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Harriet Martineau: circulação e influência no debate público na primeira metade do século XIX

Harriet Martineau: circulation and influence on public debate in the first half of the 19th century

Resumo

Este artigo tem o objetivo de explorar a presença de Harriet Martineau na imprensa da primeira metade do século XIX. A autora inglesa viveu da escrita, transitando por diversos gêneros – livros didáticos, escrita de viagem, ficção, jornalismo, romance, autobiografia, análise social etc. – e explorando temas de cunho social, político e econômico caros ao campo contemporâneo da Sociologia. O artigo apresenta a autora, destacando elementos de uma carreira duradoura como escritora profissional e pioneira da sociologia. Em seguida, contextualiza a produção das obras How to observe morals and manners e Society in America e caracteriza a sua recepção a partir da análise de resenhas publicadas na imprensa britânica e norte-americana.

Palavras-chave
teoria sociológica; sociologia clássica; história da sociologia; Harriet Martineau; gênero

Abstract

This article aims to explore the presence of Harriet Martineau in the written press of the first half of the 19th century. The British author earned her living from writing, practising different genres – textbooks, travel writing, fiction, journalism, romance, autobiography, social analysis etc – and exploring social, political and economic topics related to the contemporary field of Sociology. The article introduces the author, highlighting elements of an enduring career as a professional writer and a pioneer in Sociology. Finally, it contextualises the production of the works How to observe morals and manners and Society in America and characterises their reception based on the analysis of reviews published in the British and North American presses.

Keywords
sociological theory; classical sociology; history of sociology; Harriet Martineau; gender

Introdução

Escrever nunca foi para mim uma questão de escolha. Não o fiz por diversão ou dinheiro, ou pela fama, ou por qualquer outro motivo, mas porque não pude evitá-lo. Havia coisas que precisavam ser ditas, e havia indícios de que eu era a pessoa a dizê-las

(Martineau, Autobiography, 1877).

A despeito das expectativas médicas em torno de sua frágil saúde, Harriet Martineau teve uma vida longa. Em seus setenta e quatro anos de vida, a autora inglesa tornou-se uma voz respeitada no meio literário, jornalístico e intelectual britânico. Ainda que o escopo deste artigo se limite à primeira metade do século XIX, a produção escrita e a inserção no debate público de Martineau se estendem até o final de sua jornada, em 1876. O corte temporal aqui delimitado se concentra no período de consolidação da mulher autora (authoress) e escritora na cena literária e política britânica, assim como no contexto de circulação e recepção de algumas de suas primeiras obras.

Martineau foi uma escritora prolífica. Ao todo, publicou mais de 1.500 artigos na imprensa britânica e norte-americana (Hill, 199112 HILL, Michael. Harriet Martineau (1802-1876). In: DEEGAN, M. J. (ed.). Women in Sociology: A Bio-Bibliographical Sourcebook. Nova York: Greenwood Press, 1991. p. 289-297., 2001; McDonald, 1998; Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003.), tanto em jornais de grande circulação para os parâmetros da época como em revistas acadêmicas, além de dezenas de livros que versavam sobre os mais variados temas – muitos dos quais em dois ou mais volumes. Para citar apenas alguns dos livros publicados até 1850, temos: a série de tales reunida em Illustrations of Political Economy (1832-1834), 25 volumes; Society in America (1837), três volumes; How to observe morals and manners (1838); Retrospect of Western Travel (1838), três volumes; Deerbroke (1839); The Hour and the Man: An Historical Romance (1839); The Playfellow (1841); Life in the Sickroom (1844); The Billow and the Rock (1846); Household Education (1848); Eastern Life. Present and Past (1848), três volumes; The History of the Thirty Years’ Peace, A.D. 1816–1846 (1849).

Além disso, Martineau escreveu histórias infantis, relatos de viagem, uma autobiografia em três volumes e fez a tradução sintética do livro Curso de Filosofia Positiva de Auguste Comte para o inglês (1853); promoveu a agenda abolicionista e a favor de direitos iguais para as mulheres; trabalhou para popularizar princípios sanitários e de medicina preventiva ao lado de Florence Nightingale, refletiu sobre a situação das empregadas domésticas e sobre a pobreza na Inglaterra; publicou textos defendendo a preservação da natureza e contra a matança de pássaros (cujas penas eram usadas na fabricação de chapéus femininos) e escreveu, ainda, sobre a situação política, econômica e comercial na Índia e Irlanda.

O círculo intelectual de Martineau incluiu pessoas como Charles Babbage, Thomas Carlyle, George Eliot, Charles Dickens, Thomas Malthus, William Wordsworth, Charlotte Brontë, Charles Lyell e Charles Darwin. Alguns sociólogos contemporâneos de Martineau afirmaram ter sido influenciados por sua obra, a exemplo de Herbert Spencer, William Summer e Lester Ward (Hill, 199112 HILL, Michael. Harriet Martineau (1802-1876). In: DEEGAN, M. J. (ed.). Women in Sociology: A Bio-Bibliographical Sourcebook. Nova York: Greenwood Press, 1991. p. 289-297.). Contudo, diferentemente do que ocorreu com autores que se tornariam canônicos na Sociologia como Marx, Weber e Durkheim, Martineau não contou com uma instituição científica, comunidade intelectual ou movimento político que transmitisse seu legado às gerações seguintes e levasse sua agenda de pesquisa adiante. A profissionalização e institucionalização da Sociologia na virada do século XIX ao XX caminharam de mãos dadas com a exclusão das mulheres, produzindo uma cultura acadêmica androcêntrica em que a autoridade intelectual passou a ser associada aos homens, o que contribuiu ainda mais para que sua obra caísse em esquecimento (Lengermann; Niebrugge-Brantley, 199816 LENGERMANN, Patricia M.; NIEBRUGGE-BRANTLEY, Jill. The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830–1930. Long Groove: Waveland Press, 1998.).

Na década de 1930, Talcott Parsons iniciou seu projeto de compilação do cânone e imprimiu uma leitura muito particular à história da disciplina. Parsons sugeriu que a Sociologia seria um esforço conjunto, ainda que inconsciente, da construção de uma teoria geral da ação que teria como principais pilares os autores Marshall, Pareto, Durkheim e Weber (Seoane, 200631 SEOANE, Javier. La disputa del canon clásico en la sociologia. Espacio Abierto, v. 15, n. 4, p. 705-724, 2006.). Autoras que tiveram indisputável importância e influência no contexto norte-americano e europeu quando vivas – como Charlotte Perkins Gilman, Marianne Weber e a própria Harriet Martineau – foram postas de lado.

Em meados de 1960, quando o cânone sociológico já se consolidara, o sociólogo norte-americano Seymour Martin Lipset lamentou a exclusão de Martineau do rol dos clássicos e produziu uma versão sintética da obra Sociedade na América para difusão entre um novo público leitor. Sua iniciativa individual, contudo, não surtiu efeito. Michael Hill (1991)12 HILL, Michael. Harriet Martineau (1802-1876). In: DEEGAN, M. J. (ed.). Women in Sociology: A Bio-Bibliographical Sourcebook. Nova York: Greenwood Press, 1991. p. 289-297. compilou as citações e referências a Martineau ao longo das décadas seguintes, mostrando que os eventuais encontros de cientistas sociais com sua obra geralmente despertavam duas reações opostas: enquanto alguns apressavam-se em minimizar suas contribuições à sociologia, outros mostravam encantamento com seu trabalho e indignação com sua ausência nos cursos e manuais de ciências sociais.

