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Reescrevendo a história do ensino primário: o centenário da lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo

Rewriting the history of primary education: the centenary of the 1827 Law and the Francisco Campos and Fernando de Azevedo reforms

Resumos

Este texto analisa o lugar ocupado pelos festejos comemorativos do centenário de promulgação da Lei de 15 de outubro de 1827, no interior dos processos de discussão das reformas da instrução mineira e carioca, em 1927/1928. As duas reformas caracterizavam os esforços educativos anteriores como sem sucesso, descrevendo como caótico o quadro educacional brasileiro. No caso do Rio de Janeiro, produzindo-se como marco na constituição de um sistema educacional, a reforma Fernando de Azevedo constituía um discurso que ao mesmo tempo projetava um novo futuro para a educação pública e pretendia romper com as iniciativas anteriores. Diverso parecia ser o caso da reforma mineira. Num discurso articulado ora pela idéia de uma escola moderna, ora pela idéia de uma escola ativa, os reformadores mineiros se propunham a superar o passado e a construir um futuro grandioso. No entanto, não o faziam a partir de uma ruptura com a tradição e com o passado educacionais. Mais do que isso, buscava-se afirmar a inovação dentro da tradição, o que dava lugar a uma leitura muito mais indulgente da escola antiga do que aquela de Fernando Azevedo. Ao reescrever o passado, esses discursos, disseminados pelas reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo, produziram o presente e reverberaram no porvir, instaurando uma leitura da educação brasileira que por décadas perdurou na historiografia educacional brasileira.

Reformas educacionais; Memória educacional; Historiografia da educação


This text analyzes the role played by the celebrations of the centenary of the promulgation of the October, 15th 1827 Law within the discussions of the reforms of the Minas Gerais and Rio de Janeiro education systems that happened in 1927-1928. Both reforms depicted the previous education efforts as unsuccessful, describing the Brazilian education scene as chaotic. In the case of Rio de Janeiro, the Fernando de Azevedo reform becomes a landmark in the constitution of an education system, establishing a discourse that painted a new future for the public education, while breaking away from previous initiatives. That did not seem to be the case of the Minas Gerais reform. With a discourse shaped at times around the idea of a modern school, and at other times around the idea of an active school, the reformers also proposed to go beyond the past and build a grand future. However, they did not propose to break away from tradition and the educational past. The aim was here that of affirming innovation within tradition, leading to a much more complacent view of the old school than that of Fernando Azevedo. By rewriting the past, the discourses disseminated by the Francisco Campos and Fernando Azevedo reforms have produced the present and reverberated into the future, inaugurating an interpretation of the Brazilian education that would persist for decades in the Brazilian education historiography.

Education reforms; Educational memory; Historiography of education


Reescrevendo a história do ensino primário : o centenário da lei de 1827 e as reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo

Diana Gonçalves Vidal

Universidade de São Paulo

Luciano Mendes de Faria Filho

Universidade Federal de Minas Gerais

Correspondência:

Diana Gonçalves Vidal

Al. dos Juritis, 470

Res. das Hortências

07600-000 ¾ Mairiporã ¾ SP

e-mail: dianegus@usp.br

Resumo

Este texto analisa o lugar ocupado pelos festejos comemorativos do centenário de promulgação da Lei de 15 de outubro de 1827, no interior dos processos de discussão das reformas da instrução mineira e carioca, em 1927/1928. As duas reformas caracterizavam os esforços educativos anteriores como sem sucesso, descrevendo como caótico o quadro educacional brasileiro. No caso do Rio de Janeiro, produzindo-se como marco na constituição de um sistema educacional, a reforma Fernando de Azevedo constituía um discurso que ao mesmo tempo projetava um novo futuro para a educação pública e pretendia romper com as iniciativas anteriores. Diverso parecia ser o caso da reforma mineira. Num discurso articulado ora pela idéia de uma escola moderna, ora pela idéia de uma escola ativa, os reformadores mineiros se propunham a superar o passado e a construir um futuro grandioso. No entanto, não o faziam a partir de uma ruptura com a tradição e com o passado educacionais. Mais do que isso, buscava-se afirmar a inovação dentro da tradição, o que dava lugar a uma leitura muito mais indulgente da escola antiga do que aquela de Fernando Azevedo. Ao reescrever o passado, esses discursos, disseminados pelas reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo, produziram o presente e reverberaram no porvir, instaurando uma leitura da educação brasileira que por décadas perdurou na historiografia educacional brasileira.

Palavras-chave

Reformas educacionais ¾ Memória educacional ¾ Historiografia da educação.

Rewriting the history of primary education: the centenary of the 1827 Law and the Francisco Campos and Fernando de Azevedo reforms

Subject

This text analyzes the role played by the celebrations of the centenary of the promulgation of the October, 15th 1827 Law within the discussions of the reforms of the Minas Gerais and Rio de Janeiro education systems that happened in 1927-1928. Both reforms depicted the previous education efforts as unsuccessful, describing the Brazilian education scene as chaotic. In the case of Rio de Janeiro, the Fernando de Azevedo reform becomes a landmark in the constitution of an education system, establishing a discourse that painted a new future for the public education, while breaking away from previous initiatives. That did not seem to be the case of the Minas Gerais reform. With a discourse shaped at times around the idea of a modern school, and at other times around the idea of an active school, the reformers also proposed to go beyond the past and build a grand future. However, they did not propose to break away from tradition and the educational past. The aim was here that of affirming innovation within tradition, leading to a much more complacent view of the old school than that of Fernando Azevedo. By rewriting the past, the discourses disseminated by the Francisco Campos and Fernando Azevedo reforms have produced the present and reverberated into the future, inaugurating an interpretation of the Brazilian education that would persist for decades in the Brazilian education historiography.

Keywords

Education reforms ¾ Educational memory ¾ Historiography of education.

Em 15 de outubro de 1927, Francisco Campos promulgava o decreto 7.970, Reforma do Ensino Primário, Técnico-profissional e Normal, em Minas Gerais. Uma semana depois, em 22 de outubro, Fernando de Azevedo apresentava o anteprojeto da reforma de educação, para os mesmos níveis ¾ primário, técnico-profissional e normal ¾, ao Conselho Municipal, no Distrito Federal, Rio de Janeiro, capital da República brasileira. Não o fizera em 15 de outubro, porque a sessão do Conselho naquele dia havia sido suspensa. Intencionalidade, afirmada por Campos, ou coincidência, arriscava o diário carioca O jornal, os dois planos de renovação educacional eram divulgados em meio às comemorações do centenário do Ensino Primário, festejado em função da primeira lei sobre a instrução pública promulgada no Brasil independente, em 15 de outubro de 1827.

As duas reformas caracterizavam os esforços anteriores em termos educativos como sem sucesso, descrevendo como caótico o quadro educacional brasileiro. A falta de materiais, a inconsistência dos métodos, a inadequação das instalações e a ineficiência do ensino clamada pelos altos índices de analfabetismo (em torno de 80%) eram os argumentos recorrentes de educadores e jornalistas na configuração da escola brasileira. Muito estava por fazer: esse era o diagnóstico reiterado nas grande e pequena imprensas e nos periódicos pedagógicos.

No caso do Rio de Janeiro, produzindo-se como marco na constituição de um sistema educacional, a reforma Fernando de Azevedo constituía um discurso que ao mesmo tempo projetava um novo futuro para a educação pública e pretendia romper com as iniciativas anteriores. Defasada da evolução da sociedade, após anos de ações isoladas e dispersas e de intervenções pouco ou nada alicerçadas em conhecimentos científicos e pedagógicos, a escola deveria buscar outro rumo, guiada pelo saber da ciência.

