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Reformas educativas, viagem e comparação no Brasil oitocentista: o caso de Uchoa Cavalcanti (1879)

Resumos

Neste artigo, analisamos a viagem de Uchoa Cavalcanti (Inspetor de Instrução Pública da Província de Pernambuco) à Corte e às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo em 1879, por meio do relatório oficial dessa viagem, apresentado ao presidente da Província, e publicado no mesmo ano em Recife. Ao ler esse documento, procuramos observar as condições gerais da viagem e da narrativa construída pelo inspetor como estratégia para discutir as representações que produz, com especial destaque às relativas à Corte e à Província do Rio de Janeiro. Nesse sentido, analisamos as fontes manejadas pelo autor, articulando-as com o que é produzido pelo seu testemunho e experiência pessoal. O relatório, intitulado Instrução Pública - estudo sobre o sistema de ensino primário e organização pedagógica das escolas da Corte, Rio de Janeiro e Pernambuco possui 293 páginas, distribuídas em uma introdução, quatro partes e uma conclusão. No conjunto, o inspetor procura levar a bom termo seu objetivo de contrastar a ciência que possui com aquilo que observa in loco. Nesse exercício, o inspetor constrói uma narrativa que ajuda a problematizar teses recorrentes na historiografia (geral e da educação) que estabelecem a Corte e a província do Rio de Janeiro como modelos para a nação. Com base nesse relatório, a comparação intranacional se põe como exigência para fertilizar reflexões relativas à variedade das formas escolares em funcionamento no século XIX, ajudando a matizar a tese de um poder vertical que teria organizado uma única forma para o Brasil e para suas escolas.

História da educação; Comparação; Viagens


We analyze in this article the journey of Uchoa Cavalcanti (Inspector of Public Instruction of the Province of Pernambuco) to the Court and Provinces of Rio de Janeiro and São Paulo in 1879, based on the official report of this trip presented to the president of the Province and published in that same year in Recife. When reading this document, we paid attention to the general conditions of the journey and to the narrative constructed by the inspector as a strategy to discuss the representations that he produces, with special emphasis on those related to the Court and Province of Rio de Janeiro. To such end, we analyzed the sources utilized by the author, articulating them with what is produced by his personal testimony and experience. The report, entitled "Public instruction - study on the system of primary teaching and pedagogical organization of the schools of the Court, Rio de Janeiro and Pernambuco" has 293 pages distributed along an introduction, four parts, and a conclusion. As a whole, the inspector attempts to carry out his objective of contrasting the knowledge that he has with what he observes in loco. In this exercise, the inspector builds a narrative that helps to problematize recurrent theses in the historiography (general and of education) that establish the Court and the province of Rio de Janeiro as models for the nation. On the basis of this report the comparison within the country becomes necessary to fertilize reflections related to the variety of school forms at work in the 19th century, contributing to temper the thesis that a vertical power organized a single form for Brazil and her schools.

History of education; Comparison; Journeys


ARTIGOS

Reformas educativas, viagem e comparação no Brasil oitocentista: o caso de Uchoa Cavalcanti (1879)

Educational reforms, journey and comparison in the 1800s Brazil: the case of Uchoa Cavalcanti (1879)

Alessandra Frota Martinez de Schueler; José Gonçalves Gondra

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Correspondência Correspondência: José Gonçalves Gondra Rua Olegário Mariano, 276/106 20510-210 - Rio de Janeiro - RJ E-mail: gondra@oi.com.br

RESUMO

Neste artigo, analisamos a viagem de Uchoa Cavalcanti (Inspetor de Instrução Pública da Província de Pernambuco) à Corte e às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo em 1879, por meio do relatório oficial dessa viagem, apresentado ao presidente da Província, e publicado no mesmo ano em Recife. Ao ler esse documento, procuramos observar as condições gerais da viagem e da narrativa construída pelo inspetor como estratégia para discutir as representações que produz, com especial destaque às relativas à Corte e à Província do Rio de Janeiro. Nesse sentido, analisamos as fontes manejadas pelo autor, articulando-as com o que é produzido pelo seu testemunho e experiência pessoal. O relatório, intitulado Instrução Pública - estudo sobre o sistema de ensino primário e organização pedagógica das escolas da Corte, Rio de Janeiro e Pernambuco possui 293 páginas, distribuídas em uma introdução, quatro partes e uma conclusão. No conjunto, o inspetor procura levar a bom termo seu objetivo de contrastar a ciência que possui com aquilo que observa in loco. Nesse exercício, o inspetor constrói uma narrativa que ajuda a problematizar teses recorrentes na historiografia (geral e da educação) que estabelecem a Corte e a província do Rio de Janeiro como modelos para a nação. Com base nesse relatório, a comparação intranacional se põe como exigência para fertilizar reflexões relativas à variedade das formas escolares em funcionamento no século XIX, ajudando a matizar a tese de um poder vertical que teria organizado uma única forma para o Brasil e para suas escolas.

Palavras-chave: História da educação - Comparação - Viagens.

ABSTRACT

We analyze in this article the journey of Uchoa Cavalcanti (Inspector of Public Instruction of the Province of Pernambuco) to the Court and Provinces of Rio de Janeiro and São Paulo in 1879, based on the official report of this trip presented to the president of the Province and published in that same year in Recife. When reading this document, we paid attention to the general conditions of the journey and to the narrative constructed by the inspector as a strategy to discuss the representations that he produces, with special emphasis on those related to the Court and Province of Rio de Janeiro. To such end, we analyzed the sources utilized by the author, articulating them with what is produced by his personal testimony and experience. The report, entitled "Public instruction - study on the system of primary teaching and pedagogical organization of the schools of the Court, Rio de Janeiro and Pernambuco" has 293 pages distributed along an introduction, four parts, and a conclusion.