Nas últimas décadas, os esforços de recuperação de autoras mulheres na Sociologia e revisão do cânone sociológico têm ganhado força. Nessa bibliografia emergente, Martineau desponta como uma referência incontornável (McDonald, 199823 McDONALD, Lynn. Women theorists on society and politics. Canada: Wilfrid Laurier University Press, 1998.; Lengermann; Niebrugge-Brantley, 199816 LENGERMANN, Patricia M.; NIEBRUGGE-BRANTLEY, Jill. The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830–1930. Long Groove: Waveland Press, 1998.; Reed, 200627 REED, Kate. New directions in Social Theory. Race, gender and the canon. Londres: Sage Publications, 2006.; Alatas; Sinha, 20171ALATAS, Syed; SINHA, Vineeta. Sociological theory beyond the canon. Londres: Palgrave MacMillan, 2017.; Garcia; Martins, 201910 GARCIA, José Luís; MARTINS, Hermínio. (org.). Lições de Sociologia Clássica. Lisboa: Edições 70, 2019.). No Brasil, além dos nossos próprios esforços (Daflon; Campos, 20206 DAFLON, Verônica T.; CAMPOS, Luna R. Gênero e conhecimento: um diálogo entre o pensamento de Flora Tristan e Harriet Martineau. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 33, n. 70, p. 424-443, 2020., 20225 DAFLON, Verônica T.; CAMPOS, Luna R. (org.). Pioneiras da sociologia: mulheres intelectuais nos séculos XVIII e XIX. Niterói: EdUFF, 2022.; Daflon; Sorj, 20217 DAFLON, Verônica T.; SORJ, Bila. Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século XIV. Rio de Janeiro: Record, 2021.), outras iniciativas têm contribuído para esse resgate (Castro, 20223 CASTRO, Celso. Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais. Rio de Janeiro: FVG Editora, 2022.; Alcântara, 20212 ALCÂNTARA, Fernanda. Harriet Martineau (1802-1876): A analista social que inaugurou a Sociologia. Estudos Ibero-Americanos, v. 47, n. 3, p. 1-17, 2021.; Miguel, 201724 MIGUEL, Lorena. Hariet Martineau: a contribuição esquecida da primeira socióloga. Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v. 6, n. 11, p. 16-29, 2017.).

Este artigo se soma a esses esforços, explorando, de maneira introdutória, uma pequena cota da participação de Martineau no debate público britânico das primeiras décadas do século XIX, a partir da análise de algumas críticas feitas na imprensa britânica a dois livros que compõem os American books, a saber, Society in America e How to observe morals and manners. Além desses, também faz parte da trilogia o Retrospect of Western Travel. Ainda que essas obras não tenham sido concebidas a priori como uma trilogia, elas foram publicadas em sequência, e as três estão conectadas pela experiência que lhes deu origem: a viagem de Martineau aos Estados Unidos da América entre 1834-1836.

Para tal, nos apoiaremos nos periódicos disponíveis na base de dados do British Newspaper Archive,1 1 Disponível em: https://www.britishnewspaperarchive.co.uk/. além de outras revistas encontradas em acervos digitais. Nossos critérios de seleção das resenhas jornalísticas se basearam na busca através das palavras-chave contendo o nome da autora e o título dos livros, dentro do período compreendido entre 1830 e 1850: “Harriet Martineau”; “Miss Martineau”; “Harriet Martineau’s books”; “How to observe morals and manners”; “Society in America”.2 2 A maior parte dos resultados encontrados a partir dessas palavras-chave foi excluída de nossa seleção por constituir pequenas entradas que se referem à propaganda, divulgação de lançamento e venda dos livros. É importante ressaltar que, por se tratar de uma base que abriga fontes muito antigas, é possível que a busca automática do site não corresponda à totalidade das referências existentes nos jornais disponíveis no arquivo devido à dificuldade de leitura dos caracteres impressos. Sendo assim, nossa seleção constitui um recorte, dentro do marco temporal apontado, de três resenhas de cada livro, selecionadas levando em consideração sua extensão e o alcance dos jornais onde foram publicadas.

A escolha por esse recorte e fontes primárias se justifica, ainda, pela relação de complementaridade entre os livros no que diz respeito aos objetivos, à forma e ao conteúdo de cada um. Não obstante as contribuições sociológicas de Martineau possam ser encontradas em diversos outros escritos, essas obras juntas abrangem pilares importantes da pesquisa em ciências sociais nos dias de hoje. Enquanto How to observe pode ser caracterizado como “o primeiro livro sobre a metodologia da pesquisa social” (Lipset apud McDonald, 199823 McDONALD, Lynn. Women theorists on society and politics. Canada: Wilfrid Laurier University Press, 1998., p. 139), Society in America se apresenta como o resultado prático da observação científica levada a cabo com um método pré-definido, com a intenção explícita de tornar a mente “o mais livre possível de preconceitos” (Martineau, 183722 MARTINEAU, Harriet. Society in America. Nova York: Sunders and Otley, 1837. 2 Vol., p. xi). Devido aos limites do artigo e ao fato de que Retrospect of Western Travel constitui uma narrativa mais subjetiva da autora enquanto viajante, resolvemos deixá-lo de fora de nossa análise para focar nos outros volumes.

Nesse sentido, nosso objetivo aqui não é realizar uma análise interna dos argumentos dos livros. Partiremos de sua recepção na imprensa para tentar compreender como Harriet Martineau construiu seu espaço na cena intelectual e literária vitoriana como uma escritora profissional, que navegava para além dos temas ditos “femininos”, em uma época em que não havia uma separação nítida entre “o modo de produção da obra literária e o da obra científica” (Lepenies, 199617 LEPENIES, Wolf. As três culturas. São Paulo: EDUSP, 1996., p. 12). Martineau foi uma mulher que viveu de seu trabalho e teve uma participação ativa como jornalista e analista política na imprensa de sua época.

Como sublinham Lengermann e Niebrugge-Brantley (1998)16 LENGERMANN, Patricia M.; NIEBRUGGE-BRANTLEY, Jill. The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830–1930. Long Groove: Waveland Press, 1998. e Michael Hill (2001)13 HILL, Michael. A methodological comparison of Harriet Martineau’s “Society in America” (1837) and Alexis de Tocqueville’s “Democracy in America” (1835-1840). In: HILL, M. R.; HOECKER-DRYSDALE, S. (org.). Harriet Martineau: theoretical and methodological perspectives. Nova York: Routledge, 2001. p. 59-74., o trabalho de Martineau tem relevância substantiva para as ciências sociais. Além disso, suas teorias foram feitas nos mesmos lugares e no mesmo tempo histórico que os “pais fundadores” da Sociologia. É para a recepção de seus primeiros textos sociológicos que este artigo pretende olhar. Inicialmente abordaremos a dimensão de escritora profissional e intelectual pública alcançado por Martineau; posteriormente, apresentaremos os principais argumentos dos american books e a forma como foram recebidos pela imprensa da época; finalmente, teceremos algumas considerações sobre as particularidades da perspectiva sociológica desenvolvida por Martineau e a atualidade de suas propostas metodológicas para o campo das ciências sociais.

Entre agulhas e canetas ou os itinerários da mulher que escreve

Contrariando a alegação de que o seu intelecto era masculino, Harriet Martineau enfatizou repetidamente seu “amor completamente feminino pelo bordado”

(Logan, 201519 LOGAN, Deborah A. History writing. In: PETERSON, L. The Cambridge companion to Victorian women’s writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 206-220., p. 208).

Com apenas dois anos de escolaridade formal, Harriet Martineau foi educada em casa por seus irmãos e familiares. A infância, assim como posteriormente toda a vida adulta, foi atravessada por questões graves de saúde, além do desenvolvimento de uma severa deficiência auditiva no final da adolescência. Por tal razão, ela passou muito tempo restrita ao ambiente doméstico, encontrando refúgio de suas limitações físicas nos livros e nas ideias (Martineau, 187720 MARTINEAU, Harriet. Harriet Martineau’s Autobiography. CHAPMAN, M. W., Ed. Boston: James R. Osgood & Co, 1877. 2 Vol.; Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003.).

Leitora e estudiosa ávida, seu interesse, inicialmente voltado para assuntos religiosos, foi paulatinamente abrangendo temas como matemática, música, literatura, política, história, línguas, entre outros. Segundo Deborah Logan (2015, p. 206)19 LOGAN, Deborah A. History writing. In: PETERSON, L. The Cambridge companion to Victorian women’s writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 206-220., os princípios da ideologia do unitarianismo, religião à qual a família Martineau estava ligada, facilitaram o acesso de mulheres à educação, ainda que de maneira informal. Foi em um periódico unitarista, Monthly Repository, que a jovem autora publicou seus primeiros textos.

