INTRODUÇÃO
O aumento no número de pessoas que procuram academias de ginástica demonstra a preocupação com o bem-estar e a qualidade de vida1. Segundo o Conselho Federal de Educação Física, o Brasil tem o maior número de academias no mundo (cerca de 20 mil) e cerca de 3,6 milhões de brasileiros praticam atividade física nestes locais2. Em São Paulo, SP, Brasil, verifica-se a escassez de regras que definem e asseguram a integridade física desses indivíduos. Dentre as diretrizes em vigência no Estado, a Lei 15.681/13 propõe a utilização do Questionário de Prontidão para Atividade Física (Physical Activity Readiness Questionnaire - PAR-Q) para praticantes amadores, entre 15 e 65 anos. Caso a resposta seja afirmativa a qualquer uma das questões do PAR-Q, ou faixa etária fora do intervalo proposto, é necessária a realização de atestado médico com renovação anual3-5.
A prática de exercícios físicos é de extrema importância, mas é necessário cautela a fim de evitar riscos à saúde devido à falta de avaliação prévia6,7. A morte súbita relacionada ao exercício e ao esporte (MSEE) ocorre de modo inesperado de seis a 24 horas após prática de uma atividade desportiva8-11.
Neste sentido, torna-se necessária uma padronização na triagem de praticantes de academia a fim de reduzir ao máximo o risco de morte súbita e outras morbidades associadas ao exercício físico. O objetivo deste estudo foi avaliar a eficácia do PAR-Q na detecção de risco para saúde em indivíduos que frequentam academia comparando-o com o exame clínico pré-participação esportiva.
MÉTODOS
O estudo teve a aprovação do Comitê de Ética Anhembi Morumbi, sob o número de protocolo 43903314.2.0000.5492, em 16/04/2015. Realizou-se um estudo transversal, em duas academias localizadas nas cidades de São Bernardo do Campo e Guarulhos, SP, Brasil, em abril de 2015. Foram avaliados 50 indivíduos, de ambos os gêneros, com idade entre 18 e 35 anos, que iriam iniciar atividades físicas. Os indivíduos foram selecionados aleatoriamente e incluídos no estudo caso estivessem dentro da faixa etária proposta, compreendessem e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A pesquisa consistiu em: preenchimento do questionário PAR-Q (Anexo 1), anamnese, exame físico completo, exame ortopédico, exame de postura e teste de flexibilidade. As avaliações foram realizadas nas próprias academias por um estudante de medicina, sob a supervisão de um Médico do Exercício e do Esporte.
Na anamnese, além da identificação e antecedentes pessoais e familiares, foram desenvolvidas questões específicas dirigidas a identificação de fatores de risco cardiovascular.
O exame físico foi constituído por: aferição da frequência cardíaca, pressão arterial, ausculta cardiopulmonar, exame abdominal, palpação de pulsos radiais e pediosos. Foram realizadas medidas antropométricas (peso, altura e aferição da circunferência abdominal) bem como avaliação postural. Utilizou-se uma balança digital, estadiômetro e fita métrica graduada em centímetros. A pressão arterial foi aferida em posição sentada, no membro superior direito, com esfigmomanômetro e estetoscópio.
A avaliação postural foi realizada por meio de um simetógrafo e a avaliação da flexibilidade foi feita por meio do banco de Wells.
As variáveis quantitativas foram analisadas por meio de média e desvio padrão e por porcentagens. A comparação das variáveis contínuas com distribuição normal pelo teste t, e a comparação das variáveis qualitativas, por meio do teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher. Foi fixado em 5% a hipótese de nulidade (p 0,05).
RESULTADOS
A maioria dos entrevistados eram mulheres (54%), com nível superior completo (74%) e da cor branca (58%). A melhora da saúde foi o principal motivo de procura pela academia em 15 indivíduos (30%). Em seguida, de forma semelhante, 13 entrevistados (26%) tinham como foco a melhora da estética e 13 (26%) melhorar a aptidão física.
O questionário de prontidão para atividade física foi positivo em 10 entrevistados (20%), resultado semelhante à entrevista feita pelo estudante de medicina, em que 14 entrevistados (28%) relataram alguma doença.
Contudo, a anamnese identificou 8% de asmáticos, 4% de dislipidêmicos e 2% com hipotireoidismo. Ademais, 8% eram tabagistas, e 14% faziam uso de alguma medicação, dentre elas broncodilatadores, levotiroxina, estatina e contraceptivos hormonais orais. Em relação a cirurgias previas quase metade dos praticantes (40%) relataram pelo menos um procedimento ortopédico, obstétrico ou estético. Em relação aos antecedentes familiares, 56% dos praticantes de academia relataram história de hipertensão e 48% relataram diabetes em parentes de primeiro grau.
Os dados antropométricos podem ser evidenciados na Tabela 1. Observa-se indivíduos com valores elevados de pressão arterial sistólica (150mmHg) e pressão arterial diastólica (90mmHg) e circunferência abdominal (107 cm), dados que corroboram para avaliação laboratorial específica e possível diagnóstico de síndrome metabólica.
