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As sociologias da pandemia: contribuições sobre a Covid-19 e sociedade

The sociologies of pandemics: contributions on Covid-19 and society

Resumo

A pandemia da Covid-19 é um evento global sem precedentes, cujos efeitos se prolongarão no tempo nas mais diversas esferas da vida em sociedade. Este dossiê visa superar a descrição dos acontecimentos e avançar na análise empírica sobre os efeitos da pandemia pelo enfrentamento das incertezas, teóricas e metodológicas que atravessam distintas agendas de pesquisas. Apresentamos artigos que, de forma plural e complementar, discutem o papel do Estado na gestão da crise sanitária, a (re)produção de desigualdades, os usos da ciência e as mudanças socioculturais no contexto pandêmico.

Palavras-chave
Covid-19; sociedade; pandemia; sociologia

Abstract

The Covid-19 pandemic is an unprecedented global event whose effects will extend over time in the most diverse spheres of life in society. This dossier aims to go beyond description of events and advance the empirical analysis of the effects of the pandemic by facing the theoretical and methodological uncertainties that cross different research agendas. It presents articles that, in a plural and complementary way, discuss the role of the State in the tackling the health crisis, the (re)production of inequalities, the uses of science and sociocultural changes in the pandemic context.

Keywords
Covid-19; society; pandemics; sociology

Pandemias são acontecimentos singulares e imprevisíveis, cujos efeitos se prolongam ao longo do tempo. Como e quem estabelece o início e o término de uma pandemia? Como se dá o enquadramento da doença, tanto em termos sociais, quanto biológicos? São questões atuais que têm mobilizado diferentes áreas do conhecimento. Para além dos efeitos biológicos, epidemias têm efeitos sociais, culturais, econômicos e políticos. Não à toa, as epidemias deixaram de ser objeto exclusivo de epidemiologistas e médicos e passaram a ter maior interesse por parte dos cientistas sociais. Se, em condições não extraordinárias, o tempo biomédico e o tempo social apresentam distintas dinâmicas, é durante epidemias ou pandemias que eles convergem em algum ponto (Hochman, 202112 HOCHMAN, Gilberto. Quando e como uma doença desaparece. A varíola e sua erradicação no Brasil, 1966/1973. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 21, p. 103-128, 2021. https://doi.org/10.20336/rbs.787
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).

Diferentemente de outras epidemias, pela primeira vez, a transmissão de um novo coronavírus ocorreu simultaneamente em diversos continentes, demonstrando o alcance e a intensidade de nossas conexões e interdependências. O contágio se expandiu rapidamente, sinalizando que os efeitos de curto prazo seriam intensos e se prolongariam ao longo do tempo em escala global. Após dois anos da notificação do primeiro caso, alcançamos a triste marca de cinco milhões de óbitos oficialmente registrados. Porém, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), considerando a subnotificação em diversos países e as mortes causadas por efeitos indiretos da crise sanitária, é possível que o total de mortos da Covid-19 chegue a 15 milhões (Grimley et al., 20229 GRIMLEY, Naomi et al. Número real de mortes por covid no mundo pode ter chegado a 15 milhões, diz OMS. BBC News Brasil, 5 maio 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61332581
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). Frente a isso, toda reflexão, individual ou coletiva, sobre os efeitos da pandemia pode servir como singela homenagem àqueles(as) que perderam a vida.

Devido à sua magnitude e singularidade, a pandemia é vista como “um acontecimento crítico global que marca uma inflexão histórica” (Bringel; Pleyers, 20206 BRINGEL, Breno; PLEYERS, Geoffrey. Introdución: la pandemia y sus ecos globales. In: BRINGEL, B.; PLEYERS, G. (ed.). Alerta global. Políticas, movimientos sociales y futuros em disputa en tiempos de pandemia. Buenos Aires: CLACSO, 2020. p. 9-34., p.11). Sendo assim, refletir sobre suas causas implica compreender a conjuntura na qual o capitalismo mostra sua face mais devastadora pelo esgotamento dos recursos naturais e pela emergência climática e ambiental. Exatamente nesse sentido, Latour (2020)13 LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Bruno Latour, 29 maio 2020. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS_2.pdf
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concebe a pandemia da Covid-19 não como mera crise, mas como uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Ainda que as dúvidas sobre o futuro superem as certezas, os efeitos da Covid-19 se estenderão e novas epidemias são ameaças reais e iminentes. Por isso, questionar regimes de normalidade e reinventar nossa experiência dependem menos da pandemia em si e mais das disputas políticas acerca do futuro que queremos.

