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Detecção de anticorpo anticoração em camundongos Balb/c imunizados com Streptococcus mutans

Detection of heart-reactive antibody in Balb/c mice immunized with Streptococcus mutans

Resumos

Anticorpos para antígenos cardíacos foram analisados por ELISA em 14 soros de camundongos Balb/c hiperimunizados com Streptococcus mutans, inativado pelo formaldeído. Os níveis de anticorpos da classe IgG anticoração e antimiosina elevaram-se significativamente nos animais imunizados quando comparados com os controles, especialmente no grupo A, imunizado e reestimulado com antígenos solúveis de S. mutans. Neste grupo, os resultados do "Western Blot" mostraram reatividade com miosina cardíaca e uma banda de 35 kDa. A análise histológica dos corações dos animais do grupo B, imunizado e reestimulado com antígenos de superfície do microrganismo, demonstrou a presença de degeneração celular, tipo hidrópica e hialina e focos inflamatórios constituídos de linfócitos e macrófagos no miocárdio e pericárdio. Os resultados deste trabalho reforçam a hipótese da existência de mimetismo antigênico entre tecido cardíaco e S. mutans e chamam a atenção para o risco de desenvolvimento de anticorpos reativos com antígenos próprios induzidos por vacina anticárie com componentes estreptocócicos.

Miocardite; Streptococcus mutans; Mimetismo molecular; Anticorpo anticoração; Anticorpo antimiosina


Heart-reactive antibodies were examined by ELISA, in sera from 14 Balb/c mice immunized with Streptococcus mutans inactivated by treatment with formaldehyde. Anti-heart and anti-myosin IgG levels increased significantly in the sera from immunized mice, when compared with those of control sera, especially in the first group, inoculated with a new antigen preparation. This group displayed a notable reactivity with cardiac myosin and cardiac tissue proteins in Western-blotting, mainly with a 35 kDa peptide. The histological analysis of immunized animals’ cardiac tissue demonstrated the existence of cell injury and eosinophilia attributable to cellular hyaline change. The pericardium and the myocardium showed inflammatory infiltrate formed by lymphocytes and macrophages. These findings suggest the existence of molecular mimicry between S. mutans and the cardiac tissue and emphasize the risk of development of an autoimmune myocarditis induced by caries vaccine containing streptococcal fractions.

Myocarditis; Streptococcus mutans; Molecular mimicry; Anti-heart antibodies; Anti-myosin antibodies


Imunologia

Detecção de anticorpo anticoração em camundongos Balb/c imunizados com Streptococcus mutans

Detection of heart-reactive antibody in Balb/c mice immunized with Streptococcus mutans

Mariella Vieira Pereira LEÃO** Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP. Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

Adriana Aigotti Haberbeck BRANDÃO*** Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP. Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

Elisabete MORAES*** Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP. Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

Mário Tsunezi SHIMIZU**** Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP. Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

Carmelinda Schimidt UNTERKIRCHER***** Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP. Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

LEÃO, M. V. P.; BRANDÃO, A. A. H.; MORAES, E.; SHIMIZU, M. T.; UNTERKIRCHER, C. S. Detecção de anticorpo anticoração em camundongos Balb/c imunizados com Streptococcus mutans. Pesqui Odontol Bras, v. 14, n. 4, p. 319-326, out./dez. 2000.

Anticorpos para antígenos cardíacos foram analisados por ELISA em 14 soros de camundongos Balb/c hiperimunizados com Streptococcus mutans, inativado pelo formaldeído. Os níveis de anticorpos da classe IgG anticoração e antimiosina elevaram-se significativamente nos animais imunizados quando comparados com os controles, especialmente no grupo A, imunizado e reestimulado com antígenos solúveis de S. mutans. Neste grupo, os resultados do “Western Blot” mostraram reatividade com miosina cardíaca e uma banda de 35 kDa. A análise histológica dos corações dos animais do grupo B, imunizado e reestimulado com antígenos de superfície do microrganismo, demonstrou a presença de degeneração celular, tipo hidrópica e hialina e focos inflamatórios constituídos de linfócitos e macrófagos no miocárdio e pericárdio. Os resultados deste trabalho reforçam a hipótese da existência de mimetismo antigênico entre tecido cardíaco e S. mutans e chamam a atenção para o risco de desenvolvimento de anticorpos reativos com antígenos próprios induzidos por vacina anticárie com componentes estreptocócicos.

