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A (etno)musicologia anglo-americana sob doze perspectivas: uma resenha do livro The new (ethno)musicologies

The Anglo-American (ethno)musicology under twelve perspectives: a review of the book The new (ethno)musicologies

RESENHAS - "PEGA NA CHALEIRA"

Rodrigo Cantos Savelli Gomes

UDESC, Florianópolis, SC, rodrigocantos@hotmail.com

Palavras-chave: Etnomusicologia Anglo-americana; Nova Etnomusicologia; Henry Stobart

Keywords: Anglo-American Ethnomusicology; New Ethnomusicology; Henry Stobart

O livro The new (ethno)musicologies, organizado por Henry Stobart, atualmente professor do departamento de música da Universiy of London, consiste numa coletânea de doze comunicações apresentadas numa conferência promovida pelo Fórum Britânico de Etnomusicologia (BFE) em novembro de 2001, onde foram convidadas figuras centrais da etnomusicologia e da musicologia anglo-americana. O encontro foi proposto com o objetivo de examinar a relação entre a etnomusicologia e a "nova" musicologia, em especial, como a etnomusicologia se influenciou pelas transformações radicais às quais a musicologia se submeteu nos últimos vinte anos, e se a disciplina também vem se encaminhando rumo à caracterização de uma "nova" etnomusicologia. Parte das discussões situou-se em dilemas como: a identidade da etnomusicologia (o que é; o que faz; qual sua contribuição); a definição de seu campo de estudo; o relacionamento com as demais áreas, especialmente com as "irmãs" musicologia e antropologia. Temas como estes não são novidades na etnomusicologia, ao contrário, destacam-se por sua constância desde os primeiros esboços desta disciplina e suas diversas tentativas de sistematização (ADLER, 1981[1885] 1 1 Guido Adler apresenta a etnomusicologia como parte da musicologia e como aliada da antropologia. (ADLER, 1981). ; KUNST, 1950; SEEGER, 19772 2 Para Charles Seeger, a musicologia dever ser vista como "um discurso sobre música, tanto sistemático (sincrônico) quanto histórico (diacrônico), tratando de texto e contexto, no intuito de analisar os eventos sonoros ligando o ser humano ao universo físico, no propósito de contribuir para a compreensão do homem como ser cultural" (SEEGER apud ULHOA, 1995, p.43). ;). Poucas áreas empreenderam tanto tempo e esforço em se autodefinirem como tem feito a etnomusicologia e, ao parecer, este tem sido um dos dilemas principais dos estudiosos da área. Nos últimos anos, o debate tem se tornado cada vez mais intenso3 3 Para citar alguns: RICE, 2001; MERIAM, 2001; CLAYTON, 2003; TOMLINSON, 2003; NETTL, 2005; WILLIAM, 2007. , porém menos caloroso, por vezes, cansativo e repetitivo, o que nos induz a acreditar que este dilema está próximo a sua resolução, ao menos por liquidação. A obra de Stobart não está à margem desta discussão. Ela nos revela como este debate continua circundando o campo da etnomusicologia contemporânea ao apontar antigas questões políticas, ideológicas e éticas da disciplina ainda mal resolvidas. Entretanto, avança sensivelmente ao indicar os novos direcionamentos que estes conflitos vêm tomando na academia, suas consequências nos estudos sobre música e as perspectivas futuras para o campo da etnomusicologia.

Dividido em duas partes, na primeira o livro foca principalmente sobre como a etnomusicologia se caracteriza como disciplina, seu caráter multidisciplinar, seu campo, seus métodos. Parte da discussão gira em torno da necessidade de diluir a fronteira entre musicologia e etnomusicologia, bem como de intensificar o diálogo com as demais áreas afins. Para isso, nos primeiros dois capítulos o livro traz a visão de musicólogos (Jim Samson e Nicholas Cook), antropólogos (Michelle Bigenho) e estudiosos da Música Popular (Fabian Holt). De modo geral, cada autor vai argumentar em favor de um diálogo maior com sua área.

Neste sentido, Jim Samson argumenta que os etnomusicólogos precisam dar mais valor à estética, não temer que os textos culturais falem por si próprios, independentemente do contexto, enquanto que os musicólogos precisam estar mais atentos à arte performática e sua história, bem como olhar para essas práticas como contendo algum "ethos". Michelle Bigenho queixa-se que, nas últimas três décadas, a etnomusicologia não tem acompanhado os avanços da antropologia, fechando-se também aos demais campos das ciências humanas, numa crescente perda da multidisciplinaridade. Para a autora, o foco excessivo apenas na música pode criar um monólogo, limitando o alcance da disciplina, em outras palavras, ficando restrita aos músicos. Por essa razão, em seu artigo ela deixa claro que, apesar de antropóloga estudiosa das manifestações musicais, não se considera uma etnomusicóloga. Para ela, a etnomusicologia tem se aproximado mais da musicologia do que da antropologia. Este texto é o mais atípico da conferência, pois é justamente em favor desta aproximação que a maioria dos autores se posicionam. Fabian Holt, em tom de desabafo, também se queixa de uma falta de aproximação com sua área, argumentando que os Estudos de Música Popular pouco dialogam com a etnomusicologia, especialmente com a abordagem etnográfica. Para ele, assim como fez a musicologia criando seus cânones (as obras e compositores dignos de serem estudados), os estudos de música popular e a etnomusicologia estão seguindo o mesmo caminho ao separar determinadas práticas pelo rótulo de World Music.