As a whole, the inspector attempts to carry out his objective of contrasting the knowledge that he has with what he observes in loco. In this exercise, the inspector builds a narrative that helps to problematize recurrent theses in the historiography (general and of education) that establish the Court and the province of Rio de Janeiro as models for the nation. On the basis of this report the comparison within the country becomes necessary to fertilize reflections related to the variety of school forms at work in the 19th century, contributing to temper the thesis that a vertical power organized a single form for Brazil and her schools.

Keywords: History of education - Comparison - Journeys.

Viagem e comparação

A viagem, como técnica de investigação e conhecimento, como prática de observar, experimentar, comparar e produzir conhecimento sobre o outro, aquilo que se observa, tem se constituído uma experiência significativa na trajetória de vários homens e mulheres, em tempos e espaços diversos, inclusive na de educadores envolvidos com os sistemas de instrução, as escolas e os problemas da Educação.

No decorrer do século XIX, professores, diretores de escola, inspetores de ensino, médicos e políticos envolvidos com projetos educacionais buscaram nas viagens os "códigos de civilização" e o incremento de seu capital intelectual. Educadores e autoridades percorreram terras estrangeiras, sobretudo Europa e Estados Unidos, participando inclusive como representantes do Império do Brasil nas celebradas Exposições Internacionais, que foram as vitrines do progresso e da civilização (Kulhmann Jr., 2001). Conhecer de perto cidades e países considerados avançados em matéria de organização do ensino representava a possibilidade de se apropriar de idéias e modelos que passariam a servir como norteadores dos projetos voltados para a construção de uma grande nação (Chamon; Faria Filho, 2007; Gondra 2007; Schueler, 2007).

Experiências de autoformação, de conhecimento, de aprendizagem, orientada e presidida por motivações específicas, as viagens pedagógicas funcionavam, sobretudo, como meio de produção de um discurso de mediação cultural no qual se pode perceber o uso de variadas estratégias de apropriação, de (re)interpretação e de comparação de idéias, saberes e modelos pedagógicos em circulação nos ditos países civilizados (Chamon, 2008). Como argumenta Vidal (2005), o final dos oitocentos caracterizou-se pela intensa circulação de objetos, pessoas e de modelos culturais, o que nos leva a considerar a hipótese de uma história conectada na perspectiva proposta por Subrahmanyan e Gruzinski (apud Vidal, 2005). Tal perspectiva possibilita aos historiadores da Educação a busca pelo entendimento das conexões continentais e intercontinentais que as histórias nacionais estabelecem em múltiplas escalas (local, regional, nacional e transnacional)1 1 . A respeito das escalas de observação nas pesquisas em Ciências Sociais, cf. Revel, 1998. .

Nessa direção, tomando a viagem, simultaneamente, como dispositivo comparativo e como modo privilegiado de reflexão acerca da circulação de idéias, projetos e modelos educacionais entre regiões brasileiras, analisamos aqui a viagem que João Barbalho Uchoa Cavalcanti, Inspetor de Instrução Pública da Província de Pernambuco, realizou à Corte e às Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo no ano de 1879. Para tanto, trabalhamos com os "restos" dessa experiência, contida na "peregrinação singular da pluma e da mente2 2 . Para pensar os relatos de viagens como gênero literário e da regularidade dessa prática, em especial na Europa e na Espanha, ver Tobar; Elduyaen, 2005. Para o caso do Brasil, ver Leite, 1997; Toussant-Samson, 2005; dentre outros. " do viajante, isto é, no relatório oficial dessa viagem, intitulado Instrução Pública - estudo sobre o sistema de ensino primário e organização pedagógica das escolas da Corte, Rio de Janeiro e Pernambuco. Esse relato, apresentado ao presidente da Província, o juiz Adelino Antonio de Luna Freire3 3 . Missão realizada na gestão de Adolpho de Barros Cavalcante de Lacerda, iniciada em 20/05/1878 e encerrada em 18/9/1879. Lacerda foi sucedido por Dr. Adelino Freire, a quem o relatório é encaminhado em dezembro de 1879. , foi publicado em Recife, no mesmo ano, pela Typographia de Manoel Figueiroa de Faria Filhos.

Ao ler esse documento, procuramos observar as condições gerais da viagem e da narrativa construída pelo inspetor como estratégia para discutir as representações que produz, com especial destaque às relativas à Corte e à Província do Rio de Janeiro. Nesse sentido, analisamos as fontes manejadas pelo autor, articulando-as com o que é produzido pelo seu testemunho e experiência pessoal. Assim, a abordagem privilegia a discussão de questões como: a difusão e a circulação interprovincial de idéias e modelos pedagógicos; as apropriações e as representações construídas a respeito das escolas visitadas, de seus professores e das iniciativas pedagógicas observadas; e ainda os efeitos comparativos que produz em relação à sua própria experiência como inspetor de instrução pública em Pernambuco.