UNITERMOS: Miocardite; Streptococcus mutans; Mimetismo molecular; Anticorpo anticoração; Anticorpo antimiosina.

INTRODUÇÃO

Ainda pouco se sabe a respeito da etiologia das doenças auto-imunes. Entre os diferentes fatores desencadeantes desse processo, o mimetismo antigênico e a modificação de antígenos próprios são os mais investigados15.

O mimetismo antigênico tem sido estudado na febre reumática, que representa a principal causa de morbidade e mortalidade cardiovascular em indivíduos de cinco a 24 anos nos países em desenvolvimento2. Esta doença geralmente desenvolve-se em indivíduos geneticamente suscetíveis, depois de infecções orofaríngeas causadas por estreptococos b-hemolíticos do grupo A que têm reação cruzada com tecidos de mamíferos5,6.

Streptococcus mutans é um dos principais microrganismos cariogênicos que colonizam a superfície dos dentes9. A imunização com antígenos purificados deste microrganismo induz proteção contra cárie dentária em diferentes modelos animais12. Entretanto, o principal obstáculo para o desenvolvimento de uma vacina anticárie foi o encontro de reatividade cruzada entre soros de coelhos hiperimunizados com S. mutans e tecido cardíaco humano22.

A natureza e a identidade do antígeno de S. mutans envolvido na indução de anticorpos reativos com o tecido cardíaco ainda não é conhecida. Estudos com o antígeno I/II, principal antígeno da superfície celular do microrganismo, não confirmaram as suspeitas iniciais de reatividade cruzada18,23. Também não se sabe se estes anticorpos teriam algum papel na patogênese da miocardite induzida e iniciada, em animais de laboratório, por células T CD4+11,19.

Segundo ROSE et al.17 (1991), o grau de inflamação do miocárdio não se correlaciona muito bem com as alterações de função cardíaca, sugerindo um papel para os auto-anticorpos neste processo. Anticorpos reativos com o b-adrenorreceptor, com acetilcolinesterase e com o translocador de adenina nucleotídeo já foram descritos em pacientes com cardiopatia14,17.

A proposição do presente trabalho foi hiperimunizar camundongos Balb/c com antígenos de S. mutans e detectar a presença de anticorpos anticoração no soro e alterações histológicas no tecido cardíaco, a fim de verificar o risco da utilização de vacinas com componentes deste microrganismo.

MATERIAIS E MÉTODOS

Obtenção do antígeno

1. extrato de coração: foram sacrificados vinte camundongos Balb/c e removidos os corações. O material foi lavado com solução salina tamponada fosfatada (PBS), para remoção do sangue. Posteriormente, os corações foram macerados com bastão de vidro em 10 ml de PBS contendo fluoreto de fenilmetil sulfonil (PMSF) na concentração final de 5 mM, e filtrados em gaze esterilizada acondicionada num filtro de vidro. O filtrado obtido foi centrifugado a 5.000 rpm, por 10 minutos a 4ºC, e conservado a –20°C. Ao sedimento retido na gaze foram adicionados 5 ml do tampão Tris-HCl 150 mM, uréia 6 M, b-mercaptoetanol 20 mM e Tween-20 1%. A mistura foi fervida por cinco minutos e mantida em geladeira, por 24 horas. Passado este período, o material foi centrifugado a 5.000 rpm, por 10 minutos a 4°C, e o sobrenadante dialisado contra PBS, por toda noite. O filtrado conservado e o dialisado foram então misturados e concentrados por ultrafiltração em membrana P10 (Amicon), por 8 horas, a 4°C, sob pressão de nitrogênio 75 psi (5,3 kg/cm2). A concentração de proteínas foi estimada em 30 mg/ml pela técnica descrita em 19763;

