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A imanência como "lugar" do ensino de filosofia

Immanence as the "place" of the teaching of philosophy

Resumos

A intenção do presente artigo é pensar a problemática do ensino de filosofia a partir da obra de Deleuze e Guattari. Esses autores criaram uma série de conceitos, em seu fazer filosófico, para entender o que seria fazer filosofia, ou seja, para entender a atividade filosófica que se distanciasse de uma reflexão sobre alguma coisa e se fundasse em um ato de criação filosófica. Segundo os autores, existem quatro conceitos que corroboram para entender esse fazer filosófico, quais sejam: conceito, plano de imanência, personagem conceitual e problema. Tem-se como hipótese que tais conceitos podem contribuir para se pensar o ensino de filosofia na contemporaneidade de modo diferenciado do qual vem sendo tratado. Foi dada especial atenção a um desses conceitos: plano de imanência, engendrado na última obra conjunta desses autores, O que é a filosofia? (1997). Buscou-se, na obra desses autores, a caracterização de imanência e, consecutivamente, de plano de imanência para entender como se pode pensar o ensino de filosofia de forma diferenciada e de modo tal a distanciá-lo de uma adequação conceitual a um transcendente ou a um transcendental, a qual, no entender dos autores trabalhados, levaria o conceito de ensino a um dogmatismo conceitual. A proposta deste artigo é buscar uma saída para o problema, pensando o ensino de filosofia a partir da imanência mesma na qual este se produz.

Ensino de Filosofia; Filosofia e educação; Filosofia francesa contemporânea; Imanência


The aim of this article is to think the problem of the teaching of philosophy from the perspective of the work of Deleuze and Guattari. These authors have created a series of concepts along their philosophical work to understand what it means to do philosophy, that is, to understand a philosophical activity that moves away from the reflection upon something, to be founded on an act of philosophical creation. According to them, there are four concepts that contribute to understand such philosophical work, namely Concept, Plane of Immanence, Conceptual Persona, and Problem. We assume that these concepts can be useful to think the contemporary teaching of philosophy in a way different from what has been the case. Special attention was given to one of these concepts, Plane of Immanence, developed in the last joint work of these authors, What is philosophy? (1997). We have sought in the work of these authors to understand how one can think the teaching of philosophy in such a way as to distance it from a conceptual fitting to a transcendent or transcendental, which according to the authors employed here would push the concept of teaching into a conceptual dogmatism. The proposal of this article is to seek a way out of this problem, thinking the teaching of philosophy based on the very immanence in which this teaching is produced.

Teaching of philosophy; Philosophy and education; French contemporary philosophy; Immanence


ARTIGOS

A imanência como "lugar" do ensino de filosofia* * Financiado pela FAPESP.

Immanence as the "place" of the teaching of philosophy** ** Sponsored by FAPESP.

Rodrigo Pelloso Gelamo

Universidade Estadual Paulista

Correspondência Correspondência: Rodrigo Pelloso Gelamo Rua Augusto Gente, 532 ap.33 17519-340 - Marilia - SP e-mail: gelamo@gmail.com

RESUMO

A intenção do presente artigo é pensar a problemática do ensino de filosofia a partir da obra de Deleuze e Guattari. Esses autores criaram uma série de conceitos, em seu fazer filosófico, para entender o que seria fazer filosofia, ou seja, para entender a atividade filosófica que se distanciasse de uma reflexão sobre alguma coisa e se fundasse em um ato de criação filosófica. Segundo os autores, existem quatro conceitos que corroboram para entender esse fazer filosófico, quais sejam: conceito, plano de imanência, personagem conceitual e problema. Tem-se como hipótese que tais conceitos podem contribuir para se pensar o ensino de filosofia na contemporaneidade de modo diferenciado do qual vem sendo tratado. Foi dada especial atenção a um desses conceitos: plano de imanência, engendrado na última obra conjunta desses autores, O que é a filosofia? (1997). Buscou-se, na obra desses autores, a caracterização de imanência e, consecutivamente, de plano de imanência para entender como se pode pensar o ensino de filosofia de forma diferenciada e de modo tal a distanciá-lo de uma adequação conceitual a um transcendente ou a um transcendental, a qual, no entender dos autores trabalhados, levaria o conceito de ensino a um dogmatismo conceitual. A proposta deste artigo é buscar uma saída para o problema, pensando o ensino de filosofia a partir da imanência mesma na qual este se produz.