Os debates intelectuais e políticos têm oscilado entre o otimismo e o pessimismo em relação aos efeitos da pandemia (Bringel; Pleyers, 20206 BRINGEL, Breno; PLEYERS, Geoffrey. Introdución: la pandemia y sus ecos globales. In: BRINGEL, B.; PLEYERS, G. (ed.). Alerta global. Políticas, movimientos sociales y futuros em disputa en tiempos de pandemia. Buenos Aires: CLACSO, 2020. p. 9-34.). Entre os otimistas, prevalece a ideia de que pandemia teria gerado aprendizagens positivas, novas formas de solidariedade e de ação coletiva. Já para os pessimistas ganha ênfase a denúncia do agravamento de processos que já estavam em curso, a exemplo do aprofundamento das desigualdades, da deterioração das condições de vida e do fortalecimento dos dispositivos de controle. Ainda que ambos os argumentos sejam válidos, Bringel e Pleyers (2020)6 BRINGEL, Breno; PLEYERS, Geoffrey. Introdución: la pandemia y sus ecos globales. In: BRINGEL, B.; PLEYERS, G. (ed.). Alerta global. Políticas, movimientos sociales y futuros em disputa en tiempos de pandemia. Buenos Aires: CLACSO, 2020. p. 9-34. alertam para o caráter contraditório do atual momento histórico, uma vez que a pandemia pode tanto representar perigos e riscos, quanto oportunidades.

Enquanto a pandemia avançava, coube aos cientistas sociais produzir reflexões críticas que desafiassem a ideia de volta à normalidade. Diante da insegurança, do prolongado isolamento, do medo da morte iminente e da perda de afetos, a reflexão, o diálogo e a escrita sociológica se tornaram refúgios. A organização de dossiês, a articulação de redes internacionais de pesquisa, a realização de webinários, a escrita de boletins e a publicação de livros e artigos demonstram a vitalidade das Ciências Sociais no Brasil e seu interesse em contribuir ao debate público sobre as implicações da pandemia para a vida em sociedade. Ademais, tais iniciativas só foram possíveis pelo engajamento e pela resiliência dos(as) pesquisadores(as) brasileiros(as) que, mesmo diante da concomitância de um contexto adverso de ataques às humanidades, de desvalorização e de desfinanciamento da ciência, mobilizaram teorias e metodologias para compreender os desafios do tempo presente. Este dossiê soma-se a esses esforços. Com a seleção dos manuscritos, nosso intuito foi superar a descrição dos acontecimentos e avançar na análise empírica sobre os efeitos da pandemia pelo enfrentamento das incertezas, teóricas e metodológicas, que atravessam distintas agendas de pesquisas. Mais do que buscar respostas, nos unimos àqueles(as) que buscam qualificar as perguntas de modo a colocar à prova nossos conceitos, teorias, métodos e técnicas (Brasil Jr. et al., 20215 BRASIL JR., Antonio; BITTENCOURT, Andre; HOELZ, Maurício. Apresentação: Dossiê Especial Sociologia e Antropologia. Sociologia e Antropologia, v. 11, n. esp., p. 5-6, 2021.).

