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Temas e pesquisas educacionais: múltiplas perspectivas

EDITORIAL

Temas e pesquisas educacionais: múltiplas perspectivas

Quando nos debruçamos sobre o campo educacional, observamos a multiplicidade de aspectos que o constituem, exigindo dos estudiosos que dele se ocupam uma amplitude de horizontes de análise sempre surpreendente. Com a universalização do ensino prosseguida em grande parte do mundo ocidental, a partir do final da II Guerra Mundial, e a sua inserção nos mecanismos de reprodução social, tanto na sua vertente econômica quanto social e política, novas questões passam a integrar o campo de estudos e de pesquisas educacionais. Não apenas as políticas de Estado voltadas para garantir a implementação e o funcionamento dos sistemas nacionais de Educação se transformam em objeto de estudo, estabelecendo-se, então, articulações profícuas com o campo da ciência política e da economia, mas se introduzem novos temas como as diferentes modalidades de Educação, a questão de gênero, da inclusão social e política de etnias e segmentos sociais subordinados, a formação de professores que passa a ser abordada de forma sistemática numa multiplicidade de perspectivas teóricas, inaudita até então.

Nos anos 1990, com as grandes remodelações que marcaram os sistemas econômicos e políticos, comumente designadas pelo termo globalização, a miríade de problemas e objetos de estudo no campo da Educação novamente se amplia e se diversifica ao mesmo tempo em que velhas questões voltam a nos preocupar, talvez por serem elas inerentes à questão educacional. Referimo-nos aqui aos objetivos e ao papel que a Educação pode ou deve assumir nas sociedades contemporâneas; qual a relação existente entre educação e poder hoje; quais as possibilidades de pensarmos uma Educação que seja o fundamento de uma sociedade livre dos constrangimentos decorrentes das desigualdades sociais e políticas que caracterizam o mundo em que vivemos.

Neste volume da Revista Educação e Pesquisa, procuramos contemplar alguns dos novos problemas que têm sido objeto de estudo e pesquisa nos últimos anos, como o leitor poderá observar no conjunto de artigos aqui apresentados, da mesma forma que retomamos, na entrevista e no texto que a apresenta, os princípios da educação libertária cuja origem remonta ao século XIX, quando começam a se estruturar de forma mais sistemática as primeiras associações de trabalhadores lutando por seus direitos, inclusive o de criar instituições educacionais condizentes com suas aspirações políticas e filosóficas, nas quais a Educação para a liberdade assume um lugar central.

Os cinco primeiros artigos, embora vinculados a diferentes áreas do conhecimento, têm em comum o fato de seus autores pautarem suas reflexões em pesquisas realizadas recentemente e aportarem reflexões sobre as políticas educacionais contemporâneas. O artigo Estudos sobre Pedagogia da Alternância no Brasil: revisão de literatura e perspectivas para a pesquisa, de Edival Sebastião Teixeira, Maria de Lourdes Bernartt e Glademir Alves Trindade, por exemplo, apresenta um balanço das dissertações de mestrado e teses de doutorado, defendidas no Brasil entre 1969 e 2006, sobre Pedagogia da Alternância, no intuito de estabelecer um primeiro esboço do "estado da arte" nessa área de investigação.

Voltada aos interesses do homem do campo, a Pedagogia da Alternância consiste, conforme esclarece os autores, "numa metodologia de organização do ensino escolar que conjuga diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e espaços distintos, tendo como finalidade uma formação profissional. Esse método começou a tomar forma em 1935 a partir das insatisfações de um pequeno grupo de agricultores franceses com o sistema educacional de seu país, o qual não atendia, a seu ver, as especificidades da Educação para o meio rural". Embora utilizada no cenário nacional há cerca de quarenta anos (as primeiras experiências de tal pedagogia surgiram no final dos anos 1960 no estado do Espírito Santo, onde foram construídas as três primeiras Escolas Famílias Agrícolas) e apesar do expressivo número de instituições que adotam a Pedagogia da Alternância como proposta pedagógica, esse é um tema ainda pouco estudado no meio acadêmico brasileiro. O artigo procura caracterizar as temáticas de estudo mais recorrentes nessa escassa produção, a distribuição regional e institucional dos estudos já realizados, bem como os limites e as lacunas dos trabalhos existentes.