Com o desenvolvimento da imprensa a partir dos anos 1830, novos espaços foram se abrindo para a participação literária feminina para além dos romances (Peterson, 200926 PETERSON, Linda H. Becoming a woman of letters: myths of authorship and facts of the Victorian market. Princeton: Princeton University Press, 2009., 201525 PETERSON, Linda H. The Cambridge Companion to Victorian Women’s Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.). Harriet Martineau, que no início da década de 1830 já havia publicado alguns textos anônimos, conquistou distinção e êxito financeiro com o sucesso alcançado pela publicação dos contos da série Illustrations of Political Economy, entre 1832 e 1834.

A série, publicada mensalmente, totalizou 25 volumes e buscava popularizar princípios de economia política para o público e funcionou como uma forma de consolidar a reputação de Martineau como intelectual pública e escritora de sucesso (Seiz, 201830 SEIZ, Janet. British women on the British Empire. In: MADDEN, K.; DIMAND, R. W. The Routledge handbook of the history of women’s economic thought. Londres: Routledge Handbooks Online, 2018. https://doi.org/10.4324/9781315723570-4
https://doi.org/10.4324/9781315723570-4...
). Segundo Linda Peterson (2009, p. 30)26 PETERSON, Linda H. Becoming a woman of letters: myths of authorship and facts of the Victorian market. Princeton: Princeton University Press, 2009., Martineau se destacava por “se desviar do modelo dominante de autoria feminina ao escrever sobre temas tradicionalmente proibidos”, isto é, sobre a arena da política, usualmente dominada por homens.

É nesse sentido que o sucesso de crítica e venda3 3 Segundo Susan Hoecker-Drysdale, os contos de Illustrations of Political Economy venderam, em média, mais de dez mil cópias por mês. No mesmo período, John Stuart Mill vendeu em torno de 3 mil cópias em quatro anos e foi considerado um sucesso editorial. “A popularidade dos contos é atestada pelas vendas extremamente altas [...] e pelo fato de que, mesmo com moderadas taxas de remuneração pelos direitos autorais, Martineau garantiu não apenas sua independência financeira, mas sua reputação como educadora pública e intérprete de doutrinas científicas” (Hoecker-Drysdale, 2003, p. 56, tradução livre). de Illustrations pavimentou o caminho que fez de Harriet Martineau uma das principais escritoras britânicas do século XIX. Junto a outras mulheres de sua geração, Martineau trabalhou intensamente para alcançar grandes audiências, participar dos debates públicos e influenciar a opinião pública (Seiz, 201830 SEIZ, Janet. British women on the British Empire. In: MADDEN, K.; DIMAND, R. W. The Routledge handbook of the history of women’s economic thought. Londres: Routledge Handbooks Online, 2018. https://doi.org/10.4324/9781315723570-4
https://doi.org/10.4324/9781315723570-4...
). Para Peterson (2009, p. 1)26 PETERSON, Linda H. Becoming a woman of letters: myths of authorship and facts of the Victorian market. Princeton: Princeton University Press, 2009., essas mulheres “eram profissionais em um sentido moderno: mostravam interesse em ganhar dinheiro, lidar com editoras de maneira comercial, perseguindo ativamente uma carreira literária e alcançando lucro e popularidade no mercado literário”.

No entanto, ser uma escritora profissional não significava o mesmo para homens e mulheres, mesmo lidando com a definição básica de que escritor(a) é aquela que é remunerada pelo seu trabalho. No Reino Unido, até o final do século XIX, mulheres casadas que eram escritoras profissionais não tinham o direito legal a seus ganhos (Johnston; Fraser, 200115 JOHNSTON, Judith; FRASER, Hilary. The professionalisation of women’s writing: extending the canon. In: SHATTOCK, J. (ed.). Women and Literature in Britain, 1800-1900. Cambridge:Cambridge University Press, 2001. p. 231-250., p. 234). Nesse contexto, Martineau foi uma exceção. Por não ter se casado, pôde manejar e usufruir de seu patrimônio de maneira independente, conseguindo equilibrar o uso da agulha e da caneta, isto é, a paixão “feminina” pelo bordado e a urgência “masculina” expressa na atividade de escrita.

Os percalços enfrentados para se tornar uma escritora profissional são narrados longamente na autobiografia que Martineau escreveu em 1855, quando estava muito doente acreditando que não sobreviveria, mas que só seria publicada após sua morte, em 1877. Como mostrou Joanne Shattock (2001, p. 9)32 SHATTOCK, Joanne. The construction of the woman writer. In: SHATTOCK, J. (ed.). Women and Literature in Britain, 1800-1900. Cambridge University Press, 2001, pp. 8-34., Martineau não estava sozinha em seu desejo de evitar biografias não autorizadas e de prevenir publicações póstumas. Muitas escritoras do período destruíram materiais privados, como cartas e diários, e registraram por escrito a proibição da publicação de suas cartas e outros materiais não editados em vida. Martineau chegou a deixar escrito o próprio obituário, escolhendo quais fatos de sua trajetória salientar e quais omitir.4 4 O obituário escrito por Martineau, em terceira pessoa, foi publicado em 29 de junho de 1876 no jornal Daily News, periódico fundado por Charles Dickens onde trabalhou como jornalista durante muitos anos. Essas medidas eram tomadas como forma de tentar controlar as narrativas possíveis sobre suas vidas e de separar a vida íntima da vida profissional, que tendiam a ser misturadas pelos críticos no caso das escritoras mulheres (Shattock, 200132 SHATTOCK, Joanne. The construction of the woman writer. In: SHATTOCK, J. (ed.). Women and Literature in Britain, 1800-1900. Cambridge University Press, 2001, pp. 8-34.).

O senso de independência e a noção de profissionalismo manifestada por Martineau aparece em várias partes de sua autobiografia e também costuma ser um aspecto ressaltado pelos críticos. Um episódio particularmente interessante para compreender a forma como ela era percebida na imprensa enquanto escritora diz respeito à sua recusa em aceitar uma pensão governamental de 150 libras anuais que lhe foi oferecida no início dos anos 1840. A surpresa com a recusa aparece noticiada em pelo menos quatro jornais,5 5 Foi possível localizar notícias referentes à recusa da pensão em: London Evening Standard, terça-feira, 25 out. 1842; Leeds Times, sábado, 29 out. 1842; Kerry Evening Post, 9 nov. 1842; Warder and Dublin Weekly Mail, sábado, 5 nov. 1842. acompanhada dos elogios à autora por ter negado o auxílio em nome de sua liberdade de expressão:

Ela se opôs a receber as pensões oferecidas por vários motivos; um deles era que o ministro não tinha o direito de apropriar-se do dinheiro do povo; e outro, que um presente implica obrigação futura, e que, consequentemente, se ela o recebesse nesse sentido, sua “liberdade de expressão, senão de pensamento”, teria que ser sacrificada

(London Evening Standard, 25 out.1842).6 6 Todos os trechos de jornais aqui citados foram traduzidos livremente.

A recusa da pensão por Martineau expressa um pouco do seu posicionamento frente ao mercado literário e também sua relação com a notoriedade. A autora fomentava em seu trabalho o compromisso público com a escrita e com a produção de conhecimento, prezando por sua independência: “Miss Martineau é um daqueles poucos [espíritos] nobres que preferem uma condição de pobreza honesta e laboriosa a uma condição de riqueza mimada à custa da honra e da integridade” (Leeds Times, 29 out.1842).

Essa atitude de negar um pagamento pelo reconhecimento de seu trabalho, que pode parecer beirar o sacerdócio, somada ao fato de Martineau ter permanecido solteira durante toda a vida, parece ter contribuído para solidificar a imagem de escritora séria e comprometida com o trabalho. Em sua autobiografia, a autora comenta sobre sua intensa rotina de trabalho e as poucas horas destinadas ao descanso. No entanto, fazia questão de salientar a satisfação que o trabalho lhe trazia. Na passagem abaixo, a autora condensa sua percepção sobre a forma como encarou a relação entre vida e trabalho:

Quanto mais envelheço, mais graves e irremediáveis me parecem os males e as desvantagens da vida conjugal, tal como existe entre nós neste momento: e estou provida com o que causa a ruína da vida de solteiro em casos comuns, — o querer uma ocupação substancial, laboriosa e séria. Meu negócio na vida tem sido pensar e aprender, e falar com absoluta liberdade o que pensei e aprendi. A liberdade é em si um positivo e infalível prazer para mim, depois do cativeiro da minha infância. Meu trabalho e eu nos adaptamos um ao outro, como prova o sucesso do meu trabalho e minha própria felicidade nele [...] e há muito cheguei à conclusão de que, sem me meter no caso das esposas e mães, eu sou provavelmente a mulher solteira mais feliz da Inglaterra

(Martineau, 187720 MARTINEAU, Harriet. Harriet Martineau’s Autobiography. CHAPMAN, M. W., Ed. Boston: James R. Osgood & Co, 1877. 2 Vol., p. 67-68, tradução livre).