Diferentes enquadramentos teóricos têm sido mobilizados para compreender sociologicamente os efeitos da pandemia. Rodrigues e Costa (2021)16 RODRIGUES, Léo P.; COSTA, Éverton G. da. Impacto da pandemia de Covid-19 ao sistema social e seus subsistemas: reflexões a partir da teoria social de Niklas Luhmann. Sociologias, v. 23, n. 56, p. 302-335, 2021. https://doi.org/10.1590/15174522-102859
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resgatam a teoria social de Niklas Luhmann para compreender os impactos da pandemia sobre os sistemas sociais, entendendo a crise sanitária como uma rede de perturbações que afeta a estabilidade dos sistemas e dos subsistemas sociais em escala global. De acordo com o autor alemão, os sistemas se comportam como unidades autônomas, auto-organizadas e autorreferenciadas, que se diferenciam e operam de acordo com uma lógica própria. Quando sistemas sociais passam a funcionar cada vez mais acoplados estruturalmente uns aos outros, como no caso da sociedade global, mudanças estruturais em um sistema podem provocar perturbações nos demais. Na tentativa de minimizar os ruídos e manter a estabilidade, os sistemas do entorno se adaptam e se reestruturam (Luhmann, 201615 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis: Vozes, 2016.).

Dadas a complexidade e a multidimensionalidade da pandemia, uma das vantagens da abordagem sistêmica seria compreender como cada sistema social foi impactado e quais efeitos essa rede de perturbações provocou nos demais sistemas do entorno (Rodrigues; Costa, 202116 RODRIGUES, Léo P.; COSTA, Éverton G. da. Impacto da pandemia de Covid-19 ao sistema social e seus subsistemas: reflexões a partir da teoria social de Niklas Luhmann. Sociologias, v. 23, n. 56, p. 302-335, 2021. https://doi.org/10.1590/15174522-102859
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, p. 333). Ainda que, inicialmente, o sistema de saúde tenha sido o primeiro a sofrer perturbações pela velocidade do contágio e pela letalidade do vírus, os demais sistemas como o econômico, o político, o educacional e o de ciência também foram afetados. No entanto, seria graças à capacidade de adaptação às perturbações e às mudanças que, em um contexto excepcional, o funcionamento dos diversos sistemas não foi posto em xeque.

Os dois primeiros anos da pandemia geraram curvas de aprendizado, tanto para os indivíduos quanto para as instituições. Assim como aprendemos novas práticas e readequamos antigas, também as instituições tiveram de se adaptar rapidamente às mudanças e mobilizar o estoque de capacidades acumuladas ao longo do tempo para modificar e produzir políticas públicas em um contexto atípico. Mesmo países de renda média elevada, que poderiam estar mais preparados para os impactos da crise sanitária em seus sistemas de saúde e de proteção social, foram afetados e tiveram de construir respostas rápidas nas mais diversas áreas (Greer et al., 20218 GREER, Scott L. et al. (ed.). Coronavirus politics: the comparative politics and policy of Covid-19. Ann Harbor: University of Michigan Press, 2021. https://doi.org/10.3998/mpub.11927713
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).

Na América Latina, por exemplo, onde o avanço do neoliberalismo nos tempos recentes reduziu o papel do Estado na promoção de bem-estar à população, a chegada de um vírus letal se associou ao agravamento da pobreza e das desigualdades, afetando indivíduos e grupos de formas muito distintas. Na ausência de vacinas e de tratamentos farmacológicos eficazes, sob orientação da OMS, o distanciamento social e o uso de máscaras foram as principais medidas adotadas para tentar frear o contágio durante o primeiro ano. Porém, a suspensão de grande parte das atividades econômicas provocou o aumento do desemprego e a perda de renda entre a população mais pobre. Em países cujo peso do setor informal na economia é maior, a exemplo do Brasil, os efeitos socioeconômicos da crise sanitária foram ainda mais drásticos pelo aumento da pobreza, do desemprego e da insegurança alimentar e nutricional.

Ainda que o vírus tenha atingido todos os países, as formas pelas quais indivíduos e grupos foram afetados variaram drasticamente de lugar a lugar (Barria Assenjo et al., 20212 BARRIA-ASENJO, Nicol A. et al. Deglobalize Covid-19: the pandemic from an off-center perspective. Sociedade e Estado, v. 36, n. 3, p. 967-987, 2021.). Por mais que haja um efeito equalizador de generalização das ameaças à vida na sociedade de risco (Beck, 20103 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.), situações de riscos, intersecções de classe, raça e gênero se sobrepõem, agravando ainda mais o quadro de desigualdades. Cada país teve de enfrentar a associação de um vírus mortal com seus legados históricos e com uma conjuntura internacional desfavorável, caracterizada por retrocessos democráticos, realinhamento da extrema-direita, propagação de fake news, desmantelamento dos serviços públicos, racismo estrutural e acirramento da violência contra a população negra. Enfim, trata-se de um fenômeno complexo e não localizado, cujos efeitos têm variado em virtude de uma multiplicidade de fatores.