Palavras-chave: Ensino de Filosofia — Filosofia e educação — Filosofia francesa contemporânea — Imanência.

ABSTRACT

The aim of this article is to think the problem of the teaching of philosophy from the perspective of the work of Deleuze and Guattari. These authors have created a series of concepts along their philosophical work to understand what it means to do philosophy, that is, to understand a philosophical activity that moves away from the reflection upon something, to be founded on an act of philosophical creation. According to them, there are four concepts that contribute to understand such philosophical work, namely Concept, Plane of Immanence, Conceptual Persona, and Problem. We assume that these concepts can be useful to think the contemporary teaching of philosophy in a way different from what has been the case. Special attention was given to one of these concepts, Plane of Immanence, developed in the last joint work of these authors, What is philosophy? (1997). We have sought in the work of these authors to understand how one can think the teaching of philosophy in such a way as to distance it from a conceptual fitting to a transcendent or transcendental, which according to the authors employed here would push the concept of teaching into a conceptual dogmatism. The proposal of this article is to seek a way out of this problem, thinking the teaching of philosophy based on the very immanence in which this teaching is produced.

Keywords: Teaching of philosophy — Philosophy and education — French contemporary philosophy — Immanence.

Considerações iniciais

No presente artigo, partiu-se de uma hipótese de trabalho: a de que Deleuze e Guattari (1997) podem contribuir para pensar o ensino de filosofia. Essa hipótese fundamenta-se no modo como os referidos autores fazem sua filosofia, ou seja, no modo como eles criaram vários conceitos que mudam o modo de olhar o mundo, melhor dizendo, de experimentar o mundo, de fazer um recorte no mundo para entendê-lo. Existem, na obra deleuzo-guattariana, vários conceitos que poderiam contribuir para se pensar o ensino de filosofia. Desses vários conceitos, foram escolhidos quatro que são apresentados, de forma mais precisa, na obra O que é a filosofia?: plano de imanência, conceito, personagem conceitual e problema. Elementos que, segundo Deleuze e Guattari, constituem o filosofar, ou seja, conceitos que se inter-relacionam e dão consistência ao fazer filosófico.

Para Deleuze e Guattari (1997), fazer filosofia é criar conceitos. Talvez essa seja a frase mais repetida de suas obras. No entanto, vale ressaltar que criar conceitos não é uma atitude que é encontrada somente neles, mas como eles mesmos afirmam, toda a filosofia tem essa função. A diferença que trazem esses autores é o lugar de partida para que os conceitos sejam criados. Para eles, a criação de conceitos não poderia estar fundada em um lugar de transcendência, mas sim se dar em uma imanência, melhor dizendo, em um plano traçado pelo filósofo na imanência. Desse modo, o conceito não seria algo que vem de fora da imanência ou que poderia ser aplicado à imanência, mas que pertence a ela. Assim, uma vez criado o conceito no plano de imanência, o conceito e o plano, no qual ele foi criado, não se separariam. Não se teria nenhuma hierarquia entre eles nem mesmo poder-se-ia separar um do outro.

Conceito e plano estão imbricados, porque o conceito só funciona no plano em que foi criado, e o plano é que dá condições para que o conceito funcione. Desse modo, os conceitos e o plano de imanência são correlatos, co-existentes e co-insistentes porque são construídos simultaneamente. Essa é uma característica do fazer filosófico deleuzo-guattariano que precisa ser destacada: o construtivismo. Para eles, não basta ao filósofo ser reflexivo ou comunicativo. Segundo Deleuze (1992), "de fato o que importa é retirar do filósofo o direito à reflexão 'sobre'. O filósofo é criador, ele não é reflexivo" (p. 152). Desse modo, o filósofo precisa se tornar o construtor-criador.

Para Deleuze e Guattari (1997), "a filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos complementares, que se diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano" (p. 51). Assim, não bastaria ao filósofo criar conceitos, mas também caberia a ele traçar o plano de imanência no qual o conceito será criado. Desse modo, o filósofo é o construtor-criador. A ele não seria mais dado o ato de simplesmente contemplar a realidade para encontrar um conceito que a expressasse, mas experimentá-la e expressá-la como e pela criação.