A viagem à América

Após a publicação de Illustrations, um dos “grandes sucessos editoriais do século” (Lepenies, 199617 LEPENIES, Wolf. As três culturas. São Paulo: EDUSP, 1996., p. 154), Martineau partiu, em 1834, em uma viagem pelos Estados Unidos da América. A escolha desse destino não era incomum à época. Martineau fez parte de um fluxo de europeus “notáveis” que visitaram os Estados Unidos a partir dos anos 1820/1830, entre os quais estão Frances Wright, Alexis de Tocqueville, Gustave de Beaumont e Charles Darwin. Para essas e esses viajantes,

os Estados Unidos ainda eram um lugar estranho e exótico – um novo mundo em formação, afastado de todas as sociedades conhecidas do passado e do presente [...] que se ancorava em ideias que na década de 1830 ainda eram, no sentido mais literal, revolucionárias – ideias que a maioria dos americanos esperava, e alguns europeus temiam, que logo se espalhariam pelo mundo

(Feller, 20008 FELLER, Daniel. Introduction. In: MARTINEAU, H. Retrospect of Western Travel. Nova York: M. E. Sharp, 2000., p. ix, tradução livre).

Além da “grande curiosidade em testemunhar o funcionamento real das instituições republicanas” e da “forte disposição para admirá-las” (Martineau, 183722 MARTINEAU, Harriet. Society in America. Nova York: Sunders and Otley, 1837. 2 Vol., p. v), a língua compartilhada facilitava o processo de pesquisa de Martineau, que tinha uma grave deficiência auditiva. Em decorrência disso, ela contou com o auxílio de Louisa Jeffrey, sua assistente e companheira de viagem, para gravar e relatar as partes das conversas que ela não conseguia entender.7 7 Além de ser companheira de viagem, Louisa Jeffrey também atuou como assistente de pesquisa, ajudando a organizar a turnê e a buscar as informações que Martineau desejava aprender. Apesar disso, ela não aparece nem em Society in America, nem em How to observe. Encontramos registro dessa parceria apenas na autobiografia de Martineau, onde Jeffrey aparece como “Miss J.”. A autora usava, ainda, uma corneta acústica. Martineau afirma que transformou essa barreira em vantagem, fazendo de sua deficiência e do uso da corneta, que exigia a aproximação do interlocutor, uma forma de “quebrar o gelo com estranhos e permitir uma conversa privada em uma sala lotada” (Feller, 20008 FELLER, Daniel. Introduction. In: MARTINEAU, H. Retrospect of Western Travel. Nova York: M. E. Sharp, 2000., p. xiii).

A investigação sociológica levada a cabo por Martineau nos anos 1830 na América compreende seu trabalho mais significativo tanto em termos de pesquisa empírica quanto de análise teórica (Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003., p. 46). O estudo foi feito na mesma década que aquele realizado por Tocqueville (Democracia na América) e, segundo alguns intérpretes de sua obra (Hill, 200113 HILL, Michael. A methodological comparison of Harriet Martineau’s “Society in America” (1837) and Alexis de Tocqueville’s “Democracy in America” (1835-1840). In: HILL, M. R.; HOECKER-DRYSDALE, S. (org.). Harriet Martineau: theoretical and methodological perspectives. Nova York: Routledge, 2001. p. 59-74.; Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003.), mais bem ancorado do que este último em fatos empíricos, método e ordenação teórica.

A sociologia feita por Martineau se baseava em observações empíricas, diferentemente de outros teóricos e pensadores contemporâneos, que buscavam construir suas teorias com base em leis universais e pela articulação de ideias e conceitos abstratos, a exemplo de Comte. Martineau se interessava em observar em primeira mão e em desenvolver teorias específicas para as diversas instituições sociais. Em um trecho de How to Observe, afirmou que a pesquisa da moral e dos costumes deveria começar pelo “estudo das COISAS”, isto é, as formas objetivadas do social – registros públicos, leis, taxas de natalidade, mortalidade, suicídios, arquitetura, cemitérios, epitáfios, cerimônias e atividades coletivas em geral, canções populares, ritos religiosos, mercado etc. – para só então se passar à coleta e análise dos discursos. O livro evidencia preocupações com as possibilidades de generalização, sobretudo diante do caráter anedótico dos relatos de viajantes, tão comuns à época.

A observação sistemática que Martineau acreditava ser imprescindível para a análise social necessitava de um método próprio para ser levada a cabo. Como o campo das ciências sociais ainda estava em vias de desenvolver-se, a autora teve que criar uma metodologia para realizar sua observação e a pesquisa daí derivada. Para Martineau, estudos na área da ciência da moral deveriam ser baseados em “observação disciplinada, imparcialidade, uma estrutura teórica e métodos de pesquisa sistemática usados de forma consistente e autoconsciente” (Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003., p. 44).

Suas primeiras reflexões nesse sentido aparecem nas notas tomadas durante a travessia rumo à América, que dariam origem ao livro How to observe morals and manners, uma espécie de guia com instruções precisas para a/o viajante que pretendesse estudar outras sociedades de forma científica. Ao todo, ao atravessar os Estados Unidos por dois anos, Martineau pôde visitar inúmeras instituições, regiões e lugares e conversar com pessoas de distintas origens, raças, gêneros, classes, faixas etárias e orientações políticas. Ao fazê-lo, a autora forjou sua própria perspectiva sociológica, que se consolidou, nos anos posteriores à viagem, nos livros sobre a América. Nas seções seguintes apresentaremos um pouco desses livros para, logo depois, analisar a maneira com que foram recebidos na imprensa da época.

How to observe morals and manners

How to observe moral and manners (em tradução livre, “Como observar a moral e os costumes”) foi publicado em 1838 visando um público leigo. Nesse livro, a autora retoma o impulso, cristalizado em Illustrations, de tornar princípios de entendimento da sociedade acessíveis a todos/as. Segundo Goodwin e Scimecca (2006, p. 54)11 GOODWIN, Glenn A.; SCIMECCA, Joseph A. Classical sociological theory: rediscovering the promise of sociology. Belmont: Thomson/Wadsworth, 2006., a relação entre a moral e os costumes é, para Martineau, o objeto, o assunto da sociologia. Sua proposta era observar a relação entre as ideias coletivas a respeito do comportamento prescrito e proscrito (a “moral”) e os padrões de ação e associação (o “costume”). Embora visse moral e costume como dimensões imbricadas e inseparáveis, Martineau desejava investigar as contradições entre ambos. Para ela, a mudança social ocorria como fruto da tensão entre os entendimentos compartilhados e as práticas, padrões e instituições que os seres humanos criavam.

Em How to observe, a autora ressalta as especificidades da “ciência da sociedade” face às ciências naturais, assumindo uma epistemologia antinaturalista. Para Martineau, o sociólogo era diferente do físico ou do geólogo porque seus pesquisados eram dotados de um universo moral e simbólico. O “estudo da moral” exigia do pesquisador a reflexividade, objetividade e “empatia”, isto é, a capacidade de intercambiar posições com os pesquisados e de desenvolver uma escuta paciente e livre de julgamentos. Dessa maneira, a autora defendeu pioneiramente a necessidade de desenvolvimento de regras específicas para a produção de conhecimento sociológico.

