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Gênero e raça: trânsitos do Sul em perspectiva

Gender and race: southern transits in perspective

Resumo

A cooperação acadêmica com países africanos foi incrementada por editais científicos voltados à internacionalização das universidades brasileiras, especialmente a partir de meados dos anos 2000. Esse processo promoveu a constituição de redes internacionais de pesquisa e a colaboração entre pós-graduações brasileiras e africanas, especialmente com países de língua oficial portuguesa. Este dossiê é fruto desse processo, pautando estudos cabo-verdianos, em diálogo com pesquisas e perspectivas latino-americanas. O dossiê reúne um conjunto de textos que cruzam algumas das tendências dos feminismos do sul global às questões das relações entre colonialismo e miscigenação. Esses diferentes estudos apontam para inusitadas possibilidades de se pensar a modernidade a partir de potentes feminismos disruptivos que emergem das experiências do Sul global amefricano.

Palavras-chave
colonialismo; cooperação acadêmica; feminismos; Sul global; Cabo Verde

Abstract

Academic cooperation with African countries was enhanced by calls for proposals aimed at the internationalization of Brazilian universities, especially from the mid-2000s onwards. This process promoted the establishment of international research networks and collaboration between Brazilian and African graduates, especially with Portuguese-speaking countries. This dossier is an outcome of this process, presenting Cape Verdean studies, in dialogue with Latin American research and perspectives. The dossier brings together a set of texts that interweave some trends in feminisms of the global South with discussions on the relationship between colonialism and miscegenation. These different studies point to unusual possibilities of reflecting on modernity from the point of view of powerful disruptive feminisms that emerge from the experiences of the African global South.

Keywords
colonialism; academic cooperation; feminisms; global South; Cape Verde

O que o feminismo do Sul tem a ver com a questão da miscigenação? E como miscigenação racial e a mestiçagem institucional característica da globalização neoliberal podem ser pensadas juntas para além de uma relação metafórica? Esse par de questões aparece iluminado sob diferentes ângulos nos artigos que se seguem. Cabo Verde talvez seja um ponto particularmente privilegiado para esse tipo de indagação. Nação imaginada sob a insígnia da mestiçagem, é também o lugar de inversão das mais diversas fórmulas institucionais associadas à promessa de desenvolvimento e autonomia.

No afã de parecer um ordenamento disciplinado para a recepção das melhores fórmulas institucionais do mundo globalizado visando ao desenvolvimento, Cabo Verde não poderia deixar de ser um palco para os ensaios do feminismo branco como “missão civilizatória”. Como sentencia Vergès, na era de assembleias internacionais, apoio de Estados ocidentais e pós-coloniais, mídias femininas, revistas de economia, instituições governamentais e internacionais, fundações e organizações não governamentais, a agenda neoliberal se reconcilia com o feminismo e faz uso da linguagem dos direitos, particularmente dos direitos das mulheres, para conferir uma nova roupagem ao imperialismo numa versão feminista (Vergès, 20204 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.). A demonstração de como a incorporação de agendas internacionais continua a se impor também via direitos das mulheres nos leva a uma inquietação quanto à conjuntura em que o feminismo se torna parte do arsenal neoliberal para modernização dos subdesenvolvidos.

Reunimos aqui um conjunto de textos que cruzam algumas das tendências dos feminismos do Sul global às questões das relações entre colonialismo e miscigenação. Dado esse escopo e nossa experiência na cooperação acadêmica entre Cabo Verde e o Brasil, essa questão não poderia deixar de estar no centro da maior parte das reflexões tecidas no dossiê. Cabo Verde é tipicamente um desses países em que os direitos das mulheres se tornaram um trunfo de Estado e por meio dos quais as políticas públicas se tornam permeáveis aos ordenamentos do imperialismo global, via versões institucionalizadas do feminismo branco. A missão civilizadora feminista branca e burguesa encontra aqui um ponto de tensão e alguns dos artigos mobilizados neste dossiê se ancoram em lugares de resistência a essa nova modalidade de miscigenação imperial de mundos por meio da mestiçagem institucional.

Chamamos de feminismo branco, na esteira de Vergès (2020)4 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., aquela forma de feminismo que reivindica seu pertencimento à Europa e que se relaciona com o resto do mundo segundo a mesma lógica da partilha racializada do mundo; aquele feminismo que carrega na bagagem os efeitos de séculos de dominação e supremacia branca. Em que pese a série de críticas ao seu compromisso com uma concepção binária de gênero, sua política antissexo e seu apego a uma narrativa de progresso que sublinha a concepção eurocêntrica de civilização, esse feminismo permanece dominante nas instituições levadas para países africanos, como Cabo Verde, no pacote de receitas para o desenvolvimento.

