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Apresentação

EM FOCO: A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO ENFRENTANDO A PROBLEMÁTICA EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEA

Apresentação

A presente Seção Em Foco compõe-se de trabalhos que apresentam e discutem, de forma sistemática, a maneira como a reflexão filosófico-educacional está desenvolvendo referências para a compreensão e interpretação da problemática da educação, no contexto histórico-social de transição da modernidade à contemporaneidade. Abordam a problemática suscitada pela alegação de que os paradigmas da modernidade não mais dão conta de todos os desafios que emergem desse novo contexto histórico. Debatem questões tais como: instauraria esse novo contexto uma real pós-modernidade? Pode-se mesmo falar de uma pós-modernidade, de um pensamento pós-moderno, pós-estruturalista? Que implicações para a compreensão da educação traz esse questionamento sistemático das metanarrativas? Estaria esgotada a explicação racional típica da modernidade? Como se pode repensar a educação neste novo momento da história?

Perguntar pela condição da Filosofia da Educação no contexto desse momento histórico-cultural é mergulhar no próprio âmago da educação e da condição existencial dos seus profissionais, interrogar sua formação e sua atuação na prática real. É procurar entender o significado dessa aventura intelectual que se espera do exercício do filosofar para se entender a própria identidade da Filosofia da Educação, não uma identidade da estagnação parmenídea, mas aquela da permanente tensão heracliteana.

E é nessa perspectiva que se insere a significação da proposta, que busca contribuir para o entendimento do próprio processo de autoconstituição da identidade da Filosofia da Educação. Esse esforço de reflexão procura mostrar como a Filosofia da Educação vem se exercendo e se constituindo como campo de conhecimento, ocupando um espaço próprio, apresentando-se à comunidade do saber.

Entende-se que hoje as tarefas da Filosofia da Educação desdobram-se em um tríplice direcionamento: de uma primeira perspectiva, cabe-lhe mostrar os vínculos fecundantes do próprio conhecimento com a prática humana, em geral, e com a prática educativa, em particular. Relacionar o conhecimento teórico do campo educacional é contribuir para desvendar o sentido da educação. A Filosofia da Educação tem, então, sob uma primeira dimensão, uma tarefa epistemológica que, no entanto, não deve se transformar numa metafilosofia, espelho de si mesma. Sob uma segunda perspectiva de sua abordagem, a Filosofia da Educação é um esforço para desvendar os intrincados meandros da prática, evidenciando os valores que a sustentam, sem se reduzir a uma tecnologia, a uma mera sabedoria. E sob uma terceira perspectiva, a Filosofia da Educação busca explicitar os sentidos possíveis para a existência histórica dos homens, mas sem se transformar numa nova metafísica ou a uma pura estética da existência. E com base nesses significados, deve discutir a educabilidade humana.

Na complexa malha do pensamento filosófico contemporâneo, que se expressa também no âmbito da Filosofia da Educação, alguns pontos se tornam referências comuns a todas suas manifestações. Assim, parece estar superada, na reflexão filosófica mais recente sobre a educação, a visão essencialista dela, tanto sob sua versão metafísica quanto sob suas versões teológicas. O pensamento filosófico-educacional, que vem se construindo neste século, se exerce numa perspectiva geral, de fundo antropológico, numa visão totalmente dessacralizada e imanente à realidade humana. Mesmo as concepções ainda influenciadas por suas raízes religiosas ou metafísicas buscam se expressar atualmente numa perspectiva mais antropológica, retirando de suas coordenadas teóricas as referências ao providencialismo divino ou ao apriorismo metafísico abstrato e idealista. Ninguém mais pretende falar de transcendências que norteariam a história real da humanidade, todas as abordagens filosóficas da educação assumem a condição histórica e social da existência humana. Agora a construção da história é responsabilidade exclusiva dos homens: não se trata mais de construir a Cidade de Deus, mas a pólis, a cidade dos homens.