2. Streptococcus mutans: a bactéria, cepa CCT 1910, foi cultivada em 2.000 ml de Triptic Soy Broth - TSB - (Difco), distribuído em três frascos Erlenmeyer, a 37°C, por 24 horas, em atmosfera com 5% de CO2. O crescimento foi interrompido com formaldeído 0,075% e a cultura, deixada por 18 horas a 4°C. A seguir, as células foram obtidas por centrifugação, lavadas três vezes em Tris-HCl 125 mM, EDTA 10 mM, pH 7,5, e em seguida suspensas em 50 ml do mesmo tampão, acrescentando-se PMSF na concentração final de 5 mM. A esta suspensão, adicionaram-se pérolas de vidro e agitou-se, a 50 rpm em agitador (Etica-SP), por toda noite, a 4°C. O lisado foi centrifugado a 7.000 rpm por 30 minutos, a 4°C, e o sobrenadante e o precipitado conservados. O sobrenadante foi dialisado contra Tris-HCl 125 mM, EDTA 10 mM, pH 7,5, concentrado e liofilizado, passando a constituir o antígeno citoplasmático. O precipitado foi adicionado de 5 ml de Tris-HCl 150 mM, uréia 6 M, Tween-20 1%, b-mercaptoetanol 20 mM, fervido por 5 minutos e conservado a 4°C, por 24 horas. Após este período, foi centrifugado e o sobrenadante dialisado exaustivamente contra PBS, concentrado, liofilizado e conservado a –20°C, passando a constituir o antígeno de superfície. O conteúdo protéico foi determinado pelo método de BRADFORD3 (1976);

3. miosina de músculo cardíaco de porco (Sigma) e miosina de músculo esquelético de camundongo (6 mg/ml), doada pela Dra. Thérese Ternynck, do Instituto Pasteur de Paris;

4. anti-IgG1, 2a, 2b e 3 (Sigma), para a detecção de subclasses de IgG.

Imunização

Camundongos Balb/c, de seis semanas de idade, foram divididos em dois grupos. Os camundongos do grupo A (n = 8) foram imunizados, por via intraperitoneal, com 100 ml de uma suspensão contendo 3,4 ´ 106 células de S. mutans, cepa CCT 1910, mortas pela adição de formaldeído a 0,075%, emulsificada em 100 ml de adjuvante de Freund incompleto (Sigma). Foram administradas duas injeções, com intervalos de três semanas. A seguir, administraram-se mais quatro injeções, pela mesma via, com intervalos de uma semana, com 100 ml da suspensão em 100 ml de sulfato de alumínio e potássio. Depois de dois meses de imunização e um intervalo de quatro semanas, os animais foram reestimulados (“booster”) com 300 mg do antígeno citoplasmático de S. mutans, obtido pelo método descrito anteriormente, em solução salina isotônica esterilizada. Uma semana após a reestimulação, os animais foram anestesiados e o sangue, colhido por via retro-ocular para a análise sorológica.

O grupo B (n = 6) foi imunizado seguindo o mesmo protocolo, porém, um mês após o “booster”, os animais receberam uma nova reestimulação com 300 mg do antígeno de superfície do estreptococo em solução salina isotônica esterilizada. Uma semana após a reestimulação, os animais foram anestesiados e o sangue, colhido por via retro-ocular para a análise sorológica.

Depois de sangrados, os camundongos foram sacrificados e os corações, removidos para a análise histológica.

O grupo controle (n = 5) não foi imunizado com S. mutans, apenas recebeu os adjuvantes de acordo com o mesmo protocolo dos grupos experimentais.

