulamah, 2015BULAMAH, Rodrigo C. Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano. Cadernos Pagu, n. 45, p. 79-110, 2015.), argumentei que experiências de mobilidade são historicamente fundamentadas em formas relacionais que associam humanos e mais-do-que-humanos, como ancestrais e espíritos, produzindo uma paisagem geofísica que combina diferentes tempos e espaços em situações diárias de deslocamento. Neste artigo, bastante inspirado pelo trabalho de Federico Neiburg (mimeo)NEIBURG, Federico. Buscando a vida, na economia e na etnografia. Conferência apresentada para promoção a Professor Titular. Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019. Mimeo. sobre as relações entre vida, economia e moralidade no Haiti, combino uma antropologia do Estado e seus efeitos com uma análise sobre formas populares de experiência política, mostrando como essas duas instâncias estão na base de mobilidades contemporâneas, compondo formas de vida que são difíceis de entender se nos mantivermos apegados ao isomorfismo assumido entre culturas, grupos sociais e lugares (Gupta; Ferguson, 1992GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. Beyond ‘culture’: space, identity, and the politics of difference. Cultural Anthropology, v. 7, n. 1, p. 6-23, 1992.; De Genova, 2016DE GENOVA, Nicholas. The ‘native’s point of view’ in the anthropology of migration. Anthropological Theory, v. 16, n. 2-3, p. 227-240, 2016.; Premawardhana, 2018PREMAWARDHANA, Dewaka. Faith in flux: pentecostalism and mobility in rural mobility. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2018.).

Exploro aqui duas dimensões da nova situação de deportabilidade que haitianos e dominicanos começaram a enfrentar em 2015. Primeiro, analisarei a experiência desses atores e como eles conceberam essa nova situação por meio do vocabulário político que mobilizaram. Segundo, discutirei como o Estado dominicano e suas tecnologias e aparatos de contagem e controle, após o censo nacional de 2010, operaram uma espécie de política dúbia ao não serem claros sobre o que estava sendo concebido e planejado com relação a um grupo específico considerado como “pessoas em trânsito”. Após a sentença 168-13 do Tribunal Constitucional, conhecida como la sentencia, o governo dominicano aproveitou este momento para criar um espetáculo ambíguo de exclusão que produziu seletivamente a ilegalidade dos sujeitos e ao mesmo tempo promoveu sua própria imagem, tanto nacional quanto internacionalmente, como uma das nações mais modernas do Caribe. Ao fazer isso, conferia não só a cidadania, mas a própria possibilidade de vida.

O Pequeño Haití de Santo Domingo

Pequeño Haití detém uma forte posição no imaginário urbano de Santo Domingo. É o lugar onde muitos haitianos, dominicanos e estrangeiros moram e possuem suas lojas e seus comércios a céu aberto. Caracterizado por alguns como uma ponte (yon pon), é o principal destino de muitos haitianos que chegam a Santo Domingo para “ganhar a vida” ou chache lavi, uma noção polissêmica que também pode ser traduzida como “buscando a vida”. Essa área também é o lugar para ir quando se está à procura de eletrônicos, roupas usadas, objetos rituais e artefatos religiosos, cosméticos, cabeleireiros, alimentos frescos, especiarias e flores. Localizada a poucas quadras da Zona Colonial, a área inclui partes do Barrio Chino (a Chinatown dominicana) e se estende para além do Mercado Modelo, o maior mercado turístico de Santo Domingo. Pequeño Haití está, portanto, bem no centro de uma paisagem econômica e linguística diversificada e movimentada, onde incide uma grande diversidade de práticas e de projetos socioespaciais, incluindo moradia, comércio, intercâmbio e atividades culturais, tudo isso acompanhado de uma complexa interação interseccional entre classes, gêneros, etnias e nacionalidades2 2 Ver Hintzen (2014a) e Coulange-Méroné (2018) para uma análise histórica da migração haitiana para a República Dominicana. Sobre a relação entre capital, globalização, raça e espacialidade na República Dominicana, ver o importante trabalho de Steven Gregory (2007). Desde o início dos anos 2000, há uma notável presença de haitianos em instituições de ensino no país vizinho. Conferir, por exemplo, Jayaram (2014) para uma etnografia realizada em Pequeño Haití com foco em dimensões de classe, raça e educação. .

Toda essa região central atrai a atenção e significativos investimentos do governo e da iniciativa privada, principalmente através de projetos de renovação que acabam reproduzindo uma gentrificação e uma nostalgia colonial, algo exemplificado pela recente dolarização da calle El Conde, pelas obras intermináveis nas principais ruas da Zona Colonial e a polêmica renovação proposta para as ruínas do Mosteiro de São Francisco. No entanto, não só o capital e os projetos elitistas são notáveis naquela região. Toda a área que vai do estuário do rio Ozama, mais ao sul da Zona Colonial, até a avenida México, está repleta de casas populares, lojas de rua, espaços de culto, restaurantes e mercados étnicos e lojas de segunda mão, estando densamente integrada em redes de intercâmbio e mobilidade locais e transnacionais.

Minha primeira visita a Pequeño Haití aconteceu em junho de 2015. Eu tinha acabado de iniciar meu trabalho de campo de longo prazo no norte do Haiti, trabalhando em conflitos por terra, narrativas históricas e heranças em torno do Parque Histórico Nacional que abriga a Cidadela, o Palácio Sans Souci e outras construções da época do Rei Henry Christophe (1806-1820) (ver Bulamah, 2019BULAMAH, Rodrigo C. Ancestrais. In: NEIBURG, Federico (ed.).Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, p. 259–286, 2019.). Observando grupos de pessoas chegando diariamente da República Dominicana para diferentes comunidades rurais do Norte, após o fim do Plan de Regularización Nacional de Extranjeros, estabelecido pela lei 169-14 de 17 de junho, decidi cruzar a fronteira para compreender melhor o que estava acontecendo do outro lado da ilha. Esse foi um “evento crítico”, nos termos propostos por Veena Das (1997)DAS, Veena. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Oxford: Oxford University Press, 1997. ao analisar os impactos da Partição da Índia, em que o Estado-nação é investido de agência para definir seus cidadãos e seus não cidadãos, permitindo novas modalidades de ação em diferentes escalas e entre diferentes atores e instituições. Com o Plano chegando à sua conclusão, a próxima fase, prevista para começar em 1º de agosto daquele ano, foi repentinamente anunciada como correspondendo à deportação de “imigrantes ilegais”. Era evidente ali um alinhamento do governo dominicano com políticas de migração centradas na admissibilidade ou inadmissibilidade de pessoas, algo que se realiza enquanto um fenômeno hemisférico e que se tornou uma bandeira de muitos governos de direita ao redor do globo. Com efeito, muitos migrantes e cidadãos de origem estrangeira temiam ser sequestrados e enviados ao Haiti sem a oportunidade de ver parentes e amigos ou de reunir os seus pertences. O anúncio dessa medida foi suficiente para que milhares de pessoas deixassem a República Dominicana após 17 de junho de 2015 – um evento que as obrigou a redefinir suas rotas e expectativas de mobilidade (Montinard, 2019MONTINARD, Mélanie. Pran wout la: dynamiques de la mobilité et des réseaux haïtiens. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.).

Frequentei o Pequeño Haití diariamente por duas semanas em julho e por outras duas em agosto de 2015. Os encontros com meus interlocutores e interlocutoras aconteciam sobretudo no comércio de rua, onde passávamos as tardes conversando sobre temas variados, mas onde falávamos sobretudo da nova situação jurídica que muitos ali enfrentavam. Enquanto etnógrafo, minha proposta era tentar entender como pessoas comuns vivenciam processos políticos desde o cotidiano ao mesmo tempo em que conferem significado à política nacional a partir de experiências históricas e culturais. Nesse sentido, tomo meus interlocutores também como teóricos da política que nos ajudam a pensar lutas comuns e formas de vida em um mundo muitas vezes avesso à diferença (ver Bonilla, 2015BONILLA, Yarimar. Non-sovereign futures: French Caribbean politics in the wake of disenchantment. Chicago: University of Chicago Press, 2015.). Cabe ressaltar que a denominação daquela área urbana como uma fração do Haiti repete padrões similares aos que encontramos em países como os Estados Unidos, que possui uma Little Haiti em Miami, a Guiana Francesa com seu Petit Haïti e, mais recentemente, a Rua Glicério em São Paulo.