A partir o exposto, poder-se-ia chegar à conclusão de que ser filósofo é ser criador, e filosofar é criar, traçar planos e criar conceitos? A resposta a essa pergunta seria um tanto quanto paradoxal, já que seria sim e não. Como poderá ser notado a seguir, o filósofo precisa traçar planos para criar conceitos. Não se pode fazer filosofia sem essas prerrogativas, porém a tarefa do filósofo não se limita a isso. Existem outras dimensões que o filosofar requisita no ato de criação e como ato de criação. Esse outro aspecto, ao qual se dá destaque, é a criação do personagem conceitual. Para Deleuze e Guattari (1997), os personagens conceituais são os responsáveis por fazer os conceitos funcionarem. Isso porque os conceitos "[...] têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição" (p. 10). Assim, o filosofar exige um outro ato de criação que é criar personagens conceituais que farão o conceito funcionar no plano. Desse modo, o personagem conceitual é o responsável por dar mobilidade ao conceito no plano de imanência.

Personagens conceituais

Existem inúmeros personagens conceituais na história da filosofia. Deleuze e Guattari (1997) enumeram vários deles: o idiota, Sócrates, Zaratustra, dentre outros. Um desses personagens conceituais, que é singularmente importante e que se faz necessário desenvolver aqui, é o amigo. Este é o personagem conceitual por excelência para o filosofar. Para Deleuze e Guattari (1997), "amigo designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade, como aquela do marceneiro pela madeira [...]" (p. 11). E complementa:

[...] o amigo não designa mais um personagem extrínseco, um exemplo ou uma circunstância empírica, mas uma presença intrínseca ao pensamento, uma categoria viva, um vivido transcendental. (p. 11)

O personagem conceitual não tem a função de servir de exemplo, isto é, não exemplifica determinado conceito, mas mais especificamente faz o conceito funcionar nas relações de pensamento, porque é ele quem vive o acontecimento filosófico. Desse modo, o personagem conceitual da filosofia, por excelência, é o próprio filósofo: aquele que é amigo do conceito, aquele que cria e faz o conceito funcionar.

É preciso notar a sutileza com a qual Deleuze e Guattari elaboram a definição de amigo. Para eles, o amigo (personagem conceitual) não é alguém que simplesmente habita o plano de imanência ou alguém que é colocado desde fora no plano, mas alguém que é próprio ao plano; alguém que se dobrou a partir do próprio plano. O amigo, assim, é um plano no plano recortado do caos1 1 . Os conceitos de plano, recorte e caos serão mais detidamente desenvolvidos a seguir. 2 . Sobre esse assunto, ver também Cardoso Jr. (2006). , uma desaceleração, um plano criador de conceitos. O personagem conceitual, portanto, é aquele que vai dar consistência ao plano. É aquele que vive o plano e cria conceitos no plano.

Nesse ponto da discussão, faz-se necessário interpelar Deleuze e Guattari com a seguinte questão: por que o personagem conceitual cria conceitos? Qual a necessidade dessa criação de conceitos? Seria essa uma destinação?

Poder-se-ia buscar em uma frase de Deleuze (1992) uma possível resposta a isso: "É filósofo quem se torna filósofo, isto é, quem se interessa por essas criações muito especiais na ordem dos conceitos" (p. 39). No entanto, para que seja possível compreender o fragmento acima, é preciso retornar ao que eles entendem por amigo. O filósofo, como já foi dito, é o amigo do conceito, aquele que deseja o conceito e que aspira ao conceito. Vale lembrar, também, que o amigo não é alguém que está fora do plano, mas que está intrínseco ao plano. A aspiração, ou o desejo de criação, não é um dado que vem de fora do plano de imanência, mas é imanente ao plano. Assim, o criador de conceitos tem de ser íntimo do plano para poder expressá-lo, para querer expressá-lo e, assim, para ser problematizado pela imanência e, como resposta às problematizações, criar conceitos. Desse modo, o plano de imanência problematiza o amigo do conceito, ataca o pensamento do personagem conceitual e pede para que ele o expresse. Pede para o filósofo criar condições de resolução para os problemas produzidos no e pelo plano de imanência e, ao mesmo tempo, problematiza o plano no sentido de tensioná-lo e reproblematizá-lo. O conceito, assim, é a resposta aos problemas do plano e a condição de expressividade do plano.