Tabela 1 Dados antropométricos, frequência cardíaca e pressão arterial em 50 praticantes de academia, de ambos os gêneros
Váriável | Média ± dP | Mínimo | Máximo |
Idade (anos) | 18 ± 5 | 18 | 35 |
Peso (kg) | 70,1 ± 13,6 | 45 | 102 |
Altura (m) | 1,68 ± 0,1 | 1,50 | 1,90 |
IMC (kg/m2) | 25,2 ± 4 | 19,2 | 36,8 |
CA (cm) | 82,05 ± 13 | 33 | 107 |
PAS (mmHg) | 111,8 ± 15,6 | 80 | 150 |
PAD (mmHg) | 71,2 ± 7,5 | 60 | 90 |
FC (bpm) | 76 ± 12 | 49 | 103 |
IMC = Índice de massa corpórea; CA = Circunferência abdominal; PAS = Pressão arterial sistólica; PAD = Pressão arterial diastólica; FC = Frequência cardíaca.
Em relação ao exame ortopédico, a maior parte dos examinados exibiu avaliação normal, caracterizada pela simetria da cintura escapula e pélvica, tipo de pé (neutro, pronado ou supinado), angulação do joelho (varo ou valgo) e alinhamento da coluna (normal, cifose ou lordose) (Figura 1).
A medida da flexibilidade pelo Banco de Wells variou de sete a 45 cm, com valor médio na amostra de 27,8 cm (±9,37cm). A maioria dos participantes apresentou flexibilidade excelente.
A Tabela 2 compara os dados da anamnese, exame físico geral e especial dos participantes que tiveram resposta positiva ao questionário de prontidão física (PAR-Q positivo) com aqueles que tiveram respostas negativas (PAR-Q negativo). Observa-se que em relação aos antecedentes pessoais o questionário selecionou de forma correta aqueles que faziam uso de medicação (p=0,001), cirurgias prévias (p =0,03) e história familiar de hipertensão arterial (p=0,001). Em relação ao exame físico geral, observa-se que os participantes que tiveram o PAR-Q positivo tiveram os maiores valores de índice de massa corpórea, pressão arterial sistólica e diastólica, mas a diferença não foi estatisticamente significante.
Tabela 2 Comparação entre os indivíduos com PAR-Q positivo e PAR-Q negativo consoante à idade, antecedentes pessoais, antecedentes familiares, exame físico geral e exame físico especial.
Variável | PAR-Q positivo (n=10) | PAR-Q negativo (n=40) | p |
Idade (média ± dp) | 27,5 ± 4,4 | 28,3 ± 4,2 | 0,7 |
Antecedente pessoal | |||
Asma | 0 | 5% | 1,0 |
Tabagismo | 0 | 5% | 1,0 |
Uso de medicação | 40% | 0 | 0,001* |
Cirurgia prévia | 50% | 15% | 0,03* |
Antecedente familiar | |||
DAC | 20% | 5% | 0,2 |
HAS | 80% | 22,5% | 0,001* |
DM | 40% | 17,5% | 0,2 |
DLP | 40% | 22,5% | 0,4 |
Exame físico geral | |||
IMC (média ± dp) | 25,1 ± 4,5 | 22,4 ± 3,6 | 0,9 |
PAS (média ± dp) | 115 ± 18,4 | 110 ± 14,1 | 0,5 |
PAD (média ± dp) | 71 ± 7,4 | 68,9 ± 7,7 | 0,8 |
Alteração na ausculta | 0 | 2,5% | 1,0 |
Alteração no abdome | 0 | 2,5% | 1,0 |
Exame físico especial | |||
Flexibilidade (média ± dp) | 25,5 ± 11,7 | 28,6 ± 8,8 | 0,3 |
Lordose | 20% | 0 | 0,04* |
Escoliose | 60% | 5% | 0,0003* |
Pé plano | 30% | 7,5% | 0,09 |
Pé cavo | 0 | 2,5% | 1,0 |
Quatro participantes que responderam de forma negativa ao PAR-Q tiveram exame físico alterado (dois durante a ausculta cardiopulmonar e dois durante o exame do abdome). Um participante apresentou um sopro intenso, holossistólico em foco mitral e o outro um desdobramento da primeira bulha cardíaca. Em relação ao exame abdominal, detectou-se uma hérnia umbilical com cerca de uma polpa digital sem sinais de encarceramento, e uma dor à palpação profunda de fossa ilíaca direita, com descompressão brusca negativa.
DISCUSSÃO
Segundo levantamento feito pelo Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), entre o ano de 2007 e 2012, o número de academias no Brasil teve um crescimento de 133%. Os principais fatores para esse aumento foram, a busca por uma melhor qualidade de vida e o aumento da renda da população12. Infelizmente, o aumento destes estabelecimentos foi acompanhado por um aumento de casos de morte súbita relacionados ao exercício, o que suscitou na mídia e nas entidades médicas o real valor do preenchimento de um questionário, como o PAR-Q.
