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Memória, narrativa e subjetividade étnica: a etnicidade europeia nos Estados Unidos

Memory, narrative and ethnic subjectivity: the European ethnicity in the United States

Resumo

Este texto resenha a obra “Ethnic subjectivity in intergenerational memory narratives: politics of the untold”, de Mónika Fodor (2020). Ao longo de seis capítulos, a obra apresenta uma análise de narrativas de memória intergeracional e seu papel para a construção da subjetividade étnica. O trabalho de Fodor adquire originalidade e relevância pela ênfase no aspecto subjetivo e na dimensão de “investimento” da etnicidade, compreendida como capital simbólico. A análise executada pela autora, circunscrita à etnicidade de origem europeia no contexto dos Estados Unidos, apresenta profícuos indicativos metodológicos e potencial heurístico, podendo contribuir para a análise dos fenômenos da etnicidade e da memória em distintos contextos históricos e empíricos marcados pela experiência migratória.

Palavras-chave
etnicidade; memória; narrativa; migrações; Estados Unidos

Abstract

This text reviews the book “Ethnic subjectivity in intergenerational memory narratives: politics of the untold”, by Mónika Fodor (2020). Over six chapters, the work presents an analysis of narratives of intergenerational memory and their role in the construction of ethnic subjectivity. Fodor’s work acquires originality and relevance due to the emphasis on the subjective aspect and the “investment” dimension of ethnicity, understood as symbolic capital. The analysis carried out by the author, circumscribed to ethnicity of European origin in the context of the United States, presents useful methodological indications and heuristic potential, which may contribute to the analysis of ethnicity and memory phenomena in different historical and empirical contexts marked by migratory experience.

Keywords
ethnicity; memory; narrative; migrations; United States

Integrando a série Routledge Research in Race and Ethnicity, o livro “Subjetividade étnica em narrativas de memória intergeracional: política do não-dito” (tradução livre), da sociolinguista húngara Mónika Fodor, oferece uma reflexão interdisciplinar sobre o papel da memória intergeracional para a construção da subjetividade étnica. O objetivo da obra é analisar a construção discursiva da identificação étnica na forma de subjetividade, isto é, como um grupo de indivíduos se identifica (ou não) com a sua herança étnica e como tal herança produz sentidos para os sujeitos. A obra emprega, em termos metodológicos, uma abordagem sociolinguística de análise narrativa para abordar temas como etnicidade, identidade, memória, experiência migratória e assimilação. Desse modo, Fodor estabelece um diálogo transversal com distintas perspectivas e vertentes teóricas oriundas dos campos da Sociologia, da Antropologia e da História, que servem como referencial teórico ao estudo.

O grupo em análise é composto por americanos com ancestralidade europeia, de segunda geração ou de gerações mais tardias. Assim, trata-se de uma obra que examina o papel da memória para a conformação de identidades europeu-americanas, analisando narrativas de memória sobre imigração e experiências de vida transmitidas por antepassados que migraram aos Estados Unidos. O material empírico é composto por cinquenta e uma entrevistas autobiográficas com dezessete sujeitos, a maior parte com origem étnica húngara – embora o corpus envolva também sujeitos que se identificam com origens italianas, alemãs ou mistas. O livro é estruturado em seis capítulos: o primeiro apresenta a base teórica de análise, enquanto os demais se constituem como análises de narrativas de memória intergeracional organizadas e codificadas tematicamente.

