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Notas sobre o problema da explicação e da experiência no ensino da Filosofia

Notes on the problem of explanation and experience in the teaching of Philosophy

Resumos

Apesar do esforço dos defensores do ensino da Filosofia para que essa disciplina volte a fazer parte do Ensino Médio, observamos, atualmente, seu abandono nos cursos universitários. Notamos que hoje, na sociedade normalizada e no espaço educacional, não é mais valorizado o desenvolvimento integral do pensamento, mas a transmissão de uma série de conteúdos que, supostamente, dão condições para a integração do estudante no quadro do progresso tecnológico e proporcionam sua entrada no mercado de trabalho. Circunscrevendo-se nesse contexto, neste texto pretende-se investigar o espaço em que o ensino da Filosofia se desenvolve na atualidade. Delineando os contornos de um problema que emerge nos espaços institucionais universitários onde o ensino da Filosofia ainda persiste, procurou-se evidenciar em que bases a Filosofia é ensinada. Procurou-se, ainda, compreender quais consequências os modos de compreender o ensino da Filosofia trazem para o aprendizado do filosofar. Uma consideração a que se pode chegar, a partir deste estudo, é a de que o ensino da Filosofia além de não privilegiar, e muitas vezes negar, a experiência de pensamento que o aluno pode fazer e ter com o texto filosófico, contribui para o empobrecimento dessa mesma experiência do e com o filosofar.

Ensino da Filosofia; Filosofia contemporânea; Experiência


Despite the efforts of the proponents of the teaching of Philosophy to have the subject back into the Secondary School curriculum, we watch nowadays its neglect in higher education. We observe that today, in this normalized society and in the educational sphere, the integral development of thinking is no longer valued, in favor of the transmission of a series of contents which supposedly allow the student to fit into the picture of technological progress and gain access to the labor market. Centering on this context, the present text intends to investigate the space in which the teaching of Philosophy evolves today. By sketching the contours of a problem that emerges in the university institutional spaces where the teaching of Philosophy still subsists, we have attempted to bring forward the bases on which Philosophy is taught. We have also sought to understand what are the consequences for the learning of philosophizing of the different ways to understand the teaching of Philosophy. A conclusion warranted by this study is that the teaching of Philosophy not only fails to give priority to the experience of thinking, but often denies the students the opportunity of doing and having this experience with the philosophical text, thereby contributing to impoverish this same experience of and with the philosophizing.

Philosophy teaching; Contemporary philosophy; Experience


ARTIGOS

Notas sobre o problema da explicação e da experiência no ensino da Filosofia* Correspondência: Rodrigo Pelloso Gelamo Av. Hygino M. Filho, 737 - CP 182 17.525-900 – Marília – SP E-mail: gelamo@gmail.com

Notes on the problem of explanation and experience in the teaching of Philosophy

Rodrigo Pelloso Gelamo

Universidade Estadual Paulista

Correspondência Correspondência: Rodrigo Pelloso Gelamo Av. Hygino M. Filho, 737 - CP 182 17.525-900 – Marília – SP E-mail: gelamo@gmail.com

RESUMO

Apesar do esforço dos defensores do ensino da Filosofia para que essa disciplina volte a fazer parte do Ensino Médio, observamos, atualmente, seu abandono nos cursos universitários. Notamos que hoje, na sociedade normalizada e no espaço educacional, não é mais valorizado o desenvolvimento integral do pensamento, mas a transmissão de uma série de conteúdos que, supostamente, dão condições para a integração do estudante no quadro do progresso tecnológico e proporcionam sua entrada no mercado de trabalho. Circunscrevendo-se nesse contexto, neste texto pretende-se investigar o espaço em que o ensino da Filosofia se desenvolve na atualidade. Delineando os contornos de um problema que emerge nos espaços institucionais universitários onde o ensino da Filosofia ainda persiste, procurou-se evidenciar em que bases a Filosofia é ensinada. Procurou-se, ainda, compreender quais consequências os modos de compreender o ensino da Filosofia trazem para o aprendizado do filosofar. Uma consideração a que se pode chegar, a partir deste estudo, é a de que o ensino da Filosofia além de não privilegiar, e muitas vezes negar, a experiência de pensamento que o aluno pode fazer e ter com o texto filosófico, contribui para o empobrecimento dessa mesma experiência do e com o filosofar.

Palavras-chave: Ensino da Filosofia – Filosofia contemporânea – Experiência.