Compreender o nexo entre a ação governamental e a evolução da crise sanitária possibilita identificar as diferentes trajetórias da pandemia. A forma como os governos a enfrentaram variou internacionalmente, sendo que o tempo de resposta, o escopo e a abrangência das medidas foram dissonantes e, por vezes, até contraditórias entre os governos nacionais e os subnacionais. Até o momento, as investigações empreendidas buscaram explicar o desempenho dos governos na mitigação dos efeitos da pandemia pela análise de múltiplos fatores, tais como: as capacidades institucionais prévias em cada área de política pública, a coordenação de ações entre os diversos níveis de governos, a capacidade regulatória, o papel das lideranças políticas, a experiência acumulada no combate a epidemias, a pressão de grupos de interesse, a adesão da população às medidas de distanciamento e ao uso de máscaras, o apoio à democracia, entre outros (Greer et al., 20218 GREER, Scott L. et al. (ed.). Coronavirus politics: the comparative politics and policy of Covid-19. Ann Harbor: University of Michigan Press, 2021. https://doi.org/10.3998/mpub.11927713
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; Hale et al., 202111 HALE, Thomas et al. Variation in government responses to COVID-19. BSG-WP-2020/032. Version 12.0. BSG Working Paper Series, University of Oxford, jun. 2021. Disponível em: https://www.bsg.ox.ac.uk/research/research-projects/covid-19-government-response-tracker
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; Abrucio et al., 20201 ABRUCIO, Fernando Luiz et al. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Revista de Administração Pública, v. 54, n. 4, p. 663-677, 2020.; Gonzalez-Bustamante, 202010 GONZÁLEZ-BUSTAMANTE, Bastián. Evolution and early government responses to COVID-19 in South America. World Development, v. 137, 2021. https://doi.org/10.1016/j.worlddev.2020.105180
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). Contudo, identificar quais fatores importam mais na explicação das diferentes trajetórias da pandemia irá orientar as agendas de pesquisas nas Ciências Sociais sobre o tema nos próximos anos.

Outras pesquisas buscam lançar luz sobre o processo de tomada de decisões em políticas públicas, considerando o contexto de informações escassas, no qual o tempo importa para a contenção do contágio e a prevenção de mortes. Para Lipscy (2020)14 LIPSCY, Phillip Y. COVID-19 and the politics of crisis. International Organization, v. 74 s. 1, 2020, p. E98-E127. https://doi.org/10.1017/S0020818320000375
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, por exemplo, a política da Covid-19 consiste em uma política da crise, uma vez que as lideranças políticas passam a tomar decisões de alto risco em condições de ameaça, incerteza e urgência. Interessado nas causas, nos padrões de resposta e nas mudanças em políticas públicas, o autor questiona por que alguns governos não implementam políticas para prevenir crises ou mitigar seus potenciais efeitos.

Epidemias como a da SARS, do Zika vírus e do Ebola alertaram governos quanto à necessidade de desenvolver estratégias de gerenciamento e prevenção dos riscos associados às emergências de saúde global. Estratégias preventivas envolvem a antecipação de danos previsíveis e iminentes. No caso das epidemias, os riscos não se esgotam em efeitos e danos ocorridos, mas reúnem um componente futuro, que poderá mobilizar a atenção da sociedade e dos governos de acordo com a percepção socialmente construída acerca das ameaças. No entanto, a adoção de medidas preventivas envolve custos financeiros e políticos que nem todos os governantes estão dispostos a pagar. Lipscy (2020)14 LIPSCY, Phillip Y. COVID-19 and the politics of crisis. International Organization, v. 74 s. 1, 2020, p. E98-E127. https://doi.org/10.1017/S0020818320000375
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argumenta que tanto a imprevisibilidade das crises, quanto o reduzido apoio dos eleitores e policymakers aos elevados custos de prevenção dificultam a ação dos governos, sendo que estes têm optado por enfrentar custos ainda maiores quando as crises eclodem. Diante da ausência de medidas preventivas eficazes para frear o contágio de uma infecção viral com alta transmissibilidade, os custos da pandemia rapidamente se mostraram elevadíssimos.