Nota-se que o modo deleuzo-guattariano de pensar a filosofia é bastante complexo. Por isso, seria preciso desenvolver cada um dos elementos que compõem o fazer filosófico — plano de imanência, conceito, personagem conceitual e problema — de forma separada. No entanto, dados o limite do presente artigo, será preciso limitar a exposição dos argumentos mais detidamente a apenas um desses elementos — o plano de imanência — e na medida do possível correlacioná-lo aos outros elementos.

Recortar

É largamente sabido que, para se pesquisar, é necessário fazer recortes. Recortar a realidade e problematizá-la para poder entender quais são os problemas que podem ser tirados dessa realidade para se ter um tema de pesquisa, um campo de pesquisa para se olhar e, assim, pensar. Por isso, há a necessidade de fazer os devidos recortes e traçar planos que dêem condições aos objetivos almejados.

Muitas vezes, os recortes funcionam de modo tal a servir como 'lentes' para se olhar a realidade. Funcionam como imagens que se usa como um decalque aplicável à realidade para que, assim, o campo de pesquisa se torne visível. Dito de outro modo, buscam-se na literatura os campos de pesquisa, os modos de recortar e, a partir das leituras, cria-se uma imagem daquilo que se deve enxergar na realidade. Juntamente com essa imagem criada, são trazidos os conceitos que nomearão aquilo que a imagem decalcada tornará possível de se enxergar.

Tal modo de olhar apresenta problemas, isso porque se se aplicar uma imagem ou conceitos já estabelecidos anteriormente à realidade, não se poderá ter acesso à imanência, uma vez que a imagem e os conceitos não apenas estão, mas também foram produzidos fora da imanência. Pensado assim, ter-se-ia duas dimensões: uma é o lugar onde o olhar focaliza aquilo que se quer enxergar; e a outra, o modo de olhar que determina o foco. Desse modo, se já houver de antemão o modo de olhar a realidade, esta teria de se adequar ao modo de se olhar.

A contribuição de Deleuze e Guattari está no modo diferenciado de fazer esse recorte e, o mais importante, na concepção mesma daquilo que se recorta. Esses autores propõem uma outra possibilidade de pensar isso que está sendo chamado de olhar e de lugar. Para eles, não se pode partir de algo que já tenha sido dado antecipadamente, mas sim partir da imanência e permitir que ela crie os problemas e, com a criação de problemas, buscar as condições de resolução. Dito de outro modo, é necessário um desvencilhar-se de qualquer condição a priori, que seja transcendente ou trans-cendental, ou seja, que não esteja fincada na imanência. O único a priori que poderia, portanto, ser aceito seria a imanência. A imanência, assim, seria a matéria-prima (o a priori sem qualquer transcendental) para o pensamento.

O conceito de imanência

Vale, aqui, desenvolver mais detidamente o conceito de imanência. Quando se pensa nesse conceito, normalmente pensa-se em algo que é imanente a alguma coisa. No entanto, para Deleuze e Guattari, a imanência não pode ser entendida desse modo porque ela não é uma dualidade ou um continente que é receptor de um conteúdo. Deleuze (2006), em A imanência, uma vida..., afirma que

[...] a imanência absoluta é nela mesma: ela não está em alguma coisa, dentro de alguma coisa, ela não depende de um objeto nem pertence a um sujeito. (s/p)

Dessa forma, a imanência não pode ser entendida como uma instância que contém objetos ou como um lugar onde os objetos estejam, bem como tampouco pode ser considerada como algo sobre o qual a consciência de um sujeito se detém para formular seus conhecimentos. A imanência não está nem além nem aquém do sujeito ou do objeto nem mesmo na relação que se pode estabelecer entre esses dois termos. Assim, conforme afirma Deleuze (2006):

A imanência não se remete a Alguma coisa como unidade superior a todas as coisas nem a um Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência é imanência apenas a si que se pode falar de um plano de imanência. (s/p)

