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Influência da energia de mistura e do pré-cisalhamento na ­caracterização reológica de pastas de cimento

Influence of mixing energy and pre-shear on the rheological characterization of cement pastes

RESUMO

A análise do comportamento reológico pode englobar diferentes materiais, entre eles os cimentícios, como ­pastas, argamassas e concretos que, no estado fresco, se comportam como fluidos. Em geral, o controle de quali­dade destes materiais no estado fresco é efetuado por meio de ensaios empíricos que visam qualificar propriedades como consistência, fluidez, entre outras. Entretanto, os testes empíricos não são capazes de caracterizar completamente o comportamento reológico dos materiais cimentícios, sendo necessário para isto recorrer aos ensaios reométricos, nos quais é possível obter os parâmetros reológicos fundamentais – viscosidade e tensão limite de escoamento – desses compósitos. A caracterização reológica dos materiais cimentícios envolve a determinação de parâmetros reológicos de suspensões complexas, compostas por diversos materiais constituintes que interagem entre si, sob o ponto de vista químico e físico. Outros fatores, tais como geometria do equipamento, temperatura, energia de mistura, protocolo de ensaio, também podem influenciar na determinação das propriedades reológicas desses compósitos. Nesse sentido, o presente estudo procurou avaliar a influência da energia de mistura e do pré-cisalhamento nas propriedades reológicas de pastas de cimento. Para tanto, foram estudadas amostras com relações água/cimento iguais a 0,40, 0,45, 0,50, 0,55, 0,60 e 0,65, em massa. Dois níveis de energia de mistura foram empregados: mistura de baixa intensidade (rotação máxima igual a, aproximadamente, 270 rpm), com argamassadeira planetária; e mistura de alta intensidade (rotação máxima igual a, aproximadamente, 12.000 rpm), com misturador de alto cisalhamento. Foram instituídos dois protocolos de ensaio, sendo um com pré-cisalhamento nulo (repouso por 90 s da amostra no reômetro) e outro com aplicação de taxa de deformação constante igual a 100 s–1, durante 60 s, seguido de repouso do material por 30 s. Os resultados obtidos indicaram que a energia de mistura e o pré-cisalhamento influenciam significativamente o comportamento reológico das pastas de cimento com maior volume de sólidos (relação a/c ≤ 0,45).

Palavras-chave
Reologia; Reometria; Pasta de Cimento; Energia de Mistura; Pré-cisalhamento

ABSTRACT

The analysis of rheological behavior can encompass different materials, including cementitious materials, such as pastes, mortars and concretes, which, in fresh state, behave like fluids. In general, the quality control of these materials in fresh state is carried out through empirical tests that aim to qualify properties such as consistency, fluidity, among others. However, empirical tests are not able to completely characterize the rheological behavior of cementitious materials, being necessary for this to carry out rheometric tests, in which it is possible to obtain the fundamental rheological parameters – viscosity and yield stress – of these composites. Rheological characterization of cementitious materials involves the determination of rheological parameters of complex suspensions, composed of different constituent materials that interact with each other, from a chemical and physical point of view. Other factors, such as equipment geometry, temperature, mixing energy, test protocol, can also influence the determination of the rheological properties of these composites. In this sense, the aim of this study is to evaluate the influence of mixing energy and pre-shear on the rheological properties of cement pastes. For this purpose, samples with water/cement ratios equal to 0.40, 0.45, 0.50, 0.55, 0.60 and 0.65 by weight were studied. Two levels of mixing energy were used: low intensity mixing (maximum rotation equal to, approximately, 270 rpm), with a planetary mixer; and high intensity mixing (maximum rotation equal to, approximately, 12,000 rpm) with a high shear mixer. Two test protocols were established, one with zero pre-shear (resting for 90 s of the sample in the rheometer) and the other with application of a constant shear rate equal to 100 s–1, for 60 s, followed by rest of the material for 30 s. The results indicated that the mixing energy and pre-shear significantly influence the rheological behavior of cement pastes with higher solids volume (w/c ratio ≤ 0.45).

Keywords:
Rheology; Rheometry; Cement Paste; Mixing Energy; Pre-Shear

1. INTRODUÇÃO

Concretos e argamassas podem ser definidos como materiais de natureza multifásica, compostos por uma suspensão coloidal (pasta de cimento), pela fração granular (agregados) e pelo ar aprisionado. Adições minerais, aditivos químicos e fibras podem ser empregados a fim de ressaltar ou inibir determinadas propriedades destes compósitos.

Para que os materiais cimentícios atendam aos requisitos de consistência, resistência e durabilidade que lhes são esperados, em função de sua aplicação, é necessário o correto proporcionamento dos materiais cons­tituintes, assim como o controle efetivo de suas propriedades nos estados fresco e endurecido. No entanto, o controle de qualidade dos compósitos cimentícios se dá, em geral, exclusivamente no estado endurecido por meio de ensaios de resistência à compressão [1[1] GEYER, A.L.B., SÁ, R.R. “Importância do controle de qualidade do concreto no estado fresco”, Informativo Técnico n. 2. Aparecida de Goiânia: Realmix, 2006. 2[2] MACIEL, G.F., BARBOSA, M.P., PEREIRA, J.B., “Análise comparativa da tensão limite de escoamento de argamassas por meio da técnica de Pashias e reometria rotacional”, Matéria (Rio J.), v. 21, pp. 866–879, 2016. 3[3] PEREIRA, J.B., MACIEL, G.F., “Medida de consistência do concreto pelo abatimento do tronco de cone automatizado: sua validação e potencialidades”, Matéria (Rio J.), v. 26, n. 4, e13088, 2021.].

Tendo em vista que a resistência e a durabilidade dos materiais cimentícios são seriamente influenciadas pelo grau de compactação, é de extrema importância garantir que as pastas, argamassas e concretos apresentem propriedades adequadas no estado fresco, de modo a serem transportados, lançados, adensados e acabados corretamente, sem segregação e/ou exsudação [4[4] KUMAR MEHTA, P., MONTEIRO, P.J.M., Concreto-Microestrutura, Propriedades e Materiais. 2 ed. São Paulo: IBRACON, 2014., 5[5] NEVILLE, A.M., Propriedades do Concreto, 5 ed. Porto Alegre: Bookman, 2016.].

A caracterização dos materiais à base de cimento no estado fresco é executada por meio de ensaios empíricos (abatimento de tronco de cone, funil V, cone de Marsh, caixa L, etc.), que têm por finalidade qualificar propriedades como consistência, capacidade de escoamento, bombeabilidade, habilidade passante, entre outras, e até mesmo inferir algum parâmetro reológico fundamental – viscosidade e/ou tensão limite de escoamento [6[6] TOUTOU, Z., ROUSSEL, N., “Multi scale experimental study of concrete rheology: from water scale to gravel scale”, Materials and Structures, v. 39, n. 2, pp. 189–199, 2006.]. Contudo, os testes empíricos não são capazes de caracterizar completamente o comportamento reológico dos materiais cimentícios. Para tanto, é necessário recorrer aos ensaios reométricos, nos quais é possível obter os parâmetros reológicos fundamentais destes compósitos [7[7] FEYS, D., CEPURITIS, R., JACOBSEN, S., et al., “Measuring rheological properties of cement pastes: most common techniques, procedures and challenges”, Rilem Technical Letters, v. 2, pp. 129–135, 2017.].