ABSTRACT

Despite the efforts of the proponents of the teaching of Philosophy to have the subject back into the Secondary School curriculum, we watch nowadays its neglect in higher education. We observe that today, in this normalized society and in the educational sphere, the integral development of thinking is no longer valued, in favor of the transmission of a series of contents which supposedly allow the student to fit into the picture of technological progress and gain access to the labor market. Centering on this context, the present text intends to investigate the space in which the teaching of Philosophy evolves today. By sketching the contours of a problem that emerges in the university institutional spaces where the teaching of Philosophy still subsists, we have attempted to bring forward the bases on which Philosophy is taught. We have also sought to understand what are the consequences for the learning of philosophizing of the different ways to understand the teaching of Philosophy. A conclusion warranted by this study is that the teaching of Philosophy not only fails to give priority to the experience of thinking, but often denies the students the opportunity of doing and having this experience with the philosophical text, thereby contributing to impoverish this same experience of and with the philosophizing.

Keywords: Philosophy teaching – Contemporary philosophy – Experience.

Apesar de todo o esforço dos estudiosos e defensores do ensino da Filosofia, preocupados, simultaneamente, com o entendimento das suas funções no processo educacional e com a possibilidade de efetuação do seu exercício nesse processo, atualmente presenciamos o abandono do filosofar e de seu ensino, principalmente nos cursos universitários que não visam à formação de bacharéis e de licenciados em Filosofia. Embora esse debate centre a sua preocupação filosófica na questão da formação do homem, na qual o uso crítico da razão se constitui como elemento fundamental, a situação da Filosofia no ensino parece ser paradoxal. A rejeição (que poderíamos entender como uma recusa ou declínio da Filosofia), principalmente nos cursos não voltados à formação de filósofos, parece resultar de uma série de problemas compreendendo desde propostas curriculares mal elaboradas (mais por não dialogarem com os interesses temáticos dos cursos do que pela fundamentação filosófica propriamente dita) até uma posição que tem por objetivo a exaltação do conhecimento tecnológico no qual a Filosofia não encontra espaço. Outro motivo pode ser o apressamento da formação atual, convertida em mera qualificação profissional – especialmente nas instituições privadas de ensino superior, onde tem sido reduzido o tempo de formação, com significativa diminuição das horas-aula dos cursos.

A quantidade de disciplinas tem sido, também, alvo dessa mesma política educacional, com a retirada dos currículos daquelas consideradas menos importantes no processo de qualificação profissional. Desse modo, o que é hoje valorizado na sociedade normalizada (para usar um conceito de Foucault1 1 . Confira especialmente a terceira parte do livro Vigiar e punir – Foucault (1975). ) e no espaço educacional não é mais o desenvolvimento integral do pensamento, mas a transmissão de uma série de conteúdos que, supostamente, dão condições para a integração do estudante no quadro do progresso tecnológico e proporcionam a sua entrada no mercado de trabalho.

A esse respeito Marilena Chaui (1992) faz uma contundente observação no seu texto "O que é ser educador hoje?". Segundo a filósofa:

Vivemos num mundo dominado por aquilo que a ideologia dominante convencionou designar como "progresso tecnológico". Resultado da exploração física e psíquica de milhares de homens, mulheres e crianças, da domesticação de seus corpos e espíritos por um processo fragmentado desprovido de sentido, da redução de sujeitos à condição de objetos sócio-econômicos, manipuláveis politicamente e pelas estruturas da organização burocrático-administrativa, o "progresso" sequestra a identidade pessoal, a responsabilidade social, a direção política e o direito à produção da cultura por todos os não dominantes. (p. 56-57)

Ao observarmos as poucas oportunidades que a Filosofia ainda tem de participar no processo formativo dos estudantes brasileiros, constatamos que ela se depara com certas dificuldades em encontrar o seu lugar e em se reconhecer em um espaço onde é muitas vezes desvinculada de si mesma e de toda a sua tradição. Uma das dificuldades é a pequena carga horária reservada a essa disciplina (variando entre 30 e 60 horas-aula nos cursos superiores), que dificulta um desenvolvimento consistente do pensamento filosófico. O tempo disponibilizado para a apreensão dos conteúdos filosóficos e para a consolidação de um tipo de reflexão almejado pela Filosofia é ínfimo. A negação de um modo de temporalidade necessário à formação do pensamento filosófico impede a constituição de uma reflexão crítica, equivocadamente esperada sob essas condições, dificultando a apropriação intelectual não apenas dos conteúdos, mas de um modo de pensar próprio da Filosofia pelos alunos2 2 . Gelamo (2006) apresenta uma série de outras dificuldades que se pode encontrar no ensino da Filosofia. Aqui apenas enunciamos alguns deles para contextualizar o problema central que pretendemos desenvolver neste artigo. .

