INTRODUÇÃO
O parapente é uma atividade de voo livre que utiliza um planador ultraleve flexível para decolagem, evolução em voo e pouso. Considerado um esporte de aventura e de alto risco, o voo de parapente teve inicio no Brasil em 1987 e, desde então, o número de pessoas praticando essa modalidade de voo tem crescido1. Com o crescente número de adeptos ao esporte, observa-se a ocorrência de lesões associadas à modalidade. Apesar dos fatores de risco para essas lesões não serem bem conhecidos, muitas delas ocorrem por imperícia do piloto, seja por tentar executar uma ação que não é capaz de dominar, ou por fazer algo que não deveria ser feito2.
A Confederação Brasileira de Voo Livre dispõe de normas de formação de pilotos, nivelamento, requisitos e prerrogativas com o objetivo de minimizar a ocorrência de acidentes. Por meio desses requisitos, os pilotos são enquadrados em níveis, devendo utilizar equipamentos de voo conforme sua habilitação3. Além dos níveis de habilitação, existem normas de homologação de instrutores, e o parapente é classificado de acordo com sua aeronavegabilidade, sendo o comportamento do equipamento em voo testado e avaliado. A classificação da vela é realizada de acordo com a nota obtida nesse teste, fornecendo uma orientação ao piloto sobre o parapente4,5.
Como em outros esportes, o parapente apresenta um potencial de risco de lesões, que podem ser predispostas por fatores intrínsecos ou extrínsecos ao equipamento6. Para compreender quais são estes possíveis fatores, bem como para elaborar diretrizes de prevenção para pilotos de parapente, há necessidade de conhecer a epidemiologia das lesões ocorridas nesta modalidade do voo livre. No entanto, não foram encontrados estudos epidemiológicos de lesões na prática de parapente no Brasil, impossibilitando o desenvolvimento de estratégias de prevenção. Assim, esta pesquisa tem como objetivo analisar a incidência, tipo, área anatômica acometida, gravidade e padrão nas lesões em pilotos de parapente no Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética do Centro Universitário Campos de Andrade, sob o número CAAE 53627216.7.0000.5218. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Realizou-se um estudo quantitativo, do tipo descritivo analítico com corte transversal, retrospectivo por meio de um questionário adaptado do formulário de notificação de acidentes do órgão Alemão LBA - Federal Office of Civil Aeronautics, para obter informações de pilotos de parapente habilitados para voo no Brasil.
Os critérios de inclusão foram: o indivíduo deveria ser habilitado pela Confederação Brasileira de Voo Livre ou pela Associação Brasileira de Parapente. A aplicação do questionário foi realizada via on-line, no período de 26 de fevereiro de 2016 a 20 de maio do mesmo ano. Foi utilizado o Google formulários para responder ao questionário disponibilizado aos praticantes da modalidade. O convite para participação dos pilotos foi por meio da divulgação de associações, federações e clubes da modalidade esportiva, e-mail, bem como nas redes sociais, no Facebook e Instagram, nos perfis e páginas relacionadas a parapente no Brasil.
As seguintes variáveis foram analisadas: Idade; Tempo de voo, Tempo de habilitação à data da lesão; Nível de habilitação; Tipo de homologação; Região da Lesão; Momento da lesão, Tipo de calçado e Atividade física. Os níveis de habilitação são classificados progressivamente como: aluno em instrução; nível 1; nível 2; nível 3; nível 4; nível 5. O tipo de homologação do equipamento é classificado como “A” (mais seguro, indicado para pilotos em todos os níveis de formação) e “B”, “C”, “D” e “CCC”, progredindo quanto à exigência de habilidade e experiência do piloto (equipamentos mais dinâmicos, mas com uma resposta mais violenta à turbulência e aos erros de pilotagem)4,5.