Além disso, similar a outros contextos das Américas e do Caribe, a República Dominicana tem uma complexa história de racialização da identidade nacional, atrelada a projetos de elite que originalmente se opunham à colonização europeia e ao imperialismo estadunidense. Ao mesmo tempo, tais projetos favoreciam uma ideia de miscigenação que acentuava heranças indígenas e europeias, excluindo a presença negra e conferindo ao país uma identidade indo-hispânica (Candelario, 2005CANDELARIO, Ginetta. Black behind the ears: Dominican racial identity from museums to beauty shops. Durham: Duke University Press, 2005.; Mayes, 2014MAYES, April. The mulatto republic: race, class, and national identity in the Dominican Republic. Gainesville: The University Press of Florida, 2014.). A proximidade com o Haiti e seu despontar como a “República Negra” somada a uma história fronteiriça carregada de ambiguidades e conflitos garantiram à elite anti-negra dominicana, como nota April Mayes (2019, p. 141)MAYES, April. Black feminist formations in the Dominican Republic since la sentencia. In: DIXON, Kwame; JOHNSON III, Ollie (eds.). Comparative racial politics in Latin America. Nova York e Londres: Routledge, 2019. p. 139-160., “um inimigo próximo e bastante conhecido sobre o qual as ansiedades e falhas do projeto nacional dominicano eram projetadas” (ver também Torres-Saillant, 2000TORRES-SAILLANT, Silvio. The tribulations of blackness: stages in Dominican racial identity. Callaloo, v. 23, n. 3, p. 1086–1111, 2000.). Notável ainda é o modo como a vulnerabilidade e a marginalidade são frequentemente racializados no país ou, poderíamos dizer, “haitianizados”. Minha perspectiva de análise busca, por isso, acentuar essas histórias que aproximam os dois lados da ilha, evidenciando historicidades e espacialidades que transbordam as fronteiras e o próprio Caribe, próximo ao que propõem Mayes e Jayaram (2018)MAYES, April; JAYARAM, Kiran (eds). Transnational Hispaniola: new directions in Haitian and Dominican studies. Gainesville: University of Florida Press, 2018. a partir da ideia de uma Espanhola transnacional.

No Pequeño Haití conheci pessoas que estavam preocupadas com essa nova situação, discutindo-a publicamente enquanto cumpriam suas obrigações diárias, em uma cena que é comum em muitas partes do Haiti (ver Mézié, 2019MÉZIÉ, Nadège. Être haïtien en Haïti: nationalisme et citoyenneté dans les débats sur le Champ de Mars à Port-au-Prince. L’Espace Politique, v. 38, n. 2, p. 1-23, 2019.). Vários haviam se registrado seguindo o Plano de Regularização, enquanto outros estavam desconfiados de todo o processo, temendo vigilância e perseguições, e acabaram não indo ao escritório do Estado no momento exigido. Marco3 3 Todos os nomes pessoais, exceto o de pessoas públicas, foram alterados para preservar o anonimato dos meus interlocutores. era um dos que passaram por todas as fases da regularização e estava, quando nos encontramos, aguardando a decisão legal sobre sua condição. A primeira coisa que ele fez após nossa primeira conversa foi me mostrar uma cópia reduzida e laminada do recibo que lhe deram após a entrega de seus documentos ao oficial de Estado. Ele carregava essa pequena cópia com muito cuidado e a usava para provar que não era ilegal. Esse documento pode ser visto como uma parte constitutiva de suas estratégias de mobilidade, enquanto o original era deixado em casa, por medo de perdê-lo ou, como ele mesmo disse, temendo que algum policial pudesse eventualmente rasgá-lo. Essa era uma prática comum, como eu descobriria mais tarde. Durante nossas conversas nas ruas de Pequeño Haití, Marco e outras pessoas me falavam da considerável quantidade de papéis que tinham que levar ao Escritório de Imigração, como certidões de nascimento, declarações de boa conduta, depoimentos e cartas de empregadores, assim como declarações da junta de vecinos (associações de bairro). A exigência de alguns desses documentos era percebida como altamente contraditória. Por exemplo, a carta do empregador, pois, em alguns casos, era necessário já ter um cartão de residente para se conseguir um emprego. Um ponto importante de todo o processo residia exatamente nessas múltiplas e contraditórias demandas vindas do Estado.

Ao lado dessas pequenas contradições está a conhecida prática de usar pessoas indocumentadas em disputas locais e nacionais por poder durante o período eleitoral. Não é raro ouvir sobre episódios em que candidatos políticos, partidos e funcionários de Estado reuniam pessoas que vivem e trabalham em fazendas de plantação de cana-de-açúcar, conhecidas como bateyes, e de bairros populares, para forjar imagens de popularidade espetacular. Também era prática comum entregar documentos de identidade (cédula ou sedola, em crioulo haitiano) para esses mesmos trabalhadores. Essa situação permitia aos haitianos participar das eleições, estabelecendo novas alianças e laços de intercâmbio com políticos, partidos e elites locais. Durante os mandatos de Joaquín Ballaguer (1960-1962; 1966-1978 e 1986-1996) isso foi frequente e tornou-se uma tática bastante difundida após seu terceiro período como presidente4 4 Gabriela Read, comunicação pessoal, em maio de 2016. . Além disso, com a sedola, as pessoas indocumentadas podiam não só votar, mas também ter acesso a alguns serviços públicos e, portanto, experimentar certas formas de reconhecimento e cidadania. Como explicou Marco, referindo-se à nova situação,

(...) se é época eleitoral e falamos espanhol, como todos nós falamos aqui, você pode encontrar um partido político que lhe dará facilmente um documento de identidade. Mas esta sedola, eles nos dão apenas para votar. Este cartão não nos inscreve no registro dominicano que garante que você nasceu em tal hospital [no Haiti ou em outro lugar]. Se eles me deram um cartão para eu votar, o que eu faço depois? Eu já tive filhos que foram registrados com esta sedola. Agora, a partir do momento em que eu tenho filhos com este cartão, eles começam a levar meu nome. Você vai encontrar haitianos que até assinam com três nomes. Os dominicanos usam três nomes, mas os haitianos só têm um nome e o nome de família. Os dominicanos têm um nome e dois nomes de família. Imagine, por exemplo, esses haitianos quando eles nasceram e suponha que seu pai morra, eles vão precisar de sua certidão de nascimento. Eles não vão encontrá-la. Mesmo assim, foi uma sedola que eles me deram. Os políticos sabem o que fazem. Quando chegaram a uma situação como a atual, eles disseram que viriam para tomar a sedola das mãos das pessoas. Me explica por que quando você entra em algum lugar [institucional] com a sedola, eles jogam seu nome no computador e, esse nome, que deveria dar acesso a todas as suas informações, não aparece? Por que é que quando eles processam todos os dados, eles encontram todas as coisas que precisam, mas mesmo assim eles dizem que você não está registrado? Por que eles dizem que você não está cadastrado?

Votar é visto aqui como uma forma de participar de um arranjo mais amplo de direitos e deveres civis, assim como de novas formas de alianças clientelísticas (ver Heredia, 1996HEREDIA, Beatriz. Política, família, comunidade. In: PALMEIRA, Moacir; GOLDMAN, Marcio (eds.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contracapa, 1996.). A sedola pode ser vista então como uma tecnologia de cidadania e funciona simbolicamente como tal (Bartlett et al., 2011BARTLETT, Lesley; JAYARAM, Kiran; BONHOMME, Gulin. State literacies and inequality: managing Haitian immigrants in the Dominican Republic. International Journal of Educational Development, v. 31, n. 6, p. 587-595, 2011.). Resta saber por que o fato de estar registrado e votar não foi considerado uma forma de vivenciar um direito político e, portanto, de conceder às pessoas acesso a outros direitos civis. Esse dar e receber de volta foi (e ainda é), na verdade, uma característica persistente nas ações do Estado dominicano em relação aos indocumentados, o que confere à cidadania sua dimensão de tecnologia disciplinar na produção de formas variadas de vulnerabilidade entre cidadãos e não-cidadãos, como mostra Steven Gregory (2007GREGORY, Steven. The devil behind the mirror. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2007.; ver também Ong, 1999ONG, Aiwa. Flexible citizenship. Durham: Duke University Press, 1999.). Segundo Marco e outros interlocutores que encontrei durante minha estada em Pequeño Haití, o principal problema após a sentença e as mudanças constitucionais sobre os parâmetros de nacionalidade foi o fato de que o governo nunca foi claro e preciso sobre o que as pessoas tinham que fazer.

Pode-se suspeitar que foi uma disposição política intencional do Estado para realmente reter informações e evitar ser totalmente transparente sobre suas decisões e demandas políticas, subscrevendo um certo ambiente social de incerteza e paranoia que é tão importante na produção de ilegalidade e na consequente submissão às condições precárias de trabalho (De Genova, 2010DE GENOVA, Nicholas. The deportation regime: sovereignty, space, and the freedom of movement. In: DE GENOVA, Nicholas; PEUTZ, Nathalie (eds.). The deportation regime: sovereignty, space, and the freedom of movement. Durham: Duke University Press, 2010.). De fato, podemos argumentar que o Estado dominicano trabalhou como um “Estado astuto” (cunning state), definido por Shalini Randeria (2003, p. 28)RANDERIA, Shalini. Cunning states and unaccountable international institutions: legal plurality, social movements and rights of local communities to common property resources. European Journal of Sociology, v. 44, n. 1, p. 27-60, 2003. como uma instituição mediadora que, longe de ser fraca ou enfraquecida, “capitaliza sobre sua notável fraqueza tanto para se isentar de responsabilidade ante seus cidadãos quanto perante as instituições internacionais”. Como observa Omar Ribeiro Thomaz (2008, p. 181)THOMAZ, Omar R. “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista. Revista de Antropologia, v. 51, n. 1, p. 177-214, 2008. no contexto moçambicano, o Estado “ao tentar ser forte, comporta-se como uma instituição fraca e, portanto, interage com determinantes locais de expressão de poder e dominação, particularmente com elementos cosmológicos”. Ineficiência e confusão foram, na verdade, partes constitutivas de todo o processo, como podemos ver a partir de informações contraditórias que foram difundidas, mudanças constantes de prazos, exigências surreais de papéis e documentos. Essa disposição astuta promoveu um sentimento de insegurança entre os indocumentados e aqueles que estavam sujeitos às decisões do Tribunal Constitucional, em um processo que se arrastou por meses.