A reologia é a ciência do escoamento e da deformação da matéria, a qual concerne o estudo das interações entre tensão de cisalhamento, taxa de deformação e tempo [8[8] BANFILL, P.F.G., “Rheological methods for assessing the flow properties of mortar and related materials”, Construction and Building Materials, v. 8, n. 1, pp. 43–50, 1994.]. O estudo reológico dos materiais cimentícios envolve a caracterização de uma suspensão complexa, que apresenta partículas de grande gama de tamanho – desde nanômetros até dezenas de milímetros [9[9] FERRARIS, C.F.; MARTYS, N.S., “Concrete rheometers”, In: Roussel, N. (ed), Understanding the rheology of concrete. Cambridge: Woodhead Publishing, 2012.]. Além disso, a reatividade do cimento e de algumas adições minerais e o efeito dos aditivos químicos, tornam a determinação das propriedades reológicas desses materiais ainda mais desafiadora.

O entendimento das propriedades reológicas da pasta de cimento pode prover informações importantes sobre sua microestrutura e interação entre seus componentes, sendo essencial para a completa compreensão do comportamento do concreto no estado fresco [10[10] SANT, G., FERRARIS, C.F., WEISS, J., “Rheological properties of cement pastes: a discussion of structure formation and mechanical property development”, Cement and Concrete Research, v. 38, n. 11, pp. 1286–1296, 2008., 11[11] YAHIA, A., “Effect of solid concentration and shear rate on shear-thickening response of high-­performance cement suspensions”, Construction and Building Materials, v. 53, pp. 517–521, 2014.]. Nesse sentido, diversos autores [12[12] FERRARIS, C.F., OBLA, K.H., HILL, R., “The influence of mineral admixtures on the rheology of cement paste and concrete”, Cement and Concrete Research, v. 31, n. 2, pp. 245–255, 2001., 13[13] AL-MARTINI, S., NEHDI, M., “Genetic algorithm rheological equations for cement paste”, Proceedings of the Institution of Civil Engineers, v. 163, n. 2, p. 77–85, 2010., 14[14] KONG, X., ZHANG, Y., HOU, S., “Study on the rheological properties of Portland cement pastes with polycarboxylate superplasticizers”, Rheologica Acta, v. 52, n. 7, pp. 707–718, 2013., 15[15] LI, B., MAO, J., LEI H., et al., “Investigation of the rheological properties of cement paste with different superplasticisers based on colour function and RDS methods”, Advances in Cement Research, v. 28, n. 6, pp. 357–370, 2016.] consideram vantajoso conhecer as características reológicas das pastas de cimento antes de se discutir as propriedades reológicas do concreto.

Os parâmetros reológicos das pastas de cimento, em regime permanente, são obtidos por meio de curvas de fluxo, que correlacionam diversas taxas de deformação com as respectivas tensões de cisalhamento, ou vice-versa. A determinação de tais curvas é efetuada, em geral, por meio de protocolos de ensaio constituídos de etapas ascendente e descendente, isto é, com incremento e decréscimo progressivo, respectivamente, da taxa de deformação ou da tensão de cisalhamento imposta, em um determinado intervalo de tempo. As variações na taxa de deformação ou na tensão de cisalhamento podem ser efetuadas de modo linear ou em patamares, nos quais o parâmetro imposto é mantido constante durante um dado tempo [7[7] FEYS, D., CEPURITIS, R., JACOBSEN, S., et al., “Measuring rheological properties of cement pastes: most common techniques, procedures and challenges”, Rilem Technical Letters, v. 2, pp. 129–135, 2017.]. Para garantir que o material ensaiado apresente o mesmo histórico de cisalhamento e uniformidade, é usual empregar uma etapa precedente à curva ascendente, conhecida como pré-cisalhamento, que consiste, em geral, na aplicação de uma taxa de deformação (ou tensão de cisalhamento) constante por um determinado tempo, seguida por um curto período de repouso do material [13[13] AL-MARTINI, S., NEHDI, M., “Genetic algorithm rheological equations for cement paste”, Proceedings of the Institution of Civil Engineers, v. 163, n. 2, p. 77–85, 2010., 16[16] BESSAIES-BEY, H., BAUMANN, R., SCHMITZ., et al., “Organic admixtures and cement particles: Competitive adsorption and its macroscopic rheological consequences”, Cement and Concrete Research, v. 80, pp. 1–9, 2016.]. Os ensaios reológicos costumam ser executados em condições de temperatura e umidade controladas, exceto quando estes fatores são as variáveis em estudo [7[7] FEYS, D., CEPURITIS, R., JACOBSEN, S., et al., “Measuring rheological properties of cement pastes: most common techniques, procedures and challenges”, Rilem Technical Letters, v. 2, pp. 129–135, 2017.]. Usualmente, o tempo decorrido entre o contato da água com o aglomerante e os ensaios reométricos é fixado, visando a análise dos compósitos em um mesmo grau de hidratação.