Nascia uma nova educação. Finalmente, afirmava Azevedo, agia-se de forma a instalar no território nacional um sistema educativo que, prevendo a obrigatoriedade, atingiria a maioria da população infantil e se propunha mantê-la na escola por um período de cinco anos.

Diverso parecia ser o caso da reforma mineira. Num discurso articulado ora pela idéia de uma escola moderna, ora pela idéia de uma escola ativa, os reformadores mineiros se propunham a superar o passado e a construir um futuro grandioso. No entanto, não o faziam a partir de uma ruptura com a tradição e com o passado educacionais. Mais do que isso, buscava-se afirmar a inovação dentro da tradição, o que dava lugar a uma leitura muito mais indulgente da escola antiga do que aquela de Fernando Azevedo.

Nascia também uma nova educação, mas ela vinha, por assim dizer, de braços dados com a tradição católica, a qual, desde há muito tempo, vinha buscando formas discursi-vas e mecanismos pedagógicos de modernizar-se e de dialogar com as ciências e com os novos sujeitos sociais, cuidando, no entanto, para não ser confundida, por exemplo, com o escolanovismo. Reformar, aproximando e distanciando das perspectivas escolanovistas, era um desafio que os mineiros buscavam enfrentar.

Ao reescrever o passado, esse discurso, disseminado pelas reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo, produziu o presente e reverberou no porvir, instaurando uma leitura da educação brasileira que por décadas perdurou na historiografia educacional.

Para discorrer sobre estas questões, o presente artigo foi dividido em três partes. Inicialmente aborda as discussões em torno do Centenário do Ensino Primário em Minas Gerais e, em seguida, no Distrito Federal, debruçando-se sobre aspectos das reformas Francisco Campos e Fernando de Azevedo. Por fim, analisa a produção de uma memória educacional no Brasil.

A festa dos cem anos de instrução primária em Minas Gerais.

Em Minas Gerais, notadamente na capital, Belo Horizonte, o dia 15 de outubro de 27 foi um dia atípico e muito movimentado. Segundo dados dos próprios organizadores, a saber, de pessoas ligadas à imprensa oficial, mais de 6 mil pessoas compareceram ao estádio do América Futebol Clube, para presenciar os festejos. Mais de 2 mil alunos de escolas da capital se apresentaram para uma platéia ávida de espetáculo. Além da grande apresentação no estádio, envolvendo escolares e escoteiros, ocorreram pequenos, mas intensos, festejos na Escola Normal da Capital, nas escolas infantis, na Escola da Força Pública, dentre outras.

Levando-se em conta a grandeza da festa e a complexidade das "manobras" realizadas pelos alunos-atletas, há que se considerar que durante semanas, ou até mesmo meses, as escolas, seus alunos e professores se ocuparam nos preparativos da festa.

As notícias do evento circularam na capital, principalmente por meio da imprensa oficial. Desta, queremos destacar dois veículos: o órgão oficial do Estado, o jornal Minas Gerais, e a Revista do ensino, órgão oficial da Diretoria de Instrução do Estado. Ambos, naquele momento, estavam sendo amplamente mobilizados como estratégia de divulgação da reforma educacional que se pretendia e, no caso da revista, como elemento fundamental na formação dos professores. O esforço de mobilização e a ação conjugada dos dois órgãos podem ser percebidos, primeiro, pela centralidade que ambos dão ao evento e, em segundo lugar, pelo fato de vários textos publicados na revista aparecerem também no jornal e vice-versa.

O Minas Gerais publica, pelo menos nos dias 14, 15, 16 e 17 de outubro notícias do evento sendo que, nos dias 15 e 16, boa parte do jornal é ocupada por elas. Já a Revista do ensino, tem um número especial publicado tendo em vista os festejos, o de número 23, e o número imediatamente posterior, o 24, referente ao mês de novembro, é, em boa parte, dedicado às notícias e às repercussões das comemorações, trazendo também um grande número de fotografias das mesmas.

Estamos considerando em nossas análises que, no caso daqueles textos que apareceram no número especial da revista e no jornal do dia 15/10, eles foram escritos inicialmente para a revista; já no caso das repercussões, claro está que os textos foram escritos para circular nos jornais dos dias 16 e 17 e, posteriormente, foram aproveitados na revista do mês seguinte. Por isso, em se tratando do dia 15, analisaremos primeiro os textos da revista e, posteriormente os do jornal; no estudo das repercussões do evento, faremos o inverso.

O 15 de outubro na Revista do ensino.

A edição comemorativa dos cem anos da lei de 15 de outubro de 1827, ao que tudo indica, foi planejada com muita atenção pela Diretoria da Instrução. Para escrever os textos foram chamados nomes os mais representantes das letras e do magistério, conforme noticia o Minas Gerais. A diagramação, escolha das imagens e fotografias reforçam esta impressão.

A própria capa já anuncia ao leitor os propósitos daquele número. Ao centro há um retrato de dom Pedro I, encimado por uma estrela, desenhada de forma a dar a impressão de intenso brilho; no alto o nome da revista e, logo abaixo, a indicação do seu pertencimento institucional (Órgão Oficial da Diretoria da Instrução); do lado esquerdo do retrato, na parte de cima, os símbolos do Império e, na parte de baixo, está escrito Iº Centenário do Ensino Primário no Brasil; do lado direito, na parte de cima, os símbolos da República e, na parte de baixo, está escrito Número Especial Comemorativo. Importante notar que unindo os símbolos do Império e da República encontra-se um galho/ramo de café que, sustentando e partindo dos respectivos símbolos, formam um laço bem abaixo do retrato. Na parte de baixo da capa, vem a identificação do local de sua publicação: Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil.

A revista se abre, na página três, com a seguinte chamada: A comemoração de hoje, seguido da indicação do texto que ocupa a página: "A lei que criou o ensino primário no Brasil".

Após o texto da Lei, seguem-se vários outros alusivos ao motivo da comemoração. No texto "Aos educadores", de Sandoval Soares de Azevedo, secretário do Interior do governo Melo Viana, o 15 de outubro de 1827 é ponto de partida da ação missionária e apostólica do professor e o 15 de outubro de 1927, momento de reafirmar as convicções.

Semeadores do Ideal, batalhais, há cem anos, sem descanso, nem fraqueza, apesar das rudezas do meio, das incertezas materiais da vida, pela terra que se modela à imagem de vossa bravura moral, rica de idealismo sagrados.

Dais, sem receber, há um século, no amor de vosso coração, na generosidade de vossa alma, o heroísmo de vossa dedicação, - com a exaltação de nosso passado ¾ a confiança nesse futuro ¾ que criaste ¾ e já amanhece no esplendor triunfal do presente brasileiro.

Como há vinte século, na Judéia, renovais o milagre da humildade: tocais de luz e religiosidade o apostolado anônimo de vosso sacerdócio que fundais a própria nacionalidade.

O texto seguinte anuncia "Como será comemorado o dia de hoje", trazendo uma programação completa dos festejos. Na mesma página a revista publica uma fotografia do Stadium do América Foot Ball Club, onde seriam realizados os festejos. O Stadium é mostrado vazio, mas já dando a ver as marcas de cal para a realização das demonstrações pelos alunos e escoteiros.

