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Música popular urbana e fronteiras em Mato Grosso do Sul no livro de Álvaro Neder

Urban Popular Music and Borders in Mato Grosso do Sul in Álvaro Neder's Book

NEDER, Álvaro. Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. 340 p

Resumo

Resenha do livro NEDER, Álvaro. Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. 340 p. R$ 60,00.

Palavras-chave:
música popular; Mato Grosso do Sul; América Latina; fronteiras

Abstract

Book review of Álvaro Neder's Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. 340 p. R$ 60,00.

Keywords:
popular music; Mato Grosso do Sul; Latin America; borders

A construção de gêneros musicais na música popular não pode ser analisada sem levar em conta os processos históricos, sociais, econômicos e culturais que compõem a complexa teia de significações que estão associadas aos discursos identitários. A análise das estruturas rítmicas, melódicas, harmônicas e formais, conquanto necessária, por si só não é suficiente para compreender as motivações e consequências das categorizações genéricas e sua força simbólica.

A partir de um olhar transdisciplinar, Álvaro Neder realiza um recorte da produção musical de Mato Grosso do Sul para analisar o que denomina de Música do Litoral Central (MLC): conjunto da produção de compositores urbanos daquele Estado construída a partir da década de 1960 e que atingiu seu clímax na década de 1970/80.

Tratando a canção popular como instância discursiva e tendo sempre em vista os conflitos e negociações entre as forças produtivas do campo e da cidade, são analisadas as complexas relações entre o local, o nacional, o sul-americano e o global que atravessam a obra de músicos como Geraldo Espíndola, Almir Sater, Paulo Simões, Geraldo Roca, Lenilde Ramos, Grupo ACABA e muitos outros.

Nos discursos musicais desses artistas, o autor detecta o que denomina de "poética do deslocamento" como uma "contínua migração entre diferentes posições subjetivas" (p.63) e um certo "desfronteiramento" que aponta para uma intertextualidade metaforizada nas imagens recorrentes do rio Paraguai (e do Pantanal) e do trem não apenas como rota de fuga mas também como "procura do movimento e atração pela indeterminação" (p.63).

Segundo Neder, o termo "Música do Litoral Central" - proposto pelo compositor Geraldo Roca - remete a um tipo de canção urbana surgido em Campo Grande na década de 1960 e que, apesar de inicialmente não apresentar uma unidade estética, estilística e ideológica, e nem ser considerada "regional", serviu ao projeto de construção identitária de Mato Grosso do Sul antes, durante e depois de realizada a divisão do antigo Mato Grosso no final dos anos 1970, já que "os discursos dominantes viriam a favorecer, a partir da divisão, a entronização da MLC como identidade representativa de Mato Grosso do Sul" (p.119).

Se debatendo nas categorias dicotômicas do arcaico/moderno e campo/cidade, e apesar da inspiração musical caipira e paraguaia, hibridizada com a MPB, o folk e o rock americanos, a MLC e seus músicos foram detentores de grande prestígio na cidade de Campo Grande e muito pouco sucesso econômico e popularidade no restante do Estado, haja vista seu perfil urbano que não se confundiu com o universo cultural dos trabalhadores rurais ou das camadas urbanas que mantinham fortes identificações com a ruralidade.

Contraditória, apesar de cooptada pelas elites locais após a década de 1970 e de desfrutar do prestígio de seu capital simbólico, a MLC "não privilegiava o polo da tradição - relacionada, como regionalismo, aos interesses dominantes -, que era aqui alterada, transformada, tornando-se, não mais familiar ou nostálgica, mas estranha" (p.146), e, de um modo geral, "as canções iam a contrapelo, tanto do desenvolvimentismo exclusionário, quanto dos discursos ufanistas e conciliadores do regionalismo, ao propor um diálogo entre o rural, a América Latina e o mundial" (p.133).