A imanência só pode ser entendida como algo que é nela mesma. Assim, esta seria a totalidade do que existe. No entanto, se a totalidade for concebida como a soma de todas as coisas existentes, não se pode dizer que seja imanência nem mesmo a totalidade de todas as coisas poderá ser considerada imanência. Para se entender o conceito de imanência, teria de se suprimir todo plano de dualidade — céu-terra, imanente-transcendente — assim como interromper o modo de entendimento que age como uma consciência subjetiva a qual pensa um objeto que está fora dela. Isso porque não haveria uma separação entre o sujeito e o objeto nem mesmo entre a imanência e seus habitantes (Deleuze, 2006).

Seguindo essa proposição, seria preciso entender a imanência como um caos, pois não se teria mais um sujeito ou uma inteligência superior que desse consistência à matéria primeira que a imanência. Desse modo, a imanência é a própria dimensão caótica: o caos e suas velocidades. Para Deleuze e Guattari (1997):

O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é um movimento de uma a outra mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra já tenha desaparecido, e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte e estacionário, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza, e desfaz no infinito toda consciência. (p. 59)

Deleuze e Guattari (1988), a exemplo de Nietzsche, querem fazer "[...] do caos um objeto de afirmação" (p. 388). Isso quer dizer que é no caos que os problemas se afirmam e não fora dele, ou seja, não se pode supor a existência de uma consciência que teria como função problematizar o caos e propor soluções desde fora dele.

O plano de imanência

O problema que pode ser colocado a Deleuze e Guattari (1997) é: como pode o caos ser o lugar de produção conceitual se sua própria característica é ser caótico e inominável? Esse questionamento encontra ressonância na problematização por eles feita em Mil Platôs, onde se lê: "mas como poderemos ainda identificar e nomear as coisas, se elas perderam os estratos que as qualificavam e passaram para uma desterritorialização absoluta?" (p. 87). Para esses autores, o caos não é uma ausência total de determinações, mas a pura imanência com suas velocidades, que desterritorializam a todo o momento suas configurações. Desse modo,

O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é um movimento de uma a outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra já tenha desaparecido, e que uma não aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço. (p. 59)

Assim, para se pensar a imanência, seria necessário criar planos que funcionassem como desacelerações do caos, que funcionassem como esboços que se configuram momentaneamente. Por isso, é necessário cortar o caos para que se crie consistência e, assim, possa ser pensado. Desse modo, o plano de imanência é um recorte que se faz no caos, ou seja, na imanência fugidia. Vale lembrar aqui que Deleuze e Guattari estão se contrapondo ao modo platônico de entendimento ontológico: os dois mundos de Platão. Segundo Deleuze (1975), para Platão, o mundo material não poderia ser pensado justamente por essa característica fugidia. A única coisa pensável seria o mundo das idéias pelo fato de ser imutável.

Para Deleuze e Guattari, ao contrário, deve-se pensar justamente isso que, segundo Platão, não poderia ser pensado. A estratégia criada pelos filósofos franceses é a criação de um mapa que se traça sobre o caos para que seja possível se locomover nele e, assim, poder pensá-lo. Desse modo, traçar um plano na imanência é recortar a realidade caótica de tal modo que seja possível pensar. Por isso, esse recorte funciona como um crivo. Segundo Prado Jr. (2000),

'Cortar' só pode significar captar (definir) uma 'fatia', por assim dizer, de um caos que permanece livre (e infinitamente livre) em todas as outras direções ou dimensões. Mas, além de 'corte' no caos, o plano é também um 'crivo' - cortar é selecionar e fixar -, numa palavra, determinar, conter o rio de Heráclito ou o oceanomundo. (p. 314-315)