É possível encontrar na literatura especializada estudos sobre a influência de diversos fatores no comportamento reológico de suspensões cimentícias, tais como: ação dos aditivos químicos e adições minerais [12[12] FERRARIS, C.F., OBLA, K.H., HILL, R., “The influence of mineral admixtures on the rheology of cement paste and concrete”, Cement and Concrete Research, v. 31, n. 2, pp. 245–255, 2001., 13[13] AL-MARTINI, S., NEHDI, M., “Genetic algorithm rheological equations for cement paste”, Proceedings of the Institution of Civil Engineers, v. 163, n. 2, p. 77–85, 2010., 14[14] KONG, X., ZHANG, Y., HOU, S., “Study on the rheological properties of Portland cement pastes with polycarboxylate superplasticizers”, Rheologica Acta, v. 52, n. 7, pp. 707–718, 2013., 15[15] LI, B., MAO, J., LEI H., et al., “Investigation of the rheological properties of cement paste with different superplasticisers based on colour function and RDS methods”, Advances in Cement Research, v. 28, n. 6, pp. 357–370, 2016., 16[16] BESSAIES-BEY, H., BAUMANN, R., SCHMITZ., et al., “Organic admixtures and cement particles: Competitive adsorption and its macroscopic rheological consequences”, Cement and Concrete Research, v. 80, pp. 1–9, 2016., 17[17] BANFILL, P.F.G., “Additivity effects in the rheology of fresh concrete containing water reducing admixtures”, Construction and Building Materials, v. 25, n. 6, pp. 2955–2960, 2011., 18[18] NG, S., JUSTNES, H., “Influence of plasticizers on the rheology and early heat of hydration of blended cements with high content of fly ash”, Cement and Concrete Composites, v. 65, p. 41–54, 2016., 19[19] MENDES, M., BAUER, E., SILVA, F., “Avaliação dos parâmetros de autoadensabilidade e de reologia do concreto autoadensável”, Matéria (Rio J.), v. 22, n. 4, e-11878, 2017., 20[20] SCHANKOSKI, R.A., PILAR, R., PILEGGI, R., et al., “Avaliação da reologia de concretos autoadensáveis contendo fílers de britagem”, Matéria (Rio J.), v. 22, n. 2, e11818, 2017., 21[21] COSTA, A.R.D., MASUERO, A.B., GONÇALVES, J.P., “Avaliação reológica sob diferentes temperaturas de pastas cimentícias aditivadas com diferentes tipos de aditivos superplastificantes à base de policarboxilatos”, Matéria (Rio J.), v. 25, n. 4, e12882, 2020., 22[22] SÉRGIO FILHO, J., SINHORELLI, K., MEDEIROS., et al., “Estudo da reologia de pastas cimentícias contendo resíduo de tijolo cerâmico moído e metacaulim”, Matéria (Rio J.), v. 25, n. 1, e-12554, 2020., 23[23] HORTA, R.A.S. et al., “Avaliação do comportamento reológico de pastas de cimento com adição de óxido de grafeno”, Matéria (Rio J.), v. 26, n. 3, e13013, 2021.]; temperatura [21[21] COSTA, A.R.D., MASUERO, A.B., GONÇALVES, J.P., “Avaliação reológica sob diferentes temperaturas de pastas cimentícias aditivadas com diferentes tipos de aditivos superplastificantes à base de policarboxilatos”, Matéria (Rio J.), v. 25, n. 4, e12882, 2020., 24[24] GWON, S., SHIN, M.., “Rheological properties of modified sulfur polymer composites containing cement-fly ash blend at different temperatures”, Construction and Building Materials, v. 228, 116784, 2019., 25[25] PETIT, J.-Y., WIRQUIN, E., KHAYAT, K.H., “Effect of temperature on the rheology of flowable mortars”, Cement and Concrete Composites, v. 32, n. 1, pp. 43–53, 2010.]; procedimento e energia de mistura [26[26] YANG, M., JENNINGS, H.M., “Influences of mixing methods on the microstructure and rheological behavior of cement paste”, Advanced Cement Based Materials, v. 2, n. 2, pp. 70–78, 1995., 27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999., 28[28] HAN, D., FERRON, R.D., “Effect of mixing method on microstructure and rheology of cement paste”, Construction and Building Materials, v. 93, pp. 278–288, 2015., 29[29] FUKUI, E., MARTINS, E.J., CAMPOS, H.F., et al., “Efeito do procedimento de mistura no comportamento no estado fresco de argamassas de revestimento produzida em obra e industrializada”, Matéria (Rio J.), v. 23, n. 1, e-11956, 2018., 30[30] JIAO, D., SHI, C., YUAN, Q., “Influences of shear-mixing rate and fly ash on rheological behavior of cement pastes under continuous mixing”, Construction and Building Materials, v. 188, pp. 170–177, 2018., 31[31] HAN, D., FERRON, R.D., “Influence of high mixing intensity on rheology, hydration, and microstructure of fresh state cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 84, pp. 95–106, 2016.]; protocolo e instrumentação de ensaio ­[31[31] HAN, D., FERRON, R.D., “Influence of high mixing intensity on rheology, hydration, and microstructure of fresh state cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 84, pp. 95–106, 2016., 32[32] ASSAAD, J.J., HARB, J., MAALOUF, Y., “Effect of vane configuration on yield stress measurements of cement pastes”, Journal of Non-Newtonian Fluid Mechanics, v. 230, pp. 31–42, 2016., 33[33] CAMPOS, R.S., MACIEL, G.F., “Test protocol and rheological model influence on determining the rheological properties of cement pastes”, Journal of Building Engineering, v. 44, 103206, 2021.]; morfologia dos agregados [34[34] CEPURITIS, R., JACOBSEN, S., PEDERSON, B., et al., “Crushed sand in concrete–effect of particle shape in different fractions and filler properties on rheology”, Cement and Concrete Composites, v. 71, pp. 26–41, 2016., 35[35] HAFID, H., OVARLEZ, G., TOUSSAINT, F., et al., “Effect of particle morphological parameters on sand grains packing properties and rheology of model mortars”, Cement and Concrete Research, v. 80, pp. 44–51, 2016.], entre outros. Entretanto, tais estudos, em sua maioria, se restringem à avaliação de uma única fase dos compósitos cimentícios (pasta, argamassa ou concreto), utilizam equipamentos e protocolos de ensaios diversos e, dada a expressiva variedade de materiais constituintes, com diferentes composições químicas e características morfológicas, as comparações entre os resultados apresentados na literatura tornam-se quase impossíveis, sendo meramente especulativas

1.1. Referencial teórico

Muitos fatores podem afetar o comportamento reológico dos materiais à base de cimento, no entanto, a influência da energia de mistura e da etapa de pré-cisalhamento na caracterização reológica destes materiais ainda não são completamente entendidas. YANG e JENNINGS [26[26] YANG, M., JENNINGS, H.M., “Influences of mixing methods on the microstructure and rheological behavior of cement paste”, Advanced Cement Based Materials, v. 2, n. 2, pp. 70–78, 1995.] estudaram pastas de cimento com relação água/cimento (a/c) igual 0,37, misturadas manualmente durante 5 minutos, usando argamassadeira convencional (300 rpm), por 5 minutos, misturador de alta intensidade (3.000 rpm) por 1 minuto e uma pasta misturada manualmente por 5 minutos, produzida com cimento peneirado (peneira 150 µm). Foi observado que a pasta misturada manualmente exibiu os maiores picos de tensão e aquelas misturadas no misturador de alta intensidade e manualmente com cimento peneirado, demonstraram comportamento similar, com os menores picos de tensão. A pasta de cimento misturada em argamassadeira exibiu comportamento intermediário de pico de tensão. Este fato pode indicar que, peneirar o cimento causa a separação e quebra dos aglomerados formados antes do contato do cimento com a água, e que tais aglomerados contribuem significativamente para o comportamento reológico das pastas de cimento. Os autores observaram ainda que as pastas de cimento com maiores picos de tensão exibiram partículas não hidratadas de cimento (visualização por meio de microscopia eletrônica de varredura), demonstrando que não houve a ruptura das partículas de cimento aglomeradas e que estas permaneceram não hidratadas, sendo potenciais fontes de defeitos microestruturais.

WILLIAMS, SAAK e JENNINGS [27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999.] avaliaram a influência da energia de mistura em pastas de cimento com relação a/c igual a 0,40, na qual foram empregados diversos métodos de mistura – manual, argamassadeira planetária (140 a 285 rpm) e alta intensidade (500, 1.500 e 2.500 rpm). Os autores também estudaram uma pasta de cimento extraída de um concreto sem finos, misturado em betoneira (20 rpm). Os resultados obtidos demons­traram que as áreas de histerese foram menores para as pastas de cimento misturadas com maior intensidade (1.500 e 2.500 rpm), indicando maior grau de desestruturação das misturas. As pastas de cimento misturadas manualmente e com misturador a 500 rpm apresentaram comportamento similar, exibindo as maiores áreas de histerese, enquanto aquelas misturadas em argamassadeira apresentaram comportamento intermediário entre as de alta intensidade (1.500 e 2.500 rpm) e as misturadas a mão e no misturador com velocidade de 500 rpm. A pasta de cimento extraída do concreto sem finos apresentou área de histerese entre as das pastas misturadas em alta intensidade (1.500 e 2.500 rpm), o que sugere ser necessário maior nível de energia de mistura do que o obtido por meio de uma argamassadeira convencional para simular o efeito do cisalhamento ao qual a pasta de cimento será submetida quando no processo de produção do concreto.