Análise dos anticorpos

ELISA

As placas de poliestireno (Costar) foram sensibilizadas com 50 ml, por orifício, de extrato de coração (100 mg/ml), antígenos citoplasmáticos de S. mutans (100 mg/ml) ou miosina (5 mg/ml), em tampão carbonato-bicarbonato 0,1 M, pH 9,6, por 2 horas, a 37°C. Depois disso, os sítios não ocupados foram saturados com 0,5% de gelatina (Gibco) em PBS, por trinta minutos, a 37°C, e lavados com PBS, contendo 0,1% de Tween-20 (PBS-T). Posteriormente, adicionaram-se, em cada orifício da primeira linha, 100 ml de soro dos camundongos diluído a 1/25 em PBS-T-gelatina (PBS-T-G). Nas linhas seguintes, foram feitas diluições consecutivas, na razão dois (50 ml/orifício). Então, as placas foram incubadas a 37°C, por duas horas, e a 4°C, por toda noite. No dia seguinte, as placas foram lavadas com PBS-T e, posteriormente, foram adicionados aos orifícios 50 ml do conjugado anti-IgG marcado com peroxidase (Sigma), numa concentração de 1 mg/ml. A atividade de peroxidase foi revelada utilizando-se ortofenilenodiamino (Sigma): 6 mg em 12 ml de tampão citrato-ácido cítrico 0,1 M, pH 5,5 e 10 ml de H2O2 a 30%, 100 ml por orifício. A reação foi bloqueada com 50 ml de ácido sulfúrico 2,5 normal (N). As densidades ópticas (DO) foram lidas a 490 nm.

Na análise de subclasses, foram utilizados anticorpos de coelho específicos para cada subclasse de IgG (anti-IgG1, 2a, 2b ou 3) de camundongo e conjugado anti-IgG de coelho marcado com peroxidase (1/3.000). Na revelação, utilizaram-se nove partes de uma solução de sulfanato de 2’-2’-azino-di (3-etil-benziltiazolina) e uma parte de uma solução peróxido de hidrogênio (Peroxidase Substrate Kit – Biorad). A reação foi interrompida com ácido oxálico a 2% e a leitura da DO, realizada a 415 nm.

Eletroforese em gel de poliacrilamida e “Western Blot”

A técnica de “Western Blot” foi desenvolvida de acordo com TOWBIN et al.21 (1979). Após a eletroforese em gel de poliacrilamida, obteve-se a réplica do gel em membrana de nitrocelulose (Amersham). Foi aplicado no gel 30 mg de antígeno de coração, 20 mg de antígeno de S. mutans ou 5 mg de miosina, por “slot”.

Os sítios livres da nitrocelulose foram saturados com PBS-T contendo 5% de leite desnatado (Molico – Nestlé), por duas horas, sob agitação. Em seguida, foi feita a incubação, por uma noite à temperatura ambiente, sob agitação, com o soro dos camundongos, diluído a 1/50 no mesmo tampão. No dia seguinte, a nitrocelulose foi lavada com PBS-T, e depois, incubada com conjugado anti-IgG de camundongo, marcado com peroxidase (duas horas à temperatura ambiente, sob agitação). Após este período, as fitas foram novamente lavadas com PBS-T e, então, incubadas com substrato diaminobenzidina (Sigma) a 0,01%, em 0,1 M de Tris-HCl, pH 7,5 e 0,003% de H2O2. A reação foi interrompida com água destilada.

Análise histológica

Os corações foram retirados e imediatamente colocados no fixador (formol a 10%). Depois de fixadas, as peças foram hemi-seccionadas e incluídas em parafina. Cortes de 5 mm foram realizados em micrótomos convencionais e corados pela técnica de hematoxilina-eosina. Nos diferentes cortes, pesquisaram-se focos de inflamação no miocárdio e nas válvulas cardíacas.

Análise estatística

Os dados obtidos foram analisados pelo teste t de Student.

RESULTADOS

Detecção de anticorpos por ELISA

A imunização dos camundongos com antígenos estreptocócicos induziu uma forte resposta de anticorpos específicos nos dois grupos estudados (dados não mostrados).

Os Gráficos 1 e 2 mostram a reatividade dos anticorpos da classe IgG para antígenos cardíacos e miosina presentes nos soros dos animais do grupo A. Pode-se observar que a imunização também induziu a síntese de anticorpos capazes de reconhecer estes antígenos. Os gráficos mostram diferenças significativas nos títulos de anticorpos IgG anticoração e antimiosina entre os animais imunizados e não-imunizados. Estas diferenças mostram-se significantes nas quatro diluições testadas (p < 0,05).



A reatividade média dos anticorpos da classe IgG anticoração e antimiosina presentes nos soros dos animais do grupo B não foi tão evidente quanto a observada no primeiro grupo estudado, embora tenha sido superior aos animais controle (dados não mostrados).

