Acessibilidade / Reportar erro

Michel Maffesoli e as definições do contemporâneo

Michel Maffesoli and the definitions of contemporariness

MAFFESOLI, Michel. Être postmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018. 248 p.ISBN 978-2-204-12636-6

Resumo

A presente resenha analisa a obra Être postmoderne, de autoria do sociólogo Michel Maffesoli, publicada pela editora Éditions du Cerf (Paris), ainda sem tradução para a língua portuguesa. Ao longo do livro, o autor reafirma, assim como em obras anteriores, que estamos vivendo em um momento de saturação dos valores modernos e de emergência de valores pós-modernos. Être Postmoderne está estruturado em nove capítulos: 1. L’Oxymore; 2. Juvenoïa; 3. Métapolitique; 4. Sacral; 5. Nous; 6. Initiation; 7. Tradition; 8. Naturalisme; 9. Épinoïa. A leitura dessa obra instiga a pensarmos variadas questões sobre os valores que regem a vida cotidiana na atualidade. Desse modo, o texto examina, sem perder de vista o debate com seus críticos, os principais aspectos discutidos por Maffesoli ao longo do livro.

Palavras-chave
Modernidade; Pós-modernidade; contemporaneidade; teoria sociológica; Michel Maffesoli

Abstract

This review analyzes the work Être postmoderne, by sociologist Michel Maffesoli, published by Éditions du Cerf (Paris) and still without translation into Portuguese. Throughout the book, the author reaffirms, as well as in previous works, that we are living in a moment of saturation of modern values and the emergence of post-modern values. Étre Postmoderne is divided into nine chapters: 1. L’Oxymore; 2. Juvenoïa; 3. Métapolitique; 4. Sacral; 5. Nous; 6. Initiation; 7. Tradition; 8. Naturalisme; 9. Épinoïa. Reading the work encourages us to think about various questions about the values that govern everyday life today. Thus, this text examines, without losing sight of the debate with its critics, the main aspects discussed throughout the text.

Keywords
Modernity; Post-modernity; contemporaneity; sociological theory; Michel Maffesoli

O livro Être Postmoderne do sociólogo francês Michel Maffesoli, mantendo-se fiel ao estilo adotado pelo autor em diversas outras obras, caracteriza-se por ser uma obra sedutora, densa, leve e provocante. A proposta, que é cumprida com maestria intelectual, consiste em oferecer um quadro analítico sociológico, revelando, por um lado, como tem ocorrido a saturação dos valores que foram elementos constituintes da modernidade, ao passo que demonstra o que tem emergido em seu lugar, caracterizando, portanto, a pós-modernidade.

Estamos, no entanto, diante de um livro que precisa ser traduzido para a língua portuguesa, para que o público não familiar à língua francesa possa ter acesso a essa primorosa obra publicada pela editora parisiense Editions du Cerf. Pela qualidade teórico-metodológica do texto é possível afirmar que, tão logo possa ocorrer sua publicação em língua portuguesa, a obra possa ser inserida em bibliografias dos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Humanas que tenham a compreensão do contemporâneo como objeto de estudo. Uma das contribuições do autor, sem cair em armadilhas de julgamento de caráter moralista, está em demonstrar que o termo pós-moderno não é um modismo, e sim uma chave de leitura capaz de nomear o mundo como ele é. Assim, o aludido estudo se constitui em uma significativa referência sociológica, tanto para aqueles que se filiam à perspectiva teórica do autor, quanto para os que a contestam, argumentando que não saímos da modernidade.

Quando se trata de compreender os fenômenos pós-modernos, “pode-se decidir acompanhar Foucault em sua jornada interna ou traçar a sua própria” (Lilla, 201711 LILLA, Mark. A mente imprudente: os intelectuais na atividade política. Rio de Janeiro: Record, 2017., p. 137). Nesse contexto, Michel Maffesoli optou pela segunda alternativa, ao traçar sua própria trajetória intelectual criando categorias explicativas para a compreensão da sociedade contemporânea.