Ao estudar pastas de cimento com relação a/c variando de 0,32 a 0,39, em massa, com e sem superplastificante e com emprego dos procedimentos de mistura especificados nas normas ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.] e C1738 [37[37] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C1738M–14: Standard Practice for High-Shear Mixing of Hydraulic Cement Pastes. West Conshohocken: ASTM, 2014.] e com a extensão destes procedimentos por dois minutos adicionais de mistura, em velocidade máxima, HAN e FERRON [28[28] HAN, D., FERRON, R.D., “Effect of mixing method on microstructure and rheology of cement paste”, Construction and Building Materials, v. 93, pp. 278–288, 2015.] verificaram que as propriedades reológicas – tensão limite de escoamento e viscosidade plástica, aumentaram com o incremento da energia e do tempo de mistura, sugerindo que as pastas sujeitas à maior cisa­lhamento apresentam um estado microestrutural de maior aglomeração. Os resultados obtidos contrastam com o verificado por outros autores [26[26] YANG, M., JENNINGS, H.M., “Influences of mixing methods on the microstructure and rheological behavior of cement paste”, Advanced Cement Based Materials, v. 2, n. 2, pp. 70–78, 1995., 27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999., 30[30] JIAO, D., SHI, C., YUAN, Q., “Influences of shear-mixing rate and fly ash on rheological behavior of cement pastes under continuous mixing”, Construction and Building Materials, v. 188, pp. 170–177, 2018.]. HAN e FERRON [28[28] HAN, D., FERRON, R.D., “Effect of mixing method on microstructure and rheology of cement paste”, Construction and Building Materials, v. 93, pp. 278–288, 2015.] observaram que os incrementos nas propriedades reológicas foram mais pronunciados nas pastas contendo superplastificante, o que pode indicar que a alta intensidade de mistura afeta a adsorção dos polímeros junto à superfície das partículas de cimento. Por meio dos ensaios de calorimetria observaram que as pastas preparadas conforme o procedimento de alta intensidade apresentaram aceleração na cinética de hidratação, em comparação com aquelas produzidas segundo o procedi­mento de norma ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.]. Foi verificado que as pastas preparadas conforme norma ASTM C1738 [37[37] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C1738M–14: Standard Practice for High-Shear Mixing of Hydraulic Cement Pastes. West Conshohocken: ASTM, 2014.] apresentaram condições de floculação, enquanto aquelas preparadas seguindo a norma ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.] aparentavam equilíbrio entre os estados de agregação/desagregação.

JIAO, SHI e YUAN [30[30] JIAO, D., SHI, C., YUAN, Q., “Influences of shear-mixing rate and fly ash on rheological behavior of cement pastes under continuous mixing”, Construction and Building Materials, v. 188, pp. 170–177, 2018.] investigaram a influência da cinza volante (em substituição a 25 e 50% do cimento) e do cisalhamento contínuo (1, 15 e 30 s–1) nas propriedades reológicas – tixotropia, viscosidade ­aparente e índice de escoamento, de pastas de cimento com relação água/aglomerante igual a 0,30 e dosagem de superplastificante igual a 0,20%. O processo de mistura empregado foi de baixa intensidade, similar ao prescrito pela norma ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.], e o procedimento de ensaio reométrico foi constituído por uma etapa ascendente, 0 a 100 s–1, por 90 s, uma etapa descendente, 100 a 0 s–1, por 90 s, seguido por cisalhamento contínuo (1, 15 e 30 s–1) por 50 minutos, repouso por 15 s, e repetição das etapas ascendente e descendente anteriormente ­descritas. Os resultados obtidos indicaram que a área de histerese aumenta conforme o tempo de hidratação e diminui conforme o aumento da intensidade do cisalhamento contínuo, ou seja, as pastas submetidas ao cisalhamento de 1 s–1 apresentaram áreas de histerese muito superiores àquelas submetidas ao cisalhamento de 15 ou 30 s–1. As pastas de cimento elaboradas com cinzas volantes também apresentaram redução na área de histerese em comparação com a pasta de referência. Os autores concluíram que as maiores taxas de cisalhamento resultam em maior grau de destruição da estrutura floculada das pastas de cimento e com isso, retardaram a evolução da tixotropia, de modo que aplicar uma taxa apropriada de cisalhamento contínuo e adicionar cinzas volante pode ser um modo efetivo de inibir a evolução da estrutura floculada das pastas de cimento, e assim, manter a trabalhabilidade do concreto fresco.

Ao investigar a influência do método de mistura, em termos de tempo de mistura – 60, 90, 180, 210 e 300 s, de velocidade de rotação – 320, 1.400, 2.000, 2.200 e 2.550 rpm e do tempo de ensaio – imediatamente após o preparo ou após 340 s, em pastas de cimento com relação a/c igual a 0,45, por meio de ensaios de mini-­abatimento de Kantro e reometria, RAUCCI et al. [38[38] RAUCCI, J.S., CECEL, R.T., ROMANO, R.C.O., et al., “Efeito do método de mistura sobre o espalhamento mini-slump de pastas de cimento Portland”, Revista IBRACON de Estruturas e Materiais, v. 11, n. 2, pp. 410–431, 2018.], verificaram que quanto maior a velocidade de rotação, maior foi o espalhamento das misturas e menor foi o coeficiente de variação. Com relação ao tempo de mistura, os autores verificaram que a mistura por 90 s conduziu a maiores diâmetros de espalhamento, em pastas ensaiadas imediatamente após a produção, para as velocidades de rotação avaliadas – 320, 1.400 e 2.550 rpm. Nas pastas ensaiadas após 340 s, foi possível observar que os maiores tempos de mistura – 210 e 300 s, levaram a maiores diâmetros de espalhamento, para as velocidades de rotação avaliadas – 320, 1.400 e 2.550 rpm. Verificaram também que, as pastas misturadas em maior rotação liberaram e acumularam maior calor de hidratação do que aquelas produzidas com menor rotação. Os autores concluíram que velocidades de rotação mais elevadas propiciaram maior energia cinética nas partículas de cimento e aumentaram a probabilidade de colisões que destroem os aglomerados, levando à menor variabilidade nos resultados obtidos.

1.2. Objetivo

Tendo em vista o exposto, torna-se necessária a investigação quantitativa de como diversos fatores (composição, temperatura, energia de mistura, protocolo e instrumentação de ensaio, entre outros) influenciam na caracterização reológica dos materiais cimentícios, quais deles são mais influentes, quais são mais facilmente controlados, de modo a conceber pastas, argamassas e concretos com as propriedades reológicas requeridas para sua adequada aplicação e acabamento, sem negligenciar os aspectos de resistência e durabilidade. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi avaliar a influência da energia de mistura e do pré-cisalhamento na determinação dos parâmetros reológicos de pastas de cimento, sendo estabelecidos dois métodos de mistura baseados nas normas ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.] e C1738 [37[37] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C1738M–14: Standard Practice for High-Shear Mixing of Hydraulic Cement Pastes. West Conshohocken: ASTM, 2014.] e dois protocolos de ensaio reométrico, com pré-cisalhamento nulo e igual a 100 s–1.

2. MATERIAIS E MÉTODOS

2.1. Produção das pastas de cimento

As pastas de cimento estudadas foram produzidas com cimento composto CP II E 32, que apresentou massa específica igual a 2,982 g/cm³, determinada conforme o procedimento da NBR 16605 [39[39] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). Cimento Portland e outros materiais em pó - Determinação da massa específica. NBR 16605. Rio de Janeiro: ABNT, 2017.], e água potável. Neste trabalho foram estudadas pastas com relação água/cimento (a/c) iguais a 0,40, 0,45, 0,50, 0,55, 0,60 e 0,65, em massa.

O procedimento de mistura de baixa intensidade foi baseado na norma ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.] e executado com argamassadeira planetária (vide Figura 1 (a)), sendo sintetizado a seguir:

  • adicionar toda a água e o cimento e deixar em repouso por 30s;

  • misturar por 30s em velocidade baixa – 182,1±17,4 rpm (61,3±0,3 rpm, em movimento planetário);

  • efetuar a limpeza da cuba e da pá e deixar a mistura em repouso por 150 s;

  • misturar por 60s em velocidade alta – 268,5±15,0 rpm (121,9±0,5 rpm, em movimento planetário).

O procedimento de mistura de alta intensidade fez uso de um misturador de alto cisalhamento (Figura 1(b)), e foi concebido com base na norma ASTM C1738 [37[37] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C1738M–14: Standard Practice for High-Shear Mixing of Hydraulic Cement Pastes. West Conshohocken: ASTM, 2014.], sendo a seguir detalhado:

  • adicionar o cimento e a água e homogeneizar manualmente durante 90 s;

  • misturar durante 30s, partindo-se do repouso até a velocidade máxima – 12.189,7± 36,7 rpm;

  • misturar em velocidade máxima por mais 30 s;

  • efetuar a limpeza do misturador e deixar a mistura em repouso por 90 s;

  • misturar por 30s em velocidade máxima – 12.189,7± 36,7 rpm.