Em nosso estudo, o principal motivo de procura da academia de ginástica foi à melhora da saúde. Este resultado vai de encontro com os dados da literatura que mostram que indivíduos do sexo masculino buscam a academia com a finalidade de condicionamento físico, e na população feminina, cerca de 60% procuram a academia por motivo estético13.
A positividade do PAR-Q na população estudada foi de 20%. Este questionário foi criado em 1978 por pesquisadores da Sociedade Canadense de Fisiologia do Exercício como método de triagem para indivíduos entre 15 a 69 anos de idade, que desejavam começar um programa de atividades físicas14. O questionário tem por finalidade detectar fatores de risco para doenças cardiovasculares que podem levar a morte súbita, mas tem limitações quanto a detecção de outras morbidades clínicas14.
Embora o PAR-Q seja considerado seguro e sensível, ele não é específico. No presente estudo, através da anamnese, foi possível detectar indivíduos com asma, hipotireoidismo, tabagismo e dislipidemia. Recentemente, foi criado um questionário complementar (PAR-Q+) com a finalidade de identificar causas não cardiológica de morte súbita15.
O broncoespasmo induzido pelo exercício (BIE) é um efeito adverso à saúde principalmente na prática de exercícios aeróbios sem triagem adequada16. Cerca de 80 a 90% dos asmáticos sofrem de broncoespasmo induzido pelo exercício16, principalmente na população obesa17. Dos pacientes com asma, 2,1% podem evoluir com morte súbita relacionada ao exercício17,18.
A aterosclerose coronária precoce responde por 10% das mortes súbitas em atletas jovens. Resulta em isquemia miocárdica ou infarto agudo do miocárdio na segunda ou terceira década de vida, sendo claramente associada a dislipidemia familiar. Além disto, o tabagismo acelera e agrava a aterosclerose e aumenta o risco de doenças arteriais coronárias e pode provocar, significativamente, a instabilidade da placa aterosclerótica19.
O hipotireoidismo subclínico está associado a um aumento do risco de eventos coronarianos e mortalidade por doença cardíaca coronariana, dependendo do nível hormonal do indivíduo19.
Muitos indivíduos deste estudo relataram cirurgias prévias. De acordo com a cirurgia realizada, exames complementares são necessários para avaliar a capacidade funcional e posterior prescrição da atividade física, minimizando lesões a curto e médio prazo20.
Em relação ao exame físico geral, embora uma parcela de indivíduos tenha apresentado sobrepeso, aumento da circunferência abdominal e hipertensão arterial, não houve diferença entre aqueles que responderam positivamente ao PAR-Q daqueles que responderam de forma negativa. Mesmo com este resultado, há que se ressaltar a facilidade na medida da circunferência abdominal e IMC frente a especificidade na identificação de risco para doenças metabólicas16,21-26
O exame físico especial foi capaz de identificar quatro indivíduos com alterações cardíacas e abdominais e que responderam de forma negativa ao PAR-Q. Esses pacientes teriam risco aumentado para a morte súbita, principalmente nos casos de alteração de ritmo cardíaco, identificável e prevenida através da realização de um ECG com 12 derivações24, como também risco de complicação e possível necessidade de tratamento cirúrgico de urgência no caso do indivíduo com a hérnia umbilical.
A avaliação ortopédica antes de iniciar a prática de qualquer exercício físico é importante, pois pode prevenir lesões que prejudicarão ou interromperão a prática por período indeterminado. O histórico de lesões prévias pode conduzir a orientações quanto ao tipo, intensidade e outros aspectos relevantes à prática esportiva escolhida, a fim de evitar recidivas das lesões. No exame físico é importante avaliar as
articulações, o trofismo da musculatura, escoliose, deformidades, desvios de eixo e discrepância de comprimento dos membros, tipo de pisada e necessidade de uso de palmilhas, realizados durante o presente estudo. Para aqueles que vêm de um período prolongado de sedentarismo, é sempre importante iniciar os exercícios com reforço das articulações e tendões, seguido de fortalecimento muscular para prevenir lesões27.
Os estudos apontam que indivíduos fisicamente ativos apresentam menor incidência de doenças crônico-degenerativas, corroborando para uma economia significativa nos sistemas de saúde28. Entretanto, o perfil epidemiológico de doenças difere entre os países e talvez, por isso, o PAR-Q não seja tão eficaz na população brasileira29. Assim, um protocolo ideal de prevenção de eventos em academias deve identificar doenças que possam causar morte súbita, e morbidades que limitem ou impeçam pratica de atividade física30.
Limitações do estudo
Embora o questionário utilizado seja padronizado na literatura atual e usado na maioria das academias, o estudo teve como principal limitação a não realização de exames complementares. O eletrocardiograma de 12 derivações é exame mínimo, pouco oneroso e preconizado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. Da mesma maneira, a solicitação de perfil lipídico e glicemia poderiam corroborar para o diagnostico de doenças crônicas não identificadas pelo questionário e exame físico.