O quarto texto, de autoria de Emílio Mineiro, tem como chamada o seguinte: "328.659 alunos freqüentam as nossas escolas primárias", e como subtítulo o enunciado: "Ligeiro esforço estatístico sobre o ensino primário em Minas". Nele o autor, utiliza os dados estatísticos para dar conta da positiva evolução do crescimento da matrícula em Minas Gerais no período republicano: passou de pouco mais de 43 mil para mais de 328 mil. Concluindo seu texto afirma:

Hoje, ainda a meio caminho do 4º decenário (da proclamação da República), quando no Brasil inteiro é comemorado o centenário da lei de 15 de outubro de 1827, que mandou criar nas cidades, vilas e lugares mais populosos das províncias escolas de primeiras letras, Minas, galhardamente, comparece entre os Estados co-irmãos e(...) com a evidência convincente dos algarismos, que em toda a extensão dos seus 575 mil km quadrados estão instaladas milhares de escolas e, nessas milhares de escolas, entoam hinos festivos à lei memorável que mandou criar em seus imenso território escolas de primeiras letras, 328.659 alunos! (grifos no original)

"Cem anos depois" é o título do texto de Francisco Lins que se inicia proclamando que "há cem anos que no Brasil se fundou a escola primária... Cem anos! E andamos ainda à procura da escola ideal!". E continua:

Aqui, durante muito tempo, tropega, humilde, a manquejar, mal instalada, mal dirigida, mal tratada, dando causa ao riso de uns, em outros dando causa à tristeza, a pobre parecia desprezada de todos, condenada a eterno ridículo,

Agora, parece criará alma nova...

Defendendo a necessidade de renovação da escola, o autor lembra do que vem sendo discutido em congressos nacionais e internacionais, inclusive no Congresso de Instrução Primária recentemente reunido em Belo Horizonte e, também, daquilo que já vem sendo reformado pelo governo de Antônio Carlos, afirmando que "dando organização nova às escolas primárias, além de impor-lhes o emprego dos método modernos, já o governo resolveu, felizmente, mais uma vez reformar os seus programas...".

No texto "Lição da pátria", Alberto de Oliveira não faz nenhuma menção às comemorações, mas retoma um tema muito frisado pelos outros textos: o da aproximação entre a missão do professor e a de Jesus Cristo.

Chamai, como Jesus outr'ora, os peque-ninos,

Falai-lhes do Brasil, entre louvores e hinos

Dai grande lição!

Abílio Barreto, já à época, renomado cronista e historiador mineiro, é o autor do texto "Instrução pública em Minas", desde seus primórdios até a proclamação da República, do qual vale a pena retomar o último parágrafo:

E aqui temos, em rápidos traços, o histórico da instrução pública em Minas, desde os nosso mais remotos tempos, até a proclamação da República, quando este ramo da administração do Estado tomou, por assim dizer, o primeiro lugar entre todos os problemas que mais carinho, mais esforço e mais dedicação têm merecido dos nosso homens públicos.

O próximo texto a referir-se diretamente às comemorações é o de Heitor Guimarães, "Legionários da luz". Nele o autor faz uma conclamação pela valorização do professor primário. Após afirmar que um século depois da criação da escola primária, a desanalfabe tização do Brasil continua a ser um grave problema, o autor lembra o esforço que tem sido feito e os obstáculos oferecidos pela realidade no enfrentamento desta questão. Acima de tudo, ele defende que, nas comemorações do Centenário, é preciso render homenagens ao professor de primeiras letras, sujeito que desenvolve uma missão tão importante e nobre, quanto ingrata, exaustiva, não reconhecida e incompreendida. Segundo ele, os professores são mal remunerados e a sociedade nega-lhes o lugar que lhes compete, ao contrário do que faz com os professores de humanidades e dos cursos superiores.

Há ainda, na revista, uma conjunto de outros textos que remetem o leitor, direta ou indiretamente, para as comemorações. Destes nós gostaríamos de comentar dois. O primeiro, na verdade, não é um texto escrito. Ele é dado a ler pela conjunção de duas gravuras que ocupam uma página cada, uma ao lado da outra, de forma que o leitor possa vê-las simultaneamente. Elas são eloqüentes em suas mensagens. Na gravura da página esquerda, vemos, ocupando toda a parte superior esquerda, um velho professor, de óculos, chaleco preto e palmatória na mão direita, com ar severo, apontando, com a mão es-querda, para o quadro negro, o qual ocupa o canto superior direito e onde está "armada" operação de multiplicação (3 x 5 = ). No canto inferior direito, encontra-se uma aluna, de mãos postas atrás das costas e cabeça baixa, parecendo não ter o que dizer. O pequeno espaço deixado neste gravura para a resposta, parece querer reafirmar a não resposta da criança. Embaixo da gravura, em letras garrafais, está escrito A ESCOLA ANTIGA.

A outra página é bem diferente. Nela uma professora, elegantemente trajada, portando um vestido de bolinhas pretas e salto alto, ocupa toda a parte direita da página. De forma risonha, a professora, parece conversar com os alunos, com mão esquerda aponta para o quadro, o qual encontra-se no canto superior esquerdo da página e onde pode-se ver, armada, a mesma operação. A mão direita da professora está pousada sobre a cabeça de um menino, o qual, pelas vestes remendadas, parece ser pobre. No canto inferior esquerdo, outro menino, vestindo um uniforme de marinheiro, sapatos e meias, de cabeça erguida, levanta o braço, parece querer dialogar com a professora. O maior espaço deixado, no quadro, para a resposta do aluno, está a demonstrar que ele sabe o que responder. Embaixo da gravura, também em letras garrafais, está escrito A ESCOLA MODERNA.

Três páginas adiante, o texto "A escola antiga", do professor Leopoldo Pereira, retoma e reforça a representação que se quer construir e divulgar. O autor inicia afirmando as transformações pelas quais a escola e o própria professor vinham passando no tempo. De forma interessante ele afirma a particularidade da memória em enaltecer e embelezar o passado, não deixando, porém, de apontar, ao final que as mudanças foram positivas e para melhor no que se refere à escola. Mas, como é a escola antiga, para Leopoldo Pereira? "Antigamente, afirmava ele, o mestre escola, de par com o vigário da freguesia, eram as mais respeitáveis personagens da aldeia." Logo depois acrescentava;

E como era então mais penoso o trabalho de ensinar e aprender! Não havia livros; o mestre tinha de fazer cartas para todos os discípulos. Depois do a-b-c, a carta de nomes, e depois a carta de fora. O mestre e os próprios menos obtinham dos negociantes cartas comerciais para leitura na escola; os próprios pais as forneciam, e quando faltavam, recorria-se aos cartórios, onde o mestre obtinha e às vezes comprava autos antigos, escritos ainda com pena de pato, que eram o terror da meninada. Eu mesmo ainda passei pelo suplício de decifrar as abreviaturas dos escrivães do tempo d'el rei. (grifos no original)

O autor continua apontando as dificuldades do ensino e da aprendizagem da escrita, bem como para os mecanismos mobilizados pelos professores para fazer frente às mesmas. Fala do aparecimento dos primeiros livros, os livros de Abílio, das penas de aço, dos exames... Afirmava, ainda que:

Não se compreendia então a escola sem o castigo corporal: a férula era para o mestre como o ceptro para o rei ou o cajado para o pastor. Até nas aulas de latim e francês, que nossas principais cidades possuíam durante muitos anos, corria bem aceito o axioma que o latim, quando não entrava pelos olhos e ouvidos, devia entrar pelas unhas.

Na escola primária a palmatória chamava-se santa luzia. Por que esse nome? Como se sabe, a crença popular venera Santa Luzia como advogada da vista, e nossos pais entendiam que a férula é que devia dar vista aos cegos. (grifos no original)

Quão longe desta escola está aquela anunciada por Alceu de Souza Novais, em seu texto "Cem anos de ensino e a 'revolução coperniquiana'", na qual "as crianças aguardam ansiosas a chegada da professora que, risonha e gentil, recebendo e retribuindo os cumprimentos, sente que é o centro de atração daquele pequenino mundo" e na qual "sorri-se a boa mestra, indulgente para com os erros, embora severa para com as negligências, e repete a explicação, e ilustra com exemplos, resume em sinopse e fixa com os esquemas"? Ou aquela contada em verso por Leôncio Corrêa no poema "A escola", em que a escola-jaula, "na qual a criança é a fera por domar", é transformada em um "jardim claro e divino, de áureas flores e alegres colibris"?