Esse prestígio local, que atingiu o ápice na década de 1980 com a difusão dos apelos ecológicos em defesa do Pantanal, levou a MLC a uma certa "defesa essencialista de raízes regionais", associando-se a um "ideário solene, pedagogizante e limitador", passando às novas gerações uma "imagem retrógrada, do mato, da natureza, do passado" (p.162).

Neder conclui sua narrativa observando que a proposta da MLC "baseia-se na ideia de fragmentação, não de integração", e que sua opção por um discurso que excluiu "o universo cultural das populações periféricas da cidade de Campo Grande e rurais do restante de Mato Grosso do Sul, em última análise, não chegou a promover efeitos sobre elas" (p.325).

No primeiro capítulo o autor faz uma análise do contexto histórico-social em que está inserido o atual Mato Grosso do Sul, partindo da guarânia "Sonhos guaranis" de Paulo Simões e Almir Sater que aborda o triste episódio da Guerra da Tríplice Aliança no século XIX e aponta para uma possível integração latino-americana nesta "fronteira onde o Brasil foi Paraguai".

No segundo capítulo, o reggae "Vida cigana" de Geraldo Espíndola fornece o mote para a demonstração da tese da poética do deslocamento e as práticas culturais contraditórias de Campo Grande exemplificadas no clube social da elite local (Rádio Clube), no qual, desde os anos 1920, os modelos desenvolvimentistas e modernizantes se debatiam dialeticamente com a cultura paraguaia e fronteiriça.

É porém no terceiro capítulo que Neder mergulha de cabeça na tese de que a divisão Mato Grosso/Mato Grosso do Sul foi decisiva para a entronização da MLC e seus agentes como bandeira identitária apoiada em idílicas imagens ecológicas de um pantanal idealizado em uma complexa teia discursiva. A busca de referencias culturais para legitimar os diversos projetos de poder das elites locais tem como trilha musical a canção "Cunhataiporã", de Geraldo Espíndola, que pergunta "onde você quer ir, meu bem?" ao mesmo tempo em que aponta os destinos e as referencias possíveis (Ponta Porã, Corumbá, trem, barco, Rio Paraguai) e conclui nostalgicamente "cantando as canções que não se ouvem mais".

É aqui que o autor analisa os diversos festivais de música, projetos culturais e as faixas do icônico LP "Prata da casa" do início da década de 1980 e considerado uma espécie de "manifesto" informal da MLC, sem poupar do rigor da crítica músicos como Tetê Espíndola, Geraldo Espíndola e o Grupo Acaba, bem como o escritor José Octávio Guizzo, autor das primeiras obras que abordaram a produção musical do Estado, por seu nacionalismo andradiano e preocupação em negar as influências paraguaias ao desconsiderar os conflitos econômicos e políticos da região.

Finalmente, no quarto capítulo, o autor esclarece de onde fala e suas conexões com a cultura local, já que é campo-grandense, neto de paraguaia, primo do compositor Paulo Simões, filho de Margarida Neder (que manteve durante anos um espaço cultural em Campo Grande inspirado na cultura latino-americana, a Peña Eme-Ene), tendo sido músico amador iniciante nos anos 1970 e trabalhado na Rádio Educativa Estadual na década de 1990.

Um dos grandes méritos da obra é, através de profundas reflexões e apoiado em sólidas referências teóricas, trazer para o foco a produção musical de um Brasil fronteiriço e com muitas conexões latino-americanas. Como afirma na introdução: "pouco se sabe, na literatura acadêmica, sobre esse Brasil interiorano e fronteiriço à América Platina sendo pertinente propor uma pouco frequente reflexão sobre as relações de uma parte fronteiriça do Brasil com esses países tão próximos, histórica e geograficamente, e, no entanto, tão distantes de nossos corações e mentes" (p.20).

Referência

  • 1
    NEDER, A. (2014) Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul Rio de Janeiro: Mauad.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2015
  • Aceito
    18 Mar 2016
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