No mesmo livro, Martineau propôs também um entendimento ontológico da sociedade. Isso porque afirmou que o fio que conectava todas as sociedades humanas era a necessidade de alimentação e abrigo, a experiência da morte e da reprodução, as relações intergeracionais e “domésticas” (uma forma de nomear o que hoje entendemos como relações de gênero), assim como as capacidades humanas de simbolizar, gerar acordos e produzir a própria a vida social. Finalmente, a autora conectou suas proposições teóricas e epistemológicas a instruções e orientações de pesquisa, isto é, a uma metodologia. Martineau sugeriu a combinação da análise de documentos, relatórios, atas e outros artefatos físicos e arquitetônicos com a observação dos atores sociais, suas atividades, reuniões, discursos e interações em campo.

A autora afirma que no estudo de uma sociedade particular é preciso levar em consideração a totalidade da sociedade, incluindo suas bases econômicas, demográficas e geográficas; o “grau de civilização”, isto é, o grau de liberdade e igualdade entre seus membros, especialmente as mulheres; as estruturas de classe e os sistemas de valores e costumes, além do olhar para a cultura, a religião e suas consequências (Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003.). Sua indicação metodológica é começar a pesquisa traçando as características mais gerais da vida coletiva, como subsistência, nascimento, mortalidade e ideias gerais. O próprio sumário do livro mostra como ela operacionaliza essa diretiva, indicando o que observar para acessar a religião, as noções morais gerais, a situação doméstica, as ideias de liberdade, o progresso e o discurso.

A título de ilustração, Martineau recomenda que a experiência social da morte seja investigada através das taxas de mortalidade e suicídios, bem como pela observação dos funerais, cemitérios e epitáfios. Esses indicadores são considerados significativos porque permitem acessar as divisões de classes numa sociedade, mostrar quais comportamentos são considerados bons, como a perda de uma pessoa é interpretada e, finalmente, como os sujeitos definem sua própria comunidade.

Como já apontado anteriormente, o sucesso editorial que Martineau conquistou após Illustrations of Political Economy fez com que a publicação de seus próximos livros fosse difundida pela imprensa britânica. Na base de periódicos British Newspaper, a maior parte das entradas existentes quando buscamos o título do livro se referem ao anúncio de sua publicação e venda. Alguns jornais, no entanto, se dedicaram a publicar comentários, críticas, resenhas ou apenas trechos da nova publicação.

The Weekly True Sun, Carlisle Journal e Exeter and Plymouth Gazette e Perthshire Advertiser, por exemplo, limitaram-se a publicar pequenos excertos do livro, muitas vezes sem nenhum comentário adicional. O trecho sobre as vantagens de viajar a pé8 8 Esse trecho encontra-se no capítulo III de How to observe morals and manners, “Mechanical Requisites”. Ver: Martineau, 1838, páginas 53-54. parece ter sido um dos preferidos (aparece no The Examiner e no Weekly True Sun). O Exeter and Plymouth Gazette, de 25 de agosto de 1838, veicula um trecho sobre a observação no cemitério a despeito de afirmar que desaprova as opiniões políticas de Martineau: “achamos que ela se afasta de sua esfera ao ‘escrever’ doutrinas malthusianas; mas admitimos prontamente seu talento e, em outros assuntos, encontramos muito de belo e instrutivo em seus escritos”.

Intitulado “as indelicadezas de uma filósofa moderna”, o Coventry Standard, de 21 de setembro de 1838, seleciona dois pequenos trechos em que a autora faz observações sobre religião, especificamente sobre castidade, para alertar as senhoras, os leitores e os pais de família sobre a repugnância de algumas passagens e os perigos que a visão da autora representa para a “pureza de pensamento e delicadeza de expressão das mulheres inglesas”. Segundo o jornal, ao tratar a virtude da castidade como uma superstição antiga e ao abordar criticamente o celibato do clero, Martineau “viola completamente a reserva e o decoro que deve resguardar toda a conduta de uma mulher”.

O foco colocado na conduta feminina corrobora o que chamamos a atenção anteriormente sobre os percalços enfrentados pelas mulheres autoras que escapavam, de alguma forma, às expectativas de gênero vigentes com os temas abordados em sua escrita. A crítica do conteúdo próprio do livro, de sua qualidade e da competência da autora vão receber menos atenção e espaço nos jornais. No caso de Martineau, ela enfrentou ainda o uso de sua deficiência como forma de difamação e desqualificação de seu trabalho.

No início do período vitoriano, havia revistas importantes que publicavam de maneira trimestral. Os dois principais trimestrais eram alinhados com os dois principais partidos políticos britânicos: a Edinburgh Review com os Whigs, e a Quarterly Review com os Tories (Shattock, 198033 SHATTOCK, Joanne. Spheres of Influence: The Quarterlies and Their Readers. The Yearbook of English Studies, v. 10, Literature and its Audience, n. esp. I, p. 95-104, 1980.). Harriet Martineau pode ser localizada mais próxima dos Whigs, devido às suas posições liberais e ao Unitarianismo. Isso pode ter contribuído para tornar a autora um alvo dos revisores da Quarterly.

Na primeira edição de 1839, o Quarterly dedicou algumas páginas à resenha de How to observe. No entanto, o texto perde a chance de realizar uma crítica séria das ideias da autora para atacá-la de maneira irônica, maldosa e preconceituosa. O autor, anônimo, inicia seu texto ironizando a própria proposta do livro de ensinar “como observar” ao dizer que o próximo volume seria sobre “como mamar” (how to suck) e “como falar” (how to talk), dando a entender que a faculdade de observar, assim como a de sugar o leite materno ou falar, seria algo intrínseco do ser humano e não teria por que ser ensinado. O autor, ainda no primeiro parágrafo da resenha, ridiculariza a surdez da autora ao dizer que o volume de how to talk teria que ser escrito por um autor surdo e mudo para conseguir se comunicar com Martineau.

O baixo nível assumido pelo revisor perpassa toda a resenha, e é como se o que estivesse em análise fosse a capacidade intelectual de uma escritora com deficiência. O tom do artigo ironiza e desqualifica as propostas de disciplinar a observação feitas por Martineau. Isto é, inviabiliza a delimitação do objeto da ciência social/ciência da moral que a autora se esforça em construir e rejeita a vida social como objeto de estudo científico, isto é, que necessita de profissionais treinados, que controlem seus preconceitos, vieses e se afastem do senso comum.

Curiosamente, a própria autora adverte contra essa tendência, do senso comum, de se acreditar que o conhecimento é um dado da natureza unicamente fornecido pelos sentidos, um conhecimento supostamente direto, espontâneo e não mediado. Martineau insistiu que o observador deveria estar bem-preparado intelectualmente, munido de princípios, perguntas e procedimentos para que suas proposições tivessem alguma validade. Daí advém sua recomendação dos pré-requisitos para tal.

Quando ele era criança [o observador], provavelmente foi ensinado que olhos, ouvidos e entendimento eram suficientes para obter tanto conhecimento quanto ele poderia adquirir [...]. Não é suficiente para um viajante ter uma compreensão ativa ou uma percepção acurada dos fatos individuais em si; ele também deve possuir princípios que sirvam de ponto de convergência para suas observações, sem os quais ele não pode determinar seus rumos, ou estar seguro de dar-lhes uma interpretação correta. Um viajante se sairia melhor sem olhos ou ouvidos do que sem tais princípios

(Martineau, 183821 MARTINEAU, Harriet. How to observe morals and manners. Londres: Charles Knight and Co., 1838., p. 14-15).

O autor desconhecido do Quarterly descontextualiza essa última frase da citação para afirmar que na “nova ciência da observação” proposta por Martineau há uma “superioridade dos cegos e dos surdos” em relação ao viajante não filosófico/despreparado. Damos destaque a essa resenha porque ela foi publicada por um veículo de imprensa muito central no debate intelectual da época. O artigo é encerrado quando entra no assunto religião. Assim como a crítica já citada do Coventry Standard, o comentador rejeita atribuir qualquer mérito à obra. Além de advertir ao público contra as supostas “imposturas estúpidas e insolentes” da autora, propõe jogar fora o “álbum de recortes da Senhora Martineau”, “a mais tola e pouco feminina mistura que já encontramos de anedotas apócrifas, fatos promíscuos e ideias confusas - colhidos ao acaso [...] da Penny Magazine9 9 Revista ilustrada voltada para as classes populares. Era editada por Charles Knight, o mesmo editor que dirigia a série How to observe, em que Martineau publicou o volume sobre Morals and Manners. e de repositórios semelhantes”.