O 15 de outubro no Minas Gerais

No Minas Gerais do dia 14 de outubro de 1927, na seção dedicada à Secretaria do Interior, podemos ler a seguinte nota:

Estiveram, ontem, no gabinete do sr. Dr. Francisco Campos, Secretário do Interior, as profas. Luiza Valadares Ribeiro e Carmem Ribeiro, que foram convidar S. Exa. para assistir às festas comemorativas do centenário da escola primária, no dia 15 do corrente, às 15 horas, no campo do América Futebol Clube. (14/10/1927, p. 8.)

Se considerarmos, conforme já dissemos, que houve um investimento do Estado e, mais ainda, das escolas em uma longa preparação dos festejos, há que se duvidar da veracidade da informação que somente no dia anterior ao evento o secretário teria sido convidado para o mesmo. Seria a visita das professoras pura formalidade? Ou seria uma forma de, também, mostrar que o secretário estaria aderindo a algo preparado por outros que não diretamente o próprio governo? Nada impede, no entanto, que sejam as duas coisas.

O Minas Gerais do dia 15, traz a seguinte manchete:

Formatura de 2.000 alunos dos grupos escolares e escolas de Belo Horizonte; Parada de 10 tropas de escoteiros; Jogos ginásticos.

Ao centro da página, como na Revista, o mesmo retrato de dom Pedro I. Na matéria de abertura afirma-se que:

A comemoração de hoje é uma que não se delimita nas linhas estreitas de um acontecimento de significado infinito. É a festa sem balizes, é a festa do infinito, das grandezas incomensuráveis, porque hoje é a comemoração da cultura brasileira, não no âmbito de um de seus departamentos, mas no que ela possui de comum, que é a escola primária, base e berço de todas as realizações emocionantes e altas, de democracia e liberdade que temos atingido.

A lei (...) dando unidade ao ensino primário (...) foi o berço da escola primária oficial no Brasil.

À figura cavalheiresca e arrebatada do nosso primeiro imperador, que os historiadores talvez não isentem de erros graves, a d. Pedro I, de psicologia desnorteadora, o Brasil não poderá nunca deixar de render as homenagens que de direito lhe cabem.

(...) Foi ele que plantou a semente do ensino jurídico...Foi Pedro I que assinou o decreto(...) escancarando(...) para a criança brasileira as portas das escolas... si o Império, não atingiu a nossa instrução primária o índice em que desejaria vê-la os bons patriotas, coube à república fazer sua essa causa ¾ única força capaz de propulsionar as democracias.

Esta visão ambígua de dom Pedro I, dá lugar, no texto, a uma avaliação muito mais positiva de seu filho, dom Pedro II. Amante dos livros e da instrução, nosso segundo imperador se não conseguiu fazer mais pela instrução do povo não foi por falta de vontade, mas devido à vastidão do território e às dificuldades de comunicação. Tudo parece mudar, no entanto, com a proclamação da República, pois, afirma o autor:

Os republicanos, porém, compreendendo o significado da escola e não vendo nela uma dádiva da administração ao povo, mas um direito que têm as populações de exigir dos governos, nunca num só momento, se desinteressaram do problema do ensino, que os Estados brasileiros porfiam em ministrar melhor a seus filhos, e que atinge, no dia de hoje, a uma altitude de que devemos, sem dúvida, nos ufanar, mas que não é tudo ainda porque está longe ¾ e tenhamos sempre em mente isso ¾ muito longe daquela afirmação que Leôncio Corrêa,1 1 . Em poema publicado na Revista, n. 23, número especial. em seu poema quer um dia ver pronunciada pelos brasileiros: "Ao mundo declarar, por entre flores, Que em nossa pátria todos sabem ler e escrever".

A seguir, publica-se o texto da lei de 1827, seguido do detalhamento da programação do dia, tal como estava na revista, com ligeiras modificações.

A partir da página dois encontramos uma série de textos, quase todos publicados na revista, muitos deles enfatizando que "é surpreendente o que Minas tem realizado no terreno em que se labora a instrução de seus filhos". (p. 2)

As repercussões do 15 de outubro no Minas Gerais

No Minas Gerais do dia 16/10, na página oito há a seguinte chamada:

"Primeiro centenário da Escola Primária no Brasil.

O desenvolvimento do ensino no Brasil, desde a era colonial.

A luta contra o analfabetismo

Notas estatísticas

Os festejos comemorativos da data, nesta capital."

Em seguida fala-se dos festejos comemorativos nesta Capital, afirmando-se que nada faltou para o realce da festa de ontem, que contou com a participação de mais de 6 mil pessoas e foi um grande espetáculo cívico.

Em seguida, o jornal publica o hino do 1º Centenário do Ensino Primário, (letra de Nestor dos Santos Lima e música de Luigi M. Guido) entoado pelos alunos no dia anterior:

Já liberta e organizada

Vivia a ingente Nação

Quando foi sancionada

A sábia lei de instrução

Cumpre às novas gerações agora

Seguir-lhes as inspirações

Elevando a toda hora

Desta pátria as tradições

(...)

Côro:

Lembrando, a 15 de outubro

Da sábia Lei a sanção

Saudamos nela o delubro

Da brasileira instrução.

Ao fundar o Império

Dom Pedro Primeiro vê

Que de um povo o esteio sério

Só se encontra no ABC

Em qualquer cidade ou vila

De intensa população

Manda ouvir-se a voz tranqüila

Dos pregoeiros da instrução.

(...)

Já no dia 17, o Minas Gerais, com a seguinte manchete "Primeiro Centenário da Escola Primária, Ecos dos festejos do Dia 15", trazia, dentre outras, informações sobre a festa na Escola Regimental da Força pública.

As repercussões do 15 de outubro na Revista do ensino

O tema das comemorações do centenário é retomado na Revista do ensino número 24, de novembro de 1927. Nela, a referência à escola antiga é retomada na própria capa que traz uma gravura retratando uma escola régia. Na gravura, numa das janelas da escola (na verdade uma porta com uma espécie de parapeito, parecendo querer chamar a atenção do leitor para o fato de que aquele era um espaço adaptado para ser uma escola), um aluno está de castigo, ajoelhado e com orelhas de burro. Alguns transeuntes, homens e mulheres, adultos e crianças, negros e brancos, escravos e livres, estão voltados para a criança castigada. Na porta da escola, em cujo umbral está escrito Escola Régia, aparece o professor, de livro e porrete à mão, parecendo não gostar daquela platéia. Embaixo da imagem está escrito A Escola Antiga (reconstituição de Wolffe). No interior da revista, a primeira página traz uma matéria que tem por titulo O Centenário da Escola Primária, e como subtítulo "Os festejos nesta Capital", a qual, não por coincidência, é a mesma do Minas Gerais do dia 16 de outubro. A diferença fundamental é que a revista traz uma gama bastante rica e variada de fotografias para ilustrar os textos que relatam como foram as comemorações do mês anterior.

Nos textos e no conjunto das fotografias ressalta-se, em primeiro lugar, a transformação pela qual passou o espaço onde ocorreram as comemorações. Uma transformação simbólica, como vem indicado logo no texto de abertura:

Pode-se dizer que o ambiente daquele 'stadium', acostumado a acolher o ruídos dos aplausos da assistência nos dias de pugnas desportivas, poucas vezes terá recolhido palmas e ovações mais ardentes e entusiastas de que aquelas que a 15 de outubro ali se ouviram, prestigiando os exercícios dos pequeninos escolares da juventude escoteira.