Os resultados obtidos na identificação das subclasses de IgG anti-S. mutans, realizada apenas no grupo B, são apresentados no Gráfico 3. Verificou-se que as mais representativas foram IgG2a e IgG2b. Já os níveis de IgG1 e IgG3 eram mais baixos nos soros dos animais imunizados. Quanto às cadeias leves k e l das IgGs, a cadeia k foi sempre a mais representada (dados não mostrados).


Detecção de anticorpos pelo “Western Blot”

Os anticorpos da classe IgG do soro de animais não-imunizados reconheceram polipeptídeos de pesos moleculares aproximados de 51 kDa e 78 kDa, na preparação de S. mutans, enquanto os antígenos do coração não foram reconhecidos. Os animais imunizados, do grupo A, reconheceram outras bandas na preparação bacteriana com pesos moleculares de 26 e 94 kDa, entre outras. No extrato de coração, esses anticorpos reagiram com um componente de peso molecular 35 kDa (Figura 1). A reatividade das IgGs dos mesmos animais para miosina cardíaca também pôde ser observada (Figura 2). Já os soros dos animais imunizados do grupo B não foram capazes de reconhecer qualquer fração antigênica no extrato de coração, embora a reatividade para S. mutans estivesse bastante evidente (dados não mostrados).



Análise histológica

Nos cortes histológicos dos animais imunizados do grupo A, observaram-se alterações muito discretas no tecido cardíaco. No miocárdio e no pericárdio, encontraram-se pequenos focos de inflamação, constituídos principalmente por linfócitos, além de algumas fibras miocárdicas de coloração mais eosinofílica, causada por degeneração tipo hialina (dados não mostrados). Já os animais do grupo B apresentaram alterações mais significativas. Observou-se, no pericárdio e no miocárdio, infiltrado inflamatório moderado ou acentuado, constituído de linfócitos e macrófagos, especialmente nas regiões perivasculares do pericárdio, associado a edema e congestão. Também pôde-se notar a presença de maior quantidade de fibras cardíacas irregulares, com citoplasma intensamente eosinofílico devido à degeneração tipo hialina, além de fibras com degeneração hidrópica, representada por vacúolos citoplasmáticos (Figura 3).


DISCUSSÃO

No presente trabalho, examinou-se o nível de anticorpos reativos com antígenos do coração, em camundongos Balb/c hiperimunizados com Streptococcus mutans. Analisando-se os resultados obtidos por ELISA, verificou-se que a elevação dos anticorpos específicos para S. mutans foi acompanhada de um aumento de reatividade para antígenos do coração e miosina. Estes resultados estão de acordo com relatos anteriores sobre a presença de anticorpos antimiocárdio em animais hiperimunizados com este microrganismo4,8,22.

Baixos níveis de anticorpos reativos com antígenos próprios foram encontrados em soros de indivíduos saudáveis, apresentando elevações transitórias e alterações de especificidade em diversas situações patológicas1,13. TERNYNCK et al.20 (1990) estudando camundongos infectados com Trypanosoma cruzi, observaram um aumento de anticorpos reativos com antígenos próprios que pertenciam principalmente à classe IgG, subclasses IgG2a e IgG2b. Neste estudo, verificou-se que os anticorpos aumentados nos soros dos camundongos imunizados também pertenciam a estas subclasses. Além disso, a maioria deles possuía cadeia leve k, cuja prevalência em camundongos já é conhecida16.

Assim, um aumento temporário de anticorpos reativos com antígenos próprios após a imunização dos animais com antígenos bacterianos poderia ser considerado um fenômeno normal. Entretanto, clones de linfócitos B produzindo auto-anticorpos naturais poderiam, após mutação somática, originar outra população de imunoglobulinas com atividade patológica7.

LIAO et al.11 (1995) demonstraram que anticorpos antimiosina poderiam causar miocardite em animais suscetíveis. Camundongos da raça DBA/2 desenvolviam a patologia após administração de anticorpos monoclonais antimiosina, enquanto camundongos Balb/c não o faziam.