A sociedade disciplinar, descrita por Michel Foucault (1987)5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987., foi caracterizada pela atuação de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas. Na atualidade, estamos assistindo ao declínio da sociedade disciplinar e, por meio das academias fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shoppings, entre outros, a emergência da sociedade do desempenho. É com essa interpretação que o filósofo coreano Byung-Chul Han (2017, p. 23)9 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017. nos chama a atenção para os limites da crítica da “sociedade de controle” atribuídas na descrição das dinâmicas contemporâneas e para a potencialidade do conceito “sujeito do desempenho pós-moderno” (Han, 20179 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 80) para as análises sociais. Vejamos, nas próprias palavras do autor, como permeia essa reconfiguração:

A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. Nesse sentido, aqueles muros das instituições disciplinares, que delimitam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. A analítica do poder de Foucault não pode descrever as modificações psíquicas e topológicas que se realizaram com a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. Também aquele conceito da “sociedade de controle” não dá mais conta de explicar aquela mudança”

(Han, 20179 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 24).

Portanto, ainda que uma determinada categoria analítica tenha sido de fundamental importância para a compreensão de uma época, em outro período histórico não desempenha a mesma função. Isso ocorre em função das constantes mudanças daquilo que designamos por contemporaneidade. É no âmbito desse debate que Être Postmoderne se insere.

Mas, afinal, como definir o contemporâneo? Michel Maffesoli defende que o ciclo da modernidade se encerrou e nos encontramos na pós-modernidade. Porém, isso não é consensual nas Ciências Humanas. Maffesoli, ao realizar um diagnóstico da pós-modernidade, paradoxalmente, tem contribuído fortemente para que outros intelectuais, ao divergirem dele, problematizem o que é modernidade.

Giorgio Agamben (2009, p. 57)1 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos Editora, 2009., ao se perguntar: “de quem e do que somos contemporâneos, e o que significa ser contemporâneo?", nos explica que:

ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum caso nos alcançar. O seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo

(Agamben, 20091 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos Editora, 2009., p. 65).

Essa coragem a que Agamben se refere, o leitor encontrará em Être Postmoderne, na medida em que o autor se questiona: podemos afirmar que vivemos em uma época pós-moderna? Quais valores regem uma sociedade pós-moderna? Na obra em destaque, Maffesoli afirma que sim, podemos afirmar que vivemos na pós-modernidade, pois vivemos em uma época de mudança de valores sociais que, por enquanto, ele vem denominando de pós-moderna, em que é possível observar outras formas de viver e de estar junto, caracterizadas pelo autor como tribalismo, nomadismo e hedonismo.

Michel Maffesoli, nascido em 1944, é professor emérito e membro honorário do Instituto Universitário da França ad vitam. Tornou-se um sociólogo polêmico, um pensador da contemporaneidade (ou pós-modernidade) ou, ainda, como afirma ironicamente, um voyeur societal, que procura as palavras mais justas possíveis para descrever a atmosfera da época atual.

Seus escritos vêm exercendo significativa influência em vários países, tais como: Estados Unidos da América, Japão, Canadá, Ucrânia, Turquia, Colômbia, México, Chile, Argentina e, em especial, no Brasil. Isso ocorre por meio de colóquios e publicações que colocam em diálogo diversas áreas: sociologia, antropologia, filosofia, psicologia, comunicação social, moda, arquitetura, educação, entre outras.

As primeiras obras de Maffesoli foram publicadas no fim dos anos 1970, como, por exemplo, a Violence Totalitaire (1978). Seu livro Le Temps des Tribus - le déclin de l’individualisme dans les societés de masse (1988), após 30 (trinta) anos de sua primeira edição, vem sendo reeditado na França até os dias atuais. Maffesoli escreveu mais de 30 (trinta) obras e quase todas já foram publicadas no Brasil.

Assim, é possível afirmar que em sua obra mais recente Être Postmoderne (2018), publicada pela Les Éditions Du Cerf, o autor reafirma que estamos vivendo em um momento de saturação dos valores modernos e de emergência de valores pós-modernos. Suas constatações são respaldadas empiricamente pelas pesquisas desenvolvidas no Centre d’Etudes sur l’Actuel et Le Quotidien – CEAQ (Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano), fundado em 1982, por Michel Maffesoli e por Georges Balandier (1920-2016). O espaço recebe pesquisadores de diversas partes do mundo que se interessam por investigar novas formas de socialidade e os múltiplos imaginários contemporâneos.