O interessante de pesquisar os diálogos que acontecem na imprensa em torno das ideias é poder vislumbrar as disputas políticas e ideológicas que acompanham cada livro e cada resenha publicada sobre ele. A resenha do Quarterly Review não passou despercebida da oposição. No dia 6 de janeiro de 1839, o jornal The Weekly Dispatch publicou uma resposta à resenha discutindo “a moral e as maneiras” da revista. O autor (ou a autora) anônimo considera a crítica injusta com o trabalho de uma mulher cujos talentos e conquistas estavam sendo reconhecidos, com o interesse geral pelo assunto e com o desejo da autora em ser útil.

O revisor da Quarterly é descrito como “um mercenário, que escreve para a porção vulgar da aristocracia”, que, para a crítica do The Weekly, tem uma tendência a degradar a mulher. O conservadorismo (toryism) “só tolera as mulheres como servas da aristocracia, transmissoras de seus títulos e instrumento de seu prazer. Daí a exclusão aristocrática das mulheres da política e de toda literatura, exceto a mais leve”.

O artigo continua apontando a desonestidade intelectual com a qual o livro de Martineau foi analisado e salienta a crueldade com que a deficiência auditiva da autora foi tratada. Conclui, assim, que a resenha da Quarterly Review não pode ser confundida com uma crítica real, uma vez que “o artigo é marcado por insinuações indecentes e ofensivas. Somos continuamente lembrados de que a autora é uma mulher e que o revisor é uma besta”.

A batalha das ideias que se desenrola nos jornais e revistas nos auxilia a ter uma dimensão do clima intelectual de uma época, ainda que o debate sobre o conteúdo próprio dos livros perca força. Encontramos uma resenha mais generosa em 1º de setembro de 1838 no jornal Court Gazette and Fashionable Guide, que inicia o texto destacando que “ensinar à humanidade ‘como observar’ é transmitir a ela uma faculdade muito valiosa”, que se potencializa com as viagens, que tendem a “remover gradualmente os preconceitos que tendemos a ter contra todos os costumes, maneiras e hábitos que diferem materialmente daqueles a que estamos acostumados em casa”.

Também publicado anonimamente, o texto se dedica a ressaltar as qualidades da autora e da obra, destacando trechos em que Martineau fala sobre casamento. Talvez esse recorte se explique pelo público leitor do periódico, referido como “nossas leitoras, a quem nos dedicamos principalmente, [e que estão] suficientemente familiarizadas com as obras de Miss Martineau”. O casamento é abordado por Martineau no capítulo três de How to observe ao tratar do tópico “estado doméstico”. Para a autora, diferentes métodos de casamento existem em toda parte e devem ser estudados pelo observador da moral, uma vez que, através deles, é possível atestar o grau de degradação da mulher e verificar o estado da moral doméstica em qualquer país (Martineau, 183821 MARTINEAU, Harriet. How to observe morals and manners. Londres: Charles Knight and Co., 1838., p. 172-174). A análise da condição feminina via moral doméstica constitui um dos muitos temas que a obra traz, mas nos interessa particularmente por lançar luz sobre a importância de olhar para o espaço doméstico para compreender as dinâmicas da vida social.

Nas críticas feitas pelo The Examiner e pelo The Atlas, a originalidade do livro é ressaltada e a autora é elogiada por sua reputação e competência. Ainda que o revisor do Examiner considere o livro um “empreendimento ousado”, admite que a autora “certamente conseguiu produzir uma contribuição útil para a filosofia da sociedade”. Além disso, apesar das críticas a alguns pontos colocados por Martineau, o artigo afirma que “a autora fixa os princípios da ciência da moral”.

Como é possível entrever no artigo da Quarterly Review, assim como no do Examiner e do Atlas, entre as críticas que partem do princípio da qualidade e utilidade do livro, assim como da competência da autora, os revisores salientam o alto grau de exigência que Martineau demanda dos viajantes que desejam saber como observar a moral e os costumes.

Agora, falando sério, é impossível evitar uma expressão de surpresa que uma pessoa tão perspicaz e razoável como a senhorita Martineau exigisse primeiro do viajante um grau de excelência tão extraordinário, e que, tendo-o vestido com uma combinação tão requintada de poderes, com uma percepção clara do que ele “quer saber”, e com princípios justos, abrangentes e liberais, ela achasse necessário propor a uma pessoa tão talentosa um código de instruções sobre as coisas que ela deve observar

(The Atlas, 4 ago.1838).

Talvez as críticas ao livro sejam mais facilmente compreendidas se entendermos que, naquele contexto, a área das ciências sociais não existia como campo consolidado ou institucionalizado do conhecimento. Nesse sentido, o livro de Martineau era tido como um “livro de dicas” (The Atlas), ou um livro de viagem (The Examiner, The Weekly), que buscava ensinar a “arte da observação”. Portanto, se a proposta do livro era ensinar a observar, não estaria a autora exigindo demais do viajante e investigador? O revisor do The Atlas conclui sua crítica dizendo: “Martineau pode até estar certa, mas nós gostaríamos de deixar que cada um pense por si mesmo”.

É justamente neste ponto que incidem os desafios de uma proposta inovadora no campo da ciência da moral, como chamava Martineau. O objetivo da autora estava mais próximo de desenvolver uma ciência da observação do que aprimorar uma “arte da observação” diletante. Daí sua preocupação com tantos pré-requisitos (morais, filosóficos e mecânicos), no intuito de auxiliar o/a investigador/a a controlar suas premissas, seus preconceitos e o senso comum – princípios que se tornarão, décadas depois, bases da disciplina da Sociologia. Várias das propostas de Martineau são próximas, por exemplo, do que propôs Émile Durkheim em “As regras do Método Sociológico”, em 1895.

Ler as sugestões metodológicas de Martineau hoje em dia deixa evidente o seu pioneirismo no traçado de uma nova ciência do social. Da mesma forma, a recepção de suas obras na imprensa nos auxilia a dimensionar as disputas e embates que configuram a emergência de novos campos do conhecimento – especialmente quando propostos por mulheres. Apesar de ter sido publicado em 1838, How to observe serviu de esquema para um livro publicado um ano antes, Society in America, no qual a autora empregou efetivamente os princípios defendidos para uma observação adequada da moral e dos costumes de uma sociedade. Vejamos a seguir como este livro foi recebido pela crítica.

Society in America

Antes mesmo de Martineau partir para os Estados Unidos, diversas editoras britânicas já disputavam os direitos de publicação do seu American Book. Embora tenha planejado viajar a fim de relaxar e tenha recusado ofertas de publicação, ainda durante a travessia pelo Atlântico, Martineau produziu um longo esboço de orientações metodológicas para a pesquisa no país, posteriormente publicado na forma do manual How to observe morals and manners. A viagem pelos Estados Unidos começou em 1834 e durou dois anos. Martineau foi recebida como uma escritora aclamada e utilizou uma densa rede de contatos com membros do governo (incluindo o próprio presidente), abolicionistas, escravocratas, assim como pessoas de diversas classes e orientações políticas para acessar diferentes aspectos da sociedade norte-americana. Seu trajeto se assemelha de forma impressionante àquele seguido por Alexis de Tocqueville, embora ele tenha permanecido em solo americano por menos tempo (Hill, 200113 HILL, Michael. A methodological comparison of Harriet Martineau’s “Society in America” (1837) and Alexis de Tocqueville’s “Democracy in America” (1835-1840). In: HILL, M. R.; HOECKER-DRYSDALE, S. (org.). Harriet Martineau: theoretical and methodological perspectives. Nova York: Routledge, 2001. p. 59-74.).

Radicais europeus do início do século XIX viam os Estados Unidos como uma espécie de utopia e produziram relatos entusiasmados sobre o experimento democrático no país. Era também comum a suposição de que os Estados Unidos eram uma sociedade igualitária, sem classes sociais (Scholl, 200929 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009.; Lipset, 198118 LIPSET, Seymour M. Harriet Martineau’s America. In: MARTINEAU, H. Society in America. Edição e introdução de Seymour Martin Lipset. Nova York: Routledge, 1981. p. 5-42). Antes mesmo de viajar, Martineau leu extensamente as publicações já existentes sobre os Estados Unidos. Uma vez em rota para o país, resolveu construir parâmetros próprios para evitar o que ela via como generalizações apressadas e parciais sobre um outro povo.