No entanto, os modos pelos quais é entendido esse processo de humanização, que leva à nova sociedade, marcada pela cidadania e pela democracia, podem ser muito diferentes, considerando-se os fatores que são enfatizados como fontes energéticas dinamizadoras do processo de transformação do homem, de construção da sociedade, da condução da história. Por isso, creio ser possível identificar quatro grandes perspectivações filosófico-educacionais que permitem situar, com alguma sistematicidade, todos os posicionamentos teórico-filosóficos de pensadores e de escolas, tendências, correntes e vertentes de pensamento que se possam caracterizar.

De um primeiro ângulo, em que pese todo o neoceticismo crítico gestado nas pretensões filosóficas da pós-modernidade, ainda se pensa a educação como processo que se desenvolve em harmonia com os processos que regem todos os demais aspectos do mundo natural. Ao homem, cabe viver, realizar-se, aperfeiçoar sua existência concreta numa íntima conexão com a natureza objetiva que o constitui e o cerca. Sua existência no plano da cultura deve desenvolver-se analogamente ao modo como se dá a vida no plano da natureza. Não são planos idênticos, mas profundamente análogos. Reconhecimento do lugar prioritário que as referências objetivas da naturalidade da existência colocam para a condução dos destinos da humanidade. Pode-se aqui, para melhor esclarecimento, recorrer à metáfora da funcionalidade natural do mundo: ele sempre foi presidido por uma dinâmica objetiva de forças e determinações que garantem a sua produção e a sua manutenção, sempre numa linha evolutiva e aprimorante. Assim, a pólis será construída graças ao estabelecimento e à aplicação de diretrizes do relacionamento social objetivamente conhecidas e positivamente estruturadas em normas jurídicas.

No entanto, conhecer os fenômenos naturais é tarefa da ciência. Só a ciência é via de conhecimento sólido e verdadeiro, capaz de construir o saber e de dotar o homem dos instrumentos para o fazer. Em decorrência dessa hegemonia da ciência, escoimada de qualquer ranço metafísico, à Filosofia não cabe mais que a missão de discorrer, ainda que criticamente, sobre os procedimentos científicos e, particularmente, sobre sua linguagem. E à Filosofia da Educação cabe, fundamentalmente, discutir a consistência do discurso pedagógico e as pretensões da cientificidade no campo da Educação.

De um segundo ângulo, pode-se ver a educação garantindo a humanização do homem na medida em que ela possa contribuir diretamente para a construção do próprio sujeito. A imagem agora é dada pela metáfora da identidade e da autonomia do sujeito espiritual, individual, pessoal que, princípio de atividade, atua pela força energética de sua vontade livre. A transformação do mundo, a construção da sociedade, o aprimoramento da existência objetiva decorrem agora diretamente da transformação, do aprimoramento íntimo do sujeito. A pólis, como cidade democrática, será resultante das ações, eticamente respaldadas, postas pelos indivíduos transformados. O direito positivo só pode se legitimar se fundado em diretrizes éticas, nas quais deve prevalecer a dignidade subjetiva da pessoa humana. A reflexão filosófico-educacional conduzida sob essa inspiração se faz presente nas propostas elaboradas sob o signo da tradição clássica do humanismo subjetivista moderno, com suas origens cartesianas e kantianas, e do neo-humanismo contemporâneo, com suas bases nos paradigmas da Fenomenologia, da Hermenêutica, do Existencialismo e do Personalismo.

Entretanto, de um terceiro ângulo, tem-se pensado a educação como um processo prático social que retira toda sua força da própria dinâmica da vida da sociedade, esta se colocando com anterioridade em relação às pessoas, individualmente consideradas. Não que se negligencie a vida do espírito e os ditames da natureza, mas a subjetividade e a identidade pessoal só se sustentam numa estrutura de relações sociais bem tecida. Sobre a funcionalidade da vida e sobre a eticidade dos princípios, prioriza-se a politicidade das relações sociais. Portanto, a metáfora aqui é a da solidariedade do grupo na organização de relações sociais emancipatórias, reclamando da educação o investimento de todos os seus recursos na intencionalização da prática, para que ela, tornando-se práxis, organize politicamente a sociedade, instituindo a pólis democrática, solo e placenta da vida cidadã das pessoas. O entendimento entre os homens, base do contrato social, só pode fundar-se numa negociação política.

