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Aos vírus que virão

Em sua edição de número 60 Sociologias apresenta importante contribuição ao debate sobre os impactos da pandemia para as sociedades, particularmente para o Sul global e para os segmentos desprivilegiados da população. Muito se tem publicado sobre o tema no Brasil e mundialmente – e muito resta ainda a discutir e refletir sobre a questão. Em especial, resta refletir sobre se a humanidade terá de fato aprendido as lições que essa crise proporcionou ou se a inércia de um sistema predador e de um individualismo entranhado e crescente obstará as imprescindíveis mudanças.

Algumas poucas certezas, a experiência da crise já nos deixou: o seu caráter global e o despreparo dos Estados-nação para lidar com pandemias que virão, a iniquidade dos efeitos e, por outro lado, a capacidade da ciência de buscar e encontrar solução de forma urgente, a consciência de que estamos, toda a humanidade, interconectados, pelo menos no que tange aos resultados causados pelo modo predominante de estar no mundo e de governá-lo. A certeza, enfim, da urgência de produzirem-se mudanças sistêmicas, radicais, para que o planeta e as espécies viventes que o habitam – humana inclusive – possam seguir vivendo.

Um relatório produzido pela Academia Britânica sobre os efeitos sociais de longo prazo da pandemia de Covid-19 (que, estima-se, podem estender-se por mais de uma década) coletou evidências dessas repercussões na sociedade britânica em diversas áreas a partir de uma série de estudos e análises produzidos pela comunidade de pesquisa em Ciências Sociais, Humanas e Artes. O relatório categorizou essas evidências segundo três dimensões de impacto social: saúde e bem-estar; comunidades, cultura e pertencimento; conhecimento, emprego e competências (British Academy, 2021b2 BRITISH ACADEMY. The COVID decade: Understanding the long-term societal impacts of COVID-19. Londres: The British Academy, 2021b). O documento, que é acompanhado de um relatório complementar (Shaping the COVID decade – British Academy, 2021a1 BRITISH ACADEMY. Shaping the COVID decade: Addressing the long-term societal impacts of COVID-19. Londres: The British Academy, 2021a.), pretende-se uma ferramenta conceitual e metodológica para orientar pesquisa futura e a formulação de políticas focadas na abordagem/enfrentamento desses efeitos, a maior parte dos quais, reconhece-se, são nada mais do que a agudização de tendências já existentes de vulnerabilização de determinados grupos sociais e localidades (British Academy, 2021b2 BRITISH ACADEMY. The COVID decade: Understanding the long-term societal impacts of COVID-19. Londres: The British Academy, 2021b). Iniciativas como essa dão conta da importância do engajamento das Ciências Sociais na gestão de crises desse tipo, que afetam indiscriminadamente toda a sociedade, mas com resultados desiguais sobre diferentes grupos, seja política e economicamente, seja na dimensão subjetiva da vida social, produzindo, por exemplo, formas diversas de sonhar que variam segundo o pertencimento social, fenômeno não contemplado pelo relatório da Academia Britânica tampouco pelo dossiê que ora apresentamos ao leitor e à leitora, mas que, por outro lado, inegavelmente nos inspirou a refletir sobre este outro, até certo ponto, inusitado efeito da pandemia.

Em tempos de pandemia, como diz a filósofa Judith Butler, “ar, água, abrigo, vestimenta e acesso à saúde são fontes de angústia individual e coletiva. Mas isso tudo já estava ameaçado pela mudança climática”. Viver ou não uma vida aceitável, mais do que uma questão existencial, é uma questão econômica urgente diante das consequências fatais das desigualdades sociais (Butler, 20213 BUTLER, Judith. Creating an Inhabitable world for humans means dismantling rigid forms of individuality. Times2030. [online]. 21 abril 2021. Disponível em: https://time.com/5953396/judith-butler-safe-world-individuality/
https://time.com/5953396/judith-butler-s...
). Os liames que unem esses problemas societais tendem a se propagar e fortalecer, com impactos imprevisíveis se suas causas não forem atacadas.

Achille Mbembe defende uma mudança rumo a uma “política planetária” que deve estar associada a uma política da vida, a uma política da Terra. Tal política precisa envolver “toda a criação” – todas as pessoas indistintamente, todas as invenções ou obras da humanidade, todos os animais, plantas, micro-organismos, minerais e os corpos mistos (o que somos) – isto é, todo o universo físico e, também, “as energias espirituais e biológicas consistentes com a definição de mundo vivo” (Mbembe, 20224 MBEMBE, Achille. How to develop a planetary consciousness. Entrevista com Nils Gilman e Jonathan Blake. Noēma [online]. 11 jan. 2022. Disponível em: https://www.noemamag.com/how-to-develop-a-planetary-consciousness/
https://www.noemamag.com/how-to-develop-...
).