Inicialmente foi realizado um teste Qui-quadrado considerando a categoria com menor frequência de lesão como valor esperado para as variáveis: Idade; Nível de habilitação; Tempo de habilitação e Atividade física. Para a variável, Tipo de homologação, considerou-se o Perfil Seguro (A - B) como valor esperado. A seguir, foi realizada uma regressão logística na qual Idade foi dicotomizada como “≤ 40 anos” vs “> 40 anos”; Nível de habilitação como “≤ 2” vs “> 2”; Tempo de habilitação como “≤ 5 anos” vs “> 5 anos”; Tipo de homologação como “A ou B” vs “ C, D ou CCC”; Tipo de calçado como “Bota” vs “outros” e Atividade física como “pratica” vs “não pratica”. Para essa regressão logística, inicialmente procedeu-se a uma análise univariada (χ2) das associações entre as variáveis dicotomizadas descritas acima e a ocorrência de lesão (dicotomizada como “sim” vs “não”) A seguir, as variáveis com associação univariada marginal com a variável desfecho (p-valor < 0,25) foram introduzidas em uma regressão logística, tendo ocorrência de lesão como variável desfecho. A análise foi realizada no programa SPSS v.20.
RESULTADOS
De acordo com os dados obtidos no “site” da Confederação Brasileira de Voo Livre, até o final de 2015 havia em torno de 4.000 pilotos associados, vinculados a 12 Federações Estaduais cadastradas na Confederação7. O número de indivíduos que responderam à pesquisa foi de 625, sendo que 50 foram excluídos deste estudo por não cumprirem os critérios de inclusão, resultando em 575 pilotos que responderam ao questionário. As características demográficas principais dos respondentes e as associações univariadas entre as variáveis analisadas e a ocorrência de lesões estão descritas nas Tabelas 1 e 2. Quando a categoria de tempo de habilitação foi dicotomizada em “< 10 anos” e “> 10 anos”, o teste Qui-quadrado de Pearson (χ2) indicou diferença estatística significativa (p=0,030) entre a frequência de lesões dos sujeitos que tem mais de 10 anos de habilitação que os demais.
Tabela 1 Características de praticantes de voo em parapente e de suas lesões, informações obtidas por questionário “online”, Brasil, 2016 (n = 575).
Característica | Número | % |
Pilotos | ||
Nível de habilitação | ||
1 | 177 | 30,8 |
2 | 190 | 33,0 |
3 | 162 | 28,2 |
4 | 42 | 7,3 |
5 | 4 | 0,7 |
Tempo de habilitação à data da lesão (anos) | ||
Em instrução | 3 | 0,8 |
< 0.5 | 46 | 12,4 |
0,5 - 1 | 77 | 20,7 |
1 - 2 | 71 | 19,1 |
2 - 5 | 93 | 25,0 |
5 - 10 | 58 | 15,6 |
> 10 | 24 | 6,4 |
Lesões | ||
Região da lesão | ||
Cabeça | 3 | 0,8 |
Coluna vertebral | 102 | 27,4 |
Membros inferiores | 164 | 44,1 |
Membros superiores | 59 | 15,9 |
> 1 Região | 44 | 11,8 |
Momento da lesão | ||
Decolagem | 82 | 22,0 |
Em voo | 20 | 5,4 |
Pouso | 253 | 68,0 |
> 24hs voo | 17 | 4,6 |
Tabela 2 Associação entre variáveis selecionadas e ocorrência de lesões em pilotos de parapente, Brasil, 2016 (n=575). Valores em itálico esperados para calculo da estatística Qui-quadrado.
