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Mulheres na Teoria Social: presente e passado para uma sociologia plural

Women in Social Theory: present and past towards a plural sociology

Resumo

Este texto introduz o dossiê “Mulheres na Teoria Social”, que convida a um olhar renovado sobre a própria teoria sociológica, suas categorias e conceitos e sugere um movimento teórico permanente, que interpele as descobertas, inovações teórico-metodológicas e reflexões que diferentes mulheres intelectuais produziram – e produzem – sobre o mundo social. Ao propor a discussão sobre as mulheres na teoria social, acreditamos que obras do passado podem trazer para a órbita da sociologia clássica temas e perspectivas para os quais o cânone da sociologia é, de modo geral, menos sensível. Longe de promover essencialismos ou estereótipos sobre o que seria – ou mesmo se existiria – uma escrita feminina, sugerimos o esforço de fazer emergir um novo mapa da teoria sociológica, apontando para a multiplicidade de temas, problemas e objetos que a compõem.

Palavras-chave
gênero; sociologia clássica; mulheres intelectuais; cânone sociológico; epistemologia social

Abstract

In this essay we introduce the dossier “Women in Social Theory”, inviting to a renewed look at sociological theory, its categories and concepts, and suggesting a permanent theoretical movement that challenges discoveries, theoretical-methodological innovations and reflections that different intellectual women have produced – and still produce – on the social world. By proposing a discussion on women in social theory, we believe that works from the past can bring to the orbit of classical sociology themes and perspectives that the sociological canon has generally disregarded. Far from promoting essentialisms or stereotypes about what would be – or if there would even exist – a female writing, we suggest an effort to bring to light a new map of sociological theory, laying bare the multiplicity of themes, problems and objects that compose it.

Keywords
gender; classical sociology; female intellectuals; sociological canon

Eu falarei da escrita feminina: do que ela fará. [...] É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história –, por seu próprio movimento.

Hélène Cixous. O riso da medusa (2022)3 CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

Na apresentação de Frédéric Regard à obra de Hélène Cixous, o crítico destaca como lição maior de O riso da medusa a assertiva de que a “escrita feminina é uma questão não de ressurgidas, mas de recém-chegadas” (Regard, 20224 REGARD, Frédéric. Apresentação. In: CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022., p.20. grifo no original). O dossiê “Mulheres na Teoria Social” trata, justamente, de algumas dessas recém-chegadas, apontando para a dinâmica muitas vezes paradoxal das intersecções entre gênero e produção intelectual. Dialogando com a leitura de Regard sobre a obra de Cixous, o dossiê não se propõe a celebrar uma espécie de ressurgimento de ideias e autoras que estariam sendo redescobertas por pesquisadoras do presente, interessadas em recontar a história da Sociologia a partir do que hoje é compreendido como uma perspectiva de gênero. Ao contrário, ao marcar – e dar boas-vindas – às ideias e autoras recém-chegadas, o dossiê procura não tratar autoras do passado a partir de um olhar cíclico, supondo que elas devem ressurgir para depois submergir novamente. Em vez disso, pretende que seu lugar se torne definitivo, convidando um olhar renovado sobre a própria teoria sociológica, suas categorias e conceitos e sugerindo um movimento teórico permanente, que interpele as descobertas, inovações teórico-metodológicas e reflexões que diferentes mulheres intelectuais produziram – e produzem – sobre o mundo social.

No artigo “Das margens ao centro? Refletindo sobre a teoria feminista e a sociologia acadêmica”, Miriam Adelman (2003)1ADELMAN, Miriam. Das margens ao centro? Refletindo sobre a teoria feminista e a sociologia acadêmica. Revista Estudos Feministas, v. 11, n.1, p. 284-288, 2003. relatou a dificuldade de inclusão de gênero no currículo básico das ciências sociais. Naquele já distante ano de 2003, ela atribuía esse fato a um certo conservadorismo e resistência à novidade na academia brasileira. Contudo, ela também levantava como fator possível o problema das fronteiras disciplinares: para Adelman, o caráter transdisciplinar da teoria feminista – em que há prevalência de áreas como a crítica literária ou a filosofia – dificultava sua incorporação por sociólogas e sociólogos com investimentos mais fortes no campo disciplinar da sociologia. Embora nos últimos anos tenham ocorrido mudanças, gênero permanece sendo um conceito geralmente tratado à parte da “grande teoria” e confinado às disciplinas optativas dos cursos de graduação e pós-graduação. Os cursos específicos de sociologia das relações de gênero nas universidades brasileiras, por sua vez, têm a tendência de focar em achados de pesquisas empíricas ou discutir agendas de investigação, deixando pouco espaço para a discussão teórica. Com efeito, há uma forma já convencional de ensinar sobre gênero nas ciências sociais no Brasil: geralmente se inicia por uma breve discussão teórica sobre o conceito de gênero e, em seguida, fala-se de temas como divisão sexual do trabalho, masculinidades, interseccionalidade, raça e feminismo a partir de pesquisas empíricas.

