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O exercício na insuficiência cardíaca: da contra-indicação à evidência científica

EDITORIAL

O exercício na insuficiência cardíaca: da contra-indicação à evidência científica

A insuficiência cardíaca crônica (ICC) pode ser definida como uma situação clínica na qual o débito cardíaco é incapaz de satisfazer a demanda metabólica dos tecidos da periferia. Esta anormalidade desencadeia uma série de mecanismos compensatórios e, desta forma, a insuficiência cardíaca não é mais vista simplesmente como um déficit da função sistólica ou diastólica, mas também como uma síndrome neurohumoral. Em uma fase mais avançada, estas alterações se tornam deletérias e o prognóstico é inversamente proporcional ao grau de ativação neuroendócrina1. A ICC apresenta uma incidência anual nos Estados Unidos de aproximadamente 2.000.000 casos. É o diagnóstico de alta hospitalar mais comum nos indivíduos acima de 65 anos de idade e a taxa de mortalidade em cinco anos é freqüentemente superior à de pacientes portadores de diversos tipos de neoplasias2.

A intolerância ao esforço e às atividades do cotidiano e a dispnéia são os sintomas mais freqüentes e debilitantes nos pacientes com ICC leve a moderada. Tradicionalmente, sempre houve uma recomendação para que os pacientes com ICC se mantivessem tanto quanto possível em repouso, evitando a realização de qualquer tipo de atividade física que fosse capaz de desencadear sintomas. Assim, sempre se evitou submeter estes pacientes a um teste de esforço ou recomendar atividade física ou reabilitação3. De fato, até recentemente a atividade física regular não fazia parte das recomendações para o tratamento dos pacientes com ICC4,5.

Os pacientes com ICC representam um grupo um tanto quanto heterogêneo em relação às anormalidades que determinam a redução da sua capacidade funcional. Há vários subgrupos de anormalidades musculares e hemodinâmicas, que podem se superpor em cada paciente. Há pacientes com fluxo muscular normal ou alterado durante o exercício; nos pacientes com alterações de fluxo, parece haver algum grau de disfunção endotelial. Há pacientes que possuem uma atrofia muscular por alterações intrínsecas das fibras musculares – neste caso uma provável etiologia seria o drive simpático cronicamente aumentado; em outros pacientes, a atrofia muscular seria meramente por inatividade física, com alterações comuns a indivíduos sedentários sem doença; em alguns outros pacientes, a desnutrição contribuiria para a atrofia muscular. De qualquer forma, o elemento comum a todos os pacientes é uma insuficiência muscular esquelética6,7, que seria o principal responsável pela redução da capacidade funcional.

A atividade física regular induz várias adaptações morfofuncionais nos pacientes com ICC. Estas adaptações, do ponto de vista qualitativo, são semelhantes às observadas em indivíduos aparentemente saudáveis e atletas. Os estudos da literatura, com algumas óbvias variações conforme o foco da avaliação, mostram achados até certo ponto semelhantes, que incluem: aumentos variáveis no consumo máximo de oxigênio, no consumo de oxigênio e na carga de trabalho nos quais se atinge o limiar anaeróbico, na capacidade de realizar e manter um determinado trabalho mecânico; redução da FC em repouso e para esforços submáximos; aumento no tamanho das fibras musculares, na quantidade e no volume das mitocôndrias, bem como na atividade das enzimas oxidativas8-10. O aumento da capacidade funcional induzido pelo exercício regular está associado com um melhor prognóstico11.

Além disso, dois achados particularmente interessantes nos pacientes com ICC e recentemente demonstrados são a melhora da disfunção autonômica, com redução do tônus simpático e aumento do tônus vagal cardíaco12, e a reversão da disfunção endotelial presente em muitos desses pacientes13. Todos esses achados disponíveis na literatura até o ano passado, aliados à experiência de serviços de reabilitação cardíaca em todo o mundo, não deixavam dúvida que o exercício físico se constituía em uma intervenção extremamente benéfica para o paciente portador de ICC sob vários pontos de vista e que presumivelmente também traria um impacto positivo em termos de prognóstico.

As tão esperadas evidências vieram neste ano, com um interessante estudo randomizado e controlado14, no qual 50 pacientes com ICC foram submetidos a um programa de 14 meses de duração que incluiu exercícios em cicloergômetro a 60% do VO2 máximo; os resultados foram comparados com os de um grupo controle com 49 pacientes, que não foram submetidos a programas formais de exercícios. Os autores demonstraram uma redução importante e inequívoca na mortalidade e na freqüência de reinternações, além de uma melhora expressiva da qualidade de vida e de outros parâmetros já demonstrados por estudos anteriores.

Este artigo certamente é o primeiro de uma série e vem corroborar uma conduta já preconizada por muitos já há muito tempo. Desta forma, há agora um irrefutável argumento científico a favor da prática regular de exercícios no paciente portador de ICC. Aliás, esses pacientes estão entre os que mais se beneficiam de programas formais de reabilitação cardíaca e ignorar esse aspecto equivale cientificamente a negligenciar o próprio tratamento farmacológico.

José Kawazoe Lazzoli

Editor-Chefe,

Revista Brasileira de Medicina do Esporte

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 1999
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