Figura 1:
Misturadores utilizados: (a) argamassadeira convencional, (b) misturador de alto cisalhamento e (c) detalhes da pá da argamassadeira (superior) e da hélice do misturador (inferior).

As velocidades de rotação foram auferidas com um tacômetro digital DT-2234C+ (limites de medição – 2,5 a 99.999 rpm, acurácia ±0,05%), e os valores apresentados correspondem à média de cinco determinações. É importante destacar que o procedimento original da norma ASTM C305 [36[36] AMERICAN SOCIETY FOR TESTING AND MATERIALS (ASTM). C305–14: Standard Practice for Mechanical Mixing of Hydraulic Cement Pastes and Mortars of Plastic Consistency. West Conshohocken: ASTM, 2014.] foi adaptado, no que diz respeito ao tempo de repouso da mistura (originalmente este tempo é 15 s), de modo que os dois métodos de mistura possuíssem o mesmo tempo de duração.

2.2. Ensaios reométricos e complementares

Para a realização dos ensaios reométricos foi utilizado um reômetro R/S Rheometer, da fabricante Brookfield Engineering Laboratories, Inc., com controle da taxa de deformação (Figura 2 (a)). A geometria adotada foi cilindros coaxiais, sendo empregado o spindle CC45, com as seguintes características: raio interno igual a 22,5 mm; raio externo (copo) igual a 24,4 mm; volume de amostra de 100 ml. Os limites nominais de medição da geometria escolhida são: taxa de deformação, de 0 a 1291 s–1; tensão de cisalhamento, de 0 a 195,8 Pa; viscosi­dade, de 0,02 a 15 Pa.s.

A fim de avaliar a influência do pré-cisalhamento na determinação das propriedades reológicas das pastas de cimento, foram instituídos dois protocolos de ensaio, sendo um com pré-cisalhamento nulo (repouso por 90 s da amostra no reômetro) e outro com aplicação de taxa de deformação constante de 100 s,–1, durante 60 s, seguido de repouso do material por 30 s. A determinação das curvas de fluxo se deu por meio de uma curva ascendente de 0 a 100 s–1, em cinco etapas, com duração de 32 s cada etapa, seguido pela curva descendente de 100 a 0 s–1, em cinco etapas, com duração de 32 s cada etapa. A aplicação do cisalhamento em patamares se justifica por propiciar que a amostra ensaiada tenha mais tempo para alcançar o estado de equilíbrio, produzindo resultados mais reprodutíveis [33[33] CAMPOS, R.S., MACIEL, G.F., “Test protocol and rheological model influence on determining the rheological properties of cement pastes”, Journal of Building Engineering, v. 44, 103206, 2021.]. As representações gráficas dos protocolos de ensaio adotados constam na Figura 2 (b) e (c).

Para fins de controle qualitativo, simultaneamente aos ensaios reométricos, foram avaliados o abatimento e espalhamento, por meio de mini tronco de cone, com dimensões iguais a 100x70x60 mm (diâmetro inferior x diâmetro superior x altura), conforme proposto por OKAMURA e OUCHI [40[40] OKAMURA, H., OUCHI, M., “Self-compacting concrete”, Journal of Advanced Concrete Technology, v. 1, n. 1, pp. 5–15, 2003.], a massa específica e o pH (pHmetro de bancada Hanna pH21, limites de medição – 0,00 a 14,00 pH, acurácia ±0,02 pH) das pastas de cimento produzidas. Todos os ensaios foram realizados em quadruplicata, em ambiente controlado, com temperatura de 26,1±1,7 ºC e umidade relativa de 44,6±5,4%, e após dez minutos do contato da água com o cimento. As amostras são identificadas por meio da relação a/c (0,40, 0,45, 0,50, 0,55, 0,60 ou 0,65), da energia de mistura e do pré-cisalhamento empregados sendo adotados os seguintes códigos: ARG000, ARG100, MIS000 e MIS100, em que ARG representa as amostras misturadas em argamassadeira, MIS àquelas produzidas no misturador de alto cisalhamento e 000 e 100 representam o pré-cisalhamento aplicado, nulo ou 100 s–1, respectivamente.

2.3. Processamento dos dados e análise

Os resultados obtidos foram analisados por meio de estatística descritiva e por análise de variância (ANOVA), com aplicação do teste de Tukey com nível de significância de 95%. As análises estatísticas foram executadas com auxílio do software Minitab 17.

Figura 2:
(a) Reômetro R/S Rheometer, (b) e (c) protocolos de ensaio reométrico adotados, com pré-cisalhamento igual a 100 s-1 e nulo, respectivamente.

3. RESULTADOS

3.1. Ensaios de controle da qualidade

A fim de avaliar o controle de qualidade na produção das pastas de cimento, foram executados ensaios complementares que mediram a massa específica (Figura 3 (a)), o pH (Figura 3 (b)), o abatimento (Figura 4 (a)) e o espalhamento (Figura 4(b)).

Ao analisar a massa específica, nota-se que houve decréscimo conforme o incremento da relação a/c, em virtude da redução do volume de sólidos da mistura. De modo geral, as pastas confeccionadas no misturador de alto cisalhamento apresentaram massa específica ligeiramente inferior àquela verificada para as pastas misturadas em argamassadeira. No entanto, para uma mesma relação a/c, não foi possível distinguir estatisticamente as pastas de cimento misturadas com baixa energia de mistura com aquelas submetidas à alta intensidade de mistura. Os coeficientes de variação obtidos para as amostras produzidas na argamassadeira variaram entre 0,30 e 0,64%, ao passo que para as pastas confeccionadas no misturador de alto cisalhamento foram de 0,20 a 0,82%.

As pastas de cimento estudadas apresentaram pH condizente com o esperado, entre 12,5 e 13,5 [4[4] KUMAR MEHTA, P., MONTEIRO, P.J.M., Concreto-Microestrutura, Propriedades e Materiais. 2 ed. São Paulo: IBRACON, 2014., 5[5] NEVILLE, A.M., Propriedades do Concreto, 5 ed. Porto Alegre: Bookman, 2016.]. Nota-se que as amostras misturadas em argamassadeira exibiram, em média, pH ligeiramente inferior àquelas produzidas com misturador de alto cisalhamento, no entanto, as diferenças observadas não foram estatisticamente significativas, considerando misturas com a mesma relação a/c. O teor de água nas misturas também não influenciou significativamente o pH das amostras. Os coeficientes de variação das pastas de cimento produzidas com menor energia de mistura estiveram entre 0,47 e 1,32%, e para aquelas misturadas com alta intensidade foram de 2,08 a 2,47%.

Figura 3:
Propriedades físico-químicas: (a) massa específica e (b) pH.
Figura 4:
Ensaio de mini-abatimento de tronco de cone: (a) abatimento e (b) espalhamento.

No que tange ao abatimento e ao espalhamento, verifica-se que as pastas produzidas no misturador de alto cisalhamento apresentaram valores maiores para estes parâmetros, em especial para as relações a/c menores, em comparação com as pastas produzidas em argamassadeira. Com relação ao abatimento, observa-se evolução não linear desta propriedade conforme o incremento do teor de água nas misturas, sendo que para relações a/c ≥ 0,50, há tendência de manutenção do abatimento, o que pode sugerir um valor limite para esta propriedade, bem como, constituir um limitante para a aplicabilidade deste ensaio, o que corrobora com a tese de que, para a avaliação de misturas mais fluidas, o emprego de ensaios que medem o espalhamento é mais adequado. As pastas de cimento produzidas com maior energia de mistura tenderam a apresentar maior variação nos resultados de abatimento, com coeficientes de variação entre 2,10 e 7,34%, enquanto aquelas misturadas em argamassadeira apresentaram coeficientes de variação de 0,61 a 2,31%.