Concorda-se com o modo como Prado Jr. entende o recorte no que diz respeito ao captar uma fatia. No entanto, não se pode concordar que definir seja sinônimo de captar. A discordância pode ser fundamentada a partir da crítica que Deleuze e Guattari elaboram acerca do erro que a filosofia comete ao buscar definições. Segundo eles, a definição 'mataria' o ato de criação conceitual. O conceito tem como função expressar o plano de imanência e não defini-lo, isso porque, se se definir algo, a mobilidade do conceito seria inibida em seu caráter expressivo e estar-se-ia retomando aquilo que eles criticaram: que o conceito não tem como função dar nome à realidade. Se a função do conceito, ou do plano, fosse a de definir, estaria se retornando a antiga busca pelo caráter universal e necessário. "Um conceito não é um universal, mas um conjunto de singularidades" (Deleuze, 1992, p. 183). Do mesmo modo, o plano é algo móvel e que não pode ser definido, mas desacelerado, contido, crivado. Assim, suas forças estariam o tempo todo forçando a reaceleração e buscando escapar de seu continente. Por isso, o conceito e o plano precisam sempre ser repensados em seu movimento de diferenciação e não podem ser definidos, mas apenas pensados2 ** Sponsored by FAPESP. .

Desse modo, ao se traçar o plano, o caos estaria sendo delimitado, crivado. Ou seja, para fazer uma referência à citação anterior, recortar é desacelerar as velocidades do rio heracliteano sem jamais conseguir defini-lo. O importante é não perder as intensidades produzidas no caos, não separar o recortado daquilo que se cortou, mantê-lo em relação de co-extensão com a matéria da qual foi cortado. Isso quer dizer que, tanto o plano como o caos são imanentes: não se separa aquilo que foi cortado do que se cortou, apenas se cria uma desaceleração nas correntes de intensidades. A mesma atitude pode ser encontrada nos ribeirinhos amazônicos que constroem redes dentro do rio para a criação dos peixes nativos da região. Essas redes funcionam de tal modo a conter os peixes na imensidão das águas. Esse tipo de cultura pisicícola desacelera o movimento dos peixes sem perder a produtividade do rio, porque mantém os peixes em seu lugar imanente. Desse modo, não são os peixes que são imanentes ao rio, mas o rio, com tudo o que ele é, é que se constitui uma imanência (rio e peixes e algas etc.). Para Deleuze (1992), o "E já não é nem mesmo uma conjunção ou uma relação particular, ele arrasta todas as relações" (p. 60).

Para Deleuze (2006), "dir-se-á que a pura imanência é UMA VIDA, nada mais. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitude completas" (s/p). Assim como a vida é imanente à própria Vida, a imanência é imanente a ela mesma, não pode ser separada, não pode ser dividida. Ela é plenitude e não pode haver nada fora dela. Assim, a imanência é a pura intensidade da vida. Para ele,

[...] uma vida está por todos os lugares, por todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objetos vividos: vida imanente trazendo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entremomentos. (s/p)

Pensar a imanência é pensar a vida. No entanto, para pensar a vida, é preciso desacelerá-la, mapeá-la. Assim, a partir de Deleuze e Guattari, pode se entender que o plano de imanência é o mapa do mundo. Mapa que dá condições de locomoção para que o filósofo se singularize e que é o lugar no qual o filósofo problematiza a realidade, fazendo com que ela se subjetive, se dobre, de determinado modo. Segundo Cardoso Jr. (2006),

[...] cada um está ao mesmo tempo criando um modo de vida enquanto se constrói a imanência como plano próprio ao pensar, porque o 'construtivismo' do pensamento é também um poderoso campo de experimentação. (p. 34)

Desse modo, o plano de imanência é o lugar onde se cria um modo de vida, onde o pensamento é atacado, é o não pensado que precisa ser experimentado para ser pensado.

Por ser não pensado, o plano de imanência é pré-filosófico e pré-conceitual. Isso porque ele não é pensamento, mas é a matéria na qual o pensamento se dobrará. Desse modo, o plano de imanência está antes da filosofia e antes da criação dos conceitos. Entretanto, é sobre esse plano que o pensamento se produzirá. Segundo Cardoso Jr. (2006),

Um pensamento filosófico, porque cria conceitos como seus entes fundamentais, lança-se exatamente na construção da imanência como seu plano próprio. É justamente na imanência que começam tanto a complexidade da filosofia quanto o jogo que os conceitos de cada pensamento joga, tendo em vista sua relação com a não-filosofia. (p. 28)

O plano de imanência, assim, é a matéria do pensamento. Matéria prévia na qual o pensamento se deterá para produzir conceitos.