Além de descrever procedimentos de pesquisa e coleta de dados, ela buscou formas de controlar o próprio viés cultural e preconceito nacional, procurando estabelecer padrões de julgamento “independentes”, “justos” e “imparciais” sobre a realidade estudada. Preocupou-se sobretudo em não julgar a sociedade norte-americana a partir dos parâmetros da sua sociedade de origem e, para isso, desenvolveu uma estratégia: em vez de utilizar um padrão arbitrário e implícito, resolveu identificar os princípios professados pela própria sociedade estudada e verificar sua capacidade de realizá-los na prática (Lengermann; Niebrugge-Brantley, 199816 LENGERMANN, Patricia M.; NIEBRUGGE-BRANTLEY, Jill. The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830–1930. Long Groove: Waveland Press, 1998.).

Ao buscar por métodos pelos quais eu poderia comunicar o que observei em minhas viagens, sem nenhuma pretensão de ensinar os ingleses, ou julgar os americanos, dois expedientes me ocorreram e adotei ambos. Um é comparar o atual estado da sociedade na América com os princípios em que ela é declaradamente fundada; portanto, testar as instituições, morais e costumes por um critério indisputável, no lugar de um critério arbitrário, e garantir a mim mesma o mesmo ponto de vista com meus leitores de ambas as nações

(Martineau22 MARTINEAU, Harriet. Society in America. Nova York: Sunders and Otley, 1837. 2 Vol., Society in America, 1837, s/p).

Os temas abordados nos capítulos do livro incluem instituições de governo, política, imprensa, cidadania, status das pessoas de cor, mulheres, crianças, prisioneiros e imigrantes, economia, agricultura, escravidão, ideias sobre honra, status, propriedade e religião (Martineau, 183722 MARTINEAU, Harriet. Society in America. Nova York: Sunders and Otley, 1837. 2 Vol.). O foco na mudança social e nas contradições entre “moral” e “costume” apontou o olhar para as tensões entre os princípios proclamados na Declaração de Independência e na Constituição norte-americanas e as práticas da escravidão, da sujeição das mulheres, de preconceito contra os imigrantes, assim como as desigualdades de riqueza. Ao colocar os temas da escravidão e da subordinação das mulheres no centro da análise, apontou clivagens entre os princípios e a experiência vivida. Ao mesmo tempo, via tais tensões entre os princípios e práticas como um motor para mudanças sociais e, portanto, para a futura melhora das condições desses mesmos grupos sociais.

A subdivisão das partes [...] permite que a autora abarque todas as variedades de assuntos e organize os resultados da observação pessoal e da experiência da maneira mais ordenada e metódica possível. A obra, portanto, não pode se gabar da atração comum do interesse pessoal e da aventura; mas pode reivindicar um modo mais filosófico e abrangente de tratar os assuntos que abrange do que geralmente ocorre em livros da mesma classe. Torna-se assim mais exata e instrutiva, embora não mais divertida ou atraente. A autora adotou um expediente engenhoso para evitar comparações nacionais ofensivas. O estado existente da sociedade na América, suas instituições, moral e costumes, são avaliados não pelo padrão arbitrário das opiniões europeias, mas pelos princípios democráticos admitidos que constituem a base da sociedade na América

(The Morning Post, 14 jun. 1837).

Society in America foi publicado simultaneamente na Inglaterra e Estados Unidos. De modo geral, gerou controvérsia e reações em ambos os países (Scholl, 200929 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009.; Lipset, 198118 LIPSET, Seymour M. Harriet Martineau’s America. In: MARTINEAU, H. Society in America. Edição e introdução de Seymour Martin Lipset. Nova York: Routledge, 1981. p. 5-42). Entre os temas polêmicos, podemos destacar seu tratamento da questão feminina, da escravidão e da discriminação racial no Norte do país. Martineau irritou a opinião pública norte-americana ao narrar uma relação de apatia e indiferença dos cidadãos com relação à política, uma constante pressão à conformidade à opinião majoritária, bem como uma crescente concentração de riqueza, que produziria abismos sociais. Ao mesmo tempo, incomodou a imprensa britânica conservadora, que encarou o livro como uma apologia do sistema democrático norte-americano.

Ainda assim, a repercussão de Society in America foi diferente em cada lado do Atlântico. No Reino Unido, o livro teve uma recepção mista. O periódico britânico The Monthly Review teceu comentários elogiosos à obra, destacando sua organização, métodos de observação e, principalmente, a análise do escravismo do Sul, “cujos efeitos ela escrutina e expõe da forma mais magistral já vista” (The Monthly Review, 1837, p. 288). A publicação, especializada em resenhas mensais, deu destaque também às descrições de Martineau da existência de uma tirania majoritária em questões de opinião e aos seus apontamentos a respeito dos vieses, parcialidade e omissões da imprensa. Nota-se ainda um encantamento do resenhista com as descrições vívidas de diálogos, costumes e reações dos norte-americanos. As principais objeções à autora foram quanto ao tratamento conferido à condição política das mulheres: dado o impedimento da sua participação na formulação das leis que regiam a sua vida, Martineau proclamou que elas não deviam obediência a elas. Tais observações foram consideradas pelo Monthly Review “extravagantes”, “ilógicas”, “pretensiosas”, ainda que suas intenções fossem “admiráveis”.

O jornal britânico conservador Fraser’s Magazine, por outro lado, publicou sob o título “Practical reasoning versus impractical theories” uma longa crítica ao suposto viés democrata da autora. Segundo o autor, sob uma fachada de objetividade, Martineau teria utilizado os Estados Unidos como fonte de crítica para a Inglaterra, lançando mão de “especulações morais” para falsificar os resultados do “autogoverno do povo”, sustentar a ficção da igualdade entre os homens e defender seu igual direito e aptidão ao sufrágio. Entre as “teorias impraticáveis” de Martineau estaria também a sua defesa dos direitos das mulheres. A resenha refere-se a tais direitos como o “hobby favorito” da autora, acusando-a de pregar o fim do casamento, da religião e de opor-se às próprias leis naturais da desigualdade entre os sexos.

Tanto as resenhas publicadas na imprensa britânica quanto na norte-americana criticaram sua análise da posição das mulheres (Scholl, 201929 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009.). Contudo, o livro parece ter causado mais furor nos Estados Unidos. O The North American Review, uma das primeiras revistas literárias norte-americanas, acusa a autora de “confusão”, “erro, “inexatidão” e “ingenuidade”, descrevendo o livro como “dois volumes de miscelâneas” compostos por “julgamentos duros e inúteis”. Em tom paternalista e irônico, a publicação critica sobretudo sua descrição e avaliação das instituições norte-americanas e da imprensa, assim como da opinião pública.

Ela não vê dificuldade, por um lado, em recomendar a nós, que há muito tempo já tivemos algumas lições sólidas na escola de uma liberdade regulamentada e benéfica, um sistema político que há quarenta anos foi totalmente testado e considerado deficiente na França, fazendo daquele belo país por um tempo um covil de selvagens; enquanto isso, por outro lado, ela entra em declarações elaboradas, em benefício dos amigos do regime hereditário e militar, mostrando que a experiência de instituições livres, que os bons e sábios do mundo têm acompanhado com intensa esperança, conosco falhou vergonhosa e desesperadamente

(The North American Review, 1837, p. 460).

A pesquisadora Lesa Scholl (2019)29 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009. fez um extenso levantamento das resenhas de Society in America nos jornais e revistas britânicos e norte-americanos. Sua pesquisa aponta que, de modo geral, a imprensa britânica – conservadora ou não – encarou o livro como uma celebração e idealização dos Estados Unidos. Curiosamente, parte significativa dos resenhistas norte-americanos acusaram-na justamente do contrário, isto é, de criticar os Estados Unidos em excesso. Scholl (2019)29 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009. conclui que tais reações deveram-se ao fato de que as proposições de Martineau representavam uma ameaça às estruturas sociais e políticas de ambos os países. Essas objeções, contudo, parecem não ter impedido o sucesso de Society in America. Na introdução à edição condensada publicada em 1981, o sociólogo Seymour Martin Lipset aponta que, não obstante a polêmica, o livro foi altamente influente e elogiado.

