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A (urgente) reinvenção dos cânones

O presente número de Sociologias apresenta o Dossiê Mulheres na Teoria Social, que se tornará em breve, estamos seguros, uma referência imprescindível nas ciências sociais brasileiras.

O pensamento social de modo geral, e a sociologia em particular, embora constituam áreas relativamente jovens do conhecimento científico, tanto nos planos nacional como internacional, já produziram e acumularam um denso e consistente repertório teórico-metodológico e, como não poderia deixar de acontecer diante de tamanha quantidade e qualidade de tal produção, gerou igualmente o pensamento sobre si, por conseguinte, a formação de seus clássicos, de suas obras de referência incontornáveis, em suma, a fabricação de seus próprios cânones.

O Dossiê que ora apresentamos às leitoras e aos leitores serve para reavaliar esses nossos cânones, (re)pensar criticamente o seu processo de construção, que resulta quase sempre na exclusão de inúmeras(os) outras(os) autoras(es), temas e problemas de investigação, e convida para a ampliação de nossa prateleira de referências, sem necessária e obrigatoriamente condenar ao esquecimento aqueles clássicos já devidamente instalados em nossas bibliotecas e currículos. Ao contrário, a proposta é colocar todas essas obras, autoras e autores em diálogo permanente.

O Dossiê se revela audacioso porque articula de modo criativo as dimensões política e epistemológica, tratando-as como uma só e não separadamente, pois a “sociologia polifônica” (expressão utilizada num dos artigos) leva a uma ampliação e diversificação do cânone sociológico que torna o próprio núcleo da teoria sociológica permeável às inovações que o uso do gênero como categoria analítica pode acarretar.

O presente Dossiê nos ensina que o cânone muda porque suas(seus) leitoras(es) mudam; o cânone se transforma porque as sensibilidades cambiam: “As mudanças no cânone obviamente refletem mudanças em nós e em nossa cultura. Isso é um registro de como nossa autocompreensão se forma e muda” (Kermode, 20211KERMODE, Frank. Prazer e mudança: a estética do cânone. São Paulo: Unesp, 2021., p. 57).

Neste número também oferecemos à leitura o artigo Em favor das associações: uma homenagem à sociologia de Bruno Latour, escrito e lapidado pelas várias mãos de um grupo de docentes e pesquisadores/as da UFRGS e que presta o devido tributo ao sociólogo falecido em nove de outubro de 2022. Mais do que homenagear, o artigo constitui uma espécie de guia de leitura para a obra de um autor cuja importância e influência teórica, metodológica e mesmo política ultrapassa os limites da sociologia e alcança outras áreas, como a antropologia e a filosofia. O texto nos aproxima e familiariza a um cipoal complexo de conceitos e, de quebra, ainda discute como se deu parte da recepção de sua obra no contexto brasileiro.

A seção Artigos deste número abre com o texto “Do político ao econômico: aportes da teoria dos sistemas a uma crítica do neoliberalismo”, de Laurindo Dias Minhoto, Lucas Fucci Amato e Pedro de Almeida Pires Camargos. Os autores colocam em diálogo a teoria dos sistemas, na perspectiva de Niklas Luhmann, e os estudos sobre governamentalidade suscitados pelo curso “Nascimento da biopolítica” ministrado por Michel Foucault no Collège de France, buscando elementos para uma redescrição e uma crítica do neoliberalismo.

Em seguida, em “Dois casos na disputa paradigmática do trabalho de socioeducador”, Rosalvo Negreiros de Oliveira Junior e Marcílio Dantas Brandão, a partir da percepção de que socioeducadores formam uma categoria profissional que ainda disputa a configuração de sua autoimagem, analisam as dinâmicas afetivas envolvidas na constituição do sistema socioeducativo do Ceará cotejando-o com a experiência de Antônio Carlos Gomes da Costa com a implementação do atendimento educacional de adolescentes em privação de liberdade, em Minas Gerais, em plena ditadura militar.

Em “Justiça, gênero e famílias em O direito da liberdade, de Axel Honneth”, Stanley Souza Marques, observando a persistência da separação entre o público e o privado no pensamento democrático de modo geral, em que as esferas da intimidade e das famílias são desconsideradas, mas reconhecendo em Axel Honneth uma exceção, mostra que o projeto normativo proposto por Honneth promove a reflexão sobre as conexões entre justiça e famílias e apresenta elementos para uma reconstrução normativa da esfera das famílias no Brasil, apontando, contudo, limitações na abordagem honnethiana.

Breynner Ricardo de Oliveira e Mani Tebet Marins, apoiados em pesquisas de campo, analisam os impactos sociais de dois programas de transferência de renda no México e no Brasil, revelando que os múltiplos controles aplicados pelo Estado sobre as populações beneficiárias têm por efeito o agravamento das desigualdades sociais.

Magdalena Bustos-Aguirre questiona ¿Por qué algunos estudiantes realizan movilidad internacional y otros no? A partir de um survey envolvendo 416 estudantes da Universidade de Guadalajara, no México, a autora busca identificar os fatores pessoais e institucionais que contribuem à mobilidade acadêmica universitária. Finaliza propondo três estratégias institucionais que podem incentivar essa mobilidade, simulando o impacto de cada uma com base nos resultados obtidos.

A seção Interfaces apresenta dois trabalhos neste número. Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Abraham Paulsen Bilbao, Carlos Vergara Constela, Voltaire Alvarado Peterson e Miguel González Rodríguez exploram o conceito de fratura metabólica, proposto por John Bellamy Foster, que permite compreender a influência humana nos ciclos naturais e na mudança climática global.

Em “Interacciones violentas en la serie de ficción televisiva ‘Club de Cuervos’ de Netflix”, Laura Alfaro-Beracoechea e Karla Contreras Tinoco analisam as diferenças de gênero nas representações de diferentes tipos de violência exibidas em uma série televisiva, oferecendo ferramentas metodológicas que podem ser replicadas em análises similares.

Na seção Resenhas, Tiago Magaldi discute o livro de Sophie Bernard, Le nouvel esprit du salariat (Presses Universitaires de France, 2020) destacando suas contribuições, mas também apontando fragilidades na abordagem da autora e as limitações de suas análises, especialmente quando considerado o contexto brasileiro.

Marcos Abraão Ribeiro resenha a obra de Jessé Souza, Como o racismo criou o Brasil (LeYa, 2021), descrevendo os argumentos do autor para a proposição de uma explicação teórica sobre o racismo, ao tempo em que aponta certa contradição entre o que propõe como método de abordagem e o que oferece em sua abordagem teórica.

Desejamos a todas e todos uma excelente leitura!

Os Editores

Referência

Referência
  • 1
    KERMODE, Frank. Prazer e mudança: a estética do cânone. São Paulo: Unesp, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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