O trabalho de transmitir avanços tão significativos em tais campos de pesquisa nas últimas décadas é importante e muito valioso. No entanto, frequentemente os achados de pesquisa ou as agendas de investigação nesses cursos não costumam estar conectados às grandes tradições teóricas da sociologia. Por esse motivo, retomamos aqui as inquietações de Adelman e argumentamos que, sem engajamento com a sociologia clássica e com a teoria social, o núcleo teórico da sociologia permanecerá pouco permeável às inovações trazidas pelo uso de gênero como categoria analítica. O motivo é simples: como a teoria contemporânea remete continua e frequentemente aos clássicos, para que gênero adentre a grande teoria, é preciso que ele esteja presente na sociologia clássica e no currículo básico das ciências sociais.

No período clássico da sociologia, o século XIX, autoras como Harriet Martineau, Charlotte Perkins Gilman, Anna Julia Cooper, Marianne Weber e autores como John Stuart Mill e Friedrich Engels, entre outras e outros, produziram teorias sobre o que hoje entendemos como relações sociais de gênero. Autores clássicos – Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, Georg Simmel, Norbert Elias e outros – também versaram, em maior ou menor grau, sobre o tema. Não havia silêncio sobre a “questão da mulher” ou a “questão sexual”, para usar os termos da época, mas houve uma exclusão de tais perspectivas teóricas a posteriori. Ao propor a discussão sobre as mulheres na teoria social, acreditamos que obras do passado podem trazer para a órbita da sociologia clássica temas e perspectivas para os quais o cânone da sociologia é, de modo geral, menos sensível.

Desse modo, longe de promover essencialismos ou estereótipos sobre o que seria – ou mesmo se existiria – uma escrita feminina, sugerimos o esforço de fazer emergir um novo mapa da teoria sociológica, apontando para a multiplicidade de temas, problemas e objetos que a compõem. Se os temas que sobressaem nos clássicos são capitalismo, religião, classes sociais, individualização, burocracia, entre outros, em autoras do século XIX constatamos a presença desses temas e de outras temáticas fundamentais para a compreensão das sociedades: casamento, cuidado, família, infância, violência, escravidão, sexualidade, raça, migrações, colonialismo etc. Por contraditório que pareça, uma atualização a partir do passado e de um emaranhado de espaços sociais, políticos e intelectuais pode permitir construir no presente uma sociologia “polifônica”, como propõem Cynthia Hamlin, Raquel Weiss e Simone Brito, autoras do artigo “Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico”, que integra este dossiê.

Os textos aqui reunidos percorrem produções teóricas e metodológicas que foram se tornando presença fugidia – às vezes marginalizadas, às vezes excluídas – nos balanços e avaliações críticas acerca do estatuto teórico e das inovações científicas da teoria social. Como apontam Hamlin, Weiss e Brito, o apagamento de mulheres se intensificou conforme se aprofundava o processo de institucionalização das Ciências Sociais. O artigo discute o processo social de construção do cânone sociológico, traçando a história da produção sociológica entre as décadas de 1890 e 1930 em Chicago e destacando a presença de mulheres em associações científicas, universidades e em redes nacionais e internacionais, com marcada tendência ao trabalho empírico e à análise estatística – um estilo de pesquisa que seria posteriormente associado aos homens. Desenvolvimentos internos e externos ao campo científico, que elas examinam com cuidado e atenção aos detalhes, acabariam por apagar a presença de mulheres da sociologia e sua atuação na construção desse campo disciplinar. As autoras concluem o texto advogando por um cânone “polifônico”, propondo diálogos e controvérsias entre autores estabelecidos e autoras como Flora Tristán e Marianne Weber, em um movimento que admite a centralidade do cânone nos processos formativos de estudantes de graduação e pós-graduação, mas evita o rechaço conservador à inclusão de novas vozes.