Na atualidade, no contexto do momento histórico da chamada pós-modernidade, está se desenvolvendo um outro modo de pensar, diferente dos anteriores, que se marca por uma postura de questionamento radical da própria centralidade do sujeito, sob qualquer modalidade epistêmica ou ontológica. Assim, o homem encontra-se totalmente sufocado, não conseguindo viver sua vida e conduzir sua existência sob a única dinâmica admissível, que é aquela da experienciação de sua sensibilidade desejante, a única referência aceitável para o existir humano. Não pode haver outros critérios de normatização da existência, levantados com base numa referência de universalidade, eis que o valor só pode ter sua fonte numa ineludível singularidade do existir. Prevalece, pois, nesse círculo hermenêutico de reflexão, a dimensão do estético, entendido como vivência no plano da sensibilidade geral do indivíduo, mente e corpo, lugares de uma economia desejante.

É evidente que essas marcações, necessariamente gerais e esquemáticas, não se manifestam com contornos assim tão nítidos, na medida em que o pensar concreto se constitui sempre numa malha singular de inspirações sob as quais os autores pensam a existência sob os impactos peculiares de sua inserção cultural e de suas vivências pessoais. É sob essa perspectiva de complexidade que os trabalhos ora apresentados nesta Seção buscam explicitar os caminhos da Filosofia da Educação na atualidade. Não há aqui a pretensão de esgotar a complexidade de suas manifestações nem de introduzir uma lógica rígida para sua sistematização. Apenas se busca mostrar que a reflexão filosófico-educacional, com seu renovado vigor atual, desenvolve-se numa dinâmica e crítica interpelação desses múltiplos aspectos.

Assim, ao questionar o estatuto epistemológico das Ciências da Educação, Tarso Mazzotti pretende mostrar que só uma teoria humanista do conhecimento poderá garantir a sublimação da dispersão epistemológica que as atinge em sua própria estruturação. Essa teoria humanista do conhecimento considera complementares, no processo de instituição dos conhecimentos, as três espécies de silogismo (entimema, dialética e demonstração), que se desenvolvem com base em critérios próprios das metodologias ou regras do fazer ou algoritmos reconhecidos pelos grupos sociais que as sustentam. Entra em ação uma lógica convencional que articula o discurso humano numa relação inseparável que liga ethos, pathos e logos – o orador, o ouvinte e o discurso. Portanto, sob essa inspiração, a Filosofia da Educação cultiva uma preocupação prioritária que é aquela de elucidar, com rigor, clareza e precisão, o seu próprio discurso. Converge assim com a tradição analítica da Filosofia Contemporânea, na sua busca de uma linguagem rigorosa para o saber da educação.

Já Sílvio Gallo discute em seu artigo as repercussões que o debate em torno de uma superação da modernidade e a suposta instauração de uma pós-modernidade traz para a Educação como campo de conhecimento, mais especialmente para a pesquisa nesse campo. Discute criticamente a tese de que viveríamos na pós-modernidade, dando ênfase a essa afirmação no âmbito do pensamento social, principalmente por compreender-se que essa expressão não tem a força e a intensidade de um conceito filosófico, acabando vazia de sentido. Ressalta-se que um de seus primeiros usos no campo da Filosofia, por Lyotard, deu-se como um adjetivo e não como um substantivo, o que faz significativa diferença. Para além do debate sobre o fim ou não da modernidade, opta-se pela noção de hipermodernidade, proposta por Lipovetsky, como forma de caracterização do mundo contemporâneo, buscando compreender suas implicações. Por outro lado, o autor reconhece as importantes contribuições da tese que afirma a pós-modernidade, principalmente em seus aspectos epistemológicos e políticos, na medida em que desloca o foco de análise. Caracteriza o presente debate como a tensão entre duas imagens do pensamento que não são absolutamente novas, mas que ganham especial destaque na contemporaneidade, defendendo que devemos tomar essa tensão naquilo que ela apresenta de possibilidade criativa, sem paralisar o pensamento.