Os estudos desenvolvidos no CEAQ aprofundam a metáfora “tribo” e desenvolvem as noções de “nomadismo” e o presenteísmo específico do “hedonismo” contemporâneo. A partir das pesquisas realizadas no Centro, o autor constata que os valores pós-modernos estão cada vez mais evidentes e que, portanto, torna-se necessário pensá-los sem medo das turbulências, um pouco niilistas, como todo período em mutação. Para ele, é a filosofia que nos lembra que o niilismo não deve ser compreendido como um declínio total, mas sim como a transição para novas formas de existência e que, para compreendê-las, será necessário o rigor de um grande esforço intelectual e, ainda, um espírito livre, pois, para ele “[...] la fin D’UN monde n’est pas la fin DU monde”1 1 O fim DE UM mundo não é o fim DO mundo (tradução nossa). (Maffesoli; Fischer, 201614 MAFFESOLI, Michel; FISCHER, Hervé. La postmodernité à l’heure du numérique: regards croisés sur notre époque. Paris: Les Éditions Nouvelles François Bourin, 2016., p. 24).

Por influência de seu mestre Gilbert Durand, Michel Maffesoli situa-se na sociologia do imaginário, que não se atém a encontrar os determinantes socioeconômicos dos comportamentos individuais, mas busca compreender a atmosfera de um tempo por meio das atividades simbólicas das sociedades humanas. Na perspectiva de uma fenomenologia compreensiva, interessa-lhe saber o que cria o liame entre os seres humanos e o que os distingue.

Em Être Postmoderne (2018), o autor retoma questões trabalhadas em suas obras anteriores sobre o imaginário contemporâneo, ampliando-as e atualizando-as. Para ele, a pós-modernidade se configura como uma época que sucede a modernidade e seus imaginários (os valores que estruturam a vida coletiva), rompendo, assim, com o racionalismo, o produtivismo e o desencantamento do mundo (Weber), característicos da modernidade.

A obra Être Postmoderne está estruturada em nove capítulos: 1. L’Oxymore; 2. Juvenoïa; 3. Métapolitique; 4. Sacral; 5. Nous; 6. Initiation; 7. Tradition; 8. Naturalisme; 9. Épinoïa. O posfácio de Hélène Strohl intitulado: “Emmanuel Macron, ícone ou fake da pós-modernidade” ilustra com vigor as noções empregadas por Maffesoli: a leitura da obra instiga a pensarmos variadas questões sobre os valores que regem a vida cotidiana na atualidade.

Os capítulos são encadeados de modo a demonstrar quais são os valores pós-modernos perceptíveis na atualidade em suas diversas expressões: econômica, política e social. De início, o autor faz referência ao que Durkheim nomeava de “conformismo lógico” para criticar os intelectuais que se recusam a admitir a saturação dos valores modernos, preferindo nomear o tempo presente como “segunda modernidade”, “modernidade tardia”, “hipermodernidade” e outros termos, os quais objetivam, consciente ou inconscientemente, preservar o mito progressista que, a partir do século XVIII, se impôs ao mundo. Assim, em nome de “evidências teóricas”, se recusam a ver o que é “evidente” na vida cotidiana das grandes cidades.

Para Maffesoli, junto aos diversos poderes, sejam eles econômicos, políticos ou sociais, há uma potência fundadora, uma centralidade subterrânea de todo estar-junto que é o cimento estruturante da socialidade. É possível observar a importância do presente nos ideais comunitários dos compartilhamentos, das trocas próprias da pós-modernidade, visíveis, principalmente, nas novas gerações.

Diferentemente do individualismo que marcou a economia moderna, as tribos e as comunidades ressurgem nos compartilhamentos de casas, de carros, de escritórios etc. “Estar com” é uma marca fundamental de um societal participativo, colaborativo, mutualista. Em resumo: trata-se de um ideal comunitário (Maffesoli, 201813 MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018., p. 25). Desse modo, o estar-junto se nutre de sonhos, de fantasmas, de fantasmagorias das múltiplas tribos que estruturam as sociedades pós-modernas, uma vez que o real está impregnado de irreal.