Tal transformação não impede, entretanto, que se perceba uma continuidade: o espaço antes vazio, sem vida, é ocupado pela multidão, não mais em busca de um certame esportivo mas do espetáculo cívico oferecido pelo estudantes e escoteiros.

Pode-se perceber, também, que se quer ressaltar o caráter organizado, polido, límpido do acontecimento. Nas fotografias e nos textos que as acompanham, a disciplina rítmica da ginástica e da marcha são mostradas como exemplo de trabalho organizado e ordeiro de centenas de pessoas, sobretudo de alunos. Conforme afirma Fábio Lourival, no texto "Pela renovação de Minas", a festa de 15 de outubro,

Em Minas, nunca se admirou espetáculo tão grandioso como o que nos foi proporcionado outro dia, pelo alunos dos grupos escolares de Belo Horizonte, reunidos em número de mais de 2.000 no stadium do América F. Club, para celebrar a data comemorativa do centenário da escola primária. Admirado-o, enchemo-nos de profunda emoção, intenso júbilo fez palpitar todos os corações, alegria trasbordante agitou todos as almas. Admirando-o ficamos com fé mais viva no destinos da nossa raça...

Este texto, apesar de congregar com outros nas comemorações, destoa dos mesmos por discordar frontalmente do caráter militarista que o ensino de ginástica e os exercícios físicos vinham tomando nas escolas mineiras.

Os cem anos de instrução primária no distrito federal: os jornais e o debate público

No dia 5 de outubro, o jornal carioca A Pátria, que desde o início da gestão de Fernando de Azevedo na Instrução Pública carioca, em janeiro de 1927, havia-se mostrado favorável às ações do educador, informava para breve o envio, pelo prefeito, ao Conselho Municipal, de uma mensagem especial sobre a reforma educativa no Rio de Janeiro. Em seguida trazia a nota oficial, também editada nas páginas de O Paiz, O Imparcial e O Jornal do Brasil, em que várias das características do anteprojeto eram descritas. Iniciava-se uma intensa campanha que por vinte dias iria acalorar os debates nos diários cariocas em torno do tema educacional.

A imprensa que apoiava a administração azevediana, como O Jornal, em que atuava o sobrinho de José Getúlio Frota Pessoa, secretário-geral da Diretoria de Instrução Pública, Carlos Alberto Nóbrega da Cunha; O Jornal do Brasil, em que o próprio Frota Pessoa escrevia; O Imparcial, que contava com a colaboração de Carlos Sussekind de Mendonça, irmão de Edgar Sussekind de Mendonça, que assumiu a direção da Escola Profissional Álvaro Batista; A Noite e A Pátria, saíram a campo, realizando entrevistas, divulgando propostas, constituindo inquéritos. O Jornal, por exemplo, lançou o inquérito A maior tentativa de organização do ensino popular, que pretendia, a partir de entrevistas com educadores cariocas, inspetores de ensino, Frota Pessoa e o próprio Fernando de Azevedo, debater aspectos do plano reformista.

Por seu turno, os jornais de oposição, como O Globo, no qual era publicada a coluna de Brício Filho, professor aposentado por Azevedo, Diário Carioca e O Correio da Manhã, ensaiavam críticas cujo tom era o questionamento da grandiosidade de propostas e do volume de recursos envolvidos na implementação do plano. A indagação de O Correio da Manhã era indicativa:

Como admitir que da noite para o dia, a mesma Prefeitura que, em outubro de 1927, não deu lápis nem tinta às suas escolas, possa arcar com o compromisso do ensino obrigatório e gratuito para o ano de 1928?

A obrigatoriedade e gratuidade do ensino e a despesa com a construção e aparelhamento das escolas eram os dois principais pontos destacados pela oposição.

Despertadas pelo anúncio do projeto de reforma e alentadas pela proximidade do que era chamado de Centenário do Ensino Primário, as discussões em torno da educação oscilavam entre a propaganda ou crítica ao projeto de Azevedo e o diagnóstico sobre a escola no Rio de Janeiro. Apesar de ocuparem lugares diversos na enunciação de propostas para o ensino primário, os jornais cariocas coincidiam no diagnóstico. Ao avaliar os efeitos das políticas públicas de escolarização, apontavam para a ineficiência da escola, sintetizada na discussão em torno das altas taxas de analfabetismo encontradas no Brasil, mas não a ela resumida, indicando, ainda, a precariedade material e metodológica do ensino.

Afirmava Maurício de Lacerda em A vanguarda,

Na exposição do prefeito, que só agora vejo ser profundo na matéria, descubro uma tentativa, pelo menos, para arrancar a instrução popular, do confusionismo didático com o qual se tem viciado irremediavelmente a mentalidade de gerações sobre gerações.

E prosseguia:

O que temos em matéria de prédios escolares é um sobejo dos cortiços da monarquia. O material para o ensino é uma vergonha. O professorado, trabalhando acima da capacidade humana, vive mal pago, mal alimentado e mal compensado pela anarquia das leis de promoção. ("A reforma do ensino municipal". Entrevista realizada com o intendente Maurício de Lacerda. A vanguarda, 6/10/1927.)

A Pátria, utilizando-se de letras em corpo maior que as comumente usadas no diário, destacava:

Apesar de trinta anos de república e desta trazer, entre seus mais nobres ideais, o de extinguir o analfabetismo, levando numa mesma igualdade de direitos a todos os brasileiros as luzes do ensino, a verdade é que pouco temos adiantado nesse caminho ("O problema do ensino." A Pátria, 7/10/1927)

O recurso a letras garrafais, aliás, já tinha sido usado por O Paiz dois dias antes ao avaliar a escola primária:

É que se lhe não tem dado o aparelhamento educativo capaz de aproveitar todas as consideráveis reservas de capacidade. A falta de disciplina mental e de adestramento técnico como os saltos no método de aquisição do conhecimento são responsáveis por tais desvios e desperdícios (...)

Essa "legislação fragmentária" transformou o ensino municipal num conjunto de peças desconexas, e que jamais tiveram orientação verdadeiramente pedagógica, de uma ciência de educação, pois sempre apresentaram aspectos burocráticos, sobre influências políticas acidentais. (Ensino municipal. O Paiz, 5/10/1927)

Os argumentos mobilizados por O Paiz eram os principais articuladores da fala de Fernando de Azevedo, quando defendia a necessidade de um sistema educacional integrado, como veremos adiante.

Nos três dias que antecederam o 15 de outubro, aumentou a intensidade do debate, acrescendo-se à discussão anterior um grande número de artigos que pretendiam erigir efemérides, desenhando história oficial da educação no Brasil na qual a figura de dom Pedro I era a principal personagem.

"Centenário do ensino de primeiras letras", publicado em O Correio da Manhã, dia 15 de outubro de 1827, exemplificava a abordagem:

A lei de 15 de outubro de 1927 foi verdadeiramente a criadora da instrução primária em nosso país.

Em seu artigo 1o diz - "em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverá as escolas de primeiras letras que forem necessárias".

Foi essa lei sancionada por D. Pedro I e referendada pelo visconde de São Leopoldo (José Feliciano Fernandes Pinheiro).

A lei de 12 de agosto de 1834 (Acto Adcional) determinou a ação do governo geral quanto à instrução primária e secundária, não só na Corte, como em todas as províncias.

A partir dessa data passaram as assembléias legislativas municipais a ter a incumbência de legislar sobre a instrução pública e estabelecimentos próprios à promovê-la.

Só a instrução primária, secundária e superior na Corte e seu município continuou a ser da competência do governo geral.

Outras disposições e regulamentos houve até que com o decreto de 17 de fevereiro de 1854 na lavra de Luiz Pedreira do Couto Ferraz, depois visconde do Bom Retiro, foi remodelado o ensino primário e secundário.