A narrativa

Esse relatório possui 293 páginas, distribuídas em uma introdução, quatro partes e uma conclusão. Na introdução, o inspetor oferece um conjunto de informações que permite compreender motivações, destino, duração, método de trabalho e sua própria escrita. Na primeira parte, dedica-se ao exame da organização pedagógica, aspecto repartido em um conjunto de aspectos privilegiados pelo Dr. Cavalcanti: escolas infantis, primárias, asilos, cursos noturnos, escolas dominicais, bibliotecas, museus, caixa econômica escolar, conferências pedagógicas e planos de ensino. Na segunda parte, a mais extensa, com 133 páginas, é dado destaque aos processos e métodos de ensino. Na penúltima parte, ganha visibilidade a comparação relativa ao ensino normal primário e, por fim, uma apreciação geral dos dados estatísticos dos lugares analisados integra a 4ª parte. Ao concluir, como aconselhava os guias retóricos da época4 4 . Cf., por exemplo, o manual do Padre Roquette (Schwarcz, 1997). , o autor mescla humildade e erudição: trabalho "incompleto e imperfeito" vem legitimado por autoridades como o cardeal Diepenbreck, Jules Simon, Altemeyer e Chaning, que integram o final da "narrativa folheada" do erudito inspetor geral de instrução de Pernambuco.

As razões da viagem foram explicitadas na introdução do texto: mesclava interesses públicos e privados. Entre os primeiros, a justificativa primordial para a viagem se refere à licença com vencimentos pelo período de três meses com o intuito de "visitar escolas de outra província que se ache adiantada" e "estudá-la em seu funcionamento" para analisar os "melhoramentos e progressos e adotar os aperfeiçoamentos" na província pernambucana5 5 . O requerimento foi dirigido ao Presidente da Província de Pernambuco em 22/03/1879, tendo sido prontamente acolhido em reposta de 24/03/1879, o que tornou a viagem uma missão oficial, incluindo o dever de elaboração do relato circunstanciado da "excursão escolar", como a denominava o inspetor Uchoa Cavalcanti. . No aspecto particular, exigências de saúde e tratamento médico obrigavam a viagem à Corte e às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo.

A motivação da "excursão escolar" relatada pelo inspetor reitera a perspectiva da viagem, tanto ao exterior quanto no interior do próprio país, como instrumento de produção de um discurso de mediação e comparação, por meio do qual se atenderiam aos interesses da administração da instrução pública provincial. Interessava a melhoria dos serviços educacionais, acompanhando o progresso do ensino nas regiões consideradas "avançadas", como a Corte - capital do Império - e as Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Para tanto, não bastava manejar os documentos oficiais, já familiares ao inspetor por força do cargo ocupado. Não bastava conhecer as leis, os programas, os regulamentos, os regimentos das escolas e as estatísticas que circulavam entre as províncias. Ao contrário, segundo ele, era preciso ir além dessas fontes, problematizá-las, posto que a "experiência" demonstrava o quanto o estudo exclusivo das leis poderia levar a "falsas apreciações": os programas escolares, na prática, muitas vezes se alteravam e, outras vezes, eram postos inteiramente de lado pelos agentes da prática educativa. Por essas razões, para analisar a realidade das coisas, a viagem e a visitação escolar eram justificadas, posto que permitiam a percepção dos modos de ensinar, dos processos e métodos adotados para cada uma das disciplinas, da escolha e dos usos de livros, compêndios e outros materiais, bem como a verificação dos "pontos fracos" e as dificuldades encontradas no cotidiano escolar. Com isso, cabe indagar: teria sido possível, por meio do dispositivo da viagem, capturar o "modo de funcionar do sistema orgânico da escola"? (Cavalcanti, 1798, p. 5). Teria sido possível vislumbrar aspectos da cultura escolar em movimento na Corte e nas províncias visitadas? Como os aspectos do processo de escolarização aparecem nas práticas de registro e escrita circunstanciada do inspetor? Que lugar assumem em sua narrativa?

Um exame detalhado do relatório do inspetor permite observar que ele dedica uma parte específica do relatório ao exame da organização pedagógica.

A organização pedagógica

Na primeira parte do relatório, denominada "Organização Pedagógica", o inspetor privilegiou a análise da constituição dos sistemas públicos de ensino nas localidades estudadas, recorrendo às fontes oficiais, como a legislação, os regulamentos e os regimentos escolares. A narrativa histórica que estabelece institui a Lei Geral de Ensino de 15/10/1827 como marco significativo para a instrução no Império, inclusive em Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Assim como parte significativa da historiografia da educação, Uchoa Cavalcanti considerou essa lei como uma das primeiras tentativas de impor um programa nacional de instrução elementar ao determinar que nos povoados e nas vilas mais populosos fossem estabelecidas escolas, uma para cada sexo, destinadas à instrução elementar da população livre. O programa da instrução primária comum consistia no ensino de doutrina cristã, leitura - inclusive da Constituição do Império -, escrita e rudimentos de aritmética. No entanto, o currículo relativo às aulas femininas sofria limites no ensino de álgebra, geometria, gramática, história e geografia pátrias, ao mesmo tempo em que incluía o ensino de trabalhos manuais de agulha, bordados e costura.