O aprendizado com a pandemia passa, portanto, por identificar os fatores causadores dos impactos sociais; a partir disso, por construir caminhos para a mudança e alianças capazes de desestabilizar o sistema vigente de modo a possibilitar as mudanças necessárias. Produzir conhecimento sobre as diversas dimensões dos impactos sociais e sobre os atores responsáveis pela produção/ agravamento dos fatores de impacto é um passo inicial.

O dossiê “Covid-19 e Sociedade”, organizado por Priscilla Ribeiro do Santos, apresenta esforços nesse sentido, com artigos que examinam a gestão e os impactos da pandemia sob diferentes perspectivas. Ele vem somar-se a outras iniciativas das Ciências Sociais no Brasil com o mesmo propósito e, esperamos, estimular novos debates e propostas na perspectiva de aprofundar o conhecimento e divisar caminhos que, oxalá, possam levar futuramente a uma política planetária.

A seção Artigos desta edição apresenta contribuições sob variadas perspectivas da pesquisa sociológica. Abrindo a seção, em trabalho envolvendo pensamento social no Brasil, Marcos Chor Maio e Thiago da Costa Lopes examinam a dimensão política expressa na obra de Donald Pierson, figura proeminente na institucionalização das ciências sociais no Brasil entre as décadas de 1930 e 50. Os autores argumentam que, embora a produção de Pierson estivesse focada em uma agenda acadêmica e o intelectual, em seu discurso, fizesse uma defesa cabal da separação entre ciência e política, sua obra traz, subjacentes, valores sociais e imbricação com questões candentes da agenda política da época. Assim, a adequada compreensão dos esforços empreendidos por Pierson para estabelecer as fronteiras do que denominou de sociologia científica requer uma análise desses pressupostos que sustentavam sua visão sobre a natureza da ciência e da sociedade e que teriam suas raízes em uma visão reformista e liberal-democrática do mundo.

Desde o contexto de Portugal, Sofia Marques da Silva, Nicolas Martins da Silva e Sara Pinheiro examinam as culturas de participação de jovens estudantes do ensino secundário e residentes em regiões de fronteira, marcadas por desigualdades econômicas, sociais e culturais. Por meio de pesquisa empírica que envolveu mais de 3.900 jovens de 38 diferentes municípios, as autoras e o autor observam a pouca diversidade de espaços de participação disponíveis aos jovens, com predomínio de atividades esportivas, o que impacta os níveis de participação e de envolvimento comunitário das pessoas jovens e diferenças nas formas de participação entre os gêneros.

Bruna Cristina Jaquetto Pereira e João Paulo Siqueira apresentam resultados de pesquisa empírica que buscou identificar os impactos da raça/cor ou do gênero da pessoa que conduz uma entrevista em pesquisas sobre a autodeclaração de raça/cor de participantes. Os resultados apontam um efeito complexo tanto da raça/cor da pessoa pesquisadora quanto de seu gênero na forma como as pessoas entrevistadas designam a si mesmas.

A relação entre movimentos sociais e Estado é examinada por Claudia Cecilia Arce Cuadros, tomando por caso de estudo a Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias ‘Bartolina Sisa’, da Bolívia, conhecidas como as Bartolinas, e as dinâmicas conflitivas do movimento camponês indígena com o Estado boliviano. A autora argumenta que as Bartolinas emergiram na cena política ao aproveitar uma ruptura no movimento camponês indígena e promover sua própria autorrepresentação num contexto político de disponibilidade para sua participação. O movimento logrou a criação de um instrumento político que lhe permitiu ascender às instituições estatais, embora com poder restrito de incidência. Para Arce Cuadros, o deslocamento das organizações e a maior centralidade, na última década, do instrumento político criado atualizaram o dilema da autonomia do movimento camponês.

A sexualidade como expressão da dominação masculina é discutida por Luís Felipe Miguel ao analisar a obra da jurista feminista Catharine MacKinnon, com foco na recusa contundente da pensadora em relação à noção liberal de “consentimento” que, segunda ela, não pode ser aceita sem a consideração de suas condições de produção, as quais, muitas vezes, encobrem uma postura de resignação ante uma cultura introjetada de padrões de dominação. Identificando um componente de radicalidade no pensamento de MacKinnon, e discutindo a imprecisão do rótulo “feminismo radical”, Miguel desenvolve uma apresentação crítica das ideias de MacKinnon, buscando esclarecer as potencialidades e os limites do rechaço à noção liberal do “consentimento”. Perpassando a obra de MacKinnon em diálogo com diversas autoras e correntes do pensamento feminista, Miguel conclui que, apesar de lançar luzes sobre aspectos importantes da dominação, a feminista faz uma discussão excessivamente simplificada sobre a autonomia na agência social.