Para O Paiz, mais importante que o grito do Ipiranga, havia sido o ato de 1827, pois "só depois dele o país iniciou verdadeira marcha para sua independência. Ensinar a ler ao povo, era dar-lhe compreensão de Pátria, de sua vida, de sua história, de suas finalidades no mundo" ("O centenário de fundação do ensino primário no Brasil". O Paiz, 14/10/1927).

Uma corrente de outras manifestações, cuja tônica central era a denúncia do analfabetismo, contrapunha-se à avaliação festiva da data.

Parece incrível que comemoremos o centenário da oficialização do ensino, no Brasil, com uma percentagem, estimada com otimismo, em 75% de analfabetos! Já chega a parecer ridículo clamar-se pela solução deste gigantesco problema da educação do povo ¾ tão velho é ele e tão batido são todos os argumentos demonstrativos do crime inqualificável do poder público. Muito mais ridículo, porém, é festejar-se semelhante centenário. Ele representa uma expressão formidável da vergonha para o país que o encontra nas condições do nosso. Deveríamos, ao invés de saudá-lo alegremente, mandar repicar os sinos em sinal de luto e recolhermo-nos, humilhados, pelo imenso opróbrio. Não é, entretanto, o que se faz. (...) ("Centenário vergonhoso", A Manhã, Rio de Janeiro, 15 out.1927)

Mas, quando ouvirmos essas palavras tão formosas, esses discursos tão eloqüentes, teremos sem dúvida na alma uma reflexão melancólica. Lembraremos que há 100 anos o Brasil começava a ter instrução pública... e hoje, decorrido um prazo tão dilatado, segundo a palavra das estatísticas, a cifra dos analfabetos que ainda possuímos é pavorosa. ("A instrução primária". O Jornal do Brasil, 14/10/1927)

Problemática de estatísticas controversas, o analfabetismo ora era elevado aos índices na ordem de 70% a 80%, ora assumia a proporção inversa, tendo sido informado, no volume da diretoria de estatística do Ministério da Agricultura, com recenseamento da população brasileira de 1920, com relação ao grau de instrução, que, no Distrito Federal, 75% da população adulta sabia ler e escrever (Cunha, 1929).

As estatísticas, aliás, eram usadas em apoio ao diagnóstico da insuficiência das escolas carioca e brasileira. Enquanto alguns jornais davam destaque aos altos índices de analfabetismo, outros veículos de imprensa, como O Paiz e O Jornal do Brasil, mesclavam, ao tom de denúncia, a divulgação de taxas estatísticas nacionais, divididas por estado, o que, se demonstrava a precariedade do quadro geral, poderia vir a qualificar o debate introduzindo diferenças regionais. Apesar do procedimento, estes jornais, entretanto, não reforçavam a informação, nem destacando a variedade dos índices, nem efetuando análises sobre possíveis razões da diversidade das taxas por estado.

Alerta para a importância em dialogar com a imprensa, Fernando de Azevedo, que antes de assumir a diretoria geral da Instrução Pública no Distrito Federal, havia sido redator e crítico literário do jornal O Estado de S. Paulo, durante três anos, concedeu diversas entrevistas e efetuou discursos e conferências em todo o mês de outubro (e mesmo em setembro). Procurava criar fatos políticos e reverter para sua administração as expectativas geradas pelos jornais, capitalizando apoio público e político ao lançamento do anteprojeto da reforma.

Já em 8 de setembro, em discurso proferido no Jóquei Clube, publicado como introdução ao anteprojeto, nesse mesmo ano de 1927, Azevedo traçava um diagnóstico do ensino primário no Rio de Janeiro e expunha as principais linhas do plano de reforma. As propostas de construção de um sistema de organização escolar alicerçado nos princípios da escola comunidade, escola única e escola do trabalho, e alerta para as necessidades de formação do magistério, do amparo à criança pobre e da integração do imigrante, vinham precedidas por uma análise do ensino em voga.

Associada à escola régia, da qual provinha e ainda não se havia emancipado, segundo o educador, a escola do Distrito Federal era incapaz de sequer proceder a um eficiente combate ao analfabetismo.

O Estado, no Distrito Federal, ainda não enfrentou o problema da alfabetização e das malhas, de tecido largo e frouxo, que estendeu, para colher a população em idade escolar, escapam, todos os anos, milhares de crianças, que não recebem instrução em escolas públicas, nem têm meios de a pagar em estabelecimentos particulares. (Azevedo, 1927, p. 15)

Desenhada como não aparelhada, instalada ao acaso, sem espírito de finalidade social, talhada pelos moldes da velha escola primária de letras, com um ensino teórico e livresco, a escola pública primária carioca, nas palavras de Azevedo, havia deixado de acompanhar a evolução da sociedade a que pertencia e da qual deveria ser um prolongamento. Esses problemas deveriam ser enfrentados com urgência e para eles o educador oferecia solução a partir de uma amplo leque de medidas a serem implementadas em sua gestão e nas subseqüentes.

Azevedo propunha conceber a escola não apenas como aparelho de adaptação da criança à sociedade, mas como instrumento de reação, capacitando-a a contribuir para a transformação social. Para tanto, era preciso que a educação se configurasse em torno dos princípios de comunidade, trabalho e escola única. O indivíduo deveria ser formado pela e para a vida social, em um ambiente em que a experiência pessoal e ativa fosse valorizada e em que todo estudo se convertesse objeto de aquisição e trabalho em comum; constituído com a finalidade de formar o cidadão produtivo.

A remodelação do ensino primário envolvia, ainda, a formação de novos quadros para o magistério, o cuidado da infância e a disseminação do espírito nacional. Assim, os novos ideais somente seriam propalados caso a escola normal, com suas escolas de experiência e aplicação, fosse reorganizada em um centro de estudos e pesquisas pedagógicos, transformando-se em "um viveiro de verdadeiros professores para o ensino primário". Se cada aluno fosse constituído em um fator de produção, zelando o Estado por sua saúde, por meio de medidas como inspeção médica e dentária, educação física e higiênica, assistência alimentar às crianças desamparadas e preparação da menina para a futura missão na família, recebendo ensinamentos sobre puericultura. Finalmente, se a formação para o trabalho produtivo fosse realizada em bases brasileiras, como "força de coesão política e elemento consolidador de nossa composição étnica heterogênea, acentuada cada vez mais pelas correntes migratórias" (Azevedo, 1927, p. 26-27).

As mesmas problemáticas voltaram a ser abordadas nas entrevistas concedidas durante o mês de outubro de 1927. A ênfase na necessidade de organização de um sistema educacional, negando a estrutura até então constituída no Distrito Federal, o preparo docente e a educação para o trabalho eram os temas centrais do artigo publicado por O jornal, no dia 7, os quais foram retomados e consolidados com dados estatísticos, na entrevista editada no dia 21, pelo diário A noite, onde afirmava Azevedo:

É sabido que temos no Distrito Federal 142.000 crianças aproximadamente em idade escolar. Dessas, apenas 70.000 recebem instrução nas escolas públicas. Subtraindo 20.000 crianças de pais abastados, que se instruem em escola particulares, pode-se concluir pela existência de 50.000 crianças desprovidas de ensino. A reforma é dominada pela preocupação de estender o ensino a todos e creio poder afiançar que, dentro de pouco tempo, não existira uma só criança em idade escolar que não receba instrução pode deficiência de aparelhagem. (Azevedo, 1929, p. 98)

Animava a fala do educador a proximidade da entrega do anteprojeto da reforma no Conselho Municipal. No dia seguinte, 22 de outubro, estaria diante das comissões de Instrução, de Justiça e de Orçamento para oferecer e justificar o plano elaborado.