A obra mobiliza quatro conceitos centrais, que são abordados no primeiro capítulo. O primeiro deles é a noção de memória intergeracional. Esta refere a memórias sobre eventos ocorridos com antepassados, transmitidas em contextos familiares. Segundo Fodor, o conceito de memória intergeracional é praticamente equivalente ao de pós-memória – segundo a formulação de Marianne Hirsch (1992)6 HIRSCH, Marianne. Family pictures: Maus, mourning, and post-memory. Discourse, v. 15, n. 2, p. 3-29, 1992. –, embora a autora reconheça que a ênfase no aspecto traumático da memória não está presente em todas as narrativas apresentadas no livro. O conceito de pós-memória, que abrange um conjunto de suposições amplamente aceitas entre os estudiosos da memória, refere-se a memórias herdadas de antepassados que, embora não se baseiem em experiências vividas pelo indivíduo, são tão significativas que o mesmo as acaba incorporando como se fossem suas próprias (Pollak, 199211 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.; Voigt, 201715 VOIGT, Lucas. O devir e os sentidos das memórias de descendentes de alemães em Santa Catarina: um esboço de sociologia da memória. Porto Alegre: Multifoco; Luminária Academia, 2017.). Ademais, a noção enfatiza o componente traumático da memória (Roseman, 200013 ROSEMAN, Mark. Memória sobrevivente: verdade e inexatidão nos depoimentos sobre o holocausto. In: FERREIRA, Marieta M. et al. (org.). História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. p. 123-134.) e, simultaneamente, o receio de perda de conexão com um passado que pertence a outras gerações, o que implica a assunção da responsabilidade de preservar as memórias do esquecimento.

O segundo conceito é o de etnicidade, que representa o aspecto mais inovador e interessante da obra de Fodor. A autora propõe uma conceituação de etnicidade como capital simbólico, baseando-se na sociologia de Pierre Bourdieu. De acordo com a autora, reivindicar a etnicidade como parte significativa da subjetividade demanda “investimento”, em sentido bourdieusiano. Em outras palavras, a etnicidade compreende escolha, negociação e “interesse” – para que os sujeitos se identifiquem com determinada herança étnica, é necessário que a considerem algo de valor e digno de investimento. Nesse sentido, a etnicidade passa a ser compreendida como um conjunto de conhecimentos culturais e linguísticos que representam uma fonte de capital simbólico.

Algumas das expressões do investimento de preservação ou reaquisição da etnicidade são: pesquisa genealógica, estudo de línguas de herança, prática de tradições étnicas, associação a sociedades culturais, visitas ou mudança definitiva para a pátria natal dos ancestrais, dentre outras. A noção de investimento implica, de modo correspondente, lucros obtidos ou visados pelos agentes. Nas narrativas analisadas pela autora, são mencionados alguns dos ganhos simbólicos e materiais da identificação étnica, que são principalmente linguísticos, culturais e profissionais: conhecimento de outra língua, compreendida como habilidade social; conhecimentos e competências culturais, que possibilitam, ademais, um senso de valorização da diversidade cultural e uma atitude de “tolerância” em relação a minorias e grupos imigrantes; aquisição de capital social e networking com outros sujeitos étnicos; e benefícios profissionais da biculturalidade e do bilinguismo, que se expressam, por exemplo, no desenvolvimento de carreiras acadêmicas e artísticas – em que o capital cultural e linguístico se mostra determinante – ou no âmbito dos negócios e das profissões liberais que se desenvolvem em círculos étnicos – em que o capital social tem um papel crucial.

Um dos consensos no âmbito das discussões sobre a etnicidade reside na constatação da natureza eminentemente interdisciplinar da temática (Weber, 200516 WEBER, Regina. Introdução ao dossiê (Etnicidade). Anos 90, v. 12, n. 21/22, p. 45-52, 2005. https://doi.org/10.22456/1983-201X.6368
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). Nesse contexto, pode-se afirmar que o aporte sociolinguístico da etnicidade desenvolvido por Fodor alinha-se a um conjunto de formulações no campo das ciências sociais, notadamente aquelas que colocam em evidência as relações entre a etnicidade e a ação econômica – por exemplo, a discussão clássica no campo da sociologia das migrações sobre as middleman minorities (Bonacich, 19733 BONACICH, Edna. A theory of middleman minorities. American Sociological Review, v. 38, n. 5, p. 583-594, 1973.), ou as discussões mais recentes no contexto das ciências sociais e da história sobre os usos econômicos da etnicidade e de redes transnacionais por imigrantes (Buchenau, 20044 BUCHENAU, Jürgen. Tools of progress: a German merchant family in Mexico City, 1865-present. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004.), ou sobre o papel das atividades econômicas para a própria conformação e definição da etnicidade (Karam, 20078 KARAM, John T. Another arabesque: Syrian-Lebanese ethnicity in neoliberal Brazil. Philadelphia: Temple University Press, 2007.). A principal contribuição da obra de Fodor a esse campo reside, a meu ver, na formalização e na sistematização da noção de etnicidade considerando sua dimensão de “investimento” – o que compreende, por extensão, as retribuições e os lucros obtidos ou almejados pelos sujeitos, dentre eles o econômico –, o que se dá pela aproximação da noção com as formulações da sociologia de Pierre Bourdieu.