No que se refere à Pernambuco, esse modelo curricular vigorou até que, por força do Ato Adicional de 1834 e da autonomia provincial na regulamentação do ensino primário e secundário, outros dispositivos legais modificaram os programas e as normas da instrução, alargando, em alguns casos, os currículos6 6 . A Lei nº 369, de 14/05/1855, introduziu na escola primária o ensino de História e Geografia do Brasil e da Província de Pernambuco. , introduzindo graus e classes ao ensino primário7 7 . O Regimento Interno das Escolas Primárias, de 30/07/1859, dividiu as escolas primárias em 1º e 2º graus, estabelecendo 8 classes de ensino, regidas pelo professor, seus adjuntos e decuriões. , retornando à organização de grau único8 8 . A Lei nº 598, de 13/05/1864, retomou a organização das escolas primárias, consideradas todas de grau único (primeiro), conforme a legislação de 1827. ou estabelecendo novos graus, saberes e ordenação de classes9 9 . O regulamento de 27/11/1874 alargou o currículo escolar e novo regulamento de 07/04/1879, de autoria do Inspetor Geral Uchoa Cavalcanti; introduziu inovações como "lições de coisas e instrução moral e cívica, por meio de leituras apropriadas" (Cavalcanti, 1798, p. 11); além de reorganizar o ensino primário em três graus: elementar, médio e complementar. , num abundante "prurido de reformas", característica da política de instrução nas províncias e na Corte como, aliás, observou o próprio inspetor.

No caso da Corte, o relator privilegiou, como marcos reordenadores da instrução primária e secundária, o Regulamento de 1874 (Decreto nº 6.479, de 18/01/1877) e a Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247, de 19/04/1879), dispositivos que teriam derrogado a Reforma de Couto Ferraz de 185410 10 . Para análise da reforma de 1854, ver Gondra, 2003; e Martinez, 1997. . No primeiro caso, a mudança principal apontada pelo inspetor foi a introdução do ensino de noções gerais de direitos e deveres do homem e do cidadão, bem como de economia social (para os meninos) e economia doméstica (para as meninas). Já a reforma de 1879, estabelecida por decreto e não aprovada pela Câmara dos Deputados, adotou novas disciplinas e saberes para a escola primária, como as noções de lavoura e horticultura, prática manual de ofícios para os meninos, sistema de pesos e medidas e lições de coisas.

No que se refere aos pontos que o Inspetor pernambucano pôde ver na Capital do Império, as escolas municipais mantidas pela Câmara Municipal, a Escola de São Sebastião e de São José, erigidas na década de 1870, foram positivamente destacadas não apenas pelo aspecto moderno e grandioso da arquitetura (os "palácios escolares"), mas pela adoção de novos métodos e programas de ensino, nos quais surgiam alguns elementos da modernidade pedagógica (Nunes, 2000): a adoção do ensino seriado e graduado em três anos ou séries, das classes simultâneas e da forma escolar organizada sob um novo modelo com novos espaços, tempos e modos de funcionamento escolar. Modernidade que também implicava em um único prédio escolar, específico para a instrução de crianças de ambos os sexos; vários professores, homens e mulheres, inclusive um especialmente destinado ao ensino de música; a presença de uma hierarquia na gestão do ensino e de novas funções no espaço escolar (diretor, inspetor, professor, bedéis, servente, jardineiro). A modernidade pedagógica, construída na dinâmica das tensões entre o velho e o novo, o antigo e o moderno, mesclava-se com as práticas religiosas e com ensino de doutrina e moral cristãs. A título de exemplo, na capelinha na Escola de São José, havia a missa dominical e as lições morais de textos clássicos eram lidos e explicados aos meninos, logo depois da missa, pelo professor público Candido de Matheus Faria Pardal.

No entanto, apesar de apresentar algumas novidades, a Corte não lhe parecera tão desenvolvida como esperava, tendo em vista a sua importância como centro político do império e como capital do país. Em relação aos métodos e processos pedagógicos e à organização escolar, alegou não ter encontrado nada que já não lhe fosse familiar e conhecido na Província de Pernambuco, por meio da circulação de informações, leis e projetos educativos inscritos nos relatórios oficiais e regulamentos, bem como nos jornais e nas publicações estrangeiras.

Para a Província do Rio de Janeiro, o inspetor destacou como fontes oficiais o Regimento interno das escolas primárias de 14/04/1873, o qual dividia o ensino primário em três classes, reduzindo-se o programa à leitura, escrita, doutrina cristã e aritmética; e a Deliberação de 01/08/1876, que conferiu "permissão" aos professores de lecionar noções de história e geografia pátrias, cosmografia, geometria plana e desenho linear. A sua análise, bastante crítica em relação à província do Rio de Janeiro, revelou desaprovação e decepção no que se refere à exigüidade dos currículos e programas escolares. Avaliação que só não foi pior do que a que fez para o estado da instrução em São Paulo: tão "acanhado e pobre", que se resumia a "esse ler, escrever e contar, gramática e catecismo. (sic)" (Cavalcanti, 1798, p. 37). Nessa província, bem como na do Rio de Janeiro, o ensino de disciplinas como as ciências físicas e naturais, instrução cívica, história e geografia pátrias era facultativo, apesar de a infância escolar ter direito ao acesso a tais conhecimentos na escola primária.

De acordo com o relator, a escola era um poderoso instrumento de civilização e deveria proporcionar à infância e aos futuros cidadãos uma instrução larga, que viabilizasse o acesso a conhecimentos úteis para a vida prática e habilitasse os indivíduos para o cumprimento de seus deveres cívicos. Nessa perspectiva, nem a Corte nem o Rio de Janeiro e, muito menos, São Paulo apresentavam resultados promissores, não havendo motivo para que Pernambuco as invejasse em matéria de instrução11 11 . "... é com pesar que se vê, em duas províncias tão importantes e florescentes como são as do Rio de Janeiro e São Paulo, achar-se reduzido o plano de estudos nas aulas primárias oficiais, bem como não ter a extensão que devera nas escolas da Corte" (Cavalcanti, 1879, p. 36). :