Nesse contexto pouco propício ao filosofar, o ensino da Filosofia muitas vezes se restringe a uma transmissão de conteúdos cujo objetivo é fazer com que o aluno acumule o máximo de informações possíveis no pouco tempo que lhe é reservado. Assim, aquilo que seria fundamental para a consolidação do processo formativo – a efetivação de uma mudança de atitude do aluno diante do mundo e de si mesmo, a partir de um pensamento crítico amparado pelas reflexões despertadas no encontro de seu próprio pensamento com o pensamento dos filósofos – seria algo pouco provável, por se fundamentar, muitas vezes, em um modo superficial de articulação entre as perspectivas dos filósofos apresentadas pelo professor sobre determinado tema e os conteúdos tidos como necessários no ensino da Filosofia. Cria-se, então, uma imagem distorcida do pensamento filosófico e do filosofar, transmitindo ao aluno não muito mais do que "fórmulas filosóficas" que servem de modelos a serem aplicados na resolução de qualquer questão: tal como se utiliza a fórmula matemática para solucionar uma equação cotidiana, as "fórmulas filosóficas" apresentam-se como modelos a imitar para pensar criticamente sobre as situações nas quais o aluno se encontra.

Não é raro notar que o ensino da Filosofia que se pratica nesses lugares privilegia muito mais a transmissão do conhecimento produzido no contexto da história da Filosofia do que outras formas de fazer Filosofia3 3 . Cf. Gelamo (2006; 2008). . Alunos e professores são avaliados por aquilo que conseguiram acumular de conhecimento a partir do seu enquadramento nos saberes estabelecidos. Essa lógica de ensino encaminha a relação ensino/aprendizado para uma função: ensinar é transmitir as verdadeiras representações sobre aquilo que os filósofos disseram e aprender é compreender adequadamente aquilo que foi explicado, fazendo uma correlação entre a explicação do professor e o que se encontra nas obras filosóficas para, posteriormente, repetir de modo claro e distinto aquilo que se aprendeu. Esse tipo de funcionamento, denominado por Rancière (1987) razão explicadora, comporta um

[...] princípio de uma regressão ao infinito: a reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter. O que detém a regressão e concede ao sistema seu funcionamento é apenas o fato de que o explicador seja o único juiz do ponto em que a explicação é ela mesma explicada. [...] O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, também a distância, entre aprender e compreender. (p. 12-13)

O professor de Filosofia, muitas vezes pressionado pelas situações adversas a que nos referimos acima, torna-se refém dessa mesma lógica da explicação ao acreditar que a única saída para se ensinar minimamente a Filosofia é a transmissão, ou seja, explicar ao aluno aquilo que conhece da Filosofia. Nessa lógica, existe implícita a crença de que aquele que explica é o detentor dos conhecimentos filosóficos necessários que lhe permitem assumir a responsabilidade de transmitir os conteúdos da Filosofia àqueles que não o possuem. Com esse tipo de "ensino", estaria sendo privilegiada a transmissão de um tipo de conhecimento que, pretendendo-se filosófico, é marcado por um "saber técnico" cujo objetivo é ensinar a re-conhecer a forma e o conteúdo de um determinado pensamento. Por meio da estrutura da explicação, o ensino da Filosofia corre o risco de se tornar apenas uma adequação do que se aprende àquilo que foi ensinado. Em outras palavras, no ato de "aprender", a relação entre o aluno e o texto filosófico ocorre através de um processo de mediação da aprendizagem que reside na explicação apresentada pelo professor como a forma legítima de captar a verdadeira significação das ideias que constituem esse texto. Desse modo, a explicação tornou-se um meio de "formar filosoficamente" os alunos: explica-se a história da Filosofia, os sistemas filosóficos, o que é ser crítico em relação a eles e ao mundo, enfim, explica-se o que é pensar filosoficamente. Assim, ensinar a Filosofia, muitas vezes, restringe-se a uma explicação, oferecida pelo professor, do pensamento filosófico e de sua história.