Havia-se frustrado sua tentativa anterior de comparecer ao Conselho Municipal no dia 15 de outubro. A suspensão da sessão por proposta de Dioclecio Duarte em virtude das comemorações do Centenário impedira Azevedo de lançar o projeto naquele dia, fazendo-o rever a estratégia cuidadosamente traçada. Os festejos realizados no Automóvel Club do Rio de Janeiro, no dia 15, que contavam com a presença de crianças da escola primária, professores, pais e autoridades, haviam sido programados para as 21h, ou seja, supostamente para após a defesa do anteprojeto no Conselho. A suspensão das atividades naquela Casa indiciava a falta de apoio político à reforma educacional de Azevedo, que, de fato, só viria a ser aprovada três meses depois, e promulgada em 23 de janeiro de 1928 (decreto 3.281). E permitiu, na imprensa de oposição, manifestações jocosas:

Amanhã registra o calendário o 1o centenário da instrução primária no Brasil.

Que fez o governo para uma comemoração condigna?

Onde as escolas a inaugurar nessa data festiva? Ao menos a organização de um corpo de leis sábias que resolvam, por decreto, a questão da analfabetização no país?

Nada que possa representar um corpo sério de doutrina ou um acontecimento de importância capital foi organizado em louvor à celebração, que será feita pelas pobres crianças das escolas, obrigadas a suportar a canícula e a soalheira da Quinta da Boa Vista, para que Antonico Meningite e Fernandinho passeiem, entre elas, a sua importância duvidosa, nessa comemoração de centenário. (...) ("O centenário do ensino primário", A manhã, Rio de Janeiro, 14 out. 1927)

Diferentemente da reforma mineira que elaborou um conjunto de festejos associando explicitamente a comemoração do centenário do ensino primário à administração educacional em Minas, em todo o mês de outubro, nos diários cariocas que apoiavam Fernando de Azevedo, a palavra coincidência iria marcar tal aproximação. Frota Pessoa, inclusive, ensaiou uma explicação científica, publicada nas páginas de O Jornal, em 8 de outubro:

— As pessoas supersticiosas ¾ observou-nos ainda em seu gabinete ¾ podem interpretar como uma "predestinação" a circunstância de se estar precisamente agora tratando de reformar o ensino (...)

Desenvolveu uma teoria determinista para destruir possíveis superstições... [Insistia o jornal.]

— Assim como o admirável prefácio de Augusto Comte, em sua célebre Geometria Analítica (...) contém em síntese, toda a geometria analítica, e assim como a teoria da numeração encerra em si toda a aritmética, assim também essa lei história (sic) contém, em gérmen, toda a legislação da instrução primária que foi promulgada nos 100 anos imediatos. Já realizou, pois, a sua ontogê-nese. Levou um século evoluindo (...).

Como a coincidência, de fato, não se concretizou (superstições à parte), e Azevedo entregou o projeto ao Conselho Municipal no dia 22 de outubro, sendo o momento noticiado com minúcia por O jornal, no dia 23. No evento, estenderam-se os esclarecimentos do educador a outros tópicos não mencionados nas entrevistas anteriores. A leitura dos capítulos e sua explanação revestiram-se de um caráter técnico, e o tom avaliativo da educação carioca ficou subsumido à defesa do programa. Mudava a organização do discurso. O episódio do dia 15 de outubro havia sinalizado para a importância de uma maior atenção às questões específicas aos membros do Conselho.

Às tópicas citadas anteriormente foram acrescentados informes sobre as propostas de edificação escolar e de reorganização dos vencimentos do corpo docente. Dois temas particularmente importantes naquele fórum. O primeiro porque implicava a vinculação de vultosas somas à instrução pública, bem como no confronto a interesses de famílias cariocas proprietárias das casas alugadas à instrução no município. O segundo porque tocava na essência da barganha política efetuada junto ao professorado carioca. O intrincado sistema de promoções e reclassificações na carreira docente no Rio de Janeiro e o aluguel de prédios escolares envolviam, via de regra, o favoritismo político e as alianças. Nos dois casos, Azevedo interferia diretamente nos interesses do Conselho. As duas questões foram peças-chave do conturbado debate que decorreu entre a apresentação do anteprojeto em outubro e sua aprovação exatos três meses depois pelo Conselho. Mas também serviram de munição tanto no combate à administração azevediana ao longo de seus três anos (1927-1930) quanto na elaboração de processos denunciando a malversação de recursos públicos, finda a gestão.

Na última entrevista concedida no mês de outubro, para A Pátria, no dia 28, Azevedo retomaria as questões já debatidas anteriormente, debruçando-se especialmente sobre a necessidade da construção de novos prédios escolares e sobre as demandas financeiras envolvidas na realização do projeto. Talvez em busca de apoio público e político, talvez como efeito de retórica, ao defender as idéias que nortearam o plano de reforma recorreu ao regulamento sobre educação primária, naquele momento, recém-promulgado em Minas Gerais, estabelecendo uma comunhão de propostas entre os dois códigos, firmada sobre mesmos princípios modernos.

Tanto nos discursos quanto nas entrevistas, Azevedo insistia em dividir com o prefeito Antônio Prado Jr. os méritos da realização do projeto de reforma. Na conferência realizada no salão do Jóquei Clube, em 8 de setembro, por exemplo, afirmava:

Mas, se algum dia conseguir a realização desses grandes ideais educativos em que todos comungamos, não será preciso lembrar-vos, entre agradecido pela vossa solidariedade e impelido pelo sentimento de justiça, que não a mim, mas ao sr. Dr. Antônio Prado Jr., que me cativa com sua presença, caberão as honras definitivas. (Azevedo, 1927, p. 28)

Retribuía o apoio, ao mesmo tempo que agia de forma a renová-lo para enfrentar as contendas políticas expressas nos jornais e antecipadas com respeito ao Conselho Municipal. Forjava, ainda, uma imagem pública em que se associavam o educador, especialista, e o patriota, talvez também desejando captar apoio entre a população, os educadores e políticos cariocas.

Durante quatro meses estudei com afinco e carinho o anteprojeto relativo à reforma do ensino ministrado pela Prefeitura. Antes, porém, de me entregar a esse trabalho fiz uma inspeção visual tão rigorosa quanto possível nas nossas escolas (...) Para assentar em bases sólidas o meu anteprojeto, fui ainda além, pois aguardei, para uma redação definitiva, o resultado dos acurados estudos procedidos durante três meses e meio, inclusive os domingos, por uma comissão que designei para esse fim especial, e que se compunha dos srs. Renato Jardim, ex-diretor; Paulo Maranhão, inspetor escolar; Jonathas Serrano, diretor da Escola Normal; Maria Reis Campos, professora e, durante sus permanência no Rio, Sud Menucci, que é, sem favor, uma autoridade na matéria (...). Fi-lo com o amor de um patriota sincero (...) aspirando senão voltar, um dia, a ocupar o meu antigo posto de professor da Escola Normal de São Paulo... . ("A reforma da Diretoria de Instrução." O Jornal do Brasil. 6/10/1927)

À guisa de conclusão: a produção de uma memória educacional

Se, em 1927, durante a campanha pela aprovação do projeto de reforma, iniciada, de maneira mais contundente, no mês de outubro, quando da divulgação da proposta em jornais e sua leitura no Conselho Municipal, Azevedo não vinculara suas idéias ao escolanovismo; já no ano seguinte, e nos posteriores, a referência à Escola Nova seria uma constante em seu discurso.2 2 . Em 8 de setembro de 1927, no salão do Jóquei Clube, afirmava Azevedo: "É, de fato, o desenvolvimento desse aspecto social da educação que pôs em foco os três princípios fundamentais com que tendem a conformar-se os grandes sistemas de organização escolar: o princípio da comunidade, da escola única e da escola do trabalho". (Azevedo, 1927, p. 17) A ruptura com o passado educativo, expressa no repúdio à escola régia e à escola primária de letras,3 3 . "A geração atual de educadores já rasgou, por impróprio às tendências da nova civilização, o programa de escola primária de letras, consubstanciado nos princípios da escola teórica e livresca, em que permaneceu sempre à margem o lado social da obra de educação." (Azevedo, 1927, p. 15) paulatinamente se consolidaria numa negação à educação exercida no Império. A renovação educacional do Distrito Federal, apresentada naquele momento ao lado da reforma mineira, assumiria a posteriori a preponderância nas iniciativas reformistas dos anos 1920.