No que diz respeito ao espalhamento, nota-se o crescimento linear desta propriedade consoante o acréscimo do teor de água nas misturas. Novamente, as pastas de cimento produzidas no misturador de alto cisa­lhamento apresentaram maior variabilidade, sendo os coeficientes de variação observados entre 2,07 e 10,78%, contra 0,51 a 2,22% referentes às pastas confeccionadas em argamassadeira. Tendo em vista os coeficientes de variação observados, entende-se que os experimentos foram executados de modo controlado. Por meio de análise de variância foi possível determinar que há amostras que apresentaram abatimento ou espalhamento estatisticamente igual, conforme sumarizado na Tabela 1.

Tabela 1:
Agrupamento dos resultados do teste de Tukey, para os ensaios de abatimento e espalhamento, com relação a energia de mistura empregada.

É possível notar que a energia de mistura possui influência significativa na determinação do abatimento das misturas com menor relação a/c – 0,40 e 0,45, sendo indiferente para as pastas de cimento confeccionadas com maior teor de água. Este fato reforça a ideia de que o ensaio de abatimento possui limitações, em especial diante de misturas mais fluidas. No que diz respeito ao espalhamento, a energia de mistura não foi significativa somente para as pastas de cimento com relação a/c igual a 0,65.

3.2. Curvas de fluxo e modelo reológico

As curvas de fluxo para as pastas de cimento com relação a/c igual a 0,40 são representadas na (Figura 5). Por limitação de espaço, as demais curvas de fluxo não são apresentadas, no entanto, salienta-se que o comportamento reológico exibido por elas é similar ao exibido pelas curvas de fluxo da Figura 5, guardadas as devidas proporções no que diz respeito aos níveis de tensão de cisalhamento medidos. Para a máxima taxa de deformação empregada (100 s–1), a tensão de cisalhamento média para as amostras produzidas em argamassadeira e com pré-cisalhamento nulo foi de 48,24, 25,40, 13,89, 9,10 e 5,65 Pa, para as relações a/c iguais a 0,45, 0,50, 0,55, 0,60 e 0,65, respectivamente. No caso de pré-cisalhamento igual a 100 s–1, este parâmetro variou entre 43,45 e 5,12 Pa, para amostras com relação a/c iguais a 0,45 e 0,65, nesta ordem. Com emprego de misturador de alta intensidade de mistura e para pré-cisalhamento nulo, os valores médios de tensão de cisalhamento observados foram 33,62, 18,03, 10,93, 7,77 e 5,00 Pa, para relações a/c iguais a 0,45, 0,50, 0,55, 0,60 e 0,65, respectivamente. Para o mesmo nível de energia de mistura, quando empregado protocolo de ensaio com pré-cisalhamento igual a 100 s–1, a tensão de cisalhamento média variou entre 30,94 e 5,20 Pa, para pastas de cimento com relação a/c igual a 0,45 e 0,65, nesta ordem.

Ao analisar os dados da (Figura 5), verifica-se que as pastas de cimento produzidas exibiram comportamento pseudoplástico com tensão limite de escoamento. Desta maneira, optou-se por utilizar os modelos reológicos de Herschel-Bulkley (Equação 1) e de Bingham modificado (Equação 2) para a obtenção dos parâmetros reológicos.

Figura 5:
Curvas de fluxo para as pastas de cimento com relação a/c igual a 0,40: (a) ARG000, (b) ARG100, (c) MIS000 e (d) MIS100.
(1) τ = τ 0 + k n γ ˙ n
(2) τ = τ 0 + μ P γ ˙ + c γ ˙ 2

Em que: t é a tensão de cisalhamento (Pa); t0 é a tensão limite de escoamento (Pa); k,n é o índice de consistência (Pa.sn); g. é a taxa de deformação (s–1); n é o índice de escoamento (adimensional); mP é a viscosidade plástica (Pa.s) e c é uma constante de ajuste, sem significado físico. No modelo de Herschel-Bulkley (Equação 1), os índices de consistência e de escoamento estão intimamente relacionados, sendo o primeiro associado à viscosi­dade, e o segundo indicativo de comportamento pseudoplástico quando n < 1, ou dilatante, para n < 1.

Ao efetuar o ajuste dos dados aos modelos, verificou-se que modelo de Bingham modificado não apresentou boa aderência aos dados experimentais observados (R² entre 0,9981 e 0,8424), sendo os coeficientes de correlação mais baixos consoante o incremento na relação a/c. Deste modo, os parâmetros reológicos foram obtidos por meio do modelo de Herschel-Bulkley (R² entre 0,9999 e 0,9924).

3.3. Parâmetros reológicos

Na literatura, os modelos reológicos são ajustados, em geral, somente com dados da curva descendente, pois, conforme verificado por [33[33] CAMPOS, R.S., MACIEL, G.F., “Test protocol and rheological model influence on determining the rheological properties of cement pastes”, Journal of Building Engineering, v. 44, 103206, 2021., 41[41] KWAN, A.K.H., LI, L.G., “Combined effects of water film thickness and paste film thickness on rheology of mortar”, Materials and Structures, v. 45, n. 9, pp. 1359–1374, 2012.], os resultados nessa etapa são mais consistentes e reprodutíveis. Tendo em vista este fato, os dados apresentados a seguir (Figuras 6,7,8,9) são referentes às curvas descendentes.

Com relação à influência do pré-cisalhamento na determinação da tensão limite de escoamento (Figura 6), é possível notar que, independente da energia de mistura, as pastas de cimento com menor relação a/c (0,40) apresentaram as maiores discrepâncias em comparação com as demais, sendo a tensão limite de escoamento daquelas ensaiadas com protocolo de pré-cisalhamento nulo 1,50 e 2,57 vezes superiores àquelas com pré-­cisalhamento a 100 s–1, para as energias de mistura baixa (argamassadeira) e alta (misturador de alto cisalhamento), respectivamente. No que tange à variação da energia de mistura, ao comparar misturas ensaiadas com o mesmo protocolo de ensaio, foi possível verificar que aquelas produzidas com o misturador de alto cisalhamento apresentaram menor tensão limite de escoamento do que as produzidas com argamassadeira, para as relações a/c ≤ 0,45. Nos demais casos, a energia de mistura pareceu não influenciar a tensão limite de escoamento das pastas de cimento ensaiadas. Os coeficientes de variação obtidos para as amostras produzidas foram entre 1,88 e 7,81%, para ARG000, 7,49 e 15,09%, para ARG100, 0,72 a 16,27%, para MIS000, 1,84 e 25,32%, para MIS100. Registra-se que não foi possível estabelecer uma relação clara de variação da tensão limite de escoamento com o teor de água das misturas, no entanto, foi possível verificar que este parâmetro tende a diminuir conforme o aumento da relação a/c.

Figura 6
Tensão limite de escoamento: (a) pastas produzidas na argamassadeira e (b) pastas produzidas no misturador de alta intensidade de cisalhamento.