Se, como sugere Vergès (2020)4 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., esse feminismo “continua a moldar as conversas políticas e teóricas do presente oferendo certeza moral e uma visão de mundo onde estão claramente marcados bons e maus atores”, ele pode ser colocado de lado, em favor de narrativas menores. As referências ao feminismo dominante são, neste dossiê, discretamente deixadas de lado, ligeiramente deslocadas, para que não ocupem a cena central da análise, e para que possam ceder espaço para outras histórias capazes de interromper as narrativas dominantes sobre o gênero. Está em jogo, neste dossiê, localizar as mulheres africanas, e indígenas nas Américas, na trama de outros eixos de opressão além do patriarcalismo. Pode-se considerar que os artigos aqui presentes desdobram a premissa fundamental da antropóloga nigeriana Oyewùmí (2021)3 OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., de que a categoria mulher não é universal e não faz parte de todas as configurações sociais da mesma maneira. É dessa premissa que parte o artigo de Natalia Velloso e Vladmir Ferreira nesse dossiê.

Quando as decisivas lutas contra o colonialismo, em sua articulação com o racismo e o patriarcalismo, se degeneram em ideologia neoliberal dos direitos das mulheres, Carmelita Silva responde analisando a interferência de agendas globais sobre decisões locais. Seu artigo busca entender como se construíram os consensos em que se aprovou um projeto de lei sobre a violência de gênero em Cabo Verde. É como se a missão civilizadora tivesse agora se travestido na linguagem dos direitos, e o feminismo branco se presta à modulação de ONGs “que em suas intervenções podem levar à reprodução das agendas globais ao invés de traduzirem as reais expectativas daquelas(es) que demandam pela justiça” – nos sugere a autora no artigo “Da emergência da Lei Especial contra a Violência Baseada no Gênero em Cabo Verde à sua operacionalização na Rede Sol”. O que a análise permite depreender é o modo como um feminismo civilizatório se constitui como parte da arte neoliberal de governo mundial.

Em outro momento do dossiê, um deslocamento etnográfico passa a ocupar o lugar e desaparece o embate frontal. É o modo como procede o artigo de Carla Indira Semedo, ao reconstruir as narrativas das mulheres que protagonizam um dos gêneros músico-coreográficos mais populares em Cabo Verde, o batuko. Suas interlocutoras lhe permitem perceber o efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da nação, mas Semedo segue além, mostrando como as vivências do batuko permitem a essas mulheres se inscreverem num projeto profissional: vir a ser artista profissional.

Um deslocamento similar, em relação às versões dominantes do feminismo, acontece com o artigo “Curanderas y parteras: saberes que reivindican y tensionan”. Nele, Diana Manrique García expressa um dos possíveis desdobramentos de uma perspectiva feminista de política decolonial, que se coloca sob uma nova etapa do processo de descolonização representada pela indisciplina dos corpos.

Todos os trabalhos aqui reunidos de algum modo se colocam na esteira das críticas ao chamado feminismo civilizatório e, ao se deslocarem, colocam em perspectiva, além da mestiçagem racial, a mestiçagem institucional do momento globalista do imperialismo. Quando os programas de ajuste estrutural encontram no feminismo universalista seu ponto de ancoragem para a mestiçagem institucional, Carmelita Silva expõe como o protagonismo do Estado, em detrimento dos sujeitos de direitos, e a imposição de um modelo global limitam a agência dos atores/atrizes sociais envolvidos(as) nos processos de problematização da violência baseada em gênero.

Em todo o dossiê está subjacente uma luta por justiça epistêmica que, por vezes, se inscreve no plano de um feminismo decolonial que tem como horizonte uma reapropriação científica e filosófica da capacidade de narrar e das possibilidades de fazê-lo de outro modo. Trata-se de narrar de modo a trazer aos de cima o fato de que as mulheres do Sul permanecem no lugar de reparadoras dos imensos danos das novas modalidades de imperialismo baseado no controle das fronteiras. É nessa esteira que Eufémia Vicente Rocha e José Carlos Gomes dos Anjos articulam a posicionalidade de mulher negra ao plano do mais assombroso dos desterros: o plano da própria humanidade. Asseguram os autores que “a condição mais fundamental da mulher negra num mundo antinegro é a de portadora de um natimorto, de alguém cuja condição de humano se dissolve no próprio gesto da demanda de verificação”. Os constrangimentos impostos pelos serviços de fronteira aos imigrantes africanos é o plano em que o ser do negro se imbrica ao ser do feminino como um buraco negro em que o ser se dá como impasse entre a civilização e a incivilidade permanente. A perpetuação da supremacia branca planetária e a exploração da antinegritude se fazem gritantes quando governos do sul global buscam tirar partido da situação de apartheid global posicionando como “uma fortaleza para si e como parte da muralha que deve estancar o afluxo de negros pobres aos países afluentes”.