Ademais, pode-se apontar um alinhamento entre a obra de Fodor e os trabalhos desenvolvidos no contexto da chamada “nova arquitetura dos estudos étnicos” (Lesser, 20179 LESSER, Jeffrey. Remaking ethnic studies in the age of identities. In: REIN, Raanan et al. (org.). The new ethnic studies in Latin America. Leiden: Brill, 2017. p. 7-15.; Rein et al., 201712 REIN, Raanan; RINKE, Stefan; ZYSMAN, Nadia (org.). The new ethnic studies in Latin America. Leiden: Brill, 2017.; Buchenau; Dávila, 20205 BUCHENAU, Jürgen; DÁVILA, Jerry. Concluding essay: rethinking Latin America in the New Ethnic Studies. In: REIN, R. et al. (org.). Migrants, Refugees, and Asylum Seekers in Latin America. Leiden: Brill, 2020. p. 326-349.). As construções narrativas analisadas por Fodor referem-se precisamente ao tipo de identidades que Lesser (2017)9 LESSER, Jeffrey. Remaking ethnic studies in the age of identities. In: REIN, Raanan et al. (org.). The new ethnic studies in Latin America. Leiden: Brill, 2017. p. 7-15. definiu como “hifenizadas”, isto é, aquelas formadas na intersecção entre etnicidades diaspóricas e identidades nacionais. Na perspectiva dos novos estudos étnicos, as identidades hifenizadas possuem um caráter situacional, fluido e continuamente negociado, sendo produzidas na intersecção entre contextos locais, nacionais e transnacionais – processo que resulta não apenas na produção de etnicidades, interferindo também na conformação das identidades nacionais. No trabalho de Fodor, as negociações dos sujeitos entre etnicidades (de origem diaspórica) e identidades nacionais (referentes aos contextos local e nacional em que estão inseridos) se expressam e são analisadas a partir de narrativas de memória.

A formulação de Fodor sobre a etnicidade enquanto investimento e escolha – e não como conexão normativa com outros indivíduos que partilham a mesma origem étnica – baseia-se na suposição de que, para indivíduos racialmente brancos, a etnicidade só exerce um papel se os sujeitos assim o desejarem. Diferentemente de outros grupos sociais para os quais a etnicização e a racialização são inevitáveis – consideremos, no contexto americano, o caso dos “latinos” e dos negros –, para os indivíduos analisados por Fodor – americanos brancos plenamente assimilados – a etnicidade se apresenta sob o signo da invisibilidade e da ausência de marcas. Nesse sentido, a formulação de Fodor mostra afinidades com a ideia de “branquitude”, que adquiriu notória projeção nos debates recentes no campo das ciências sociais. De acordo com Schucman (2012)14 SCHUCMAN, Lia V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. 122 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., a branquitude refere-se à crença de que o branco não possuiria atributos raciais ou étnicos; a racialização, assim, seria pertinente apenas a sujeitos não brancos.

