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Roque Spencer Maciel de Barros defensor da escola pública

Roque Spencer Maciel de Barros

defensor da escola pública

José Mário Pires Azanha

Faculdade de Educação – Universidade de São Paulo

Há cerca de quarenta anos, este país assistiu a um dos movimentos cívicos mais notáveis deste século; referimo-nos à campanha pela defesa da escola pública que antecedeu à promulgação da Lei 4.024, em 21 de dezembro de 1961, primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Participaram desse movimento figuras como Fernando de Azevedo, A. de Almeida Júnior, Anísio Teixeira, Abgar Renault, Nelson W. Sodré, Florestan Fernandes, João Cruz Costa, Antonio Cândido, Hermes Lima, César Lattes, Mario Casassanta, Wilson Martins, Laerte Ramos de Carvalho, Paulo Duarte, Miguel Reale, Sérgio Buarque de Holanda, Ruy de Andrade Coelho, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, Aziz Simão, José Arthur Giannotti, Ruth Cardoso, Oracy Nogueira, Cecília Meirelles, Celso de Rui Beisiegel, Perseu Abramo, Frederico de Barros Brotero, Caio Prado Jr. e muitos outros.

Hoje, entretanto, mesmo profissionais da área da educação têm escassa lembrança desse movimento e de sua importância na história da escola pública no Brasil. Mas foi ele que mais decisivamente contribuiu para tornar a questão educacional um assunto público e não apenas confinado às discussões de especialistas.

Tudo se iniciou quando, em 1948, o então Ministro da Educação Clemente Mariani enviou à Câmara Federal o primeiro anteprojeto de uma lei de diretrizes e bases da educação nacional, conforme estava previsto na Constituição Federal de 1946. O anteprojeto tinha sido elaborado por uma comissão de notáveis personalidades, tendo como relator o conhecido educador Almeida Júnior, professor da Faculdade de Direito da USP. Na sua longa tramitação, numa primeira etapa, o anteprojeto foi discutido principalmente quanto ao seu propósito descentralizador na questão da organização dos sistemas estaduais de ensino.

Não interessa, aqui, acompanhar as marchas e contramarchas do projeto em comissões do Congresso Nacional, mas assinalar apenas que o texto finalmente aprovado e transformado na Lei 4.024, em dezembro de 1961, foi em grande parte um retrocesso com relação ao anteprojeto original. Isso ocorreu porque o Deputado Carlos Lacerda apresentou dois substitutivos, em novembro de 1958 e em janeiro de 1959, que mudaram o teor e o caráter de todas as discussões sobre o assunto. Segundo Lacerda, tratava-se de um embate entre aqueles que defendiam – como ele – "o direito inalienável e imprescritível da família" na escolha da educação de seus filhos, e aqueles outros que advogavam o monopólio do Estado em matéria de educação, os estatizantes.

No fundo, era a luta que se reiniciava, mais uma vez, entre os interesses confessionais e privatistas em educação e a visão republicana da escola democrática, laica e gratuita. Foi nesse quadro que nasceu e se consolidou, em reuniões públicas e na imprensa, uma vigorosa campanha nacional de defesa da escola pública, que envolveu estudantes, professores e sindicatos, sob a liderança, em São Paulo, da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Dentre os docentes dessa escola, destacou-se a figura do Professor Roque Spencer Maciel de Barros, nesse memorável movimento cívico. Em palestras, reuniões públicas e artigos na imprensa, ele foi incansável na defesa da escola democrática, laica e gratuita. O que o situou de um modo muito especial nessa campanha foi o fato de ter escolhido como tema principal de combate o princípio da liberdade de ensino, que o Deputado Carlos Lacerda alegava ser o leitmotiv filosófico de seu substitutivo. Naquele momento, os que tomavam posição contrária a esse projeto eram pronta e levianamente acusados de adeptos de valores antidemocráticos e de pretenderem o monopólio estatal da educação.

O Professor Roque, que, desde a sua adolescência, era um cultivador da tradição clássica da filosofia política liberal, tinha clara consciência de que a invocação do conceito de liberdade de ensino para combater a escola pública era, no mínimo, de um indisfarçável oportunismo político, sem raízes nos clássicos do liberalismo. A propósito, disse ele, num de seus artigos:

Teriam razões os que imaginam que o projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [o de Lacerda] institui em nosso país a liberdade de ensino, sendo, nesse sentido, uma espécie de carta magna do liberalismo em matéria pedagógica? A resposta à questão só poderia ser dada depois de uma análise do próprio conceito de liberdade de ensino, que está longe de ser unívoco, podendo ser tomado em diferentes acepções. O projeto tomou uma delas (a que identifica ‘liberdade de ensino’ com a faculdade a todos concedida de abrir escolas, praticamente sem ingerência do Estado) como se fosse a única ou, pelo menos, como se correspondesse mais adequadamente à essência do ideal pedagógico liberal que se invoca – o que, como iremos ver, não é exato.