No último artigo da seção, Andréa Maria Silveira analisa a relação entre monitoração eletrônica e reincidência criminal por meio de uma revisão da produção sobre o tema, publicada no período de 2001 a 2021, com vistas a identificar os fundamentos teóricos que sustentam a defesa de um potencial efeito de redução do recidivismo pelo uso da monitoração eletrônica. Os resultados apontam um número reduzido de estudos abrangentes, cujos resultados são divergentes e não permitem sustentar a tese de que a monitoração eletrônica reduz a recidiva criminal.

Na seção Interfaces, Elizabeth Ruano Ibarra e Viviane Resende desenvolvem uma abordagem histórica comparativa focada nos movimentos de independência do colonialismo ibérico sob uma perspectiva da agência de mulheres – estas geralmente ignoradas na historiografia hegemônica sobre os processos de independência. Comparando trajetórias políticas de mulheres que lutaram por libertar seus países do jugo da coroa espanhola e de brasileiras que se engajaram no processo de independência do Brasil da coroa portuguesa, as autoras buscam dar visibilidade ao poder de agência dessas mulheres, alcançado por meio de transgressões do sistema patriarcal vigente, e “ampliar as possibilidades de compreensão, principalmente sobre a produção dos apagamentos no campo científico”. E convidam “a repensar nosso envolvimento pessoal com a ação política feminista em sociedades pretensamente democráticas, porém esmagadoras da diversidade”.

A seção Resenhas, por sua vez, apresenta análises de duas obras que, postas lado a lado, bem ilustram o abismo entre perspectivas do Norte e do Sul globais ou de sociedades colonizadoras, desenvolvidas e de alta renda e aquelas colonizadas, que jamais logram libertar-se da exploração e dos estigmas.

Na resenha elaborada por Kaciano Barbosa Gadelha, que lamentavelmente já não verá seu trabalho publicado, em coautoria com Francisco Rômulo do Nascimento Silva, imergimos numa primorosa discussão do ensaio Politiques de l'inimitié, de Achille Mbembe, de 2016, publicada em 2020 no Brasil pela n-1 edições, com o título Políticas da inimizade. A resenha discute o ensaio em diálogo com outras obras do intelectual camaronês, apresentando sua visão de um mundo caracterizado como uma “sociedade de inimizade”. Segundo os autores, “a obra Políticas da inimizade rascunha um mundo marcado pelo desejo por zoneamentos, fortificações, bodes expiatórios, partilha assimétrica de anátemas, conclaves e excomunhões de todas as espécies”.

Já a resenha apresentada por Tania Maria Schroeder, Claudia Barcelos de Moura Abreu e Fabio Lopes Alves analisa o livro Être postmoderne, do sociólogo francês Michel Maffesoli, publicada em 2018 pela editora Éditions du Cerf (Paris), ainda não publicado em língua portuguesa. No livro resenhado, Maffesoli defende a ideia de que a humanidade vive um momento de superação dos valores modernos e a emergência de valores pós-modernos, reafirma noções desenvolvidas em trabalhos anteriores, de uma “sociedade de tribos” e de uma cultura de compartilhamento. Segundo Schroeder, Abreu e Alves, a pós-modernidade, na visão de Maffesoli, sucede a modernidade e seus imaginários (valores que estruturam a vida coletiva), rompendo com o racionalismo, o produtivismo e o desencantamento do mundo característicos da modernidade. A resenha destaca na obra uma visão otimista – segundo as autoras e autor, “diferentemente do individualismo que marcou a economia moderna, as tribos e as comunidades ressurgem nos compartilhamentos de casas, de carros, de escritórios etc. ‘Estar com’ é uma marca fundamental de um societal participativo, colaborativo, mutualista”.

Dois modos de olhar o mundo e o futuro, informados por contextos e trajetórias radicalmente diversos.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura, almejando que a edição estimule o debate para aprofundamento das análises sobre os temas aqui apresentados. Os Editores

Referências

  • 1
    BRITISH ACADEMY. Shaping the COVID decade: Addressing the long-term societal impacts of COVID-19. Londres: The British Academy, 2021a.
  • 2
    BRITISH ACADEMY. The COVID decade: Understanding the long-term societal impacts of COVID-19. Londres: The British Academy, 2021b
  • 3
    BUTLER, Judith. Creating an Inhabitable world for humans means dismantling rigid forms of individuality. Times2030 [online]. 21 abril 2021. Disponível em: https://time.com/5953396/judith-butler-safe-world-individuality/
    » https://time.com/5953396/judith-butler-safe-world-individuality/
  • 4
    MBEMBE, Achille. How to develop a planetary consciousness. Entrevista com Nils Gilman e Jonathan Blake. Noēma [online]. 11 jan. 2022. Disponível em: https://www.noemamag.com/how-to-develop-a-planetary-consciousness/
    » https://www.noemamag.com/how-to-develop-a-planetary-consciousness/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022
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