Essas situações foram constantemente descritas a mim, em diálogos com haitianos e dominicanos, como uma forma de abuso, entendida aqui como precariedade e violência estrutural. Curiosamente, eles empregaram o termo abuso em espanhol, mesmo que o diálogo estivesse acontecendo no crioulo haitiano5 5 A mesma coisa acontecia com outros termos, como racista, esclavos etc. Um processo similar ocorria também por meio da “crioulização” de termos em espanhol, por exemplo, merkad (para mercado), kolmad (para mercado de alimentos ou bar) etc. Isto foi justificado por um amigo como: “cada lugar tem seu próprio crioulo. Cabo Haitiano tem um crioulo, Porto-Príncipe tem um crioulo, Santo Domingo tem um crioulo”. . Essa precariedade deu origem a outras formas de abuso, como extorsões por parte de advogados e funcionários do governo que cobrariam a mais de pessoas indocumentadas para completar seus dossiês e mediar suas demandas legais. Além disso, violências pontuais baseadas no racismo e no que se tem chamado de anti-haitianismo tornaram-se mais comuns, com agressões contra haitianos acontecendo em muitas partes do país, a maioria delas longe dos holofotes da mídia6 6 Para uma abordagem sobre o anti-haitianismo e a história das relações haitiano-dominicanas, ver Derby (2012), Turits (2002), Martínez (2003), Hintzen (2014a), Moya Pons (2013), Eller (2016), entre outros. . Todo esse cenário deu origem a rumores sobre policiais entrando em casas de haitianos durante a noite para sequestrar e roubar pessoas, além de histórias sobre o aparecimento recorrente de uma figura espectral conhecida como la camiona, um caminhão que poderia ser chamado por qualquer pessoa, de vizinhos a empregadores, para levar uma pessoa até a fronteira.

“Chache lavi” e “nap lite”

A mobilidade transnacional haitiana tem sido descrita por muitos autores como uma forma de “buscar a vida” (chache lavi): encontrar maneiras de prover dinheiro e bens para si e para a família (Richman, 2005RICHMAN, Karen. Migration and vodou. Gainesville: Univ. of Florida Press, 2005.; Jayaram, 2014JAYARAM, Kiran. Hitting the books and pounding the pavement: Haitian educational and labor migrants in the Dominican Republic. Tese (Doutorado), Columbia University, Nova York, 2014.; Joseph, 2017JOSEPH, Handerson. Diáspora, refugiado, migrante: perspectiva etnográfica em mobilidade transfronteiriça. Sociedade e Cultura, v. 20, n. 2, p. 173–92, 2017.; Bersani, 2016BERSANI, Ana E. Chache lavi deyò: uma reflexão sobre a categoria refúgio a partir da diáspora haitiana no Brasil. Cadernos de Campo, v. 25, n. 25, p. 383-399, 2016.; Montinard, 2019MONTINARD, Mélanie. Pran wout la: dynamiques de la mobilité et des réseaux haïtiens. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.). Chache lavi é tanto uma dinâmica individual quanto familiar, que faz parte da paisagem social haitiana não apenas fora de suas fronteiras, mas também internamente. A “vida” (lavi) em crioulo haitiano tem a ambivalência semântica que define tanto a subsistência quanto a existência como um todo (Richman, 1984RICHMAN, Karen. From peasant to migratory farmworker: Haitian migrants in U.S. agriculture. In: Haitian migration and the Haitian economy. Center for Latin American Studies, Occasional Paper, n. 3. Gainesville: University of Florida, 1984.), daí a possibilidade de traduzir chache lavi tanto como “ganhar a vida” quanto como “buscar a vida” (ver Neiburg, mimeo). Migrar significa, portanto, uma expansão das redes sociais a fim de conseguir provisões e, também, uma dinâmica social ligada a uma mobilidade existencial que faz parte da história do Haiti e de sua diáspora.

Situações de abuso e alegorias como a camiona tornaram-se comuns na República Dominicana e conferiram à dinâmica do “buscar a vida” uma condição comumente definida como nan kouri (“em fuga” ou “na correria”), expressão que carrega um intenso sentimento de imprevisibilidade, insegurança e ansiedade. Na verdade, o medo de desaparecer, de perder as coisas e de ser deportado mostrava um notável impacto na saúde física e mental das pessoas. Como me disse Marie, esposa de Marco, em Pequeño Haití, “muitos haitianos perderam muito por aqui (fè anpil perdans isit la). [...] Se alguém vive aqui, a vida se torna estressante. [...] Já tive todo tipo de doença por causa do estresse. A gente tem diabetes, a gente tem hipertensão, a gente tem câncer, tudo”. Como outro morador do Pequeño Haití me disse durante essa mesma conversa, “aqui, os haitianos não valem nada (pa gen valè). Nos tratam como cães (tankou chen). Na República Dominicana é assim: os cães têm mais direitos que os haitianos e os haitianos são esclavos”.

Como é possível notar, há uma importante epistemologia política que sustenta argumentos como estes expressos por meus interlocutores. Tais argumentos são construídos através de conceitos como valor (valè), abuso, e por meio de metáforas sobre animais, sobre a expropriação econômica e moral, e sobre o trabalho forçado durante a época colonial (esclavos) (ver Beckett, 2017BECKETT, Greg. A dog’s life: suffering humanitarianism in Port-au-Prince, Haiti. American Anthropologist, v. 119, n. 1, p. 35-45, 2017.; Johnson, 2012JOHNSON, Sara. The fear of French negroes: transcolonial collaboration in the revolutionary Americas. Berkeley: University of California Press, 2012.). Em meu trabalho de campo do outro lado da fronteira, entre camponeses e haitianos de classes baixas, este foi um tema ao qual dediquei bastante atenção. A escravidão era uma metáfora recorrente utilizada para descrever formas ilegítimas de trabalho no Haiti e no exterior. Trabalhar sem ser pago ou em condições difíceis trazia questões sobre sua proximidade com as formas coercitivas de trabalho durante o regime colonial francês, no qual imperava a plantation (ver Marcelin, 2012MARCELIN, Louis. In the name of the nation: blood symbolism and the political habitus of violence in Haiti. American Anthropologist, v. 114, n. 2, p. 253-266, 2012.). No entanto, sugiro que esse quadro político não só revela um mecanismo de compreensão que opera historicamente e em referência a experiências passadas, mas também sustenta uma forma de expectativa e um campo de ação real para mobilizações contemporâneas e futuras de resistência e de mudança social. No norte do Haiti, isso ficou bastante claro quando o tema da Revolução Haitiana foi levantado em lembranças sobre episódios de ocupação de terras após a queda de Jean-Claude Duvalier e durante a campanha presidencial em 2015 e 2016, quando as mobilizações populares trouxeram à cena pública antepassados como Henry Christophe e Jean-Jacques Dessalines (Bulamah, 2018BULAMAH, Rodrigo C. Ruínas circulares: vida e história no norte do Haiti. Tese (Doutorado em Etnologia e Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas, Brasil, e École des Hautes Études en Sciences Sociales, França, 2018.).

Quanto à percepção das pessoas que encontrei em Pequeño Haití de não terem valè e serem tratadas como cães ou escravos, ela se configura como uma situação geral das pessoas indocumentadas ou marginalizadas, que “não têm direito à justiça” (nou pa gen dwa lajistis). A “justiça” (lajistis), aqui, é concebida como a esfera abstrata do Estado de direito e da jurisdição legal, em oposição à “justiça” (jistis) como as formas populares e ordinárias de regulação da vida e dos conflitos, como na expressão “nós mesmos estamos fazendo justiça” (nap fè jistis nou menm). Para ilustrar um pouco mais o que estou tentando definir aqui como uma epistemologia política prática e conceitual e a forma como as pessoas ganham ou buscam a vida (chache lavi), talvez seja interessante olhar para duas noções que apareceram constantemente durante meu trabalho de campo: a noção de lite (lutar) e de degaje (se virar).