Variável | Lesões | % com lesão | χ2 / p-valor | ||
0 | 1 | > 1 | |||
Tipo de homologação | |||||
Sem homologação | 2 | 3 | 2 | 71,43 | 2,96 / 0,228 |
Perfil menos seguro (C-D - CCC) | 65 | 137 | 15 | 70,05 | |
Perfil seguro (A - B) | 136 | 190 | 25 | 61,25 | |
Tipo de selete | |||||
Carenada com airbag | 6 | 16 | 2 | 75,00 | 5,02 / 0,414 |
Carenada sem airbag | 64 | 104 | 13 | 64,64 | |
Com airbag | 59 | 97 | 10 | 64,46 | |
Montanha com airbag | 8 | 12 | 3 | 65,22 | |
Montanha sem airbag | 3 | 4 | 5 | 75,00 | |
Sem airbag | 63 | 97 | 9 | 62,72 | |
Idade (anos) | |||||
18 - 25 | 12 | 12 | 3 | 55,56 | 16,55 / 0,005 |
26 - 30 | 25 | 27 | 2 | 53,70 | |
31 - 35 | 49 | 53 | 9 | 55,86 | |
36 - 40 | 42 | 65 | 5 | 62,50 | |
41 - 50 | 53 | 107 | 15 | 69,71 | |
> 51 | 22 | 66 | 8 | 77,08 | |
Tempo de voo (anos) | |||||
0,5- 1 | 13 | 17 | 3 | 60,61 | 6,83 / 0,145 |
1 - 2 | 34 | 52 | 4 | 62,22 | |
2 - 5 | 79 | 104 | 10 | 59,07 | |
5 - 10 | 50 | 73 | 10 | 62,41 | |
> 10 | 27 | 84 | 15 | 78,57 | |
Atividade física (x semana) | |||||
1 | 28 | 30 | 4 | 54,84 | 12,10 / 0,017 |
2 | 39 | 83 | 13 | 71,11 | |
3 | 52 | 70 | 4 | 58,73 | |
4 | 33 | 77 | 12 | 72,95 | |
Não prática | 49 | 72 | 9 | 62,31 |
Um total de 372 pilotos (68,6%) relatou já terem sofrido lesão no parapente; destes, 31,4% tiveram mais de uma. Os indivíduos que relataram o maior índice de lesões no esporte foram aqueles de faixas etárias elevadas. Dos 314 diagnósticos referidos, 44,9% foram de fraturas, 16,24% luxações, 12,74% contusões, 10,83% entorse; o estiramento muscular ou ligamentar foram 7,32% e outras lesões representam 7,96%, sendo necessária intervenção cirúrgica em 30,89% destes casos.
A Tabela 3 apresenta os resultados da regressão logística para a variável desfecho “ocorrência de lesão”. Apenas as variáveis Idade (p <0,0001) e Tipo de homologação (p= 0,049) puderam ser retidas na regressão (χ2 geral para o modelo p < 0,001).
Tabela 3 Regressão logística para fatores de risco relacionados à lesão por voo em parapente, informações obtidas por questionário “online”, Brasil, 2016 (n = 575). Variável desfecho “ocorrência de lesão”. Categorias de referência: Idade: > 40 anos; Tipo de Homologação: “perfil seguro” (vide texto). χ2 geral para os coeficientes do modelo p < 0,001.
Variáveis | B | S.E. | df | p-valor | OR | IC 95% |
Idade | -0,68 | 0,18 | 1 | 0,000 | 0,51 | 0,34 - 0,73 |
Tipo de homologação | 0,37 | 0,19 | 1 | 0,049 | 0,05 | 1,45 - 1,00 |
DISCUSSÃO
As lesões, definidas como dano físico que ocorre após uma súbita ou breve exposição do corpo humano a níveis de energia intoleráveis ou à falta de elementos vitais, são um grave problema de saúde pública em todo o mundo. As atividades esportivas são consideradas um dos eventos mais comuns para causar esse tipo de dano8. Por outro lado, o parapente é um esporte de alto risco, com uma grande incidência de lesões graves e fatais, apesar da taxa de ocorrências, em 2003, ser menor que outros esportes aéreos e em comparação ao motociclismo9.
No entanto, não existem, até o momento, informações epidemiológicas sobre essas lesões. A Associação Brasileira de Parapente organizou uma Comissão de Estudos de Acidentes (CPEA) em 2010, com os objetivos de sistematizar a análise dos acidentes na prática do voo de parapente, identificar os fatores que causaram os acidentes, e também desenvolver modos de prevenção desses acidentes em todo território nacional. A associação disponibiliza em seu site um formulário para que os pilotos associados reportem os acidentes ocorridos, porém ainda não foram divulgados dados obtidos por esta comissão10.