Com base nos estudos sobre a formação de agenda em políticas públicas, Felipe Brasil e colaboradores (2021)4 BRASIL, Felipe G.; CAPELLA, Ana Cláudia N.; FERREIRA, Leandro T. Eventos focalizadores e a pandemia da COVID-19: a renda básica emergencial na agenda governamental brasileira. Revista de Administração Pública, v. 55, n. 3, p. 644-661, 2021. https://doi.org/10.1590/0034-761220200619
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entendem a pandemia da Covid-19 como um evento focalizador, cujas características podem potencializar mudanças nas políticas públicas. O foco da investigação dos autores foi a criação do Auxílio Emergencial como solução aos efeitos socioeconômicos da crise no Brasil. Tal como um evento focalizador, a pandemia permitiu a rápida inclusão do tema na agenda governamental e a seleção de uma alternativa viável para o problema da perda de renda, em que pese a tentativa por parte do Governo Federal de minimizar a gravidade do vírus. Ao resgatar as contribuições de John Kingdon e Thomas Birkland, os autores definem eventos focalizadores como acontecimentos repentinos, raros e imprevisíveis que despertam o interesse por parte da sociedade e dos governos. Eventos de grande magnitude, como desastres e crises, rapidamente modificam a percepção e a definição dos problemas que demandam resposta governamental.

A cobertura midiática cumpre importante papel não apenas na atenção e na mobilização da opinião pública, mas na construção simbólica do quadro de singularidade dos eventos pelo compartilhamento acelerado de informações, imagens, estatísticas e indicadores. No Brasil, por exemplo, a magnitude e a dramaticidade da crise foram diariamente construídas nos telejornais por números e representações gráficas sobre a evolução do contágio e por imagens dramáticas que registravam o esvaziamento das cidades, a superlotação dos hospitais e a abertura de covas coletivas em diversas cidades. Adicionalmente, a ação deliberada do Governo Federal de não mais coletar e compilar os dados de contágio e mortes por Covid em maio de 2020 motivou a criação de um “consórcio de veículos de imprensa”, o qual passou a fazer diariamente a coleta direta dos dados junto aos estados da federação (Consórcio, 20227 CONSÓRCIO de veículos de imprensa completa dois anos. Folha de S. Paulo, 8 jun. 2022. Disponível em: https://folha.com/y6vaxc2i
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).

Ainda que os usos sociais e políticos de indicadores possam variar em virtude dos objetivos e interesses em jogo nas arenas decisórias de políticas públicas, os números da pandemia dão magnitude a um fenômeno até então sem precedentes. Além disso, a publicização de dados de painéis de monitoramento serviu para a informação sobre a alta transmissibilidade e letalidade do vírus de modo a incentivar a adesão às medidas de distanciamento social, ao uso de máscaras e, posteriormente, à vacinação, sobretudo, em localidades onde a retórica negacionista e antivacina orientou as ações dos governos. O artigo de Claudia Daniel, Natalia Marchesini e Cecilia Lanata-Briones, neste dossiê, aborda o papel das estatísticas durante a pandemia.

Este dossiê apresenta artigos que, de forma plural e complementar, discutem o papel do Estado na gestão da crise sanitária, a (re)produção de desigualdades, os usos da ciência e as mudanças socioculturais no contexto pandêmico.

Com “A governança global da Covid-19 e as ações emergenciais de países de renda baixa e média”, Letícia Schabbach, por meio de análise de regressão logística, examina a chance de um país com as características mencionadas ser aprovado no Programa de Resposta à Crise do Banco Mundial, a partir das capacidades estatais preexistentes. O programa, lançado em abril de 2020 com vigência até junho de 2021, previa a possibilidade de países receberem recursos financeiros para ações emergenciais de enfrentamento à Covid-19 mediante a apresentação de projetos. Entre os resultados, foi evidenciado que as chances de aprovação de projeto aumentam quanto maiores sejam a média anual de projetos anteriormente aprovados junto à instituição financeira e a renda per capita do país.