De maneira similar, em “En femenino y plural: los inicios de la institucionalización de la sociología en Chile y Colombia”, Luis Donatello e Verónica Giordano reconstituem processos de formação da área da sociologia que contaram com a presença de mulheres. Os autores analisam as trajetórias de María Cristina Salazar (Colombia) y Betty Cabezas de González (Chile), destacando elementos geralmente pouco explorados na história do campo das ciências sociais na América Latina: a importância da socialização religiosa, os processos de “hibridização de disciplinas”, assim como a forte vocação para a sociologia histórica, impulsionada pela crítica ao funcionalismo da sociologia do hemisfério Norte. O texto destaca as imbricações entre religião, política e gênero no percurso dessas acadêmicas, reconstituindo trajetórias que se confundem com a própria história da sociologia em seus respectivos países. Reconstruir tradições intelectuais ressaltando a heterogeneidade no lugar da homogeneidade é fundamental para fazer emergir as dissonâncias e compreender aquilo que foi – deliberadamente ou não – sendo abandonado, em um movimento que tem sempre um sentido inequívoco: a expulsão da diferença. Lidos em conjunto, os artigos deste dossiê ajudam a posicionar o debate sobre a diferença, tornando-o constitutivo da teoria sociológica, o que acaba por tensionar os horizontes normativos que ajudaram a dar forma à teoria. Trata-se, então, primeiramente de reconhecer que outros objetos foram recortados, que outras armações teórico-metodológicas foram construídas e que tudo isso integra e conforma modos de pensar teórica e metodologicamente sobre a sociedade a partir da Sociologia; e, também, de tomar como séria a interlocução com distintos modos de pensar, avaliando criticamente o estatuto teórico de obras e ideias.

Ao indicar que gênero permeia um amplo domínio da vida intelectual, ajudando a construir seus cânones e suas margens, o dossiê pergunta se outras histórias intelectuais da sociologia, bem como se outros temas, conceitos, categorias, repertórios teóricos e metodológicos emergiriam caso tomássemos como objeto de análise trajetórias, projetos e teses originais de um conjunto amplo de mulheres intelectuais. É isso o que procura fazer o artigo de Verônica Toste Daflon e Luna Campos, “Harriet Martineau: circulação e influência no debate público na primeira metade do século XIX”. Nele, as autoras contextualizam a produção das obras How to observe morals and manners (1838) e Society in America (1837) e caracterizam sua recepção a partir da análise de resenhas publicadas na imprensa britânica e norte-americana. Defensora da observação sistemática e disciplinada, Martineau advogou pioneiramente pelo desenvolvimento de regras específicas para a produção de conhecimento sociológico.

Embora tenha tido uma carreira bem-sucedida como escritora, jornalista e pesquisadora, Daflon e Campos mostram que seus resenhistas, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, ficaram divididos. Enquanto alguns ressaltaram a qualidade da sua pesquisa e de suas propostas de observação metódica, a maior parte resistiu à ideia de se construir e observar regras e critérios científicos de pesquisa e de promover a separação entre a observação casual e a observação sistemática. Além disso, seu trabalho foi assimilado às controvérsias políticas da época, sobretudo a respeito do status das mulheres, da democracia e da escravidão. Em um tempo em que não havia uma separação nítida entre ciência e literatura, assim como entre pesquisa e relato de viagem, Martineau não dispôs de uma comunidade ou de instituições que pudessem levar adiante, expandir e rotinizar sua proposta de uma “ciência da moral”.

Um acúmulo teórico emerge conforme leitores/as se engajam com múltiplas vozes e suas respectivas reflexões. Analiticamente, trata-se de reconhecer que contextos intelectuais1 1 De modo breve, definimos contexto intelectual como a teia formada pela interação dinâmica entre ações sociais – individuais, coletivas ou institucionais – produção das ideias (conceitos, categorias, produtos culturais etc.) e o processo social e histórico. Esse modo de circunscrever analiticamente o contexto guarda diálogo com as definições sugeridas em Skinner (2002), Williams (2013) e Anderson (2014). devem ser percebidos e reconstruídos por meio de suas controvérsias e disputas. Isso requer o esforço de compreender a multiplicidade de ideias, autores/as, disputas e lutas que conformam determinado contexto intelectual, evidenciando quão múltiplas são – e foram – as imaginações sociológicas. Se são leitores/as que criam cânones, cabe perguntar, então, como eles/as podem alargar – ou encolher – o escopo de temas, objetos, problemas e perguntas que compõem o centro da teoria sociológica. Nossas recém-chegadas tratam de temas caros ao mundo contemporâneo, enfrentando questões como a emancipação, o direito à diferença, os limites à liberdade, a definição da dignidade como projeto social e a exclusão. Esse é o caso de Nazira Zeineddine, autora libanesa e pioneira do feminismo islâmico, cujo trabalho é discutido por Miriam Cooke, no artigo “Nazira Zeineddine: the girl and the shaykhs”.