A prática de atividade física é um componente utilizado para avaliação das condições de saúde, por sua influência na qualidade de vida em suas fases11,12. Knuth et al.13 em análise da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2008), evidenciou que indivíduos ativos no lazer representam 10,5% da população. Para essa classificação, os indivíduos deveriam praticar atividade física leve ou moderada por no mínimo trinta minutos, em cinco dias ou mais na semana, ou praticar atividade vigorosa com pelo menos vinte minutos, em no mínimo três dias na semana. Na presente pesquisa a grande maioria dos participantes (72,3%) realizava outra atividade física, além do parapente, e, desses 70,2% praticam atividades que se enquadram como vigorosas três ou mais vezes na semana. Isso pode indicar que a causa das lesões esteja relacionada a acidentes no esporte, já que 68,6% dos indivíduos tiveram dano físico em parapente, apesar de serem ativos no lazer.
O estudo identificou que os indivíduos com faixa etária e tempo de habilitação em parapente mais elevado foram o grupo com o maior índice de lesões. Isso demonstra, logicamente, que pilotos com maior tempo de exposição na prática de parapente têm uma probabilidade maior de sofrer lesões relacionadas ao esporte. No entanto, a análise descritiva identificou que após dez anos de habilitação a frequência das lesões diminui. Fica evidente, ainda, que os dois primeiros anos de formação são os mais críticos na ocorrência de lesões, já que foi durante este período que aconteceram 52,16% das lesões mencionadas na pesquisa. Esse dado também foi apontado por Schulze et al.14, a partir da análise de 409 acidentes de parapente: apenas três pilotos tiveram lesões enquanto estavam em instrução. Portanto, o número de ocorrências registradas nos dois primeiros anos pode ser um indicativo de que a formação destes indivíduos foi precoce, sem o nível adequado de conhecimento no esporte.
Kruger-Frank et al.15 analisou 218 acidentes com parapente, nos quais a área anatômica com maior número de lesões foram nos membros inferiores (41,3%), seguidos da coluna vertebral (34,9%), mesmos locais onde predominaram as lesões investigadas na presente pesquisa. Outros autores16 investigaram 64 acidentes de parapente entre agosto de 2004 e setembro de 2011, por meio de revisão de prontuários médicos de três hospitais na região de Fethiye, Turkia, e observaram que as regiões mais afetadas durante os acidentes também foram a coluna lombar (19,44%) e a articulação do tornozelo (17,59%).
Para Zeller et al.17 a maioria dos acidentes que acometem pilotos de parapente acontecem no momento do pouso, dado que condiz com os resultados deste estudo. Analisando outros estudos sobre lesões em pilotos de parapente18,19, pode-se identificar uma preocupação especial dos pesquisadores com as lesões na coluna vertebral, e ainda, que as lesões nessa região acontecem predominantemente durante a aterragem, já que o pouso é o momento no qual se impõe uma grande força de impacto nos membros inferiores e na coluna vertebral, sendo o risco de lesões agravado por irregularidades, obstáculos ou erros na técnica de pouso.
Gosteli et al.20 investigaram a epidemiologia das lesões em esportes radicais, com base numa analise retrospectiva das missões de resgate realizadas em Lausanne, Suíça, de 1 de Janeiro de 1998 a 31 Dezembro de 2008, e observou que entre os esportes aéreos (asa delta, paraquedismo e parapente), o parapente foi responsável por 80% das lesões estudadas. Tais achados reforçam a importância de se identificar os fatores relacionados a essas lesões e a busca de ações práticas para minimizar esses números.
CONCLUSÃO
Este estudo visou a estudar os fatores, compreendendo as características dos sujeitos e as condições na prática do esporte, que podem ter determinado a ocorrência das lesões em praticantes de parapente no país. Foi possível obter um perfil dos pilotos e destas ocorrências, porém a notificação efetiva dos acidentes de parapente em um sistema nacional é uma ferramenta importante para uma análise mais específica e fiel destas informações.
Todos os autores declararam não haver qualquer potencial conflito de interesses referente a este artigo.