No artigo “Estadísticas y gestión política del primer año de pandemia de Covid-19 en Argentina”, Claudia Daniel, Natalia Marchesini e Cecilia Lanata-Briones discutem a importância que adquiriram as estatísticas da Covid-19 na gestão política da emergência sanitária estabelecida a partir de março de 2020, salientando, de um lado, as mediações técnicas, médico-legais e burocráticas em torno da produção da dados, mas também como o uso desses dados funciona para conferir legitimidade à autoridade política.

As controvérsias e disputas em torno das políticas de saúde, especialmente marcadas pelo fenômeno do negacionismo, são abordadas por Daniel Edler Duarte e Pedro Benetti em “Pela Ciência, contra os cientistas?” Tendo como foco as divergências por parte das autoridades no Brasil sobre as formas de tratamento e os efeitos das estratégias de distanciamento social frente à Covid-19, os autores analisam os usos da ciência durante a pandemia. A discussão situa-se no campo de estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade e contribui para desvelar o jogo de poder epistêmico indissociável da “batalha ideológica” que configura o debate contemporâneo sobre pós-verdade.

Com o artigo “Os trabalhadores em meio à Covid-19 no Brasil: flexibilidade, precariedade e mobilização internacional”, Iuri Tonelo, Leonardo Mello e Silva e Ricardo Framil Filho direcionam o enfoque para as relações de trabalho no contexto da pandemia, partindo do argumento de que a crise pandêmica exacerbou as tendências recentes de transformação nas esferas da produção e da regulação trabalhista, com especial impacto para relações de emprego e trabalho nas plataformas digitais que operam sob a lógica do “trabalho sob demanda”. A análise ampara-se em trabalho empírico de pesquisa com entregadores de diferentes estados brasileiros durante a paralisação nacional por eles promovida em julho de 2020, e aponta as formas emergentes de sua organização coletiva, as quais envolveram articulações internacionais estabelecidas para além dos arranjos tradicionais de representação sindical.

Em “Limpar o mundo em tempos de Covid-19: trabalhadoras domésticas entre a reprodução e a expropriação social”, Alessandra Teixeira e Priscila dos Santos Rodrigues propõem uma reflexão sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil no marco da recente crise pandêmica provocada pelo novo coronavírus. O esforço analítico ampara-se em perspectivas teóricas que reposicionam as intersecções das opressões de classe, gênero e raça como elementos estruturantes do capitalismo. Partindo da constatação de que a crise econômica aprofundada pela pandemia tornou ainda mais agudas as hierarquias raciais e de gênero, tributárias da experiência da colonialidade e da escravidão, as autoras apresentam uma proposição teórica inovadora para a compreensão do trabalho doméstico remunerado, ao situá-lo no encontro de duas “condições de possibilidade” do capitalismo contemporâneo: a reprodução social e a expropriação.

Por fim, em “Desde la distancia: elementos para una sociología del contacto en un contexto de pandemia”, Gabriel Ruiz Romero e Daniel Castaño Zapata discutem a reconfiguração das interações sociais motivada pelo distanciamento físico imposto pela pandemia da Covid-19. Com base no trabalho de campo à distância, os autores exploram a perda da dimensão háptica nas relações afetivas e/ou amorosas e concluem que, no contexto pandêmico, foi possível identificar as condições de possibilidade dessas interações, revelando-as não apenas como intersubjetivas, mas também definidas por outros agentes que determinam sua ecologia.

Os artigos aqui apresentados foram selecionados a partir de uma chamada extraordinária que superou positivamente nossa expectativa inicial. A qualidade das reflexões oferecidas demonstra o vigor e a relevância da Sociologia na tentativa de contribuir com a compreensão desta mais nova dimensão – as pandemias globais – que sobrecarrega os desafios dos tempos que vivemos. Esperamos que a leitura seja tão proveitosa quanto o foi sua preparação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2022
  • Aceito
    07 Ago 2022
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