Em situações e encontros cotidianos, no Haiti, uma das respostas possíveis para a pergunta “como você está?” (kijan ou ye?) é a frase nap lite (estamos lutando), geralmente precedida por um bon (bem) pronunciado com um tom de resignação: bon, nap lite. “Lutar”, aqui, significa que a vida cotidiana é algo que deve ser conseguido com esforço, que não se ganha facilmente e que merece ser conquistado. Em situações como a vivida pelos haitianos na República Dominicana, a luta adquire um novo significado que supera a resignação, tornando-se um imperativo de ação: nou gen pou lite (temos de lutar/resistir). Degaje (se virar), por si só, é uma descrição comum de como a vida é vivida de forma criativa e por meio da improvisação, numa luta constante para conseguir um sustento e sobreviver. Nos contextos de incerteza, nap degaje nou (estamos nos virando) desdobra-se como certa disposição para superar estruturas e regras políticas em favor de formas de vida mais criativas, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade e controle. Essas situações e noções dão uma imagem mais precisa de como certas categorias políticas adquirem novos significados quando se busca a vida em Santo Domingo e trazem à tona formas de luta historicamente fundamentadas.

Os efeitos de Estado

Pode haver alguns ganhos analíticos em olhar cuidadosamente para o outro lado dessa situação social, considerando como o Estado dominicano agiu politicamente para produzir a ilegalidade e a consequente deportabilidade das pessoas que vivem dentro de suas fronteiras nacionais. Ao fazer isso, podemos ir além de discussões infrutíferas sobre Estados fracos ou fortes, levando em conta características locais e globais que definem como o poder e a dominação são criados e reproduzidos em diferentes escalas. Para isso, é preciso levar em conta um processo anterior que produziu uma imagem da população do país baseada em números e em múltiplas categorias, através de um grande esforço dentro da burocracia e do aparato estatal – um esforço que teve muitos “efeitos de Estado” (Trouillot, 2001TROUILLOT, Michel-Rolph. The anthropology of the state in the age of globalization: close encounters of the deceptive kind. Current Anthropology, v. 42, n. 1, p. 125-138, 2001.). Em 2010, paralelamente às mudanças constitucionais nos parâmetros de concessão de nacionalidade, teve lugar o IX Censo Nacional de Población y Vivienda (9º Censo Nacional de População e Habitação). Em toda a República Dominicana, este evento foi acompanhado de um grande apoio de propaganda organizado principalmente pela Oficina Nacional de Estadística (Escritório Nacional de Estatística). Vídeos, notícias e boletins de rádio foram divulgados a fim de elucidar o processo e estimular a população a contribuir com informações sobre suas vidas, suas casas e suas propriedades. No entanto, isso não aconteceu sem expressivas ações de rejeição e resistência que iam desde piquetes organizados por empadronadores (recenseadores), exigindo seu pagamento, a camponeses evitando os recenseadores ou dando informações distorcidas. O vocabulário e os símbolos da propaganda populista de Estado nesses vídeos e pronunciamentos é o que eu gostaria de analisar agora.

Com um forte e intencional sotaque interiorano (cibaeño, para ser mais preciso), o vídeo Campaña de mantenimiento IX Censo Nacional de Población y Vivienda 2010 - Campesinos exibe dois homens sentados sob uma árvore, segurando seus instrumentos de trabalho, cercados de cabras e do que parece ser um burro7 7 Oficina Nacional de Estadística (ONE). Campaña de mantenimiento IX Censo Nacional de Población y Vivienda 2010 - Campesinos, vídeo publicado por ONEvideos1, YouTube, 30/11/2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JqBXTuSs8w4. . O vídeo foi lançado em novembro de 2010, e publicado no YouTube no final do mesmo mês. Na cena, o homem mais novo explica ao mais velho por que “eles virão e contarão as pessoas” (venir y contar la gente). Ele diz: “[o]lha, se eu lhe disser que estamos preparando um sancocho, a primeira coisa que você vai me perguntar é para quantas pessoas. Pois você tem que saber quanta carne colocar. É a mesma coisa. Se não soubermos quantos somos, é impossível fazer qualquer coisa”. O senhor mais velho responde com uma pergunta que emprega o duplo sentido do verbo contar em línguas neolatinas, ou seja, tanto contar algo numericamente quanto levar algo em conta ou considerar: “[e]ntão eles vão me contar vivo?” A resposta vem em seguida: “[é] isso aí! Até mesmo os estrangeiros serão contados. E aquele que não for contado é como se não estivesse vivo”. A última frase revela como o mais velho foi persuadido e se convence de que tem uma espécie de obrigação em mostrar que está vivo: “[e]les têm que me contar, pois estou vivinho e abanando a cauda”!

O vídeo é bastante cômico, mas também muito comovente. A exibição de um camponês mais velho sendo incluído nos dados da nação é algo tocante. Além disso, há uma referência a um dos mais importantes pratos nacionais, a sopa de carne e legumes chamada sancocho, como metáfora dessa grande reunião promovida pelo Estado. No entanto, e talvez o mais significativo, o censo não está apenas contando pessoas, mas realmente produzindo vida. Reivindicando a importância do recenseamento focado principalmente nos camponeses, o vídeo mobiliza o medo da morte, estabelecendo o Estado como o único lugar onde a vida é possível e até mesmo pensável. Estar fora do censo – e, portanto, fora da biopolítica do Estado moderno (ver Foucault, 2003FOUCAULT, Michel. Lesson of 17 March 1976. In: FOUCAULT, Michel. Society must be defended. New York: Picador, 2003.) –, é uma forma de morte, revelando como todo esse processo culminou no que Samuel Martínez e Bridget Wooding (2017)MARTÍNEZ, Samuel; WOODING, Bridget. El antihaitianismo en la República Dominicana: ¿un giro biopolítico? Migración y Desarrollo, v. 28, n. 15, p. 87-116, 2017. chamaram de “virada biopolítica” na longa tradição anti-haitianista do país. Como argumenta Georges Bataille (1991)BATAILLE, Georges. The accursed share: an essay on general economy, v. II e III. New York: Zone Books, 1991., essa interação entre vitalidade e morte é constitutiva da dialética da soberania. Se a morte é apenas uma característica do gesto soberano, essa “espetacular demonstração da força da vida”, como diz Chelsey Kivland (2014, p. 675)KIVLAND, Chelsey. Becoming a force in the zone: hedonopolitics, masculinity, and the quest for respect on Haiti’s street. Cultural Anthropology, v. 29, n. 4, p. 672-698, 2014., é o que nega a morte e mostra a vida em seu excesso. A dimensão positiva do poder é aqui tomada como um aspecto de uma soberania que se desvela menos num conjunto estável e definitivo de ações do que num devir constante e múltiplo.

A morte é um tema importante tanto na cultura popular dominicana quanto na haitiana, sempre submetida a intensos debates e análises. A morte não é em si algo temido, como demonstram as constantes piadas mórbidas e os ditados populares nos dois países. No entanto, a morte ilegítima por envenenamento, bruxaria ou outras forças malignas é assustadora. Muito tem sido dito sobre magia e religião na ilha de Espanhola, particularmente no Haiti (ver, por exemplo, Métraux, 1995 [1958]METRAUX, Alfred. Le vaudou haïtien. Paris: Gallimard, [1958]1995.). Embora meu interesse aqui não seja desenvolver uma teoria da magia, como alguns autores têm feito, basta dizer que subscrevo uma perspectiva que deixa de lado uma compreensão holística da magia em favor de uma atenção à pragmática que atenta para esses fenômenos visíveis e invisíveis e sua relação intrínseca com o parentesco, o trabalho, a terra, a agência material e espiritual sendo, portanto, um processo dinâmico, sujeito a mudanças de acordo com as diversas agências, práticas e poderes que a constituem (Lowenthal, 1978LOWENTHAL, Ira. Ritual performance and religious experience: a service to the gods in southern Haiti. Journal of Anthropological Research, v. 39, n. 3, p. 392-414, 1978.; Richman, 2005RICHMAN, Karen. Migration and vodou. Gainesville: Univ. of Florida Press, 2005.; James, 2012JAMES, Erica C. Witchcraft, bureaucraft, and the social life of (US)aid in Haiti. Cultural Anthropology, v. 27, n. 1, p. 50-75, 2012.; Derby, 2015DERBY, Lauren. Imperial idols: French and United States revenants in Haitian vodou. History of Religions, v. 54, n. 4, p. 394-422, 2015.; Dalmaso, 2018DALMASO, Flavia. Heranças de família: terras, pessoas e espíritos no sul do Haiti. Mana, v. 24, n. 3, p. 96-123, 2018.; Fiod, 2019FIOD, Ana. Feitiço. In: NEIBURG, Federico (ed.). Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. p. 193-228.). Durante meu trabalho de campo no norte do Haiti, e como também notei durante estadas na República Dominicana, a morte ilegítima por magia traz a suspeita do emprego de métodos ocultos que infligem a morte. Ser morto por magia extrapola “a escolha divina” (volonte Bondye), pois pertence a uma dimensão imanente dos assuntos humanos. De fato, uma expressiva quantidade de dinheiro pode ser gasta em funerais para garantir que a pessoa faça uma viagem que muitos interlocutores chamam de “uma viagem de volta à África-Guiné” (Lafrik-Ginen) ou, no caso daqueles convertidos às religiões pentecostais, uma viagem ao “paraíso” (paradi). Como o antropólogo Rémy Bastien (1951, p. 103)BASTIEN, Rémy. La família rural haitiana – Vale del Marbial. México, DF: Lira, 1951. argumenta em sua clássica etnografia realizada no sul do Haiti, “uma grande preocupação do camponês [o haitiano] é o medo de que seus parentes não cumpram as obrigações necessárias para que ele descanse em paz”.