O oximoro é a expressão de uma lógica “contraditorial” (Maffesoli, 201813 MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018., p. 27), uma forma de pensar dialógica (referindo-se a Edgar Morin), na qual é possível a interação de elementos contraditórios que conduzem a uma “harmonia conflitual” característica da natureza humana. Assim, o uso do “e” ao invés do “ou” levaria à predominância da ambivalência e da ambiguidade que sublinham a emergência das éticas plurais, específicas das tribos pós-modernas. Ao longo da obra, Maffesoli se vale de vários oximoros para caracterizar a pós-modernidade, tais como: enraizamento dinâmico, razão sensível, dentre outros. Outra questão instigante evidenciada em Être Postmoderne refere-se ao retorno da eterna criança (puer aeternus) à cena social. Dionísio, protótipo da eterna criança, é a figura emblemática que caracteriza as megalópoles pós-modernas.

O autor se refere à “síndrome de Tanguy” (filme Tanguy, 200117 TANGUY. Direção: Étinenne Chatiliez. Produção: Charles Gassot. Intérpretes: Sabine Azéma, André Dussollier, Éric Berger et al. Roteiro: Yolande Zauberman, Étienne Chatiliez e Laurent Chouchan. França: TF1 Films Production, 2001. 108 min., dirigido por Étienne Chatiliez) como típica de uma época de anseio em permanecer jovem, vestir-se como jovem, falar como jovem, comportar-se como jovem. A juventude dionisíaca contamina todo o corpo social e todas as faixas etárias na pós-modernidade, configurando o “sintoma dionisíaco” regido pelo hedonismo, numa atmosfera que só importa o aqui e o agora.

O neologismo juvenoïa é usado para exprimir um saber diferente da “paranoia racionalista” (Maffesoli, 201813 MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018., p. 39). Trata-se de um conhecimento encarnado, baseado em experiências vividas, e de saberes compartilhados, em que a curiosidade possui um papel essencial. Esse caminho de pensamento juvenil é uma marca pós-moderna por excelência e tem como suporte a cibercultura, que facilita o compartilhamento, a troca, a reversibilidade. Tudo pode ser estudado pela razão sensível da juvenoïa. Tudo o que é humano interessa. Os estudos sobre os afetos, as emoções, as paixões e as diversas vivências societais consideram a força do imaginário nas dinâmicas que alicerçam o estar-junto.

Em “Métapolitique”, ele nos mostra o desinteresse em relação à vida política preocupada com futuro e a emergência de outras formas de regular o viver-junto que valoriza o presente. No capítulo “Sacral”, refere-se à eflorescência de religiosidades não dogmáticas e agregadoras. Em “Nous”, o autor assinala, assim como em outras obras, o fim do individualismo caracterizado pelo sujeito fechado em uma identidade fixa − seja ela sexual, ideológica ou profissional −, típica dos tempos modernos, apontando para as múltiplas identificações por meio da metáfora “tribo”. Assim, o que nos define é o grupo ao qual pertencemos.

Mostrando a força da “Iniciação”, da “Tradição”, e do “Naturalismo”, Maffesoli analisa como o sujeito pós-moderno recupera questões arcaicas com o auxílio da internet. Para tanto, basta observar a quantidade de mensagens recebidas nas redes sociais cujos conteúdos estão carregados de crenças mágicas que a ciência moderna julgava ter superado.

Dentre os oximoros utilizados para definir pós-modernidade, o autor destaca a “synergie de l’archaïque et du développement technologique” (Maffesoli, 201813 MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018., p. 135). Para o autor, uma das sinergias entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico é perceptível na iniciação, típica das sociedades tradicionais, mas que, atualmente, está presente na cibercultura por meio dos fóruns de discussões. Assim, o compartilhamento de saberes instaura a perspectiva de horizontalidade da “lei dos irmãos ou dos pares”.