O artigo Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade de Flávia Schilling e Sandra Galdino Miyashiro, por sua vez, foi organizado a partir de reflexões decorrentes de uma pesquisa de mestrado. Ancorado nos pressupostos das análises clássicas sobre o estigma de Goffman, revistas e atualizadas pelas idéias de Bauman, o texto examina, de modo relevante, o estigma e o preconceito que cerca os filhos de presidiários na atualidade, ao mesmo tempo em que aporta elementos importantes para a necessária discussão de outras práticas estigmatizantes presentes na sociedade de um modo geral e, especialmente, no contexto educacional contemporâneo. O grande mérito do artigo é o de provocar um debate capaz de ampliar e renovar os termos habituais da discussão sobre a Educação Inclusiva. As provocativas perguntas feitas pelas autoras incitam a adoção de novos olhares para conhecidos problemas, tendo como um dos seus eixos a questão do preconceito que cerca aquele considerado 'diferente': "A atmosfera de inclusão que se instalou nessas últimas décadas e que exige a todo o momento um tratamento igualitário aos supostamente 'diferentes' de diversas ordens seria um refinamento da produção dos diferentes. Novas palavras, novas práticas? Ou antigas práticas (re)atualizadas? Incluir para observar, encaixar, colocar num ponto estratégico de observação dos desvios? Estaríamos, na escola inclusiva, preparados para lidar com ambigüidades, ambivalências, indefinições, 'diferenças', sem, contudo, estigmatizar, delimitar espaços, estabelecer fronteiras fixadas de forma concreta ou imaginária?". Sem dúvida, esses questionamentos nos ajudam a refletir sobre as possibilidades e os limites da ação educativa em uma sociedade na qual o estigma insiste em se reatualizar.

O texto Representações de estudantes universitários sobre alunos cotistas: confronto de valores, de Maria Suzana De Stefano Menin, Alessandra de Morais Shimizu, Divino José da Silva, Fabio Lorenzi Cioldi e Fabricio Buschini, explora um assunto bastante atual e controverso, que merece ser mais bem investigado no cenário nacional. Ao discutir os resultados de uma pesquisa sobre as opiniões de estudantes de uma universidade pública paulista (os dados foram coletados por meio de questionários aplicados em 403 estudantes de ambos os sexos de diferentes séries), o artigo traz uma contribuição empiricamente fundamentada ao debate sobre a política de cotas para negros e alunos de escola pública no Ensino Superior brasileiro. A pesquisa realizada objetivou investigar quais valores estão mais presentes na avaliação que universitários fazem a respeito de supostos usuários das cotas. Procurou-se identificar se suas representações sobre esses temas variavam conforme as possibilidades de ingresso à universidade, a saber: vestibular simples, cursinhos para alunos carentes e adoção de sistemas de cotas (para negros e alunos de escolas públicas).

Segundo os autores, os resultados dessa pesquisa aproximam-se, sob vários aspectos, de resultados de investigações já realizadas sobre cotas para negros na universidade brasileira: "Os resultados demonstraram que há uma rejeição às políticas relacionadas às cotas, uma vez que estas foram percebidas como mais ameaçadoras do que aquelas referentes ao vestibular e ao cursinho gratuito. Na grande parte das respostas dadas pelos alunos, fica evidente o conflito de valores: mérito versus igualdade compensatória. O vestibular, baseado apenas no mérito, é representado como o sistema mais justo para ingresso de alunos de escola pública e, principalmente de negros, na universidade. Valores como justiça, igualdade, esforço próprio, sobre os quais a maioria dos universitários respalda suas respostas contrárias às cotas, estão sendo questionados pelas políticas de ação afirmativa, o que indica que enfrentá-los é o grande desafio posto a essas políticas".

Alceu Ravanello Ferraro, no texto Direito à Educação no Brasil e dívida educacional: e se o povo cobrasse?, apresenta os resultados de uma pesquisa sobre um tema bastante original e pouco debatido: o conceito de dívida educacional. De acordo com o autor, esse conceito diz respeito ao montante decorrente da não realização do direito à Educação Fundamental completa (conforme estabelecido na Constituição de 1988). Nas suas palavras: "Mesmo os 17,6 milhões de brasileiros e brasileiras de 10 anos ou mais, que o Censo 2000 classificou como não sabendo ler e escrever (analfabetos), sabem muito bem, geralmente por experiência própria, o que é dívida e o que é ser devedor. Com efeito, basta uma única prestação não paga - de um eletrodoméstico, de um par de sapatos ou de qualquer outra mercadoria ou serviço - para se experienciar a condição de devedor e se apreender, na prática, o conceito de dívida. Agora, já não é de tão fácil entendimento para as pessoas comuns, do povo, o discurso de que elas são credoras de educação escolar do Estado. Ou então de que o Estado lhes deve tantos anos de escola(rização)".