Esse medo é justificado pela possibilidade de não apenas ser morto por magia, mas também de ser transformado em zumbi – que, na verdade, é uma condição inescapável quando alguém é morto por magia. De fato, os zumbis são difíceis de definir em termos que nos sejam familiares, pois têm pouco em comum com as representações que a indústria cultural dos Estados Unidos difundiu pelo mundo (Hurbon, 1987HURBON, Laënnec. Le barbare imaginaire. Porto-Príncipe: Éditions Henri Deschamps, 1987.; Glover, 2005GLOVER, Kaiama. Exploiting the undead: the usefulness of the zombie in Haitian Literature. Journal of Haitian Studies, v. 11, n. 2, p. 105–121, 2005.; McAlister, 2012MCALISTER, Elizabeth. Slaves, cannibals, and infected hyper-whites: the race and religion of zombies. Anthropological Quarterly, v. 85, n. 2, p. 457-486, 2012., Ramsey, 2011RAMSEY, Kate. The spirits and the law: vodou and power in Haiti. Chicago: University of Chicago Press, 2011.). Eles estão longe de ser figuras ativas que vagueiam em busca de carne e sangue. Com efeito, os zumbis são seres com falta de consciência, criados para satisfazer o desejo de alguém motivado pelo mal (mechanste) ou, mais especificamente, pela inveja (jalouzi). Portanto, os zumbis são vítimas de desejos malignos de gerar riqueza por meios socialmente ilegítimos, pois podem ser vendidos ou colocados para trabalhar em plantações ou fábricas.

Isso nos remete a uma discussão clássica no campo da antropologia do campesinato no Brasil que buscava pensar as mudanças sociais e os efeitos duradouros de arranjos de trabalho e dominação em contextos pós-plantation (Sigaud, 1979SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.; Velho, 1981VELHO, Otávio. Frentes de expansão e estrutura agrária: estudo do processo de penetração numa área da Transamazônica. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.; 1995VELHO, Otávio. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, Otávio. Besta-fera: recriação do mundo. Ensaios de crítica antropológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. p. 13–44.). A escravidão histórica é descrita como um tópico importante entre camponeses e que trata da perda de contrapartidas, de autonomia e de liberdade. Mais do que uma analogia, como nota Otávio Velho (1995)VELHO, Otávio. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, Otávio. Besta-fera: recriação do mundo. Ensaios de crítica antropológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. p. 13–44., há um medo compartilhado de um retorno do cativeiro que, como destaca Carlos Fausto (1987), aparece como uma “virtualidade”. Recentemente, André Dumans Guedes (2013, p. 118)GUEDES, André D. O trecho, as mães e os papéis: etnografia de movimentos e durações no norte de Goiás. Rio de Janeiro; São Paulo: ANPOCS/Garamond, 2013. nos mostra que cativeiro e escravidão são termos empregados também por garimpeiros no Norte de Goiás, que inclusive enxergam a abolição da escravatura como uma “iniciativa hipócrita dos ricos” (grifo no original).

No Norte do Haiti, esse medo do retorno ao cativeiro aparece mediado pela figura do zumbi. Como me disse certa vez um jovem amigo de Milot, um zumbi “é definitivamente um escravo” (se esklav menm). A diferença é que os escravos não foram enterrados e trazidos de volta à vida (esklav yo pa pase anba tè a). Comum às narrativas que ouvi sobre zumbis é que, se alguém for zumbificado no Norte, será vendido ou colocado para trabalhar no Sul e vice-versa, evitando que seja reconhecido por pessoas próximas. Os zumbis revelam uma conexão evidente com pessoas desaparecidas (Edkins, 2011EDKINS, Jenny. Introduction. In: EDKINS, Jenny. Missing: persons and politics. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2011.), alguém que foi tirado do círculo familiar por magia e não pôde voltar à terra ancestral ou encontrar seu caminho para o paraíso.

Se olharmos para o esforço do censo dominicano, fica claro que, empregando significados e dimensões vernaculares de vida e morte, compartilhadas entre haitianos e dominicanos, as tecnologias qualitativas e quantitativas do Estado, bem como sua propaganda, foram capazes de falar de perto com os camponeses. Com isso, superaram rejeições, suspeitas e resistências, mobilizando o medo do cativeiro e da morte e a promessa de um bem comum – o objetivo final de alguém “buscando a vida”. Além disso, o vídeo também incluiu um detalhe evidenciado pelo camponês mais novo: “até os estrangeiros serão contados”. O IX Censo foi provavelmente o primeiro a contar os estrangeiros para fins políticos explícitos e até mesmo um vídeo foi feito, direcionado unicamente para eles8 8 Oficina Nacional de Estadística. Campaña de mantenimiento IX Censo Nacional de Población y Vivienda 2010 - Extranjeros, vídeo publicado por ONEvideos1, YouTube, 01/12/2010, https://www.youtube.com/watch?v=8GsiNuGIdiw. .

A produção da ilegalidade

Uma vez estabelecido um conjunto estatístico do país, ficou mais fácil conceber e produzir a ilegalidade e a deportabilidade. Não entrarei aqui nos detalhes da mudança constitucional em 2010 e em seus efeitos sobre o direito à nacionalidade, condensados na sentença de 2013 (ver, por exemplo, Baluarte, 2017BALUARTE, David. The risk of statlessness: reassearting a rule for the protection of the right to nationality. Yale Human Rights and Development Law Journal, v. 19, n. 1, p. 47-94, 2017.). O fato importante a ser levado em conta para o meu argumento é que as decisões do Tribunal Constitucional dominicano e a nova condição que alguns cidadãos enfrentaram tiveram impactos e efeitos sobre um número expressivo de pessoas que vivem na República Dominicana, documentadas ou não.

Ao invés de olhar apenas para o lado racional e eficaz da burocracia, minha intenção é enfatizar a ineficiência, a insegurança e a confusão que a burocracia pode produzir junto com formas de precariedade e violência, sejam elas pontuais e estruturais. Através do trabalho do que Erica James (2012)JAMES, Erica C. Witchcraft, bureaucraft, and the social life of (US)aid in Haiti. Cultural Anthropology, v. 27, n. 1, p. 50-75, 2012. chamou de bureaucraft, essa confusão levou a uma produção excessiva de documentos, cartas e depoimentos em inúmeras cópias que pessoas levavam consigo em suas atividades diárias, não importando onde estivessem, como ilustra o caso de Marco. Entretanto, é importante notar que essas ambiguidades também ficaram evidentes para o próprio Estado. Após o fim do Plano de Regularização Nacional de Estrangeiros, o ex-presidente Leonel Fernández publicou em seu próprio site uma declaração que revela claramente o que sustentou as ações do Estado dominicano. Fernández elucida como haitianos e dominicanos de ascendência haitiana são enquadrados e como a cidadania foi “concedida indevidamente” a eles. Escrito em inglês, provavelmente como um esforço para justificar publicamente as ações do governo não só para a opinião pública nacional, mas também para os observadores internacionais, suas palavras afirmam que,

[h]istoricamente, em nossas diferentes Constituições e leis, tem havido consistência na determinação de que a nacionalidade dominicana pode ser obtida por descendência (jus sanguinis) ou por nascimento (jus soli). Entretanto, o sistema do jus soli não é incondicional, assim como em outros 164 países do mundo. No nosso caso, ele não se aplica aos filhos de diplomatas ou àqueles em trânsito.

O Supremo Tribunal Dominicano definiu o que era trânsito em sua decisão de 2005, indicando que se refere a estrangeiros não imigrantes, como é o caso dos trabalhadores temporários.

Após a decisão de 2013 do Tribunal Constitucional, que reverteu a sentença errônea dos funcionários de registro, o Congresso, no entanto, promulgou a lei nº 169-14, aplicada a todos os descendentes de imigrantes haitianos ilegais, aos quais a nacionalidade dominicana havia sido concedida indevidamente pelas autoridades de manutenção de registros

(grifos meus)9 9 Fernandéz, Leonel, “The Dominican Republic/Haiti Immigration Process.” Página pessoal, 07/01/2015 http://leonelfernandez.com/articulos/the-dominican-republichaiti-immigration-process/. Pode-se ainda argumentar que ele publicou este anúncio em inglês também com o objetivo de obter o apoio de membros da diáspora dominicana, já que muitos escritores e ativistas dominicanos e haitianos estavam vigorosamente expressando suas opiniões contra a sentença e o processo de deportação em muitos veículos da mídia internacional. Sobre isso, ver Maríñez (2016). .