O autor assinala, também, o eterno problema da espécie animal: como socializar a energia juvenil, como poderíamos canalizar sem empobrecê-la? Para resolver essa questão, Maffesoli menciona duas formas de socialização: a educação e a iniciação. O essencial da educação é a doutrina inculcada e o ponto essencial da iniciação é o acompanhamento, compreendido como uma forma de despertar o tesouro que está em cada um como ponto de partida de uma aprendizagem infinita de “perpétuos principiantes”. Desse modo, educar consistiria em integrar, de maneira mecânica, cada indivíduo no conjunto unificado da sociedade e, para isso, é necessária a “Lei do Pai”, que se impõe, verticalmente, a todos, num poder incontestável. A iniciação, por sua vez, é regida pela lógica da “lei dos irmãos” ou a “lei dos pares”, em que prevalece a horizontalidade, essencial nessa relação. Há, portanto, um deslizamento da verticalidade para a horizontalidade, dado que a transmissão e a socialização não ocorrem pela imposição de um saber estabelecido, mas, sim, pelo acompanhamento em direção a um conhecimento concreto com o auxílio da internet. Muito embora as instituições educacionais estejam fundamentadas na ideia de verticalização, tal como o professor que sabe e transmite o conhecimento para o aluno que não sabe, o que estabelece, dessa forma, a lógica da organização pedagógica moderna. Já a iniciação baseia-se na ideia da horizontalização (como a Wikipédia, por exemplo), demonstrando que, na pós-modernidade, o que prevalece é a ideia de compartilhamento.

Maffesoli é frequentemente criticado por questionar a permanência dos valores modernos e a volta de valores arcaicos, mas ele não se intimida em divulgar em variados países suas reflexões sobre a atualidade. Para ele, o individualismo vem cedendo lugar às identificações múltiplas em pequenos grupos, o enraizamento dinâmico vem tomando o lugar do progressismo e do conservadorismo e o contrato social e o republicanismo vem cedendo lugar ao ideal comunitário.

O debate sobre pós-modernidade, além de ser controverso e profícuo, está longe de findar. Giddens (1991)7 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. já afirmara que as profundas transformações sociais, em curso, parecem estar fora do controle e ainda não as compreendemos satisfatoriamente. No entanto, não é suficiente criar novos termos como “pós-modernidade”. De maneira oposta, ele argumenta que devemos nos debruçar sobre a natureza da modernidade, pois, ao invés de adentrarmos o período de pós-modernidade, chegamos a um ponto em que as consequências da modernidade se tornaram mais radicais e universais, e o que está em curso é um período que ele entende como “alta-modernidade”.

Em que pese as polêmicas, que, mais uma vez, Maffesoli pode suscitar no debate acadêmico, a obra Être Postmoderne propicia ao leitor refletir sobre a emergência de valores sociais presentes no tribalismo, nomadismo e hedonismo. Valores que, como vimos acima, caracterizam, para o autor, uma sociedade pós-moderna, e que são mais visíveis em pequenos grupos de jovens, as chamadas tribos.

Portanto, Être Postmoderne se constitui em uma obra que já nasce clássica e, em função das discussões realizadas, trata-se de um livro que professores e estudantes utilizarão para qualificar o debate do contemporâneo. Afinal, estamos atravessando a pós-modernidade (Maffesoli, 201813 MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018.), a modernidade líquida (Bauman, 20052 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.), a nova modernidade (Beck, 20103 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.), a modernidade tardia (Giddens, 20038 GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.), a hipermodernidade (Lipovestky, 200412 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.) ou sequer fomos modernos (Latour, 199410 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de janeiro: Ed. 34, 1994.)? É no bojo desse debate que Être Postmoderne se torna uma importante referência bibliográfica tanto para os leitores mais céticos que se filiam a crítica pós-moderna, quanto para aqueles que a utilizam para a compreensão do contemporâneo. Sendo assim, seja para refutar, ou para concordar, obrigatoriamente estamos diante de um livro que nos fará pensar, pois não é apenas mais um livro sobre pós-modernidade. Ele é, antes de tudo, um livro que oferece uma gama de argumentações para justificar o motivo pelo qual a categoria pós-modernidade se constitui em importante diagnóstico do presente.

A similaridade entre Michel Maffesoli, Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, entre outros, está no empenho que têm feito para definir o contemporâneo. Sendo assim, essa seria a linha que os une. Por outro lado, há distanciamentos conceituais entre esses teóricos, na medida em que cada um propõe, de forma diferente, conceitos diversos, com a finalidade comum de definir e explicar a realidade social contemporânea. Gostaríamos de apresentar, sobretudo, as discordâncias entre esses autores. Porém, a limitação espacial que uma resenha impõe, não nos permite.