Em resultado de minha excursão escolar, trouxe a convicção de que minha província nada tem que invejar quanto ao sistema e mecanismo da instrução pública ou quanto à organização pedagógica e regime de ensino primário oficial. (Cavalcanti, 1879, p. 78)

Ao realizar tal diagnóstico, o inspetor geral de instrução de Pernambuco produziu um discurso mediador que, mais do que revelar a realidade das coisas como pretendia, indicava determinados lugares sociais de pertencimento e a sua posição política como autoridade gestora da instrução em uma região do país. Ao avaliar a organização pedagógica dos sistemas de ensino observados, o relator utiliza lentes singulares, constrói representações mediadas por relações de poder que se inscrevem nas suas práticas de escrita. Desse modo, articulou a avaliação das províncias e da Corte a partir de sua própria experiência na Província de Pernambuco, buscando legitimar as iniciativas que coordenava e, com isso, reservar para si e sua província um lugar destacado em matéria de instrução no concerto interprovincial.

É nesse sentido que o autor salientou a distribuição dos programas escolares em Pernambuco e, por meio das Conferências Pedagógicas, realizadas em abril de 187812 12 . Para o caso das Conferências da Corte, ver Borges; Gondra, 2005. , os debates que teria incentivado entre os professores primários da Província a respeito da instrução primária. Ao descrever e analisar a proposta de um dos professores proferida na dita Conferência, o inspetor chamou a atenção para a reorganização curricular realizada em sua gestão, o Regulamento de 07/04/1879, segundo ele, bastante próxima da proposição de Vicente de Moraes Mello, professor em Pernambuco. Por esse decreto, as escolas primárias foram mantidas em três graus de ensino: o elementar, com duração de cerca de dois anos; o médio ou intermediário; e o superior, "grau máximo de instrução", para aquelas crianças que alcançassem maior "capacidade intelectual". Ao mesmo tempo, introduzia as lições de coisas, a graduação do ensino primário e a co-educação dos sexos e, como projeto, previa a construção de edifícios apropriados às escolas primárias. Defendia, pelas suas palavras, o "programa da pedagogia moderna": ordem e seguimento natural das matérias, sistema integral, graduado e paralelismo entre as matérias de ensino.

Pernambuco também ganhava destaque pelo suposto pioneirismo na implantação das escolas noturnas freqüentadas por adultos e filhos de aprendizes e artistas, segundo ele, existentes desde 1866, dois anos antes do que nas demais províncias13 13 . A respeito das escolas noturnas da Corte, ver Costa, 2007. . Salientava ainda a sua própria atuação como inspetor, tradutor e compilador de métodos e livros pedagógicos (como as lições de coisas de Mme. Carpentier), artigos em revistas estrangeiras (exemplificou com a tradução de texto sobre as Caixas Econômicas Escolares existentes na Suíça), entre outros trabalhos no campo educacional.

O funcionamento das escolas

Na segunda parte do relatório, entretanto, a avaliação de Uchoa Cavalcanti sobre a educação escolar na Corte e nas Províncias visitadas apresentou matizes, na medida em que produziu discursos mais positivos em relação ao que observou quanto aos métodos de ensino das disciplinas escolares, as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores e o cotidiano em algumas instituições, destacando-se, entre elas, a experiência de dois dias na escola do professor Manoel José Pereira Frazão, na freguesia urbana da Lagoa, na Corte.

Desde 1863, o professor Frazão utilizava o método disciplinar que denominava de moral e cívica, por meio do qual, de acordo com Uchoa Cavalcanti, ensinava aos meninos elementos de moral política e social, sedimentando, via escola, a aprendizagem dos deveres e os encargos do cidadão14 14 . Sobre o sistema de moral e cívica do professor Frazão, ver Schueler, 2005). . O inspetor pernambucano afirmou que já conhecia o referido método em razão da leitura dos relatórios ministeriais e das fontes oficiais de instrução pública na Corte, porém desconfiava de sua eficácia prática. As suas dúvidas, no entanto, se dissiparam com a visita e a observação in loco da proposta. Argumentou que o sistema usado por Manoel Frazão não consistia numa "utopia" ou "esquisitice", mas ao contrário, mostrava-se "perfeitamente adequado às crianças", posto que era bem combinado com as demais disciplinas escolares, trazendo magníficos resultados para a educação dos meninos.

Nesse aspecto, o relator realizou veemente defesa da educação moral e cívica não como uma disciplina teórica específica, mas como uma prática educativa, uma experiência a ser vivenciada pelos alunos na escola, por meio de ações pedagógicas como aquelas observadas na escola da Corte. Para fundamentar seus argumentos, tecia considerações bastante positivas sobre o "sistema Frazão", chamando atenção para os seguintes aspectos: a adoção das caixas econômicas escolares; a premiação aos "bons alunos" em moeda corrente; a criação de normas e regras pelos próprios alunos, por meio da organização da escola como um pequeno Estado, no qual funcionavam as leis e instituições imperiais (a Constituição, o Código Penal, o Parlamento, o "jogo dos partidos na escola"); a Festa da Caridade, quando ocorria a distribuição de donativos aos pobres; e finalmente a leitura semanal de textos de moral, conduzida pelo mestre15 15 . Refere-se ao livro O Caráter, de Samuel Smiles. .