O que foi percebido como um problema – a cidadania de “todos os descendentes de imigrantes haitianos ilegais” – foi imputado às “autoridades de manutenção de registros” e de sua compreensão equivocada do sistema legal dominicano. Este argumento é uma das diversas desculpas e explicações para o absurdo de uma lei que retirou retroativamente os direitos de cidadania de inúmeras pessoas. O problema dessa decisão não é apenas que ela realmente tenha tirado direitos de um grupo específico, mas também que, ao fazê-lo, abriu a possibilidade para a revisão de decisões anteriores, criando uma jurisprudência que pode minar quaisquer direitos, tanto de haitianos quanto de todo e qualquer cidadão, desde que alguma “autoridade de manutenção de registros” fosse a culpada (Hintzen 2014aHINTZEN, Amelia. Extranjeros en tránsito: la evolución histórica de las políticas migratorias en la República Dominicana. In: HERNÁNDEZ, Ángela (ed.). República Dominicana y Haití: el derecho de vivir. Santo Domingo, RD: Fundación Juan Bosch, 2014a. p. 213-231.). Ao fazer isso, o Estado evitava ser responsabilizado por suas ações, expressando mais uma vez suas dimensões astutas (Randeria, 2003RANDERIA, Shalini. Cunning states and unaccountable international institutions: legal plurality, social movements and rights of local communities to common property resources. European Journal of Sociology, v. 44, n. 1, p. 27-60, 2003.). Além disso, ao ignorar a história e a dinâmica de migração e trabalho entre o Haiti e a República Dominicana, além das histórias compartilhadas entre esses dois países, o ex-presidente aplicou o mesmo estatuto dos diplomatas aos haitianos e dominicanos de ascendência haitiana, considerando-os “estrangeiros não imigrantes” e “trabalhadores temporários”.

Como Amelia Hintzen (2014b, p. 110)HINTZEN, Amelia. Historical forgetting and the Dominican Constitutional Tribunal. Journal of Haitian Studies, v. 20, n. 1, p. 108-116, 2014b. argumenta de modo convincente, “[e]m boa parte do século XX, a política de imigração não serviu para regularizar e legalizar a população migrante, mas foi uma forma de isolar e explorar os trabalhadores haitianos”. Também comum em muitos contextos migratórios, de norte a sul, isso aconteceu na República Dominicana por meio de um conjunto de estratégias, tais como dificultar a aquisição de terras no país por parte dos haitianos ou reter seus documentos de imigração. Tudo isso aconteceu através de políticas sistemáticas extralegais que foram orientadas para restringir os haitianos a um batey específico e produzir uma imobilidade da mão de obra que poderia ser direcionada para servir a uma fração específica do capital dominicano. No caso da sentença de 2013, a novidade aqui é que não se está diante de um processo de imobilidade forçada, como no caso da plantation colonial de cana-de-açúcar ou dos bateyes (Mintz; Wolf, 1957MINTZ, Sidney; WOLF, Eric. Haciendas and plantations in Middle America and the Antilles. Social and Economic Studies, v. 6, n. 3, p. 380-412, 1957.), mas de mobilidade forçada.

Em um texto importante, publicado na esteira do processo de deportação, a historiadora Anne Eller (2015)ELLER, Anne. Haiti and the Dominican Republic. Africa is a country (blog de internet). 17/06/2015, Disponível em: http://africasacountry.com/2015/06/how-history-has-been-re-written-to-justify-the-dominican-deportations/
http://africasacountry.com/2015/06/how-h...
chamou atenção para o fato de que disputas sobre narrativas históricas para justificar as decisões contemporâneas do Estado dominicano não são tomadas apenas por historiadores profissionais, reverberando um argumento que Michel-Rolph Trouillot desenvolveu em seu livro Silenciando o Passado (2016). Nos debates públicos, os políticos podem atuar como agentes da produção histórica e de tomada de consciência, criando e reproduzindo entendimentos tendenciosos dos acontecimentos, reescrevendo a história em uma “dialética de menções e silêncios”, para usar a formulação de Trouillot (2016)TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016.. Durante as discussões sobre a sentença, houve muitos relatos distorcidos, como as referências à Ocupação Haitiana (1822-1844) colocando-a como o episódio cosmogônico que dá origem às animosidades entre os dois países10 10 Para uma cuidadosa pesquisa histórica sobre a ocupação da porção oriental da ilha pelos haitianos, ver Moya Pons (2013). . No caso dos escritos de Fernandéz, pode-se aprofundar esta análise e nomeá-lo não apenas como político historiador, mas também como um teórico político, encontrando um renovado lugar na cena política mesmo após o final de seus mandatos e após a recusa do PLD (Partido de la Liberación Dominicana) em apoiar sua candidatura em favor da reeleição de Danilo Medina.

Se voltarmos à história de Marco, quando nos conhecemos, ele estava esperando uma resposta do escritório de imigração a respeito de sua situação. Quando voltei a Santo Domingo novamente por algumas semanas, no início de agosto de 2015, ele já havia recebido um carimbo no passaporte que lhe concedia o direito de permanecer na República Dominicana. O carimbo que recebeu, no entanto, trazia a seguinte frase: “Não Residente” (No Residente) e era válido por dois anos. Outros que não tinham passaporte receberam um documento conhecido como ti kat (cartão pequeno), neste caso, com validade de apenas um ano. A mesma condição de não residente foi anotada. Como Marco me disse: “com este documento, estamos um pouco mais à vontade. Nos deram uma permissão de estadia. Somos legais no país, mas isso não é um visto nem uma residência”.

[Imagem 1
Cédula de “No Residente”, Santo Domingo,

Marco e outros com quem convivi em Pequeño Haití reconheceram que o novo documento lhes deu alguma segurança para trabalhar e permanecer no país. Mas a condição de não residente e a exigência de voltar ao escritório do Estado em um ou dois anos e passar por todos os embaraços burocráticos outra vez é algo visto com desconfiança e desânimo. Como argumentou Daniel, que também trabalha na região,

[s]e eles realmente quisessem te dar [um visto], eles teriam feito isso agora! Você entendeu? Por exemplo, eles prometeram dar residência, certo? Me pediram muitos documentos. Agora, eu lutei para obtê-los, eu levei todos os documentos até eles. Depois da primeira vez que eu apareci, eles me deram outra coisa. Me pediram para esperar por mais dois anos. Depois de dois anos, eu nem sei se eles me darão realmente o visto.

Toda essa situação foi percebida como o resultado da falta de organização e da confusão por parte do Estado dominicano que, desde o início, não tinha clareza sobre qual caminho seguiria. Referindo-se à situação dos indocumentados como um “dossiê” e à burocracia estatal como mobilizando diferentes “sistemas”, Daniel afirmou: “[e]stes dossiês (dosye) passam de um sistema (sistèm) para o outro e depois novamente para outro. Estes dossiês são realmente hediondos”. Como Max Weber (1946, p. 233) afirmou enfaticamente, o sigilo é parte constitutiva da burocracia: uma tendência em certos campos administrativos que “segue sua natureza material”. Para este autor, o sigilo era uma forma de proteger informações e dados de um poder estrangeiro, seja ele um concorrente econômico ou uma política hostil e, “com a crescente burocratização das organizações partidárias, esse sigilo prevalecerá ainda mais” (Weber, 1946WEBER, Max. Bureaucracy. In: GERTH, Hans H.; WRIGHT MILLS, Charles (eds.). From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University Press, 1946. p. 196-244., p.233 - grifos meus). Na República Dominicana, toda essa burocracia se realizava, na verdade, dentro das fronteiras do Estado-nação para esconder informações de cidadãos e súditos.

As constantes mudanças de “sistemas”, para usar o argumento de Daniel, e o sigilo e a falta de clareza em torno das intenções do Estado com o processo de registro foram sujeitas a recusas e resistências por parte dos indocumentados. Somente ao final do processo o Estado começou a elucidar que era sua intenção realmente conceder o direito às pessoas (ou pelo menos analisar suas possibilidades) de permanecer e trabalhar no país. Antes disso, muitos indocumentados evitavam o cadastramento, já que os rumores se espalhavam dizendo que se tratava de uma emboscada e que a ida ao escritório de Estado facilitaria a deportação11 11 Isso foi divulgado por muitas organizações e ativistas políticos. O Centro Bonó, por exemplo, uma ONG associada ao Serviço Jesuíta a Refugiados e Migrantes, tem sido um importante ator durante o processo de regularização, recebendo pessoas indocumentadas, distribuindo folhetos informativos e denunciando publicamente abusos por parte do Estado durante todo o processo, posição que ocupa até hoje (conferir, por exemplo, Lozano, 2015). Outro ator que foi central durante as lutas pela cidadania foi a ativista Ana María Belique, que constantemente criticou a falta de clareza das demandas do Estado e, após o fim do Plano de Regularização, denunciou seu fracasso através de muitos veículos (cf. Ana María Belique…, 2015). Para uma análise sobre como rumores formatam redes e rotas de mobilidade no contexto diaspórico haitiano, ver Montinard (2019). . Essa foi a razão pela qual muitos decidiram atravessar a fronteira para o Haiti. Um processo que foi apelidado de repatriação voluntária – um termo derivado do programa proposto pela Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM)12 12 Agradeço a Mélanie Montinard por ter chamado minha atenção para esta genealogia. Ver IOM (2018). – ou, para usar a definição mais cínica que era correntemente empregada pela mídia e pelos próprios políticos, deportação voluntária.