A pesquisa baseou-se em informação censitária sobre o número de anos de estudo concluídos com aprovação levantados no Censo 2000 para calcular as proporções dessa dívida, chegando a seguinte estimativa: "nesse ano, o Estado brasileiro devia, aos 119,6 milhões de pessoas de 15 anos ou mais, a astronômica cifra de 325,5 milhões de anos de estudo não realizados na idade própria - uma média de quase três anos por pessoa". O texto traz também projeções sobre os investimentos necessários em termos de professores e salas de aula/turno-ano para o resgate da dívida. Por fim, aborda-se a questão dos atores ou agentes da efetividade do direito à Educação e dos instrumentos de exigibilidade que a legislação põe à disposição desses mesmos agentes.

O texto Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya, de Adriana Queiroz Testa, resulta de pesquisa sobre o tema das relações entre oralidade e escrita. O artigo discute a dimensão política da palavra escrita, especialmente nas sociedades ocidentais, destacando o seu papel na consolidação dos Estados Nacionais e na relação das metrópoles européias com os povos por ela colonizados. O trabalho traz contribuições e novas perspectivas para o estudo da educação escolar indígena, hoje na pauta das políticas educacionais, mas pouco discutidas com os povos indígenas. Como nos mostra a autora, passamos de uma noção evolutiva de cultura para o multiculturalismo de hoje, com a proliferação de políticas públicas e programas não governamentais voltados para as escolas indígenas, sem, contudo, considerarmos que a introdução da escrita, assim como a sua difusão, não apenas traz novas possibilidades de expressão e de formulação do pensamento, mas fundamentalmente afeta a forma como os indivíduos e os grupos se relacionam com o conhecimento e com a própria sociedade. Nesse sentido, a alfabetização nas escolas indígenas ultrapassa as questões metodológicas e assume uma dimensão antropológica que não se pode ignorar. Se os Parâmetros Curriculares Nacionais de Pluralismo Cultural indicam para os educadores da escola regular o desafio de incorporar as questões indígenas no currículo escolar de forma transversal, é preciso avaliar com seriedade a eficácia de tal empreendimento diante da realidade conflituosa, em que transcorrem as relações entre as populações indígenas e as populações não indígenas, na luta das primeiras por direitos básicos e mínimos. Refere-se ela ao fato de esse multiculturalismo, presente há pelo menos duas décadas nas plataformas de luta dos movimentos pela educação escolar indígena, ainda se pautar mais pela organização das diferenças e do diferente, elaboradas por instituições não indígenas, do que propriamente nas formas como os povos indígenas concebem a alteridade, tanto na esfera da relação dos homens entre si, quanto do homem com a natureza e do homem com o sobrenatural. Esperamos que esse artigo possa trazer subsídios para uma política mais condizente com as necessidades dessas populações tradicionalmente silenciadas na sociedade brasileira.

O artigo O papel da incerteza no planejamento de sistemas de educação a distância de Marianne Kogut Eliasquevici e Arnaldo Corrêa Prado Junior decorre de um recorte da pesquisa de doutoramento de um dos autores, na qual procurou "descrever a importância da análise de incertezas em programas de educação a distância, o que se acredita levar à redução da probabilidade de ocorrência de eventos indesejáveis e/ou inesperados em várias situações caracterizadas por ambientes complexos." A ocorrência de eventos de tal natureza resulta do número elevado de componentes envolvidos nessa modalidade de ensino: estudantes, corpo docente, professores, tutores, equipe técnica, instituição de ensino e infra-estrutura, além dificuldades e resistências que surgem no processo de implantação e gestão de programas de EA, devido a condicionantes socioculturais, divergências de opinião, juízos de valor etc. Esses elementos, de várias ordens, produzem incertezas que devem ser gerenciadas. Nessa perspectiva, os autores propõem estratégias para que os tomadores de decisão possam enfrentá-las com maiores chances de atingirem seus objetivos.

Os três artigos subseqüentes, embora apresentem uma significativa diversidade de temas e abordagens, relacionam-se mais diretamente ao campo da formação docente. O primeiro deles, intitulado Como se posicionam os professores perante a existência e utilização de jardins zoológicos e parques afins? Resultados de uma investigação é resultado de uma investigação realizada pelo pesquisador português António Almeida. O artigo aborda temática de grande interesse para aqueles que trabalham com a formação docente voltada à Educação Ambiental. Expõe as contribuições de um estudo que, inserido em investigação mais ampla, feita em Portugal, pretendeu verificar a incidência de concepções ambientalistas de teor antropocêntrico, biocêntrico e ecocêntrico em docentes dos diferentes ciclos de escolaridade e que se envolvem em projetos de Educação Ambiental. Para tal, foram entrevistados 60 docentes sobre vários assuntos relacionados com a temática ambiental, entre os quais o dos jardins zoológicos e parques afins.