O papel do professor de Filosofia passou a ser o de um explicador do modo como os filósofos produziram determinado pensamento, das suas filiações teóricas, de seus vínculos com aqueles que o antecederam, dos pontos problemáticos que pretendiam resolver e do modo como responderam a esses problemas. Segundo Rancière, a lógica da explicação foi ganhando espaço por estar amparada pelo argumento de que os professores conscientes têm como "grande tarefa" transmitir seus conhecimentos aos alunos; essa lógica traz como objetivo dos professores conduzir os alunos e elevá-los à condição de conhecedores. Rancière (1987) apresenta sua critica a esse respeito da seguinte forma:

[...] o ato essencial do mestre era de explicar, de destacar os elementos simples dos conhecimentos e de conferir sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes. Ensinar era, simultaneamente, transmitir conhecimentos e formar espíritos, conduzindo-os, segundo uma progressão ordenada, do mais simples ao mais complexo. (p. 10)

Assim, o professor teria como função ser mediador entre o filósofo (texto filosófico) e o aluno, objetivando romper a barreira que, supostamente, existe entre aquilo que o aluno leu nos livros de Filosofia e as falhas na compreensão que ele possa ter tido em sua leitura. Fato que se torna ainda mais grave quando o apoio pedagógico utilizado nesse processo são apostilas, supostamente filosóficas, como as utilizadas no Ensino Médio paulista4 4 . Desde 2009, o Estado de São Paulo vem utilizando um material de apoio pedagógico para o ensino da Filosofia que integra uma ação da Secretaria da Educação denominada São Paulo faz escola. Esse material é composto por doze cadernos para os alunos e doze cadernos para os professores distribuídos nos três anos do ensino médio. .

Nesse contexto, o papel do professor é garantir que se compreenda aquilo que supostamente é necessário que o aluno efetivamente aprenda da Filosofia. O mecanismo que dá suporte a esse processo é o da explicação oferecida pelo professor, pois é preciso que alguém com "mais conhecimento", que seja mais sabedor, explique a explicação do filósofo contida em sua obra. Segundo essa lógica, a palavra do professor é necessária para romper com um suposto mutismo que persiste no hiato entre aquilo que foi lido dos filósofos e aquilo que se tem de compreender por meio dessa leitura.

Aos alunos, por seu lado, cabe compreender5 5 . Para Rancière, a noção de compreensão contribui para legitimar a lógica da explicação, tornando-a mais problemática. Para o autor, "infelizmente, é justamente essa pequena palavra, essa palavra de ordem dos esclarecidos – compreender – que faz todo o mal. É ela que paralisa o movimento da razão, destrói sua confiança em si mesma, expulsa-a de sua via própria ao quebrar em dois o mundo da inteligência, ao instaurar a ruptura entre o animal tateador e o pequeno cavalheiro instruído, do senso comum à ciência" (Rancière, 1987, p. 18-19). o que os filósofos disseram, ou seja, compreender a estrutura das grandes obras filosóficas, amparados pela explicação do professor para, posteriormente, repeti-la em um exercício de pretensa erudição. Assim, a relação ensino/aprendizado no ensino da Filosofia pode ser entendida como uma relação entre a explicação e a compreensão que vai propiciar o acúmulo de informações sobre a Filosofia: explicação de algo que não passou necessariamente pela experiência do professor (pois, muitas vezes, ele também foi refém da explicação de seu professor) e que, muitas vezes, não foi objeto de seu pensamento enquanto experiência; e uma compreensão, por parte do aluno, que constitui uma relação puramente cognitiva com a explicação dada pelo professor e, por isso, muitas vezes também não faz uma experiência de pensamento daquilo com que entra em contato.

Dessa perspectiva, o pensamento dos alunos – aquilo que se produziu do contato direto dos alunos com a Filosofia – de nada valeria, pois o que se espera do aluno é que ele adquira a representação adequada dos significados produzidos e que consiga relacioná-los aos significantes consolidados pelo verdadeiro pensamento filosófico. Nesse registro, pensar filosoficamente seria apenas um exercício de erudição esvaziada, desenvolvido a partir do acúmulo de conhecimentos sobre a Filosofia: que pode ser compreendida como uma forma de cristalização do filosofar. Esse modo de se relacionar com o exercício filosófico, a nosso ver, dificulta uma experiência com a Filosofia que seja capaz de produzir uma fissura na relação significativa dominante e capaz de permitir ao "aprendiz" a procura de uma ressignificação de sua relação com o mundo e com a própria Filosofia. Assim:

É o explicador que tem a necessidade do incapaz e não o contrário, é ele quem constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, a princípio, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e tolos. (Rancière, 1987, p. 15-16)