No que concerne ao índice de consistência (Figura 7), que é um parâmetro reológico associado à viscosidade das misturas, pode-se verificar que, para relações a/c ≥ 0,45, o pré-cisalhamento pareceu não exercer influência significativa. Diferente do constatado para a tensão limite de escoamento, para pastas com relação a/c igual a 0,40, o índice de consistência das misturas ensaiadas com o protocolo de ensaio com pré-cisalhamento igual a 100 s–1 foi superior ao obtido para aquelas com pré-cisalhamento nulo. No que diz respeito àenergia de mistura, esta pareceu ser influente para as relações a/c ≤ 0,45, sendo que as pastas produzidas no misturador de alto cisalhamento apresentaram índices de consistência maiores. Em geral, nota-se que o índice de consistência tende a decrescer conforme o incremento no teor de água das misturas, independente da energia de mistura empregada, no entanto, esta tendência não pode ser observada nas misturas com menor relação a/c (0,40), ensaiadas com protocolo de ensaio com pré-cisalhamento nulo. Os coeficientes de variação obtidos para as amostras produzidas foram entre 4,85 e 10,84%, para ARG000, 1,64 e 10,92%, para ARG100, 5,34 e 28,22%, para MIS000 e 4,76 e 17,25%, para MIS100.

Figura 7:
Índice de consistência: (a) pastas produzidas na argamassadeira e (b) pastas produzidas no misturador de alta intensidade de cisalhamento.

No que tange ao índice de escoamento (Figura 8), pode-se notar que o comportamento foi bastante simi­lar para as amostras ensaiadas com pré-cisalhamento nulo e a 100 s–1, exceto para as pastas de cimento com relação a/c igual a 0,40, em que o protocolo com pré-cisalhamento nulo levou a maiores índices de escoamento, independente da energia de mistura empregada. No que concerne à influência da energia de mistura, nota-se que os maiores índices de escoamento foram obtidos para as pastas produzidas em argamassadeira, independente da relação a/c e do pré-cisalhamento empregado. Em todos os casos, o índice de escoamento decresceu consoante o aumento da relação a/c. Os coeficientes de variação para este parâmetro foram entre 1,30 e 4,11% para ARG000, 0,34 e 6,11%, para ARG100, 0,96 e 11,52% para MIS000 e 2,75 e 7,50% para MIS100.

Figura 8:
Índice de escoamento: (a) pastas produzidas na argamassadeira e (b) pastas produzidas no misturador de alta intensidade de cisalhamento.

A fim de verificar se as diferenças constatadas para os parâmetros reológicos das diferentes amostras avaliadas foram estatisticamente relevantes, foi executada análise de variância, sendo os resultados obtidos sumarizados na Tabela 2.

Por meio da análise estatística, foi possível verificar que, para a tensão limite de escoamento e para o índice de consistência, as amostras com relação a/c iguais a 0,40 e 0,45, em geral, são estatisticamente ­diferentes, consoante a energia de mistura e/ou o pré-cisalhamento empregados, ao passo que as demais pastas de cimento estudadas são estatisticamente iguais. No caso do índice de escoamento, a energia de mistura e/ou o pré-cisa­lhamento exerceram influência significativa para todas as relações a/c estudadas. Tais resultados sugerem que a menor variabilidade constatada para o índice de escoamento fez com que houvesse diferenciação estatística mais clara do que para os parâmetros reológicos com maior variabilidade – tensão limite de escoamento e índice de consistência.

Tabela 2:
Agrupamento dos resultados do teste de Tukey para os parâmetros reológicos, considerando a energia de mistura e o pré-cisalhamento.

Em função do comportamento reológico exibido pelas pastas de cimento (pseudoplástico com tensão limite de escoamento) e do ajuste das curvas de fluxo promovido por meio do modelo de Herschel-Bulkley, não é possível obter um valor único (ou absoluto) de viscosidade para as amostras ensaiadas, uma vez que essa propriedade varia conforme a taxa de deformação. Deste modo, a avaliação possível é por meio da viscosidade aparente exibida pelas amostras para uma dada taxa de deformação. Nesse sentido, FERRARA et al. [42[42] FERRARA, L., CREMONESI, M., TREGGER, N., et al., “On the identification of rheological properties of cement suspensions: Rheometry, Computational Fluid Dynamics modeling and field test measurements”, Cement and Concrete Research, v. 42, n. 8, pp. 1134–1146, 2012.] apontam que, durante o lançamento do concreto, a taxa de deformação varia entre 1 e 10 s–1. Segundo FERRARIS & GAIDIS [43[43] FERRARIS, C.F., GAIDIS, J. M., “Connection between the rheology of concrete and rheology of cement paste”, Materials Journal, v. 89, n. 4, pp. 388–393, 1992.] as pastas de cimento experimentam taxas de deformação entre 10 e 20 s–1 quando do lançamento do concreto. Sendo assim, parece ser razoável considerar a taxa de deformação igual a 10 s–1 para a avaliação da viscosidade aparente das pastas de cimento produzidas (Figura 9).

Ao analisar os dados constantes na (Figura 9), verifica-se que a viscosidade aparente das misturas decresceu consoante o aumento do teor de água das misturas, fato este já esperado. Importante salientar que a energia de mistura e o pré-cisalhamento empregados pareceram não influenciar significativamente a viscosidade apa­rente das misturas.

Além dos parâmetros reológicos, outra maneira de avaliar o comportamento dos materiais à base de cimento é por meio da área de histerese, que é um indicativo do comportamento tixotrópico destes materiais. Durante o processo de mistura e de ensaio reométrico, os fenômenos de agregação e desagregação coexistem simultaneamente nos materiais cimentícios e, por conta disso, devido ao fato de que o cisalhamento aplicado durante os ensaios reológicos não é capaz de quebrar totalmente a estrutura aglomerada, as curvas ascendente e descendente não se superpõem, e uma área entre elas pode ser observada (área de histerese). Esta área é um indicativo do comportamento tixotrópico das pastas de cimento [27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999., 30[30] JIAO, D., SHI, C., YUAN, Q., “Influences of shear-mixing rate and fly ash on rheological behavior of cement pastes under continuous mixing”, Construction and Building Materials, v. 188, pp. 170–177, 2018.]. Deste modo, as áreas de histerese médias são apresentadas na (Figura 10).

Figura 9:
Viscosidade aparente para g. igual a 10 s-1: (a) pastas produzidas na argamassadeira e (b) pastas produzidas no misturador de alta intensidade de cisalhamento.
Figura 10:
Área de histerese: (a) pastas produzidas na argamassadeira e (b) pastas produzidas no misturador de alta intensidade de cisalhamento.

Independente da energia de mistura, as pastas ensaiadas por meio do protocolo com pré-cisalhamento nulo apresentaram, em média, as maiores áreas de histerese, em comparação com aquelas ensaiadas com pré-­cisalhamento igual a 100 s–1. A área de histerese pareceu decrescer conforme o aumento do teor de água da mistura, no entanto, para relações a/c ≥ 0,50 é possível notar a existência de um patamar, com as áreas de histerese tendendo a zero, sendo importante salientar que em algumas amostras foi possível observar comportamento ligeiramente reopético. O comportamento reopético ou anti-tixotrópico é indicado pela área de ­histerese ­negativa e corresponde a inversão entre as curvas de fluxo descendente e ascendente, ou seja, os níveis de tensão de cisalhamento verificados para uma mesma taxa de deformação são superiores para a curva ascendente em relação a contraparte descendente (comportamento inverso ao ilustrado na (Figura 5). Somente as pastas de cimento ensaiadas com protocolo de ensaio com pré-cisalhamento igual a 100 s–1 exibiram comportamento fracamente reopético, independente da energia de mistura empregada. Para as pastas misturadas em argamassadeira, este comportamento foi verificado a partir da relação a/c ≥ 0,50, e para as aquelas produzidas em misturador de alto cisalhamento, a partir da relação a/c ≥ 0,45.

Por meio da análise de variância foi verificado que as amostras são estatisticamente diferentes, conforme sintetizado na Tabela 3.