O artigo enfrenta a difícil tarefa de reconstruir as ideias produzidas por integrantes de grupos subalternizados na dinâmica da vida intelectual. Cooke resiste à tentação de construir uma história de excepcionalidade dessa autora e de suas ideias e de retirá-la de seu tempo histórico, das polêmicas e debates que travou. Aos 19 anos, Zeineddine publicou Unveiling and Veiling (1928), uma crítica de quatrocentas páginas à prática de cobrir o rosto feminino no mundo árabe-muçulmano. A autora citava escrituras islâmicas, discursos de autoridades religiosas e seculares e fontes ocidentais, como John Stuart Mill, para defender a participação da mulher na vida pública, a razão e religiosidade femininas, a igualdade de homens e mulheres diante de Deus e a parceria no casamento. O véu, segundo Zeineddine, não era um “sinal” da inferioridade feminina, mas o próprio instrumento de produção do silêncio, da invisibilidade e da ignorância. O livro, de acordo com Cooke, redefiniu os termos do conflito entre elites religiosas e o movimento de mulheres no Líbano por décadas, caindo numa surpreendente obscuridade em seguida. Cooke investiga as causas de tal esquecimento, elucidando os capítulos seguintes da vida de Zeineddine.

Para além de uma necessária e importante política de representação que incorpore um conjunto mais amplo de vozes, tornar a “polifonia” constitutiva da teoria sociológica modifica o modo como percebemos, descrevemos e analisamos a própria sociologia, seus avanços e limites. De volta às recém-chegadas, inscrevê-las na teoria sociológica visa demonstrar que grupos sociais variados sempre estiveram discutindo, produzindo ideias e intervindo no debate, ou seja, que foram múltiplas as vozes que participaram das controvérsias teóricas de um tempo histórico e que, portanto, ajudaram a sistematizar e a configurar o conhecimento sociológico.

Mobilizar essas recém-chegadas, no entanto, não pode limitar-se à construção de uma política de presença de temas e de autoras, ainda que ela seja importante. Antes, trata-se de assumir a interlocução com esses modos de teorizar, construir objetos, temas e problemas de pesquisa, aderindo ou recusando, mas sobretudo as inserindo nas controvérsias teóricas, políticas e culturais, isto é, fazendo-as sincrônicas e, portanto, contemporâneas aos seus respectivos tempos históricos. De volta à provocação de que leitores/as são parte fundamental da construção de um cânone, então, precisamos ler, falar, discutir e discordar, porque isso é fundamental para a construção do debate teórico da sociologia.

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    De modo breve, definimos contexto intelectual como a teia formada pela interação dinâmica entre ações sociais – individuais, coletivas ou institucionais – produção das ideias (conceitos, categorias, produtos culturais etc.) e o processo social e histórico. Esse modo de circunscrever analiticamente o contexto guarda diálogo com as definições sugeridas em Skinner (2002)5 SKINNER, Quentin. Visions of politics: regarding method. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002., Williams (2013)6 WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. In: A Política e as letras. São Paulo: Editora Unesp, 2013. e Anderson (2014)2 ANDERSON, Benedict. Sob três bandeiras. Anarquismo e imaginação anticolonial. Campinas, Fortaleza: Editora da Unicamp, Ed. UECE, 2014..

Referência

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    ADELMAN, Miriam. Das margens ao centro? Refletindo sobre a teoria feminista e a sociologia acadêmica. Revista Estudos Feministas, v. 11, n.1, p. 284-288, 2003.
  • 2
    ANDERSON, Benedict. Sob três bandeiras. Anarquismo e imaginação anticolonial. Campinas, Fortaleza: Editora da Unicamp, Ed. UECE, 2014.
  • 3
    CIXOUS, Hélène. O riso da medusa Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
  • 4
    REGARD, Frédéric. Apresentação. In: CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
  • 5
    SKINNER, Quentin. Visions of politics: regarding method. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002.
  • 6
    WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave. In: A Política e as letras São Paulo: Editora Unesp, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    22 Dez 2022
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