Fernando de Azevedo, escrevendo em 1943 sobre a reforma implementada na capital brasileira em 1927, evidenciava essas três alterações em seu discurso.

A vigorosa afirmação dos princípios fundamentais por que se norteou essa reforma; as polêmicas apaixonadas que levantaram em torno dela e do movimento de idéias que suscitou, produzindo uma ruptura da unidade do pensamento pedagógico, dominantes desde o Império, deram-lhe um tal impulso e tão grande poder de desenvolvimento que pode repercutir fortemente, colhendo-os no seu raio de influência, sobre diversos estados da União. Na tempestade de protestos e aplausos, na corrente de entusiasmo ou na avalancha de críticas que levantou por toda parte, não se pode deixar de reconhecer antes o choque de conflitos ideológicos do que uma simples reação diante de uma reforma com que o Brasil se integrava no movimento de renovação escolar que vinha se desenvolvendo em alguns países europeus e americanos. (Azevedo,1976, p. 165)

Empenhava-se Azevedo em desenhar uma representação da reforma carioca. Por um lado, ela inaugurava o novo, rompendo com o passado imperial, e aqui desaparecia a concessão feita anteriormente, em 1927, ao governo mineiro. Era a reforma do Distrito Federal a instauradora do novo. Por outro lado, tinha sido objeto de disputas ideológicas que tendiam a desfigurar suas características técnicas, remetendo o conflito para a esfera política. Nos dois casos, utilizava-se de um procedimento narrativo, já denunciado por Marta Carvalho, em 1989 e revisitado em 1998, em que "alternando procedimentos de condensação e esvaziamento de sentido" (Carvalho, 1998, p. 336), Azevedo compunha temas e personagens, construindo uma escrita em que o movimento dos anos 1920 e 1930 era "unificado como marcha ascensional pelo 'novo'" (Carvalho, 1989, p. 30) e a "memória dos renovadores erigida em conhecimento histórico" (Carvalho, 1998, p. 331).

Reiteradamente citada nas décadas posteriores, A cultura brasileira seria inspiração a trabalhos na área educacional e fonte primária a investigações acadêmicas. Reconhecida como obra de caráter científico pela comunidade educacional, raramente era interrogada enquanto testemunho de um dos atores das iniciativas ali traçadas. Texto fundador, atualizava e cristalizava representações sobre o ensino brasileiro no Império e primeiros anos da República esboçadas na campanha de 1927, por Azevedo, e difundidas pela imprensa carioca nos debates acerca do Centenário do Ensino Primário, consolidando um lugar de interpretação do passado educativo como descaso.

No caso de Minas Gerais, a magnitude dos festejos do centenário da lei de 15 de outubro de 1927 nos faz crer que o governo a tenha utilizado como importante estratégia de mobilização social em favor da educação, ao mesmo tempo em que buscava cooptar tal mobilização dos professores, dos alunos e da população em geral para a causa da reforma do ensino em curso.

Similarmente ao discurso de Fernando Azevedo de 1927 (e não de 1928), a renovação da escola em Minas Gerais não se fazia invocando diretamente a tradição escolanovista. Antes, os discursos enfatizavam que a escola antiga seria suplantada ora pela escola moderna, ora pela escola ativa. Católicos que eram, os reformadores mineiros não iriam aderir in totum a um escolanovismo que se lhes parecia ameaçador.

Na mesma vertente, havia, nos discursos mineiros, uma certa indulgência com a escola imperial. A escola antiga que eles se propunham a superar parecia ser mais a escola régia dos tempos coloniais do que a escola isolada do império. Os tempos eram outros. Diferentemente dos primeiros reformadores republicanos que nos anos iniciais do século XX se propunham a superar as mazelas educacionais do Império, os reformadores dos anos 1920 já não são tão taxativos em seus diagnósticos: se o Império católico brasileiro não fez mais pela educação não foi por falta de vontade política, mas pelas dificuldades inerentes ao próprio meio. A projeção do futuro se fazia, assim, com a produção de um outro passado, possibilitando a emergência de outras memórias, memórias estas muitas vezes silenciadas pelas tradições historiográficas que viam no catolicismo e nos católicos tão somente os inimigos dos escolanovistas.

Não por acaso, em Minas, o 15 de outubro é ocasião de júbilo e celebração; a festa dá lugar ao novo e à tradição. Atualizando um passado que não lhes parece hostil, os reformadores mineiros afirmam a continuidade, o passado e o presente a partir de uma visão cristã e católica da realidade social. O tempo da reforma permite antecipar o tempo escatológico da boa nova, permitindo repor o movimento da história no seu curso normal, do qual, para muitos, a República havia contribuído para afastar o Brasil.

Referências bibliográficas

Fontes

Recebido em 30.01.02

Aprovado em 03.05.02

Diana Gonçalves Vidal é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da USP, onde coordena o Centro de Memória da Educação. Bolsista do CNPq, vem pesquisando sobre a história das práticas escolares de escrita e leitura no Brasil, entre o fim do Império e as primeiras décadas da República. Publicou, sozinha ou em co-autoria, livros, capítulos de livros e artigos sobre esse tema.

Luciano Mendes de Faria Filho é professor de História da Educação da Faculdade de Educação da UFMG, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação/GEPHE(www.fae.ufmg.br/gephe). Bolsista do CNPq, vem pesquisando sobre a história da cultura escolar no Brasil, tendo publicado, sozinho ou em co-autoria, vários livros, capítulos de livros e artigos sobre o tema.

Em dezembro de 1928, em O jornal, dizia "É o ideal da escola nova, que segundo a nova concepção social, se pode encarar pelos seus três aspectos: 1) escola única; 2) escola do trabalho; 3) escola da comunidade".

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  • ________. A transmissão da cultura. Brasília: Melhoramentos/ INL, 1976.
  • CARVALHO, Marta. O novo, o velho, o perigosos: relendo A cultura brasileira. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n. 71; p. 29-35, nov. 1989.
  • ________. A configuração da historiografia educacional brasileira. In: FREITAS, Marcos (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p.329-354.
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  • O PAIZ. Rio de Janeiro, out. 1927.
  • REVISTA DO ENSINO Belo Horizonte: Diretoria de Instrução Pública, n. 23-24, 1927.
  • 1
    . Em poema publicado na
    Revista, n. 23, número especial.
  • 2
    . Em 8 de setembro de 1927, no salão do Jóquei Clube, afirmava Azevedo: "É, de fato, o desenvolvimento desse aspecto social da educação que pôs em foco os três princípios fundamentais com que tendem a conformar-se os grandes sistemas de organização escolar: o princípio da comunidade, da escola única e da escola do trabalho". (Azevedo, 1927, p. 17)
  • 3
    . "A geração atual de educadores já rasgou, por impróprio às tendências da nova civilização, o programa de escola primária de letras, consubstanciado nos princípios da escola teórica e livresca, em que permaneceu sempre à margem o lado social da obra de educação." (Azevedo, 1927, p. 15)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2002
    • Data do Fascículo
      Jun 2002

    Histórico

    • Aceito
      03 Maio 2002
    • Recebido
      30 Jan 2002
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