Tabela 3:
Agrupamento do teste de Tukey para área de histerese levando em consideração a variação da relação água/cimento.

As análises estatísticas demonstraram, em geral, que a área de histerese variou de maneira significativa para pastas de cimento com relações a/c ≤ 0,45, independente da energia de mistura ou do protocolo de ensaio empregado. Esta observação reforça o verificado para os demais parâmetros reológicos, ou seja, que somente para as pastas de cimento com maior teor de sólidos há influência significativa da energia de mistura e/ou do pré-cisalhamento.

4. DISCUSSÃO

A ligeira redução de massa específica exibida pelas pastas produzidas no misturador de alta intensidade pode sugerir maior incorporação de ar provocada pelo procedimento de mistura. No entanto, o teor de ar incorporado não foi medido e as variações verificadas não foram estatisticamente significativas.

Para além de propiciar o controle da qualidade das pastas de cimento produzidas, foi possível detectar a influência da energia de mistura no comportamento reológico das pastas de cimento, em especial naquelas com menor relação a/c, por meio dos ensaios de abatimento e espalhamento. No entanto, verificou-se que o ensaio de abatimento apresentou limitações na caracterização de misturas mais fluidas (relação a/c ≥ 0,50), uma vez que foi possível notar a existência de um patamar que não permitiu a diferenciação das pastas de cimento em relação ao teor de água das misturas. Por outro lado, por meio do espalhamento, foi possível diferenciar as amostras em termos de energia de mistura e teor de água. Para a mesma relação a/c, a maior intensidade de mistura provocou maiores espalhamento e abatimento, ou seja, a fluidificação das misturas, fato semelhante foi relatado por RAUCCI et al. [38[38] RAUCCI, J.S., CECEL, R.T., ROMANO, R.C.O., et al., “Efeito do método de mistura sobre o espalhamento mini-slump de pastas de cimento Portland”, Revista IBRACON de Estruturas e Materiais, v. 11, n. 2, pp. 410–431, 2018.].

No que diz respeito ao comportamento reológico das misturas, avaliado em termos de tensão limite de escoamento, índices de consistência e de escoamento e área de histerese, foi possível notar que, em geral, a energia de mistura possui influência significativa para as pastas de cimento com maiores teores de sólidos (relação a/c ≤ 0,45), sendo indiferente nos demais casos. Este fato pode ser consequência do comportamento das partículas de cimento, que possuem tendência de se atrair, formando flocos, que aprisionam grandes quantidades da água de amassamento [4[4] KUMAR MEHTA, P., MONTEIRO, P.J.M., Concreto-Microestrutura, Propriedades e Materiais. 2 ed. São Paulo: IBRACON, 2014., 5[5] NEVILLE, A.M., Propriedades do Concreto, 5 ed. Porto Alegre: Bookman, 2016., 26[26] YANG, M., JENNINGS, H.M., “Influences of mixing methods on the microstructure and rheological behavior of cement paste”, Advanced Cement Based Materials, v. 2, n. 2, pp. 70–78, 1995.]. Maiores níveis de energia de mistura devem causar a ruptura de mais flocos, em comparação com menores níveis, liberando água para a mistura, causando a fluidificação [26[26] YANG, M., JENNINGS, H.M., “Influences of mixing methods on the microstructure and rheological behavior of cement paste”, Advanced Cement Based Materials, v. 2, n. 2, pp. 70–78, 1995., 27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999., 38[38] RAUCCI, J.S., CECEL, R.T., ROMANO, R.C.O., et al., “Efeito do método de mistura sobre o espalhamento mini-slump de pastas de cimento Portland”, Revista IBRACON de Estruturas e Materiais, v. 11, n. 2, pp. 410–431, 2018.]. Por outro lado, a melhor dispersão das partículas de cimento pode causar incremento da viscosidade das misturas, uma vez que aumenta a área superficial total das partículas sólidas, o que resulta na necessidade de maior quantidade de água de amassamento para “molhar” a superfície das partículas de cimento, além de promover a redução do afastamento relativo entre elas. Tais mecanismos justificam os menores valores observados para a tensão limite de escoamento, o índice de escoamento e a área de histerese, e o incremento do índice de consistência, para as pastas produzidas no misturador de alto cisalhamento, em comparação com aquelas misturadas em argamassadeira.

Com relação ao pré-cisalhamento, registra-se que este influenciou significativamente a caracterização reológica das amostras com relação a/c ≤ 0,45. Em geral, as pastas de cimento ensaiadas com protocolo com pré-cisalhamento igual a 100 s–1 apresentaram menores níveis de tensão limite de escoamento, índice de escoamento e área de histerese, em comparação com as contrapartes ensaiadas com protocolo com pré-cisalhamento nulo. Comportamento inverso foi observado no que diz respeito ao índice de consistência. A aplicação da taxa de deformação anteriormente a obtenção das curvas de fluxo provoca a ruptura da microestrutura floculada das pastas de cimento, o que causara liberação de água aprisionada para a mistura, conforme já explanado. Salienta-se que, os resultados obtidos estão em concordância com o verificado por [27[27] WILLIAMS, D.A., SAAK, A.W., JENNINGS, H.M., “The influence of mixing on the rheology of fresh cement paste”, Cement and Concrete Research, v. 29, n. 9, pp. 1491–1496, 1999.], que observou que quanto maior o pré-cisa­lhamento aplicado (variando de 0 a 300 s–1), menores são as áreas de histerese em pastas de cimento com relação a/c igual a 0,40.

5. CONCLUSÕES

Em geral, os estudos anteriores sobre a influência da energia de mistura e/ou do pré-cisalhamento nas propriedades reológicas de pastas de cimento avaliaram amostras com relações a/c variando entre 0,32 e 0,45 [26–28, 30, 38]. No presente estudo, buscou-se abranger maiores faixas de relação a/c, entre 0,40 e 0,65, em massa, procurando compreender não só a influência da energia de mistura, como também do pré-cisalhamento – nulo e a 100 s–1 (e, por extensão, do protocolo de ensaio) na caracterização reológica de pastas de cimento. Tendo em vista o exposto, é possível concluir que:

  • os ensaios empíricos de abatimento e de espalhamento foram capazes de detectar a influência da energia de mistura, sendo constatado que o abatimento tende a um valor limite para as pastas de cimento com relação a/c ≥ 0,50, indicando, portanto, a necessidade de avaliar o espalhamento em misturas com maior fluidez;

  • a energia de mistura exerce influência significativa no comportamento reológico das pastas de cimento com relação a/c ≤ 0,45, sendo que as pastas misturadas com o misturador de alto cisalhamento exibiram menor tensão limite de escoamento, índice de escoamento e área de histerese e maior índice de consistência em comparação com as amostras misturadas em argamassadeira;

  • o pré-cisalhamento influencia significativamente o comportamento reológico das pastas de cimento com relação a/c ≤ 0,45, sendo verificado que as amostras submetidas ao pré-cisalhamento apresentaram menor tensão limite de escoamento, índice de escoamento e área de histerese e maior índice de consistência, em comparação com aquelas não submetidas ao pré-cisalhamento;

  • de modo geral, não foi possível verificar influência estatisticamente significativa da energia de mistura e/ou do pré-cisalhamento em misturas com relação a/c ≥ 0,50.

Por fim, ressalta-se que os resultados obtidos reforçam a necessidade de estabelecimento de procedimento normatizado para a caracterização reológica de materiais de base cimentícia, pois, conforme demons­trado, a energia de mistura e o pré-cisalhamento influenciam significativamente o comportamento reológico das pastas de cimento com maior teor de sólidos.

6. AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq pela concessão de bolsa de Iniciação ­Científica para o segundo autor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    23 Maio 2022
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