Nicholas Cook foi um dos mais fiéis ao tema proposto pela conferência, ou seja, a relação entre a etnomusicologia e a "nova" musicologia. Em sua visão otimista, declara que não há mais motivo para a distinção entre musicologia e etnomusicologia, pois, embora elas tenham se desenvolvido por caminhos separados, nos últimos anos houve uma importante convergência de interesses entre ambas as disciplinas. Para ele, a "nova" musicologia, através do seu interesse explícito pelo significado musical, interpretação, recepção, e seus valores inerentes, teria dado um passo fundamental em direção a uma aproximação com a etnomusicologia. Do mesmo modo, o crescente interesse por parte dos etnomusicólogos pelo objeto musical (o som, a música), como um agente de significado - mais do que apenas um reflexo da cultura, mas como cultura -, tem contribuído para uma maior identificação com a prática musicológica.

Não é tanto que a musicologia tenha se deslocado à posição que a etnomusicologia sempre ocupou, mas que ambas as disciplinas se moveram para uma posição comum (embora seja justo dizer que a etnomusicologia se moveu primeiro) (COOK, 2008, p.57).

Sua visão encontra pouca ressonância no texto de Laudan Nooshin, a qual parece demonstrar certa angústia em relação a possibilidade desta fusão. Ela declara que a convergência entre as áreas não é apenas uma questão de nomenclatura, nem de métodos e objetos, mas sim uma questão de ideologia e disputa de poder, ou seja, quem vai ter o controle do campo central dos estudos musicais e definir suas áreas principais de investimento. Para ela, a etnomusicologia sempre foi marcada por sua diferença (tanto em objeto, métodos, correntes, e visões) e esse diferencial é uma das suas marcas de resistência. O rompimento desta alteridade em relação à musicologia é algo que a autora não parece querer desvencilhar.

Seguindo o caminho da política, Tina K. Ramnarine argumenta em favor de uma etnomusicologia engajada nas necessidades sociais, nos problemas práticos da sociedade, usando como exemplo seus trabalhos com a pedagogia da performance. Para ela, a difusão da Wold Music na prática das performances musicais contemporâneas tem facilitado a aproximação entre diferentes culturas, contribuindo para um melhor entendimento e valorização do "outro". A autora aponta que essa política de globalização tem sido frequente nas políticas públicas de diversas instituições de ensino e que os etnomusicólogos têm contribuído para essa globalização no campo da performance e da educação musical. Neste sentido, a "nova" etnomusicologia tem se direcionado em favor do desmantelamento da artificial fronteira institucionalizada que separa o estudo da arte Ocidental do estudo das várias outras tradições, apesar da própria formação musical do etnomusicólogo ainda estar calcada nos cânones europeus. Por outro lado, para Philip Bohlman, a política de engajamento, embora de fundamental importância, não é suficiente no sentido de propor uma real "nova" etnomusicologia. Para ele, o que a etnomusicologia tem feito é deslocar o sentido da alteridade ao incorporar o estudo da sua própria cultura - ou seja, o estudo de "si mesmo" como o "outro" -, além de abrir espaço para outros campos e vozes, o que não significa um redirecionamento epistemológico em favor de uma "nova" etnomusicologia. Ele vê uma disciplina receosa em relação às mudanças, presa aos métodos e concepções do passado. Em sentido contrário, Caroline Bithell, aponta que uma "nova" etnomusicologia não se constrói sem referências passadas. Por isso, conduz seus argumentos em favor de uma releitura do passado da musicologia, como esse passado dever ser visto, analisado e considerado hoje. Para ela, nossos ancestrais carregavam valores que hoje são obsoletos, mas que tiveram sua razão naquele período e continuam influenciando, de algum modo, o pensamento atual. Portanto, a autora propõe que uma revisão seja feita, considerando o contexto onde essas teorias sugiram, como surgiram e porquê.