A concepção da liberdade de ensino, compreendida como faculdade indiscriminada de abrir escolas e exigindo, ao menos como ideal remoto, o abandono, pelo Estado, de sua função educadora, está intimamente ligada com a doutrina da livre-concorrência, ou seja, com os princípios do liberalismo econômico. (...) Mas, no momento mesmo em que se formula essa concepção de liberdade de ensino, em termos de livre concorrência e abstenção estatal, limita-se o seu alcance e restringe-se a sua significação, já que se compreende que não é possível submeter aos interesses privados a questão vital da formação de cidadãos livres.11. Todas as citações foram retiradas do trabalho de síntese “ Todas as citações foram retiradas do trabalho de síntese “Análise dos Fundamentos do Projeto” que o Professor Roque Spencer Maciel de Barros preparou para o livro que organizou para a Livraria Pioneira Editora, publicado com o título Diretrizes e Bases da Educação Nacional, São Paulo, 1960. Essa obra é a mais completa coleção de textos de vários autores, referentes aos antecedentes e ao desenvolvimento da Campanha de Defesa da Escola Pública, em São Paulo.

Nessas passagens, o Professor Roque expõe as principais idéias que orientaram a sua intransigente defesa da escola pública, desmantelando o jogo conceitual com que se pretendia embair os incautos, ao se propor a questão da liberdade de ensino como um aspecto da livre concorrência no mercado, daí decorrendo a necessidade de abstenção do Estado. Segundo ele – na linha do liberalismo clássico como doutrina ética – o conceito central é o de liberdade de consciência e o seu significado define os limites da ação estatal em educação. A idéia de liberdade de ensino deve servir a um propósito ético e não pode ser confundida com uma mercadoria sujeita aos interesses da livre concorrência do mercado. Stuart Mill, dizia ele, não pensava de outro modo quando afirmou: "Em questões de educação é justificável a intervenção do governo, porque o caso não é daqueles nos quais o interesse do consumidor seja garantia suficiente da bondade da mercadoria".

Nessas condições, ao Estado democrático cabe assegurar a liberdade de ensino, não em termos de interesses mercadológicos, mas para garantir "a liberdade de pensamento, isto é, a liberdade de cátedra, para o que ensina, a independência de opinião, para o que aprende, em todos os assuntos sujeitos a controvérsias". Daí decorre a idéia de que, numa autêntica democracia, o Estado deve ser eminentemente educador, porque somente ele pode conduzir a educação sem a preocupação do proselitismo ideológico ou confessional e sem a ambição do lucro.

O quadro educacional de hoje tem fortes semelhanças com aquele de há quarenta anos naquilo que apresenta de confusão conceitual induzida. Confunde-se a liberdade de ensino com a desregulamentação permissiva, principalmente no ensino superior; confunde-se o papel do Estado como educador com o de simples provedor de recursos para interesses que não são os públicos; e, por fim, confunde-se a qualidade da educação com uma suposta satisfação do consumidor simplesmente aturdido pela insegurança do futuro de seus filhos.

Ao morrer, de maneira inesperada e lamentável, o Professor Roque nos trouxe a oportunidade de recordar que a luta pela escola pública precisa ser retomada. Principalmente neste momento em que se procura fazer crer, em nome de um hipotético progresso, que o Estado deve ser desmontado até mesmo naquelas funções nas quais a sua ação tem um profundo significado ético, como é o caso da educação nacional.

  • 1. Todas as citações foram retiradas do trabalho de síntese “
    Todas as citações foram retiradas do trabalho de síntese “Análise dos Fundamentos do Projeto” que o Professor Roque Spencer Maciel de Barros preparou para o livro que organizou para a Livraria Pioneira Editora, publicado com o título Diretrizes e Bases da Educação Nacional, São Paulo, 1960. Essa obra é a mais completa coleção de textos de vários autores, referentes aos antecedentes e ao desenvolvimento da Campanha de Defesa da Escola Pública, em São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 1999
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