Na mesma linha de reflexão, o artigo de Pedro Pagni mostra que as relações entre a pós-modernidade e a educação têm sido objeto de inúmeras pesquisas, bem como de certa polêmica no âmbito da Filosofia da Educação, a começar pela própria conceituação da pós-modernidade até chegar às posições filosóficas engendradas por ela. Tomando como referência básica o pensamento de François Lyotard, destaca a necessidade de explorar todo o seu legado filosófico e não apenas o de sua obra clássica, A condição pós-moderna, para que se possa aquilatar toda sua contribuição para o entendimento da educação. Mediante essa interpretação, enriquecida pela exploração de sua obra mais ampla, recupera-se um projeto filosófico que lança alguns 'desafios' à Filosofia da educação, na atualidade, referentes ao deslocamento de sua problemática epistemológica para a estética, nutrida por um pensamento capaz de elucidar a face complexa e obscura da educação, a sua sombra inumana, e o diferendo constitutivo do ensino, inapreensíveis pela linguagem e pela comunicação.

Também inserindo sua reflexão no contexto do debate modernidade/pós-modernidade, Pedro Goergen debate a tese de que a crítica pós-moderna aos rumos da modernidade provocou uma intensa discussão em torno de alguns pressupostos básicos da tradição iluminista. Entre eles, encontram-se as noções de filosofia da história, de sujeito e de valores. Tais conceitos representam também os fundamentos da tradição educacional, inerente ao projeto moderno. O artigo procura assinalar a necessidade de se incorporar à filosofia da educação os debates que vêm sendo desenvolvidos nos campos da filosofia, da ética e da estética para averiguar tanto a procedência das críticas pós-modernas, quanto a sua eventual repercussão no campo da Educação.

Por sua vez, Newton Duarte, em seu trabalho, defende a tese de que a concepção, existente na obra de Marx, acerca do processo histórico de constituição da riqueza humana universal, contém os elementos teóricos necessários para a superação da falsa opção, postulada pelas diversas correntes do pós-modernismo, entre o etnocentrismo e o relativismo cultural. Segundo Marx, a universalização da cultura humana se daria, na sociedade capitalista, por meio da universalização do valor de troca das mercadorias como mediação fundamental das relações sociais. Trata-se, portanto, de um processo dialético no qual ocorrem ao mesmo tempo a humanização e a alienação do gênero humano e dos indivíduos. O texto conclui com a apresentação dos desafios que, a partir dessa concepção marxiana sobre a riqueza universal, devem ser enfrentados no processo de construção de uma pedagogia marxista.

Encerrando a Seção, meu artigo desenvolve uma reflexão sobre como a educação entendida como processo de formação humana, busca ver quais os sentidos que essa formação recebeu ao longo de nossa tradição filosófica, bem como é pensada na contemporaneidade, uma vez que ocorreram mudanças nas concepções que os homens fizeram do ideal de sua humanização. Sob tal perspectiva, recoloca em discussão as relações entre as diversas dimensões da educabilidade humana, destacando as dimensões ética e política que, até o atual momento, prevaleceram como fundamentos da compreensão da própria natureza da educação e concluindo que hoje a formação humana, visada pela educação, compreende-se como formação cultural. Essa idéia dá à educação uma finalidade intrínseca de cunho mais antropológico do que ético ou político. Essa reflexão sobre a natureza da educação implica igualmente explicitar o lugar e o papel da Filosofia da Educação como esforço hermenêutico de desvelamento da prática educacional, tal como ela precisa se desenrolar nas mudadas condições histórico-culturais da atualidade. A discussão permite, assim, não apenas interpelar momentos significativos da expressão histórica da Filosofia da Educação na cultura ocidental, mas também debater conteúdos teóricos fundamentais do debate filosófico sobre o sentido da educação, debate que se impõe com renovada força para os educadores no enfrentamento dos desafios que estão sendo colocados pelas novas condições da pós-modernidade, responsável por um profundo questionamento das referências filosóficas da tradição cultural do ocidente...

As múltiplas direções reflexivas, até mesmo divergentes, apresentadas por esses trabalhos expressam, simultaneamente, tanto a pluralidade de suas inspirações fundantes quanto a unicidade do projeto teórico da Filosofia da Educação no contexto contemporâneo. Em que pese a multiplicidade de suas expressões, compartilham um mesmo esforço de explorar caminhos e perspectivas abertas por um saber compromissado com a prática emancipadora, da qual a educação é mediação privilegiada.

Antônio Joaquim Severino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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