Se o plano e o conceito não estiverem, melhor dizendo, se não forem pertencentes à imanência, tanto o plano quanto os conceitos funcionariam de forma dogmática, ou seja, conceitos e plano seriam dados a priori, seriam elaborados fora da imanência. Desse modo, ter-se-ia um BOM plano e um BOM conceito como princípios e a imanência teria de se adequar a esses conceitos e a esse plano. Assim, o recorte do plano e os conceitos seriam apenas adequações da imanência à transcendência. Para Deleuze e Guattari (1997), "não basta mais conduzir a imanência ao transcendente, quer-se que ela remeta a ele e o reproduza, que ela mesma o fabrique" (p. 65). Desse modo, a transcendência seria detentora do modo de cortar o plano e os conceitos e, também, a condição do corte. Pensando desse modo, a imagem do plano e dos conceitos já estaria elaborada sem se relacionar com a imanência ou quando muito, a imanência seria uma reprodução (adequação) da transcendência. Deleuze e Guattari (1997) afirmam que essa confusão pode ser entendida da seguinte maneira:

[...] em vez de um plano de imanência, ele mesmo, construir esta matéria do Ser ou esta imagem do pensamento, é a imanência que seria remetida a algo que seria como um 'dativo', Matéria ou Espírito. É o que se torna evidente em Platão e seus sucessores. Em vez de um plano de imanência construir o Uno-Todo, a imanência está 'no' Uno, de tal modo que um outro Uno, desta vez transcendente, se superpõe àquele no qual a imanência se estende ou ao qual ela se atribui [...]. (p. 62)

A única coisa que poderia ser realizada, assim, é a interpretação: interpretar-se-ia a imanência com planos dados e com conceitos dados. Segundo Deleuze (1992), "quando se invoca uma transcendência, interrompe-se o movimento, para introduzir uma interpretação em vez de experimentar" (p. 182). Desse modo, a imanência estaria sendo submetida à interpretação daquele que a pensa, e pensar seria apenas um exercício de adequação. Para esses autores,

[...] cada vez que se interpreta a imanência como 'a' algo, produz-se uma confusão do plano com o conceito, de modo que o conceito se torna um universal transcendente, e o plano, um atributo do conceito. Assim mal entendido, o plano de imanência relança o transcendente. (Deleuze; Guattari, 1997, p. 62)

Cardoso Jr. (2006a), comentando essa problemática em Deleuze, afirma:

O que caracteriza, genericamente, a imagem dogmática do pensamento, segundo Deleuze, são as técnicas interpretativas que invertem a polaridade produtiva do pensar, transformando o efeito ou sintoma, em causa. Por exemplo, isso acontece quando a representação é destacada do plano do pensamento como seu fator constitutivo. Toda vez que tal transferência acontece o pensamento é aviltado e submetido a um pólo que ganha o direito de falar em nome do pensar como um todo. (s/p)

Desse modo, para Deleuze e Guattari (1997), o recorte não pode ser feito a partir de um tema ou de uma questão que esteja fora da imanência nem poderia ser dado antecipadamente, mas se deve fazer esse recorte na imanência, ou seja, deve-se traçar um plano na imanência caótica. O caos deve ser entendido, segundo esses autores, não como com uma mera ausência de determinações, mas como um lugar em que o pensamento vai se dobrar. Por ser o ainda não dobrado (a desdobra absoluta), ele "caotiza, e desfaz no infinito toda consistência" (p. 59). Por isso, é necessário criar um plano que dê consistência a esse caos para que ele possa ser pensado.

Fazer filosofia, assim, é pensar o-com-o plano de imanência. Só é possível filosofar se se estiver no plano de imanência, se se experimentar o plano de imanência. Isso porque, segundo Deleuze e Guattari (1997),

O plano de imanência é pré-filosófico, e já não opera com conceitos, ele implica uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso. (p. 59)

Desse modo, pode-se dizer, juntamente com Zorabichvili (2005), que, para Deleuze e Guattari,

[...] a filosofia é, pois, propriamente filosófica enquanto pensamento da experiência ou, o que vem a dar no mesmo, enquanto pensamento da imanência. (s/p)

Planos arbóreos ou rizomáticos

Ao se aproximar a problemática deleuzo-guattariana acerca da imanência do problema do ensino de filosofia, é possível entender que o plano de imanência do ensino de filosofia são as questões e os problemas decorrentes da experiência, da experimentação da imanência, do modo de recortar a imanência, que é a experiência dos problemas que o ensinar e aprender a filosofia produzem.