A segunda parte do livro tem como objetivo propor futuras direções para o campo da etnomusicologia, embora uma boa parcela das questões anteriormente levantadas permeie as fundamentações dos autores. Os dois primeiros capítulos, de John Baily e Martin Clayton, respectivamente, indicam possíveis direcionamentos para a área, valendo-se, para isso, dos relatos de suas bem sucedidas experiências com abordagens, segundo eles, ainda pouco exploradas pela etnomusicologia. Neste sentido, John Baily destaca que, desde meados do século XX, a etnomusicologia vem se guiando pela antropologia, o que conduziu a disciplina a um afastamento do objeto "música" ao focar excessivamente em aspectos contextuais. Por isso, o autor argumenta que está na hora de um realinhamento com a musicologia. Para ele, a ênfase na performance musical trará o foco de volta para a música de uma maneira alinhada com o perfil intelectual da "nova" musicologia. Na mesma direção, Clayton convida os etnomusicólogos a um engajamento maior com a música enquanto experiência sonora. Ele ressalta que os avanços tecnológicos contribuíram para as análises sonoras e performáticas, sendo possível hoje explorá-las de modo antes inimaginável. Seguindo com o tema da tecnologia, Abigail Wood aponta a internet como importante meio para o estudo das tradições musicais urbanas, pois através dela criam-se elos de afinidades, valores, trocas culturais, por vezes, de forma mais intensa e dinâmica do que em espaços físicos. Para a ela, a internet não se constitui num território artificial, mas sim num campo de interação onde se constroem realidades. Por isso, mais do que um meio alternativo para a coleta de dados, a internet vem se constituindo como um próprio campo de pesquisa. No entanto, devido às características diferenciais deste campo, a autora ressalta que é preciso uma cuidadosa reavaliação das questões éticas para o empreendimento deste tipo de pesquisa. Jonathan P. J. Stock encaminha sete direcionamentos para futuros trabalhos, a partir da convergência das abordagens musicológicas e etnomusicológicas. Para ele a etnomusicologia tem sido relutante em explorar o potencial de algumas ferramentas de escrita e interpretação habituais da musicologia como análise, história, estudos biográficos e critica musical. Na mesma direção, a comparação, o estudo das tradições urbanas, o engajamento social (etnomusicologia aplicada) são abordagens etnomusicológicas que têm muito a contribuir para o crescimento dos estudos musicais. Portanto, o autor sugere uma fusão entre todas essas correntes, argumentando em favor de uma maior relação entre as investigações musicais.

Neste volume organizado por Henry Stobart, grande parte da discussão circunda a necessidade do encontro entre as abordagens musicológicas e etnomusicológicas. Sem dúvida, a insistência neste debate tem contribuído gradativamente para dissolução da fronteira entre ambas disciplinas. Com a atual tendência da interdisciplinariedade em diversas áreas do conhecimento, esta questão surge não como uma estratégia de camaradagem ou artimanha política, mas da real inadequação dos velhos modelos às novas realidades, das quais a teoria clássica não dá mais conta (RUIZ, 1989). Mas, apesar desta questão tomar a cena por diversos momentos nos textos de quase todos os autores do livro, o tom geral das discussões parece se encaminhar no sentido de estabelecer um campo comum para os estudos musicais que possibilite abordagens a partir de diversas perspectivas, de modo que cada uma delas possa contribuir para esclarecer um aspecto específico da trama musical. Os debates deste livro contribuem no sentido de indicar que visões totalizantes, ou totalizadoras, não conseguem mais se firmar no contexto atual. Mesmo os teóricos mais conservadores tendem a evitar esse tipo de abordagem (NATTIEZ, 2005). A complementação, o diálogo, a multidisciplinaridade, despontam como estratégias fundamentais para o desfecho deste dilema emergencial. O livro demonstra que, no vasto campo dos estudos musicais, a etnomusicologia tem se destacado como uma das disciplinas mais inquietas ao discutir as abordagens mais adequadas para o objeto "música", ainda que esse caminho signifique a dissolução de seu status enquanto disciplina autônoma.

Notas

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é mestrando em Música (Musicologia-Etnomusicologia) na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e bolsista do Programa Pós-Graduação CNPq/UDESC. Graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição, onde foi por três anos bolsista de iniciação científica. Suas últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música brasileira, em especial no samba, rock, hip-hop e na música negra. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com menção honrosa no ano consecutivo.

Resenha do livro STOBART, Henry (orgs). The New (Ethno)musicologies. Lanham: Scarecrow Press, 2008, 226p. R$ 70,00.

Review of the book STOBART, Henry (orgs). The New (Ethno)musicologies. Lanham: Scarecrow Press, 2008, 226p. R$ 70,00.

  • ADLER, Guido & MUGGLESTONE, Erica. Guido Adler's "The Scope, Method, and Aim of Musicology" (1885): An English Translation with an Historico-Analytical Commentary by Erica Mugglestone. In: Yearbook for Traditional Music, Vol. 13. (1981), p.1-21.
  • CLAYTON, Martin. Comparing Music, Comparing Musicology. In: CLAYTON, Martin, HERBERT, Trevor &
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  • A (etno)musicologia anglo-americana sob doze perspectivas: uma resenha do livro The new (ethno)musicologies

    The Anglo-American (ethno)musicology under twelve perspectives: a review of the book T he new (ethno)musicologies
  • 1
    Guido Adler apresenta a etnomusicologia como parte da musicologia e como aliada da antropologia. (ADLER, 1981).
  • 2
    Para Charles Seeger, a musicologia dever ser vista como "um discurso sobre música, tanto sistemático (sincrônico) quanto histórico (diacrônico), tratando de texto e contexto, no intuito de analisar os eventos sonoros ligando o ser humano ao universo físico, no propósito de contribuir para a compreensão do homem como ser cultural" (SEEGER apud ULHOA, 1995, p.43).
  • 3
    Para citar alguns: RICE, 2001; MERIAM, 2001; CLAYTON, 2003; TOMLINSON, 2003; NETTL, 2005; WILLIAM, 2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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