[Imagem 2
Fila em frente ao Escritório de Imigração, edifício de Escritórios Governamentais (“El Huacal”), Santo Domingo

O Plano de Regularização pediu àqueles que perderam sua cidadania por causa da Lei Constitucional 169-14 que também se apresentassem ao Escritório de Imigração; um total de 55.000 haitianos e dominicanos descendentes de haitianos o fizeram. A cidadania lhes foi concedida de volta, mas não totalmente. Além disso, como um dominicano de ascendência haitiana me disse durante uma visita ao Centro Bonó: “[e]les nos inscreveram em outro livro”. Durante esse processo, eles foram inscritos em um novo livro de registro civil. Não sabemos por que isso aconteceu e quais são as consequências, mas sabemos que isso abre a possibilidade de muitas interpretações no presente ou no futuro, uma vez que uma diferença foi produzida e registrada. Para aqueles registrados como não residentes, o direito de voto não foi concedido, contrariando práticas anteriores como, por exemplo, durante as eleições passadas13 13 Ver Afonso, Fran. “Los nadies….” Website pessoal, https://franafonsofotos.wordpress.com/2016/04/15/los-nadies/ . Tudo isso revela o estabelecimento de uma cidadania de segunda classe, questionando os princípios universalistas dos direitos constitucionais que são tão centrais para o moderno Estado dominicano.

Entretanto, todo o processo foi considerado uma imensa conquista pelo governo e, em linguagem semelhante à utilizada publicamente durante a campanha do censo de 2010, outros vídeos foram divulgados para reafirmar o seu próprio sucesso. Dois desses vídeos, um lançado no YouTube em 04 de julho de 2015 e o outro em 23 de julho de 2015, tinham um roteiro semelhante. Apresentam haitianos e dominicanos descendentes de haitianos descrevendo sua nova condição e o modo como o Estado, através da figura pessoal do presidente Danilo Medina, lhes concedeu reconhecimento e cidadania, menos como um direito e mais como uma dádiva. O primeiro vídeo descreve como mais de 500 haitianos que vivem há muito tempo no país receberam um visto. Com esse documento, argumenta um haitiano durante a peça publicitária, eles podem “abrir uma continha bancária” (abrir una contecita en el banco), ter “liberdade cívica” (libertad ciudadana), e pedir crédito. Afirmando a real ineficiência do Estado, outro homem diz: “faz muito tempo que não vemos um trabalho como este” (hace mucho tiempo no se via un trabajo como esto). Então, quase no final, uma mulher negra conclui com uma frase que foi escolhida para ser o título do vídeo: “el paí me ha pueto gente” (o país me transformou em gente)14 14 “El paí me ha pueto gente”, vídeo publicado por Presidencia República Dominicana, YouTube, 04/05/2015, https://www.youtube.com/watch?v=JJofodJLBO0. . O segundo vídeo fala especificamente sobre o Plano de Regularização Nacional de Estrangeiros, trazendo imagens do cotidiano de pessoas e perguntando a elas sobre o racismo e assédio que sofrem no país, dando a entender que vivem em melhores condições na República Dominicana. Além disso, o vídeo reafirma os benefícios de ser classificado e recenseado e de ter um documento ou um selo oficial. Curiosamente, o vídeo foi publicado no YouTube um mês e uma semana após o fim do Plano15 15 Não obtive informações sobre se o vídeo fora lançado ao público antes disso. . Ele termina com um homem argumentando que “se eu tenho documentos, estou livre” (si tengo papeles, soy libre), mobilizando aqui o imaginário em torno do cativeiro e da liberdade16 16 “Si tengo papeles, soy libre,” vídeo publicado por Presidencia República Dominicana, YouTube, 23/07/2015, https://www.youtube.com/watch?v=-uNJVYTTu20 . Novamente, nesses vídeos é empregada uma linguagem triunfalista, colocando o Estado como a principal e única instituição em que a vida (ou a oportunidade de “buscar a vida”) é possível. Essas duas peças específicas de propaganda vão mais longe e colocam o Estado como uma instituição que pode não só conceder a alguém um visto, mas também o seu estatuto como pessoa, transformando-a em alguém livre e, mais poderosamente, em gente.

Vidas em movimento

Cristóvão Colombo tinha um cartão de estrangeiro? Esta pergunta, que usei como epígrafe, compõe o refrão de uma canção de autoria do antropólogo Michel-Rolph Trouillot: Alyenkat. Ele mesmo um imigrante haitiano nos Estados Unidos, suas palavras fortes descrevem uma vida de medo constante da detenção e da deportação durante os anos de 197017 17 Letra disponível em: http://pawolmizik.com/lyrics/paroles-alyenkat-manno-charlemagne/. Para uma tradução completa para o inglês, ver Jayaram (2003). . Como a escritora e artista Michelle Voltaire Marcelin escreveu após a morte de Trouillot, “[a] canção questionava a ética da política de imigração dos EUA e a necessidade do Cartão de Registro de Estrangeiro”. Popularizada por Manno Charlemagne, a música tornou-se um hino aos indocumentados no Haiti e na diáspora18 18 Página pessoal do Facebook, citada em Bonilla (2014, p. 164). . Após reivindicar “mais um 1804”, ano da Independência do Haiti, a frase final da canção diz que “quando chegar a hora, no cemitério, não vai haver cartão de estrangeiro” (lè sa nan simityè pap gen alyenkat), revelando um desejo de vingança para aqueles que sofreram toda a pressão política e a violência durante o processo de registro. No entanto, a frase lembra o lado universal da morte, pois “no cemitério, não haverá cartão de estrangeiro”.

Na República Dominicana, como se a história se repetisse, a tragédia dos haitianos e dominicanos de ascendência haitiana ganhou ares de farsa com um processo de registro confuso e ineficiente, abrindo a possibilidade de suspeitas e resistências. Para navegar por essas instituições e práticas burocráticas, pessoas tiveram que mobilizar formas de se virar (degaje) e de lutar (lite), fazendo política para além do espaço nacional. Sob esse evento crítico (Das, 1997DAS, Veena. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Oxford: Oxford University Press, 1997.), noções como abuso e lajistis, bem como metáforas sobre escravidão e animalidade tornaram-se partes constitutivas das experiências de mobilidade e trabalho das pessoas. Colocar essas categorias e experiências no centro de nossa reflexão pode trazer possibilidades analíticas interessantes para nós enquanto historiadores, filósofos e cientistas sociais. O que está em jogo no caso aqui analisado não é apenas a possibilidade de deportação e a produção e experiências de ilegalidade, mas uma dimensão da própria vida que é a potência da mobilidade em um mundo que insiste em fixar identidades a fronteiras e desconsiderar histórias compartilhadas e complementares, como aquelas entre o Haiti e a República Dominicana.

Desde o início, a política dominicana de deportação foi considerada um grande sucesso pela mídia dominicana e por alguns políticos, apesar de não ter alcançado a prometida deportação extensiva, massiva e arbitrária de pessoas pelas mãos do Estado. Rumores, assédio, violência episódica, crueldade institucional, suspeitas sobre o papel do registro do Estado, informações desorganizadas e múltiplas mudanças de objetivos e “sistemas” nas políticas migratórias tornaram-se ações políticas eficientes que fizeram milhares de pessoas indocumentadas optarem por se esconder ou fazer seu caminho em direção para o Haiti. Mesmo que uma quantidade expressiva deles tivesse nascido na República Dominicana, houvesse previamente conseguido residência e não tivesse ligações familiares com o lado ocidental da ilha de Espanhola, todos eles eram considerados “em trânsito”. As formas contemporâneas de controle da mobilidade, em contextos como a República Dominicana, revelam o caráter iminente da exploração como uma biopolítica regulando tanto as fronteiras da nação quanto produzindo de maneira ativa formas de vida específicas ou possíveis. O Estado dominicano buscava ser incluído no hall das nações modernas, mas, para isso, e agindo como um Estado astuto (Randeria, 2003RANDERIA, Shalini. Cunning states and unaccountable international institutions: legal plurality, social movements and rights of local communities to common property resources. European Journal of Sociology, v. 44, n. 1, p. 27-60, 2003.), era necessário que o Estado-nação se tornasse não somente um lugar que atraísse força de trabalho de outras nações, mas que também fosse capaz de disciplinar e submeter essas pessoas a uma vida precária, governando sua mobilidade, e, se necessário, deportando-as como um sinal espetacular, mas confuso e fragmentado, da soberania estatal.