Fonte de muita controvérsia tanto na Grã-Bretanha como na América, [o livro] desempenhou um papel importante na formação da opinião inglesa, particularmente entre a esquerda liberal de sua época. Charles Dickens, embora não estivesse nesta categoria, descreveu-o como o melhor livro escrito sobre os Estados Unidos. Baseado em uma estadia de dois anos de 1834-1836, está repleto de descrições vívidas da vida na época, análises de várias instituições e padrões de comportamento, e uma quantidade considerável do que até mesmo para seus contemporâneos era uma irritante moralização sobre diversos assuntos. Uma leitura cuidadosa de Society in America revela um retrato analítico relativamente integrado da América da época de Andrew Jackson, oferecendo muito aos interessados nos fatores subjacentes ao dito caráter nacional americano

(Lipset, 198118 LIPSET, Seymour M. Harriet Martineau’s America. In: MARTINEAU, H. Society in America. Edição e introdução de Seymour Martin Lipset. Nova York: Routledge, 1981. p. 5-42, p. 10).

Em sua autobiografia, Martineau relata que a recepção do livro não a surpreendeu. A prática de comparar Estados Unidos e Europa era tão firmemente estabelecida que ela “tinha pouca esperança de ser compreendida por mais do que um punhado de pessoas” (Martineau, 187720 MARTINEAU, Harriet. Harriet Martineau’s Autobiography. CHAPMAN, M. W., Ed. Boston: James R. Osgood & Co, 1877. 2 Vol., vol I, p. 248-249). O próprio público norte-americano, disse ela, estava tão habituado às idealizações e comparações dos viajantes europeus que seria difícil aceitar as conclusões do livro, que analisava a democracia na teoria e na prática. “Entre as tantas resenhas dos meus livros sobre a América e o Egito, não houve, até onde eu saiba, nenhuma que não tenha demonstrado ignorância sobre os respectivos países” (Martineau, 187720 MARTINEAU, Harriet. Harriet Martineau’s Autobiography. CHAPMAN, M. W., Ed. Boston: James R. Osgood & Co, 1877. 2 Vol., vol I, p. 248-249).

Considerações finais

Society in America feriu sensibilidades políticas na Inglaterra e Estados Unidos e sua recepção foi marcada por controvérsia. A leitura conjunta das resenhas dessa obra com as resenhas de How to Observe Morals and Manners revela o quadro mais amplo de dificuldades enfrentadas pela autora. Na falta de uma disciplina sociológica institucionalizada, cujos parâmetros fossem conhecidos, compartilhados e legitimados por uma comunidade e suas instituições, Martineau precisou persuadir jornalistas, intelectuais e críticos da própria pertinência de construir e observar regras e critérios científicos de pesquisa e de promover a separação entre a observação casual e a observação metódica.

Se alguns resenhistas receberam How to observe morals and manners com ceticismo, no caso de Society in America as dificuldades foram ainda maiores. Martineau documentou e reportou aos leitores seus meios de observação e apoiou seu trabalho em métodos e parâmetros explícitos. Para tentar controlar seu viés cultural, adotou como estratégia a comparação entre a “moral” e o “costume” da própria sociedade estudada. Finalmente, convidou os leitores a examinar a lógica e fundamentos empíricos das suas conclusões, proporcionando dados, transcrições de diálogos e descrições etnográficas para sustentar afirmações.

Ainda assim, ao tratar de temas de alta voltagem política em um momento em que não havia uma separação nítida entre ciência, política, literatura, viagem e pesquisa, seu livro foi rapidamente assimilado às controvérsias políticas do momento. As resenhas da obra mostram que seus autores presumiram que o texto deveria necessariamente servir a algo ou alguém e, por esse motivo, lidaram com dificuldade com as descobertas desconcertantes de uma pesquisa realizada com independência e controle de viés.

Em How to Observe Morals and Manners, Martineau oferece várias descrições dos objetivos de uma nascente ciência da sociedade: “iluminar a visão”, “retificar a compreensão”, “promover o entendimento”, cultivar o “espírito da imparcialidade”, bem como buscar o “respeito”, o “amor” e a “compreensão mútua” entre os povos. Tais ideias ainda possuíam muitos obstáculos a transpor na primeira metade do século XIX, quando a Sociologia ainda não havia se institucionalizado e, portanto, não havia ganhado relativa autonomia face às pressões políticas e sociais.

Martineau foi inúmeras vezes aconselhada por amigos e editores a fazer um trabalho mais “moderado e popular”. Em suas cartas privadas, no entanto, insistia que o público precisava aprender a partir de suas experiências e referia-se à eventual impopularidade como “ossos do ofício” (Scholl, 200929 SCHOLL, Lesa. Mediation and expansion: Harriet Martineau’s travels in America. Women’s History Review, v. 18, n. 5, p. 819-833, 2009.). Ao revisitar essa época em sua autobiografia, afirmou: “eu nunca me arrependi do tom ousado do discurso [de Society in America]. [...] nada faria valer a pena sacrificar a liberdade de pensamento e expressão” (Martineau, 187720 MARTINEAU, Harriet. Harriet Martineau’s Autobiography. CHAPMAN, M. W., Ed. Boston: James R. Osgood & Co, 1877. 2 Vol., v. 1, p. 250).

  • 1
  • 2
    A maior parte dos resultados encontrados a partir dessas palavras-chave foi excluída de nossa seleção por constituir pequenas entradas que se referem à propaganda, divulgação de lançamento e venda dos livros.
  • 3
    Segundo Susan Hoecker-Drysdale, os contos de Illustrations of Political Economy venderam, em média, mais de dez mil cópias por mês. No mesmo período, John Stuart Mill vendeu em torno de 3 mil cópias em quatro anos e foi considerado um sucesso editorial. “A popularidade dos contos é atestada pelas vendas extremamente altas [...] e pelo fato de que, mesmo com moderadas taxas de remuneração pelos direitos autorais, Martineau garantiu não apenas sua independência financeira, mas sua reputação como educadora pública e intérprete de doutrinas científicas” (Hoecker-Drysdale, 200314 HOECKER-DRYSDALE, Susan. Harriet Martineau. In: RITZER, G. (org.). The Blackwell companion to major classical social theorists. Londres: Blackwell Publishing, 2003., p. 56, tradução livre).
  • 4
    O obituário escrito por Martineau, em terceira pessoa, foi publicado em 29 de junho de 1876 no jornal Daily News, periódico fundado por Charles Dickens onde trabalhou como jornalista durante muitos anos.
  • 5
    Foi possível localizar notícias referentes à recusa da pensão em: London Evening Standard, terça-feira, 25 out. 1842; Leeds Times, sábado, 29 out. 1842; Kerry Evening Post, 9 nov. 1842; Warder and Dublin Weekly Mail, sábado, 5 nov. 1842.
  • 6
    Todos os trechos de jornais aqui citados foram traduzidos livremente.
  • 7
    Além de ser companheira de viagem, Louisa Jeffrey também atuou como assistente de pesquisa, ajudando a organizar a turnê e a buscar as informações que Martineau desejava aprender. Apesar disso, ela não aparece nem em Society in America, nem em How to observe. Encontramos registro dessa parceria apenas na autobiografia de Martineau, onde Jeffrey aparece como “Miss J.”.
  • 8
    Esse trecho encontra-se no capítulo III de How to observe morals and manners, “Mechanical Requisites”. Ver: Martineau, 183821 MARTINEAU, Harriet. How to observe morals and manners. Londres: Charles Knight and Co., 1838., páginas 53-54.
  • 9
    Revista ilustrada voltada para as classes populares. Era editada por Charles Knight, o mesmo editor que dirigia a série How to observe, em que Martineau publicou o volume sobre Morals and Manners.

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Jornais e periódicos consultados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2022
  • Aceito
    11 Nov 2022
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