Quando o feminismo branco se tornou o álibi das novas modalidades do imperialismo, o maior deslocamento pode ser o de nem mesmo tocar no feminismo e nas questões de gênero, mesmo se o que está em jogo é o cuidado através da alimentação. Natalia Velloso e Vladmir Ferreira se apoiam em Bellacasa (2015)1 BELLACASA, Maria P. de la. Making time for soil: Technoscientific futurity and the pace of care.Social Studies of Science, v. 45, n. 5, p. 691-716, 2015. para expor uma ética do cuidado acionada através de práticas de ecoativismo na permacultura. O cuidado da horta como cuidado de si coletivo aparece como força de resistência à lógica colonial e ao produtivismo contemporâneo. Percursos afirmativos intensivos, descritos com sensibilidade acurada, permitem visualizar o constante processo de tessitura de outros mundos neste mundo.

Quando a mulher migrante toma a palavra para denunciar a antinegritude cabo-verdiana, essa voz pode ser conectada às práticas de cuidado e cura de uma comunidade indígena da Amazonia Boliviana protagonizadas por mulheres? O que está subjacente a esses textos diferentes é o horizonte de um feminismo que articula a crítica ao patriarcado, aos direitos migrantes e à luta contra o capitaloceno racial. São exploradas neste dossiê as respostas ao momento global em que as portas do ocidente se fecham e a feminização do Sul eclode enquanto políticas locais de empoderamento das mulheres do Sul. Existem outras estratégias e elas não dependem desses marcos de um feminismo global que se apresenta como missão civilizatória.

A reunião desses textos é caudatária das rotas transnacionais de transferências de experiências que fizeram com que os organizadores deste dossiê estivessem entre o Brasil e Cabo Verde, em trabalhos de orientação de dissertações e teses que, de algum modo, tocavam nesses temas. Esta proposta visou reunir textos sobre a produção de conhecimentos decorrente da cooperação Sul-Sul brasileira com universidades africanas de língua oficial portuguesa e explorar dimensões comparativas no campo dos estudos feministas. A circulação de pessoas, conceitos e teorias aparece em diferentes artigos questionada desde perspectivas generificadas, e são colocados de novo em tela os processos de crioulidade e de mestiçagem que cristalizaram o processo de constituição de imaginários nacionais latino-americanos e dos países lusófonos africanos, agora intensificados pelos processos migratórios. Os artigos aqui propostos, ao reverem feminismos hegemônicos, apontam para inusitadas possibilidades de se pensar a modernidade a partir de potentes feminismos disruptivos que emergem das experiências do Sul global amefricano (Gonzalez, 20202 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

A partir dos anos 2000, a cooperação acadêmica com países africanos foi incrementada por editais científicos voltados à internacionalização das universidades brasileiras. Esse processo promoveu a constituição de redes internacionais de pesquisa, a criação de grupos de pesquisa voltados aos estudos africanos e a colaboração entre pós-graduações brasileiras e africanas, especialmente com países de língua oficial portuguesa. Desta cooperação, resultou uma significativa produção de conhecimento, seja de etnografias e estudos empíricos em contextos africanos, seja de pesquisas comparativas com Brasil e América Latina. Este dossiê decorre desses trânsitos. Mais especificamente, exploramos aqui as brechas por onde se cruzam feminismos afro-lusófonos e afro-latino-americanos nas bordas desse acontecimento vital que é a intensificação do processo migratório dos países outrora colonizados por potências latinas. A circulação internacional de conceitos, teorias e imaginários no modo como informam e limitam as perspectivas feministas amefricanas e impõem uma “extraversão” na produção de conhecimentos sobre relações de gênero nesses países africanos e latino-americanos é o eixo estrutural comum a diversos dos artigos aqui propostos.

Referências

  • 1
    BELLACASA, Maria P. de la. Making time for soil: Technoscientific futurity and the pace of care.Social Studies of Science, v. 45, n. 5, p. 691-716, 2015.
  • 2
    GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organizado por Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • 3
    OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • 4
    VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2022
  • Aceito
    13 Maio 2022
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