A concepção de etnicidade relaciona-se diretamente ao terceiro conceito central da obra, a subjetividade. Fodor emprega o termo “subjetividade étnica” para demarcar uma distinção em relação à noção de identidade, enfatizando a dimensão individual e “voluntária” da etnicidade. A subjetividade, termo de origem pós-estruturalista, refere-se “ao retrato complexo do self que construímos na linguagem das histórias” (p. 29, tradução livre), que se baseia no estabelecimento de uma identificação ou distanciamento em relação a um “outro” considerado étnico. Enquanto a identidade compreende a aceitação de um sistema de recursos culturais de uma comunidade, a subjetividade étnica implica um modo personalizado e negociado de relacionamento do sujeito com tais recursos.

O quarto e último conceito elementar do livro de Fodor refere-se à narrativa, compreendida como uma forma de organização do conhecimento e da experiência. A autora argumenta que a narrativa e a memória possuem relações recíprocas: a memória é contada como narrativa e a narrativa oferece a estrutura para a preservação e a interpretação da memória. De acordo com Fodor, a narrativa de memória representa uma interpretação do passado no presente; quando se trata de narrativas herdadas, a narrativa de memória intergeracional opera uma associação entre eventos do passado e a vida do narrador.

A análise sociolinguística de narrativas desenvolvida por Fodor ao longo da obra dá atenção a variados aspectos discursivos e linguísticos da narrativa, tais como: uso de tempos verbais; emprego de pronomes e formas de posicionamento do narrador; estrutura e tipo da narrativa (laboviana, conversacional); presença ou não de ações complicadoras e turning points; uso de storylines alternativas (sideshadowing); uso de citações ou diálogos reportados; alternância entre língua materna e língua ancestral (code-switching); estratégias para lidar com direitos à narrativa de histórias que não se viveu; controle de interpretação executado pelos narradores; influência das questões colocadas pela entrevistadora à narrativa; e técnicas narrativas usadas para lidar com ausências e com o aspecto fragmentário da memória.

No segundo capítulo, Fodor inicia sua análise de narrativas de memória intergeracional. As memórias analisadas no capítulo visam explicitar os mecanismos de construção do self étnico. A autora demonstra como a etnicidade é construída, de modo subjetivo, com base na memória dos antepassados – isto é, o self (o conceito de “si”) será construído em relação às experiências passadas de um “outro”, que faz parte do grupo familiar. O argumento de Fodor é de que a memória intergeracional é importante para a construção da subjetividade étnica, na medida em que é articulada e recontada de modo combinado com as autobiografias dos narradores. A memória envolve dois mundos de história: o mundo passado próprio dos ancestrais (storyworld) e o mundo presente do narrador (storytelling world), que são conectados através da narrativa. Segundo a autora, os narradores constroem sua subjetividade e agência ao aceitar ou rejeitar aspectos da etnicidade percebidos nas memórias herdadas; em outras palavras, a identificação étnica produzida a partir da memória intergeracional depende da atribuição de um valor – social e cultural – à etnicidade.

Um dos elementos centrais do capítulo – e da obra como um todo – é o esforço de identificação de similaridades estruturais e quadros comuns às narrativas de construção de subjetividade étnica, que formariam uma “comunidade discursivamente imaginada”, no sentido de Benedict Anderson (2008)2 ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.. No capítulo, as narrativas são organizadas em três eixos temáticos: a continuidade do self étnico através de perda e recuperação da etnicidade, que envolve memórias sobre a assimilação e a perda da cultura e da língua étnicas, bem como o esforço de recuperação da cultura de origem; a necessidade moral de conhecer e lembrar o que aconteceu com os antepassados; e o papel de objetos (memorabilia) de propriedade dos ancestrais na construção da memória intergeracional.