Entretanto, é preciso ter clareza em que

o pós-moderno não pode ser um conceito em si mesmo, mas uma categoria que trata sobre as formas concretas das sociabilidades, adquirindo conceitualização como “fenômeno” ao descrever o que se expressa nas interações sociais. [...] De todas as maneiras, pode-se entender o pós-moderno como um conjunto de categorias analíticas nômades e de sensibilidades “outras” às que foram prevalecendo durante a dinâmica da modernidade. Consistiria, portanto, em uma perspectiva ou categoria analítica que permite entender a saturação e perda de sentido da legitimidade de uma episteme, assim como compreender o precário momento socio-histórico no qual o moderno teve dificuldades para recriar-se

(Gadea, 20076 GADEA, Carlos. Paisagens da pós-modernidade: cultura, política e sociabilidade na America Latina. Itajaí: Edunivali, 2007., p. 123).

Para finalizar, sugerimos a leitura de Cruz (2018)4 CRUZ, Daniel Nery da. Pós-modernidade ou hipermodernidade? Pensando o sujeito contemporâneo sob as óticas de Lipovetsky e Bauman. Sapere aude, v. 9, n. 18, p. 351-371, 2018. https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n18p351-371
https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018...
; Maiorino (2019)15 MAIRORINO, Fabiana T. Cartografia do contemporâneo: paisagem do fim e do novo? Revista Brasileira de Educação, Cultura e Linguagem, v. 3, n. 6, p. 25-48, 2019. e Rossetti (2016)16 ROSSETTI, Micaela L. O tempo presente: diálogo sobre a pós-modernidade. Percurso Acadêmico, v. 6, n. 11, p. 207-215, 2016. aos interessados em aprofundar o conhecimento a respeito das aproximações e discordância entre esses teóricos que, independentemente da nomenclatura utilizada, possuem a mesma preocupação: oferecer chaves explicativas do momento atual.

  • 1
    O fim DE UM mundo não é o fim DO mundo (tradução nossa).

Referências

  • 1
    AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos Editora, 2009.
  • 2
    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • 3
    BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.
  • 4
    CRUZ, Daniel Nery da. Pós-modernidade ou hipermodernidade? Pensando o sujeito contemporâneo sob as óticas de Lipovetsky e Bauman. Sapere aude, v. 9, n. 18, p. 351-371, 2018. https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n18p351-371
    » https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n18p351-371
  • 5
    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
  • 6
    GADEA, Carlos. Paisagens da pós-modernidade: cultura, política e sociabilidade na America Latina. Itajaí: Edunivali, 2007.
  • 7
    GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
  • 8
    GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
  • 9
    HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço Petrópolis: Vozes, 2017.
  • 10
    LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de janeiro: Ed. 34, 1994.
  • 11
    LILLA, Mark. A mente imprudente: os intelectuais na atividade política. Rio de Janeiro: Record, 2017.
  • 12
    LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos São Paulo: Barcarolla, 2004.
  • 13
    MAFFESOLI, Michel. Êtrepostmoderne Paris: Les Éditions du Cerf, 2018.
  • 14
    MAFFESOLI, Michel; FISCHER, Hervé. La postmodernité à l’heure du numérique: regards croisés sur notre époque. Paris: Les Éditions Nouvelles François Bourin, 2016.
  • 15
    MAIRORINO, Fabiana T. Cartografia do contemporâneo: paisagem do fim e do novo? Revista Brasileira de Educação, Cultura e Linguagem, v. 3, n. 6, p. 25-48, 2019.
  • 16
    ROSSETTI, Micaela L. O tempo presente: diálogo sobre a pós-modernidade. Percurso Acadêmico, v. 6, n. 11, p. 207-215, 2016.
  • 17
    TANGUY. Direção: Étinenne Chatiliez. Produção: Charles Gassot. Intérpretes: Sabine Azéma, André Dussollier, Éric Berger et al Roteiro: Yolande Zauberman, Étienne Chatiliez e Laurent Chouchan. França: TF1 Films Production, 2001. 108 min.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br