De acordo com o inspetor, a educação moral e cívica dos meninos era também proporcionada, tradicionalmente, pela leitura corrente da "Constituição" e seu uso para o ensino de gramática e lógica, como observou em algumas escolas da Província de São Paulo. Em muitas escolas, verificou o uso de métodos de memorização de sentenças morais e provérbios, reiteradamente cantados ou lidos pelos alunos. Entretanto, em sua opinião, para a eficácia do ensino de moral e civismo, seria mais adequado que os professores fizessem uso mais largo da preleção, da exposição moral de lições e da contação de histórias aos meninos, bem como adotassem comentários simplificados da Constituição voltados especificamente para consumo escolar, além de textos contendo regras e normas de civilidade e convívio social.

O inspetor exemplificou as obras que poderiam ser usadas: Cathecismo brasileiro, de Ciriaco dos Santos; Cathecismo Constitucional, de Demoplhilo; Entretenimento sobre os deveres de civilidade, de Guilhermina Azambuja Neves; Fábulas, compiladas por Justiniano José da Rocha; Florilégio, do professor Jordão; Selecta Clássica, por Motta Azevedo (Teixeira, 2008).

Em relação às novidades pedagógicas, como as "lições de coisas" e os processos intuitivos de ensino, o método simultâneo para o ensino da leitura e da escrita, a introdução de saberes como história, geografia, desenho, música e ginástica, o inspetor de Pernambuco afirmou ter se decepcionado pela difusão limitada nas escolas visitadas na Corte e nas Províncias. No caso da capital do Império, o uso das lições de coisas foi observado apenas no Instituto dos Surdos e em estabelecimentos particulares, como o Colégio Menezes Vieira, apesar de já existirem, à época, livros traduzidos ou propostos por autores nacionais para divulgação do método entre os professores.16 16 . Neste caso, ele se refere às suas próprias traduções de Mme. Carpentier e Rousselot e aos textos para o ensino de ciências físicas e naturais: Primeiros elementos de História Natural, de Theonilla Tavares Bastos, e Dicionário de Educação e Ensino, de Campagne, traduzido por Camillo Castello Branco. A música e a ginástica foram referidas como saberes presentes no currículo das Escolas Municipais da Corte. O ensino de economia prática foi observado pelo inspetor na escola do professor Frazão, na Corte, e na escola de Bráulio Jayme Muniz Cordeiro, em Niterói, capital da Província do Rio de Janeiro. Ainda em relação a essa província, e também a de São Paulo, lamenta a não obrigatoriedade do ensino de história e geografia pátrias nas escolas primárias de primeiro grau e a falta de livros e compêndios adequados para uso das crianças dessas disciplinas, bem como de leitura e escrita, ciências físicas e naturais, artes e indústrias.

Outro ponto destacado pelo inspetor de Pernambuco referiu-se à intervenção da sociedade e da iniciativa particular na difusão do ensino às classes populares e operárias, por meio da organização de sociedades e associações de proteção e instrução da infância, leigas e religiosas, de bibliotecas populares, de cursos noturnos para adultos, de escolas e asilos para infância pobre e cursos de ensino profissional, de escolas dominicais - ações que, aliás, eram coadjuvadas pelo governo imperial.

No que se refere à Corte e Província do Rio de Janeiro, assinala a Sociedade Amante da Instrução, Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e Propagadora das Belas Artes, Liceu de Artes e Ofícios, Associação Promotora da Instrução, Sociedade Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa e Associação Protetora da Infância Desamparada. No caso da Província de São Paulo, ele aponta o curso noturno e a biblioteca de Gabriel Franzen, o Instituto Anna Rosa, para meninos pobres e desvalidos e ainda o Seminário da Glória, para meninas órfãs.

Com isso, chama atenção para o fato de que as iniciativas educacionais estavam sendo patrocinadas por outros agentes, cada um com interesses específicos que viam no envolvimento com a instrução uma forma de atender setores estratégicos da sociedade e, ao mesmo tempo, capitalizar os benfeitores para outras iniciativas e intervenções.

Outro ponto destacado na narrativa do inspetor pernambucano se refere aos conhecimentos que o Estado produz acerca de suas próprias iniciativas. Trata-se do emprego cada vez mais regular de instrumentos de medição das populações, das estatísticas oficiais. O mecanismo da medição como condição para se governar também vai ser praticado no campo da educação formal.

A instrução em números

Na quarta e última parte do relatório, Uchoa Cavalcanti se propôs a organizar dados estatísticos e apreciar, comparativamente, o estado da instrução pública nas regiões visitadas. Inicia sua avaliação pela Província de São Paulo, visando demonstrar a precariedade da freqüência à escola primária, para o que recorre aos relatórios provinciais da inspetoria de instrução. Ressalta a ausência de um Conselho Superior para consulta sobre os negócios do ensino e orientação ao corpo legislativo na matéria e inexistência da prática de reunir os professores em Conferências Pedagógicas, o que vinha ocorrendo na Corte, na Província do Rio de Janeiro e em Pernambuco ao longo da década de 1870. Em relação aos professores, alegou não ter encontrado em São Paulo associações ou sociedades organizadas para a defesa dos seus interesses, como vinha igualmente observando na Corte e na sua terra natal17 17 . A respeito das iniciativas de organização de professores na Corte, ver Lemos, 2006. . Como pontos positivos para a província paulista, o inspetor referiu-se à "nova fase", após a lei de 1874, por meio da qual o ensino primário foi considerado obrigatório e reorganizou-se o ensino normal.

A reforma da educação em São Paulo, na sua perspectiva, era urgente:

A terra dos Andradas, que tanto se tem avantajado pelo seu desenvolvimento e progresso quanto ao comércio, artes, indústria, lavoura, viação, e cuja receita tem subido de modo tão prometedor e lisonjeiro, não pode estacionar no que concerne aos magnos interesses que se prendem à difusão e melhoramento da educação e ensino público. (Cavalcanti, 1879, p. 265).