No terceiro capítulo, Fodor analisa narrativas que relacionam histórias de vida do narrador com memórias sobre a experiência de assimilação dos antepassados, visando compreender como narrativas sobre assimilação influenciam a construção da subjetividade dos narradores. A assimilação é compreendida como a integração social, cultural e linguística na sociedade receptora. Em diálogo com a literatura sociológica sobre assimilação – conceito indissociável da noção de etnicidade, compreendida nesse momento como uma fronteira virtual estabelecida pelos indivíduos –, Fodor argumenta que o termo se refere à mudança que leva tendencialmente ao declínio da distinção étnica, mas não necessariamente à sua eliminação. Lançando mão da teoria da assimilação proposta pelos sociólogos Alba & Nee (1997)1 ALBA, Richard; NEE, Victor. Rethinking assimilation theory for a new era of immigration. International Migration Review, v. 31, n. 4, p. 826-874, 1997. https://doi.org/10.2307/2547416
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, a autora aponta o caráter bidirecional da assimilação, que pode ocorrer nos dois lados da fronteira étnica, isto é, tanto no grupo minoritário quanto no grupo majoritário.

As narrativas analisadas pela autora dialogam com dois discursos históricos sobre a assimilação nos Estados Unidos: o antigo cânone da teoria da assimilação (pré-1965), de caráter normativo e que apontava a necessidade de assimilação, compreendida como um processo irreversível, inevitável e não negociado; e o novo cânone sociológico da assimilação (pós-1965 e movimento dos direitos civis), que considera a raça e a etnicidade como identidades que representam fontes alternativas de valor e de conhecimento, compreendendo a assimilação como um processo dinâmico, bidirecional e negociado, que não impossibilita investimento em termos de etnicidade, independentemente da posição geracional e temporal de um sujeito em relação ao imigrante.

No quarto capítulo, Fodor complexifica e explicita o diálogo da obra com o campo da história, através de uma exploração acerca das relações entre memória e história. O objetivo é analisar narrativas construídas na interface entre cronologias históricas oficiais e interpretações pessoalizadas e individuais da experiência histórica. Segundo a autora, o conhecimento histórico opera como um recurso cultural – uma espécie de “repositório” – para a construção de narrativas de memória individual e coletiva. Ademais, os narradores utilizam contextualizações históricas para contrabalançar a falta de detalhes e a fragmentação da memória.

No capítulo, Fodor reenquadra a memória intergeracional como um senso da história ou “consciência histórica” – no sentido de Reinhart Koselleck –, isto é, como uma apreensão de eventos entre duas temporalidades: o tempo natural (a posição de um evento no tempo do relógio) e o tempo histórico (a temporalidade subjetiva do evento). Nas narrativas sobre o envolvimento de antepassados na história, os descendentes interconectam presente, passado e futuro, através de uma interpretação contemporaneizada dos acontecimentos.

As memórias analisadas no capítulo, de alto componente traumático, tratam da experiência de ancestrais como testemunhas, vítimas ou perpetradores em eventos históricos, procurando justificar e compreender as escolhas dos antepassados, que servem simultaneamente à justificação da pertença reivindicada ou não pelo descendente a um grupo étnico. Os principais macroeventos históricos referenciados pelas narrativas são as duas guerras mundiais, a Grande Depressão e a Revolução Húngara de 1956.

O quinto capítulo aborda a geografia da memória, a partir do conceito de “lugar de subjetividade étnica”, que se refere a lugares que os sujeitos relacionam à sua ancestralidade étnica, produzindo laços emocionais e psicológicos que tornam o local significativo. Segundo Fodor, verifica-se a produção de um “senso de lugar” em relação a locais geográficos, que pode ser compreendido como a relação e o entendimento personalizado que indivíduos e grupos estabelecem com os lugares. As memórias analisadas envolvem quatro tipos de lugares: a terra natal ancestral dos antepassados; viagens às raízes, isto é, visitas temporárias ao país do antepassado imigrante, que compreende também a dimensão do turismo étnico; o bairro étnico (ou “enclave”), onde os antepassados iniciaram a vida no país receptor; e o lugar de patrimônio étnico, a saber, novos lugares estabelecidos por descendentes heterolocalizados especificamente para a prática da herança étnica – como centros culturais e clubes, que promovem festas e eventos.