  • 1
    Além dos pareceristas anônimos da revista Sociologias e dos editores, agradeço a Gabriela Read, Omar Ribeiro Thomaz, April Mayes, Federico Neiburg, Gabriel Gatti, Vincent Joos, Kiran Jayaram, Jean-Philippe Belleau, Nadège Mézié, Mélanie Montinard e Victor Macedo pelos diálogos, sugestões e críticas generosas. Evidentemente, quaisquer falhas e imprecisões são de minha responsabilidade. Ademais, gostaria de agradecer também aos amigos e amigas que conheci durante minhas estadias no Pequeño Haití. Cabe ressaltar ainda que todas as traduções, salvo quando indicado na bibliografia, são de minha autoria. Por fim, destaco que a pesquisa que deu origem a este artigo foi financiada pela FAPESP, processo n. 2019/04170-4.
  • 2
    Ver Hintzen (2014a)HINTZEN, Amelia. Extranjeros en tránsito: la evolución histórica de las políticas migratorias en la República Dominicana. In: HERNÁNDEZ, Ángela (ed.). República Dominicana y Haití: el derecho de vivir. Santo Domingo, RD: Fundación Juan Bosch, 2014a. p. 213-231. e Coulange-Méroné (2018)COULANGE-MÉRONÉ, Schwarz. Elementos sociohistóricos para entender la migración haitiana a República Dominicana. Papeles de población, v. 24, n. 97, p. 173-193, 2018. para uma análise histórica da migração haitiana para a República Dominicana. Sobre a relação entre capital, globalização, raça e espacialidade na República Dominicana, ver o importante trabalho de Steven Gregory (2007)GREGORY, Steven. The devil behind the mirror. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2007.. Desde o início dos anos 2000, há uma notável presença de haitianos em instituições de ensino no país vizinho. Conferir, por exemplo, Jayaram (2014)JAYARAM, Kiran. Hitting the books and pounding the pavement: Haitian educational and labor migrants in the Dominican Republic. Tese (Doutorado), Columbia University, Nova York, 2014. para uma etnografia realizada em Pequeño Haití com foco em dimensões de classe, raça e educação.
  • 3
    Todos os nomes pessoais, exceto o de pessoas públicas, foram alterados para preservar o anonimato dos meus interlocutores.
  • 4
    Gabriela Read, comunicação pessoal, em maio de 2016.
  • 5
    A mesma coisa acontecia com outros termos, como racista, esclavos etc. Um processo similar ocorria também por meio da “crioulização” de termos em espanhol, por exemplo, merkad (para mercado), kolmad (para mercado de alimentos ou bar) etc. Isto foi justificado por um amigo como: “cada lugar tem seu próprio crioulo. Cabo Haitiano tem um crioulo, Porto-Príncipe tem um crioulo, Santo Domingo tem um crioulo”.
  • 6
    Para uma abordagem sobre o anti-haitianismo e a história das relações haitiano-dominicanas, ver Derby (2012)DERBY, Lauren. Haitians in the Dominican Republic: race, politics and neoliberalism. In: REITER, Bernd; SIMMONS, Kimberly (eds.). Afrodescendents, identity and the struggle for development in the Americas. East Lansing: Michigan State University Press, 2012. p. 51-66., Turits (2002)TURITS, Richard. A world destroyed, a nation imposed. Hispanic American Historical Review, v. 82, n. 3, p. 589-635, 2002., Martínez (2003)MARTÍNEZ, Samuel. Not a cockfight: rethinking Haitian-Dominican relations. Latin American Perspectives, v. 30, n. 3, p. 80-101, 2003., Hintzen (2014a)HINTZEN, Amelia. Extranjeros en tránsito: la evolución histórica de las políticas migratorias en la República Dominicana. In: HERNÁNDEZ, Ángela (ed.). República Dominicana y Haití: el derecho de vivir. Santo Domingo, RD: Fundación Juan Bosch, 2014a. p. 213-231., Moya Pons (2013)MOYA PONS, Frank. La dominación haitiana, 1822-1844. Santo Domingo: Librería La Trinitária, 2013., Eller (2016)ELLER, Anne. We dream together: Dominican independence, Haiti, and the fight for Caribbean freedom. Durham, NC: Duke University Press, 2016., entre outros.
  • 7
    Oficina Nacional de Estadística (ONE). Campaña de mantenimiento IX Censo Nacional de Población y Vivienda 2010 - Campesinos, vídeo publicado por ONEvideos1, YouTube, 30/11/2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JqBXTuSs8w4.
  • 8
    Oficina Nacional de Estadística. Campaña de mantenimiento IX Censo Nacional de Población y Vivienda 2010 - Extranjeros, vídeo publicado por ONEvideos1, YouTube, 01/12/2010, https://www.youtube.com/watch?v=8GsiNuGIdiw.
  • 9
    Fernandéz, Leonel, “The Dominican Republic/Haiti Immigration Process.” Página pessoal, 07/01/2015 http://leonelfernandez.com/articulos/the-dominican-republichaiti-immigration-process/. Pode-se ainda argumentar que ele publicou este anúncio em inglês também com o objetivo de obter o apoio de membros da diáspora dominicana, já que muitos escritores e ativistas dominicanos e haitianos estavam vigorosamente expressando suas opiniões contra a sentença e o processo de deportação em muitos veículos da mídia internacional. Sobre isso, ver Maríñez (2016)MARIÑEZ, Sophie. De traidores y anti-dominicanos: el otro precio de la crisis de los derechos humanos en República Dominicana. Comunicación presentada en la 41ª Conferencia Anual de la Asociación de Estudios Caribeños (CSA), Porto-Príncipe, 2016..
  • 10
    Para uma cuidadosa pesquisa histórica sobre a ocupação da porção oriental da ilha pelos haitianos, ver Moya Pons (2013)MOYA PONS, Frank. La dominación haitiana, 1822-1844. Santo Domingo: Librería La Trinitária, 2013..
  • 11
    Isso foi divulgado por muitas organizações e ativistas políticos. O Centro Bonó, por exemplo, uma ONG associada ao Serviço Jesuíta a Refugiados e Migrantes, tem sido um importante ator durante o processo de regularização, recebendo pessoas indocumentadas, distribuindo folhetos informativos e denunciando publicamente abusos por parte do Estado durante todo o processo, posição que ocupa até hoje (conferir, por exemplo, Lozano, 2015LOZANO, Wilfredo. La política de la incertidumbre. Acento [online]. 06/30/2015. Disponível em: https://acento.com.do/opinion/la-politica-de-la-incertidumbre-8262472.html
    https://acento.com.do/opinion/la-politic...
    ). Outro ator que foi central durante as lutas pela cidadania foi a ativista Ana María Belique, que constantemente criticou a falta de clareza das demandas do Estado e, após o fim do Plano de Regularização, denunciou seu fracasso através de muitos veículos (cf. Ana María Belique…, 2015ANA MARÍA BELIQUE afirma fracasó el Plan de Regularización de Extranjeros. Acento [online], 17/06/2015. Disponível em: https://acento.com.do/actualidad/ana-maria-belique-afirma-fracaso-el-plan-de-regularizacion-de-extranjeros-8258897.html
    https://acento.com.do/actualidad/ana-mar...
    ). Para uma análise sobre como rumores formatam redes e rotas de mobilidade no contexto diaspórico haitiano, ver Montinard (2019)MONTINARD, Mélanie. Pran wout la: dynamiques de la mobilité et des réseaux haïtiens. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019..
  • 12
    Agradeço a Mélanie Montinard por ter chamado minha atenção para esta genealogia. Ver IOM (2018)INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION - IOM. Assisted voluntary return and reintegration. Genebra: IOM, 2018. Disponível em: https://www.iom.int/assisted-voluntary-return-and-reintegration
    https://www.iom.int/assisted-voluntary-r...
    .
  • 13
    Ver Afonso, Fran. “Los nadies….” Website pessoal, https://franafonsofotos.wordpress.com/2016/04/15/los-nadies/
  • 14
    “El paí me ha pueto gente”, vídeo publicado por Presidencia República Dominicana, YouTube, 04/05/2015, https://www.youtube.com/watch?v=JJofodJLBO0.
  • 15
    Não obtive informações sobre se o vídeo fora lançado ao público antes disso.
  • 16
    “Si tengo papeles, soy libre,” vídeo publicado por Presidencia República Dominicana, YouTube, 23/07/2015, https://www.youtube.com/watch?v=-uNJVYTTu20
  • 17
    Letra disponível em: http://pawolmizik.com/lyrics/paroles-alyenkat-manno-charlemagne/. Para uma tradução completa para o inglês, ver Jayaram (2003)JAYARAM, Kiran. Immigration (Standard English). Chain, n. 10, p. 216-217, 2003..
  • 18
    Página pessoal do Facebook, citada em Bonilla (2014, p. 164)BONILLA, Yarimar. Remembering the songwriter: the life and legacies of Michel-Rolph Trouillot. Cultural Dynamics, v. 26, n. 2, p. 163-172, 2014..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    22 Out 2020
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