Em comparação a São Paulo, a Província do Rio de Janeiro foi apresentada como exemplo de preocupação mais acurada com a instrução, fato que comprovou com o argumento das despesas orçamentárias na área para o ano de 1878, que chegariam à quarta parte do orçamento total da Província. Comentários elogiosos estenderam-se à organização administrativa da instrução pública, embora, na prática, fosse reduzido o número de inspetores, o que dificultava a inspeção e o controle das escolas. Ressaltou ainda a existência de bibliotecas populares, a cargo das Câmaras Municipais, e o movimento associativo dos professores, por meio do Instituto Pedagógico, fundado em 1873, com estatutos aprovados em 04 de setembro de 1875.

No caso da Corte, o relator apontou os melhoramentos e o "notável movimento" em matéria de ensino público, porém, na sua perspectiva, o desenvolvimento ainda parecia exíguo, diante das condições financeiras, da centralidade política e da importância cultural do município neutro para o Império:

Uma rica e florescente capital, com os avultados recursos financeiros de que dispõe e com as ilustrações que conta entre seus mais importantes vultos políticos, era para já ter, há mais tempo, um vasto e bem combinado sistema de educação e ensino público - não reduzido a letra morta nos regulamentos e só dependente da dedicação e esforço espontâneo dos professores -, mas solidamente constituído e largamente retribuído, merecendo todo o desvelo do governo e organizado de forma a aproveitarem-se, tão vantajosamente quanto possível, e estimularem-se vivamente o zelo, talento e vocação dos professores, e o concurso patriótico dos particulares. Muito se tem feito, é certo, mas com relação ao pouco que antes se fazia: - com relação ao que ainda cumpre que se faça, há uma vastíssima extensão a percorrer [...]. (Cavalcanti, 1879, p. 272)

A crítica enfática em relação à capital do Império em matéria de ensino era reforçada com os dados do recenseamento de 1872, segundo o qual apenas a quarta parte da população em idade escolar freqüentava as escolas públicas e particulares existentes. Em contrapartida, entre os pontos positivos, destacou a ação governamental em subvencionar as escolas particulares (total de 100 subvenções concedidas, segundo dados do relatório de 1878). Como instituições públicas nas quais foram observadas boas condições materiais e de ensino, o relator apontou o Asilo de Meninos Desvalidos, o Colégio Pedro II, o Instituto de Surdos-Mudos e o Museu Nacional. No caso das particulares, ressaltou o Colégio Abílio, o Liceu de Artes e Ofícios e o Colégio da Santíssima Trindade. Elogiou ainda as Conferências Públicas realizadas na Escola da Glória e no Liceu de Artes e Ofícios.

A comparação como política

A avaliação geral do dirigente pernambucano, evidentemente, tinha como pontos de referência as representações sobre sua própria experiência, suas estratégias e ações políticas como inspetor geral de instrução na província pernambucana. Nesse sentido, para concluir essa parte comparativa, o autor retoma a análise dos processos históricos de constituição do sistema de instrução pública em Pernambuco, citando os regulamentos e ressaltando os melhoramentos realizados em administrações precedentes, especialmente a reforma de 1874. Por essa reforma, a província teria consagrado o ensino obrigatório, a liberdade de ensino, a freqüência mista às escolas sob a regência de professoras, a livre escolha dos métodos de ensino, a introdução das ciências elementares, a instrução das meninas equiparada a dos meninos, a subvenção às escolas particulares e a reorganização da carreira docente.

O sistema de inspeção na província pernambucana, pela ação dos delegados literários e inspetores escolares e ainda pela intervenção anual de comissões de funcionários públicos locais nas visitas aos estabelecimentos, também foi colocado em evidência. Nesse aspecto, chamou a atenção para a importância das famílias e da presença dos pais na escola e no apoio aos filhos, auxiliando nas lições e nos exercícios escolares. A intervenção dos pais foi apresentada como um dos meios de inspeção da ação pedagógica do professor, na medida em que constituía um "incentivo para esmerar-se no desempenho do magistério". A comunicação entre pais e professores era, então, facilitada pelo uso de uma prática constante de registro e controle do desempenho dos alunos, técnica pedagógica introduzida nas escolas de Pernambuco por intermédio dos boletins escolares.

Elogiou também os estudos secundários no Ginásio Pernambucano e a liberdade de ensino que permitiu o desenvolvimento das instituições particulares na província. Destacou ainda a presença de sociedades e associações dedicadas a propagação da instrução, cursos noturnos para adultos, bibliotecas e uma escola normal privada para formação de professoras. Um ponto negativo apontado por Uchoa Cavalcanti no estado da instrução pernambucana foi o escasso desenvolvimento do ensino profissional, restrito à iniciativa particular do Liceu de Artes e Ofícios da capital e do Instituto Orfanológico Agrícola e Industrial da Colônia Isabel, fundado pelo Desembargador Henrique Lucena.

A organização da carreira docente, os benefícios concedidos ao professor pelo tempo de serviço e dedicação ao magistério, as regras de jubilação, todas as disposições regulamentares relativas às relações do Estado com o corpo docente apareceram no discurso do inspetor geral como as mais favoráveis possíveis, não vistas por ele em qualquer outro lugar. Nesse aspecto, ressaltou ainda o associativismo docente e a constituição do Instituto dos Professores de Pernambuco e do Grêmio dos Professores Primários, aos quais, segundo ele, na qualidade de inspetor geral, procurou prestigiar, acolhendo algumas das medidas propostas para o ensino. Ao concluir sua narrativa, teceu veemente defesa de melhorias nas condições de trabalho docente e de valorização dos vencimentos.