No sexto e último capítulo, Fodor volta-se ao problema da tradição, estabelecendo um diálogo com alguns dos principais estudiosos do tema, como Eric Hobsbawm (Hobsbawm; Ranger, 19847 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence O. (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.) e Jan Assmann. Tradições são compreendidas como roteiros de práticas culturais às quais os membros de uma comunidade se relacionam através de narrativas; isto é, a tradição é uma plataforma de identificação transmitida através de gerações. A tradição é uma experiência definida a partir da intersecção paradoxal entre conhecimento estático de práticas culturais roteirizadas e o processo dinâmico de transmissão desse conhecimento. O capítulo considera como os sujeitos definem, praticam ou rejeitam tradições como uma fonte de capital simbólico; segundo a autora, uma tradição é transmitida apenas se os sujeitos a consideram valiosa. As memórias analisadas versam sobre dois temas: comida étnica, um dos aspectos mais duradouros das tradições; e rituais e celebrações comunitárias que se relacionam à etnicidade dos sujeitos.

Pode-se argumentar que uma das fragilidades do trabalho de Fodor reside na aparente confusão entre os conceitos de não-dito e esquecimento. Em certas passagens da obra, a autora refere-se acertadamente ao não-dito como o silenciamento deliberado relacionado ao aspecto traumático da memória. Em outros momentos, entretanto, o não-dito faz referência à fragmentação e à incompletude características da memória intergeracional. Considerando a terminologia comumente empregada no campo da sociologia da memória, tal fenômeno seria mais adequadamente definido como esquecimento, ao passo que o não-dito (ou silêncio) se refere a experiências deliberadamente não narradas em função da impossibilidade de sua reverberação em um contexto social e histórico específico, mormente em função do seu aspecto traumático (Pollak, 201010 POLLAK, Michael. A gestão do indizível. WebMosaica, v. 2, n. 1, p. 9-49, 2010.).

A perspectiva de Fodor se baseia na análise narrativa e de discurso, visando compreender a construção narrativa da etnicidade. Tal metodologia faz pleno sentido se considerarmos que o objeto em análise são memórias narradas em situação de entrevista. Não obstante, até mesmo práticas culturais étnicas ou tradicionais são abordadas de um ponto de vista textualista, tais como eventos étnicos, comida étnica, viagens às origens etc. Nesse sentido, é válido termos em mente que o discurso não é a única possibilidade de produção e de expressão da etnicidade e da memória – consideremos, por exemplo, as festas étnicas, a dança e a música étnicas, o uso de indumentárias tradicionais, ou o papel reconhecido dos monumentos históricos e da cultura material para a preservação e a disseminação da memória e da etnicidade. No mesmo sentido, as formulações propostas por Fodor – como a dimensão do investimento e da escolha na etnicidade, aspecto mais original de seu trabalho – podem ser apropriadas e mobilizadas em pesquisas que não se baseiam em uma perspectiva narrativa ou textualista, ou que empreguem análise de discurso.

Feita essa ponderação, deve-se pontuar que a obra de Fodor constitui leitura relevante por oferecer um arsenal metodológico para a análise temática, estrutural e performática da narrativa. Esse arsenal pode auxiliar cientistas sociais interessados no fenômeno das narrativas de memória e da história oral, contribuindo para o desenvolvimento de análises mais sofisticadas sobre narrativas de experiências passadas e seu impacto na constituição de identidades, através de uma reflexão sobre a dimensão formal e estrutural da narrativa de memória. Ademais, ainda que o contexto empírico do trabalho esteja delimitado aos Estados Unidos, a obra interessa a cientistas sociais que pesquisam sociedades em que a imigração – seja europeia, ou de outros contextos geográficos – ocupa um papel formativo, como é o caso de vários países da América Latina e, sobretudo, do Brasil.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2021
  • Aceito
    06 Jul 2021
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