Por esse motivo, é necessário entender o ensino de filosofia como uma imanência, ou seja, experimentar o ensino como uma imanência. Não pensar o ensino como algo que seja imanente à educação, mas imanente a ele mesmo. Desse modo, o ensino seria retirado de uma relação hierárquica e arbórea que fora colocada pela educação como uma ciência que tem, em uma de suas áreas de investigação, o ensino e o ensinar.

O esquema hierárquico, denominado por Deleuze e Guattari (1997a) de arbóreo, funciona como o decalque que foi enunciado anteriormente. A árvore é uma estrutura pivotante que mantém a unidade e a centralidade daquilo que está conectado a ela. Para eles,

Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. [...] Ela consiste em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquia os decalques, os decalques são como folhas da árvore. (p. 21)

Deleuze e Guattari propõem como alternativa para a relação hierárquica, nos quais os saberes se estabelecem: o rizoma. Uma planta rizomática, ao contrário da árvore, tem um sistema radicular complexo, com tantas conexões que não se sabe em que lugar começa e em que lugar termina o sistema radicular. Suas raízes se entreconectam por bulbos e radículas. As plantas rizomáticas têm raízes e caules tanto subterrâneos (escondidos, obscuros) quanto aéreos (que aparecem ao olhar). Tudo (caules aéreos e subterrâneos, raízes aéreas e subterrâneas) está conectado com tudo, formando, assim, um emaranhado de caminhos, de sentidos. Uma relação não mais hierárquica, mas em rede. Assim, o funcionamento rizomático, em vez de decalcar, cria um mapa. Isso porque, no rizoma, não há uma estrutura ou mesmo hierarquia entre os elementos. Ele funciona com suas conexões múltiplas. Por esse motivo, não há como estabelecer previamente as relações entre os elementos da rede.

Plano de imanência e ensino de filosofia

Pensando com Deleuze e Guattari, pode-se pensar o ensino de filosofia como o plano imanente a si mesmo, como um recorte no caos, que funciona como um plano de imanência, um mapa que torna possível criar um campo de visibilidade, pois essa é a função do corte: criar visibilidades. Criar um campo problemático que ataque o pensamento e que mova o pensar.

Conforme foi dito anteriormente, os problemas não podem ser exteriores ao plano de imanência, ou seja, o problema é uma problematização do próprio plano de imanência. Deleuze e Guattari (1997) auxiliam a recuperar a imanência da problematização, mostrando que é preciso traçar um plano de imanência para pensar nosso presente. Esse plano deve ser apresentado de modo a criar uma consistência problemática que dê suporte à criação de conceitos, uma vez que

[...] o plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento [...]. (p. 53)

Por esse motivo, ao pensar o ensino de filosofia, é necessário traçar o mapa do plano para criar os conceitos que o povoarão. Mapear o lugar em que serão produzidos os conceitos, o lugar onde os conceitos filosóficos vão funcionar/habitar. Nesse sentido, é preciso fazer um mapa do problema. É no plano de imanência que os conceitos serão enrolados e desenrolados, esse é o lugar em que os conceitos podem funcionar (Deleuze; Guattari, 1997).

Desse modo, é necessário, antes de tudo, pensar o ensino de filosofia como uma imanência para que se possa mapeá-lo. Isso quer dizer que é preciso partir dos problemas do ensino de filosofia, problematizar a própria imanência. Só então se poderá penetrar em outros problemas que são concernentes ao ensino de filosofia.

Recebido em 04.12.06

Aprovado em 22.10.07

Rodrigo Pelloso Gelamo, licenciado em filosofia pela USC de Bauru e mestre em filosofia pela FFC (UNESP-Marilia), é doutorando em Educação da FFC (UNESP-Marília).

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  • 1
    . Os conceitos de plano, recorte e caos serão mais detidamente desenvolvidos a seguir.
    2
    . Sobre esse assunto, ver também Cardoso Jr. (2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Recebido
      04 Dez 2006
    • Aceito
      22 Out 2007
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