Finalizando o seu relatório, o qual considerou um verdadeiro "plano de organização escolar", enfatizou a necessidade de realização de reformas educacionais para desenvolvimento e progresso nacionais, visando afastar os perigos da ignorância e do analfabetismo, os maiores obstáculos da civilização.

No conjunto, o inspetor procura levar a bom termo seu objetivo de contrastar a ciência que possui com base na documentação oficial que demonstra conhecer e, também, com aquilo que efetivamente observa in loco. Nesse exercício comparativo, o inspetor constrói uma narrativa que ajuda a problematizar teses recorrentes na historiografia (geral e da educação) que estabelece a Corte e a província do Rio de Janeiro como modelos para a nação. Com base nesse relatório, a comparação intranacional se põe como exigência para fertilizar as reflexões relativas à variedade das formas escolares em funcionamento no século XIX, ajudando a matizar a tese de um poder vertical que, sediado em um lugar, teria organizado uma única forma para o Brasil e para suas escolas.

Recebido em 26.03.07

Aprovado em 13.10.08

Alessandra Frota Martinez de Schueler é professora adjunta na UERJ, pesquisadora do CNPq e co-autora do livro Educação, poder e sociedade no Império Brasileiro (Cortez, 2008). E-mail: alefrotaschueler@gmail.com

José Gonçalves Gondra, professor adjunto na UERJ, pesquisador do CNPq e da FAPERJ, realiza pós-doutoramento no Departamento de História da UNICAMP, com apoio do CNPq, é co-autor do livro Educação, poder e sociedade no Império Brasileiro (Cortez, 2008).

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  • Correspondência:

    José Gonçalves Gondra
    Rua Olegário Mariano, 276/106
    20510-210 - Rio de Janeiro - RJ
    E-mail:
  • 1
    . A respeito das escalas de observação nas pesquisas em Ciências Sociais, cf. Revel, 1998.
  • 2
    . Para pensar os relatos de viagens como gênero literário e da regularidade dessa prática, em especial na Europa e na Espanha, ver Tobar; Elduyaen, 2005. Para o caso do Brasil, ver Leite, 1997; Toussant-Samson, 2005; dentre outros.
  • 3
    . Missão realizada na gestão de Adolpho de Barros Cavalcante de Lacerda, iniciada em 20/05/1878 e encerrada em 18/9/1879. Lacerda foi sucedido por Dr. Adelino Freire, a quem o relatório é encaminhado em dezembro de 1879.
  • 4
    . Cf., por exemplo, o manual do Padre Roquette (Schwarcz, 1997).
  • 5
    . O requerimento foi dirigido ao Presidente da Província de Pernambuco em 22/03/1879, tendo sido prontamente acolhido em reposta de 24/03/1879, o que tornou a viagem uma missão oficial, incluindo o dever de elaboração do relato circunstanciado da "excursão escolar", como a denominava o inspetor Uchoa Cavalcanti.
  • 6
    . A Lei nº 369, de 14/05/1855, introduziu na escola primária o ensino de História e Geografia do Brasil e da Província de Pernambuco.
  • 7
    . O Regimento Interno das Escolas Primárias, de 30/07/1859, dividiu as escolas primárias em 1º e 2º graus, estabelecendo 8 classes de ensino, regidas pelo professor, seus adjuntos e decuriões.
  • 8
    . A Lei nº 598, de 13/05/1864, retomou a organização das escolas primárias, consideradas todas de grau único (primeiro), conforme a legislação de 1827.
  • 9
    . O regulamento de 27/11/1874 alargou o currículo escolar e novo regulamento de 07/04/1879, de autoria do Inspetor Geral Uchoa Cavalcanti; introduziu inovações como "lições de coisas e instrução moral e cívica, por meio de leituras apropriadas" (Cavalcanti, 1798, p. 11); além de reorganizar o ensino primário em três graus: elementar, médio e complementar.
  • 10
    . Para análise da reforma de 1854, ver Gondra, 2003; e Martinez, 1997.
  • 11
    . "... é com pesar que se vê, em duas províncias tão importantes e florescentes como são as do Rio de Janeiro e São Paulo, achar-se reduzido o plano de estudos nas aulas primárias oficiais, bem como não ter a extensão que devera nas escolas da Corte" (Cavalcanti, 1879, p. 36).
  • 12
    . Para o caso das Conferências da Corte, ver Borges; Gondra, 2005.
  • 13
    . A respeito das escolas noturnas da Corte, ver Costa, 2007.
  • 14
    . Sobre o sistema de moral e cívica do professor Frazão, ver Schueler, 2005).
  • 15
    . Refere-se ao livro
    O Caráter, de Samuel Smiles.
  • 16
    . Neste caso, ele se refere às suas próprias traduções de Mme. Carpentier e Rousselot e aos textos para o ensino de ciências físicas e naturais:
    Primeiros elementos de História Natural, de Theonilla Tavares Bastos, e
    Dicionário de Educação e Ensino, de Campagne, traduzido por Camillo Castello Branco.
  • 17
    . A respeito das iniciativas de organização de professores na Corte, ver Lemos, 2006.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      26 Mar 2007
    • Aceito
      13 Out 2008
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