O artigo O processo de constituição histórica das diretrizes curriculares na formação de professores de Educação Física, de autoria de Larissa Cerignoni Benites, Samuel de Souza Neto e Dagmar Hunger, por sua vez, apresenta as conclusões de um estudo descritivo, de caráter qualitativo, que procurou averiguar traços presentes nas políticas publicas de formação dos professores no âmbito da Educação Física, tendo como fonte primária as diretrizes curriculares veiculadas pela imprensa oficial no período de 1939 a 2004.

No ensaio A pedagogia científica de Bachelard: uma reflexão a favor da qualidade da prática e da pesquisa docente, Dirce Mendes da Fonseca advoga a favor das contribuições de Gaston Bachelard para a Educação de um modo geral e para a formação de professores de um modo particular: "A transformação da prática docente implica em mudança de concepção do próprio trabalho pedagógico, muitas vezes conservador, centrado em relações autoritárias, na reprodução e manutenção do conhecimento acrítico e deslocado da realidade e em métodos positivistas-racionalistas. É, nesse sentido, que a obra de Bachelard é atual e instigante, tanto do ponto de vista epistemológico como do ponto de vista metodológico". É por essa razão que ela examina os referenciais que fundamentam a obra de Bachelard (focalizando especialmente a discussão epistemológica de seus postulados) com o objetivo de apreender o conceito de pedagogia científica, bem como discutir metodologicamente a apreensão dessa pedagogia na prática científica-docente.

Foi preparada para este número a tradução do artigo Esquisse du programme scientifique d'une sociologie psychologique (Esboço do programa científico de uma sociologia psicológica), de autoria de Bernard Lahire, pesquisador francês que tem dado impulso e contribuição significativa à sociologia educacional e às pesquisas sobre os processos de constituição dos indivíduos.

Com seu conhecido estilo provocativo, nesse texto, o autor apresenta as bases teóricas e metodológicas de um programa ambicioso e instigante, capaz de renovar o debate nas ciências sociais da contemporaneidade. Nas palavras de Lahire: "O programa científico de uma sociologia psicológica viria preencher o vazio deixado por todas as teorias da socialização ou da inculcação (como a teoria do habitus ou a teoria da 'construção social da realidade', por exemplo) que se referem retoricamente à 'interiorização da exterioridade' ou à 'incorporação das estruturas objetivas' sem jamais verdadeiramente lhes 'materializar' pela descrição etnográfica (ou historiográfica) e pela análise teórica. Por muito tempo preocupados principalmente com a questão da reprodução social pela família, pela escola e as diferentes instituições culturais e sociais, os sociólogos se satisfaziam por constatar uma desigualdade face às instituições legítimas (escolas e outras instituições culturais) e/ou de uma herança cultural e social intergeracional (família). Em síntese, pode-se dizer que devido à reiterada insistência sobre o 'isso se reproduziu', acabou-se por negligenciar o 'o que se reproduziu' e o 'como, segundo quais modalidades, isso se reproduziu'. Resultado: uma teoria da reprodução 'plena', mas uma teoria do conhecimento e dos modos de socialização 'vazia'. O que é precisamente a escola? Quais são os vínculos de interdependência especificamente 'escolares'? O que se 'transmite' escolarmente? Como essa transmissão opera? As questões se colocam analogamente do lado da família e de toda instituição cultural?" As questões discutidas pelo autor bem como suas instigantes proposições teóricas representam uma importante contribuição para o debate das ciências humanas na contemporaneidade.

A entrevista que encerra este volume, com o título Socialismo libertário, educação e autodidatismo: entrevista - depoimento de Jaime Cubero, foi realizada em 1989, com esse trabalhador anarquista autodidata de origem espanhola que foi um dos principais responsáveis pelo Centro de Cultura Social, fundado em 1933 no bairro do Brás, em São Paulo. A entrevista é precedida de um texto de Antonio Valverde que situa o leitor nos debates presentes no interior do movimento operário durante o século XIX e primeiras décadas do século XX, no qual se inserem as questões da educação libertária, do autodidatismo e da autonomia intelectual.

O objetivo de publicarmos este material é trazer para os leitores de Educação e Pesquisa temas pouco discutidos nos meios acadêmicos brasileiros além de recuperar uma dimensão esquecida da história da Educação no Brasil, constituída por práticas e propostas educativas muito singulares que se desenvolveram no meio operário (especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro), a partir da vinda de imigrantes italianos, espanhóis e alemães no final do século XIX. Esses imigrantes de tradição libertária introduziram, no Brasil, a luta por uma educação desvinculada tanto das escolas confessionais e/ou vinculadas ao patronato quanto das escolas estatais.