Neste experimento, utilizaram-se camundongos Balb/c, resistentes à indução de lesões cardíacas pelos auto-anticorpos. Na análise histológica, verificou-se que os animais do grupo A, cuja resposta humoral anticoração era mais evidente, sofreram pequenas alterações cardíacas. Já os animais do grupo B, apresentaram níveis menores de auto-anticorpos, mas desenvolveram lesões mais significativas. Isto significa que o nível de anticorpos reativos com antígenos do coração não está necessariamente associado ao grau de lesão cardíaca, provavelmente causada por uma resposta do tipo Th1. Os animais do grupo B receberam na última semana de imunização uma injeção com antígenos de superfície de S. mutans (membrana e parede) e essa alteração no protocolo de imunização pode ter sido responsável pelo desvio da resposta imunológica para Th1 e, conseqüentemente, aumento da lesão no tecido cardíaco. É importante salientar que a resposta dos animais para os componentes de 26, 51, 78 e 94 kDa de S. mutans não se alterou, permanecendo alta nos dois grupos.

O antígeno do tecido cardíaco reconhecido pelos soros de animais hiperimunizados era uma proteína de peso molecular 35 kDa. Achado que está de acordo com KHANNA et al.10 (1997) que observaram em soros de pacientes com febre reumática aguda reatividade com um polipeptídeo de 38 kDa nas membranas de sarcolema de tecido cardíaco humano, reconhecido por anticorpos antitropomiosina cardíaca humana.

Os achados obtidos neste trabalho sugerem que a imunização com antígenos de S. mutans pode induzir um aumento de anticorpos reativos com antígenos do coração, principalmente com uma proteína de 35 kDa e produzir alterações no tecido cardíaco. Novos estudos devem ser realizados visando identificar o antígeno estreptocócico de reatividade cruzada.

CONCLUSÕES

A análise dos soros dos camundongos hiperimunizados com Streptococcus mutans demonstrou elevação dos níveis séricos de anticorpos reativos com extratos do coração e miosina cardíaca. Estes anticorpos eram principalmente da classe IgG, subclasses IgG2a e IgG2b e reconheciam uma proteína de peso molecular de 35 kDa do antígeno do coração, possivelmente a tropomiosina.

Verificamos que a elevação sérica dos anticorpos anticoração e antimiosina não mostrou uma correlação com o grau de lesão tecidual, pois as maiores alterações teciduais foram encontradas em camundongos reestimulados com antígenos de superfície de S. mutans, que apresentaram menor resposta humoral para antígenos do coração.

LEÃO, M. V. P.; BRANDÃO, A. A. H.; MORAES, E.; SHIMIZU, M. T.; UNTERKIRCHER, C. S. Detection of heart-reactive antibody in Balb/c mice immunized with Streptococcus mutans. Pesqui Odontol Bras, v. 14, n. 4, p. 319-326, out./dez. 2000.

Heart-reactive antibodies were examined by ELISA, in sera from 14 Balb/c mice immunized with Streptococcus mutans inactivated by treatment with formaldehyde. Anti-heart and anti-myosin IgG levels increased significantly in the sera from immunized mice, when compared with those of control sera, especially in the first group, inoculated with a new antigen preparation. This group displayed a notable reactivity with cardiac myosin and cardiac tissue proteins in Western-blotting, mainly with a 35 kDa peptide. The histological analysis of immunized animals’ cardiac tissue demonstrated the existence of cell injury and eosinophilia attributable to cellular hyaline change. The pericardium and the myocardium showed inflammatory infiltrate formed by lymphocytes and macrophages. These findings suggest the existence of molecular mimicry between S. mutans and the cardiac tissue and emphasize the risk of development of an autoimmune myocarditis induced by caries vaccine containing streptococcal fractions.

UNITERMS: Myocarditis; Streptococcus mutans; Molecular mimicry; Anti-heart antibodies; Anti-myosin antibodies.

Recebido para publicação em 10/02/00

Enviado para reformulação em 14/07/00

Aceito para publicação em 18/08/00

** Professoras Doutoras;

**** Professora Adjunta - Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.

*** Professor Titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade São Francisco.

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  • * Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.
    Professora da Universidade do Vale do Paraíba, Mestranda da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Aceito
      18 Ago 2000
    • Revisado
      14 Jul 2000
    • Recebido
      10 Fev 2000
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