As primeiras eram vistas como agentes do obscurantismo imposto à população trabalhadora, calcado em todo tipo de preconceito, no servilismo às hierarquias e na aceitação das desigualdades socioeconômicas como decorrentes de uma ordem transcendental. As segundas, por sua vez, eram entendidas e combatidas como decorrentes da ação estatal no âmbito da formação das novas gerações, visando à legitimação da nova estrutura de poder que começa a se estruturar em fins do século XVIII quando então se organizava na forma de Estado Nacional. Nessas ações educacionais, o Estado moderno buscava forjar na população a chamada consciência nacional, na qual todos deveriam se reconhecer independentemente das classes sociais as quais pertenciam. Ao mesmo tempo, tratava-se de formar trabalhadores para a burocracia estatal nas suas várias vertentes, além de força de trabalho e de especialistas diversos para um mercado de trabalho que começava a se diversificar em decorrência da nova divisão social do trabalho. Na realidade, a escola laica estatal ou patronal, do ponto de vista anarquista, apenas substituía Deus pelo Estado, a virtude cristã pelo dever cívico, a religião pelo patriotismo, a obediência e a submissão ao rei, ao clero e ao autocrata pelo acatamento ao funcionário, ao proprietário e ao Estado patrão.

Essa escola, considerada por muitos liberais da época como fundamental para a consolidação das democracias modernas, era já nesse momento questionada pelos anarquistas. Na entrevista de Jaime Cubero, que viveu na prática os princípios que defendeu durante toda sua vida de trabalhador e de ser político, dimensão da qual jamais abdicou, evidenciam-se as dificuldades enfrentadas pelos anarquistas no Brasil para instituir uma outra educação que fosse verdadeiramente emancipatória. Pautada pela solidariedade entre os alunos e entre alunos e professores, unidos na autogestão das instituições formativas, cultivando nos primeiros o desejo de aprender e a responsabilidade pessoal pelas escolhas intelectuais e práticas que haveriam de assumir no decorrer de suas vidas, essa escola foi interditada nos anos 1920 pelo poder de Estado e silenciada pelos partidários de um projeto de sociedade que se forjava na recém-criada União Soviética, onde todo o poder de decisão era concentrado no Estado e no Partido que o controlava.

Essa entrevista nos mostra a possibilidade de tornar a educação das novas gerações instigante o suficiente para manter na criança e no jovem o mais vivo interesse pelo aprender com o qual nascem, e a escola que conhecemos, em geral, desestimula e destrói, cultivando a revolta e a sabotagem aos processos de aprendizagem. Essa não é uma questão central a ser explorada nos estudos acerca do "que vai mal na educação brasileira"? Não valeria a pena pensar que a disciplina, além da forma como se ensina e o que se ensina, assim como as relações sociais sobre as quais se estrutura a escola, se tornaram inaceitáveis para grande parte das crianças e dos jovens brasileiros, por razões que deveríamos nos esforçar por conhecer? Nessa entrevista e no texto que a apresenta, recupera-se a dimensão política dos processos formativos aos quais damos o nome de educação. Confere-se ao termo poder político um significado muito distinto do corrente no qual é pensado inapelavelmente como decorrente e/ou reduzido ao conceito de Estado. Segundo Proudhon, um dos teóricos e revolucionários que fundamentam o pensamento de Jaime Cubero, poder político é um atributo que caracteriza qualquer agrupamento humano. Esse poder diz respeito à capacidade de os homens instituírem a Regra e fazê-la observada. Regra coletiva que nos faz adentrar no mundo da Cultura. Nessa perspectiva, o político não é apenas o fundamento do social, mas o elemento que enlaça natureza e cultura, subtraindo-nos dos ditames do instinto. Sendo o fundamento do social, usurpá-lo de cada um de nós e nos negar a condição de seres da Cultura. Certamente, não existem paraísos humanos livres da interdição, mas temos nós o direito de conhecer e participar dos processos nos quais se definem as regras nas sociedades em que vivemos. Até mesmo porque é fundamental que entendamos quais regras são essas, o que as faz necessárias e como devemos cuidar para que sejam observadas. É essa uma dimensão central do processo social ao qual damos o nome de Educação. Esperamos que o conjunto de textos apresentados neste número traga contribuições para o estudo e o exame crítico dessa complexa área e, principalmente, instigue a adoção de novas abordagens e perspectivas na investigação educacional.

Lúcia Bruno

Teresa Rego

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2008
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