Esse modo de entender o ensino, especialmente o ensino da Filosofia, justifica a premissa de que ensinar é transmitir um conteúdo a um aluno que precisa aprender; e aprender é compreender e acumular esses conteúdos que lhe foram transmitidos. Isso manteria uma separação entre aquilo que se compreendeu pela transmissão (o conteúdo acumulado) e aquilo que foi experienciado por si. Nesse sentido, os conhecimentos que foram produzidos pelo aluno como experiência de pensamento muitas vezes são moldados, ou até mesmo negados, a partir da explicação do professor. Esse procedimento consiste, segundo Rancière (1987), em um duplo gesto inaugural:

Por um lado, ele decreta o começo absoluto: somente agora terá início o ato de aprender. Por outro lado, sobre todas as coisas a aprender, ele as cobre com o véu da ignorância que ele mesmo se encarrega de retirar. (p. 16)

A lógica da explicação, como política de ensino, silencia no aprendiz seu pensamento pulsante, sua experiência de pensamento, para dar voz àquilo que compreendeu pela explicação do professor.

A consequência disso é a recusa em manter a tensão no interior dos conflitos que o pensamento proporciona, satisfazendo-se com a procura de uma explicação que cale o conflito de suas ideias. Para Bárcena (2005):

Se a experiência passa por uma relação tal que nos aconteçam coisas, a compulsão, a nós tão característica, de estar sempre informados parece conduzir-nos a ver e a conhecer o mundo antes de experimentá-lo, de sofrê-lo ou de padecê-lo.6 6 . Segundo Bárcena (2005), somos herdeiros de uma ansiedade que não permite aceitar a ambiguidade, a falta de clareza e certeza, nem a diversidade de opiniões, a não ser que todas elas se encaminhem e concluam para uma proposição em que prevaleça o acordo racional. (p. 56-57)

Pode-se dizer que o mesmo acontece em relação ao ensino da Filosofia: não se permite a incerteza, a ambiguidade no pensamento, a falta de clareza e a incerteza do pensar intempestivo, fazendo com que o ensino se vincule e se reifique sobre a necessidade de compreender com clareza e distinção a "Filosofia" antes de experimentá-la, antes mesmo de sermos afetados por ela. Segundo a lógica implícita nesse processo, o ensino da Filosofia deve enraizar-se em critérios de verdade que independem da experiência, da incerteza, da volatilidade e da incompletude, mantendo critérios mínimos do uso da razão.

Larrosa (2004), analisando as bases da pretensa relação de superioridade da razão sobre a experiência, afirma que:

A razão tem de ser pura, tem de produzir ideias claras e distintas, e a experiência é sempre impura, confusa, muito ligada ao tempo, à fugacidade e à mutabilidade do tempo, muito ligada a situações concretas, particulares, contextuais, muito ligada ao nosso corpo, a nossas paixões, a nossos amores e a nossos ódios. Por isso, há de se desconfiar da experiência quando se trata de fazer uso da razão, quando se trata de pensar e falar e de atuar racionalmente. (p. 22)

Seguindo a lógica da explicação de Rancière (1987), o conhecimento que é transmitido pelo mestre explicador seria aquele depurado por uma inteligência superior "que conhece as coisas por suas razões[;] ela procede por método, do simples ao complexo, da parte ao todo" (p. 16) e, por isso, permite afastar o aluno, uma inteligência inferior, de sua experiência que registra "as percepções ao acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito círculo dos hábitos e das necessidades" (p. 16). O problema, então, parece se instalar na relação entre o conhecimento adquirido por meio da transmissão/compreensão e aquele construído pela experiência de pensamento (ou na não relação entre eles).

No espaço dessa relação, a compreensão dos conteúdos – que constitui o modo tradicional de relação entre o ensino da Filosofia e o corpo do pensamento filosófico – desencadeia um processo de aprendizagem que se pauta por um "enriquecimento" de conhecimento por parte do aluno, através da apresentação de formas de leitura do mundo delineadas por um projeto antecipadamente definido. No entanto, apesar do pretenso enriquecimento, há nesse processo um modo de empobrecimento do pensamento que se reflete num empobrecimento da experiência do filosofar, que será analisado mais adiante.

Ao longo de todo esse processo, a capacidade de o aluno experimentar as coisas e atribuir-lhes sentido é debilitada pela releitura do mundo que tem como modelo a leitura feita por um filósofo, muitas vezes mediada por um comentador e explicada por um professor, fechada em si mesma. A relação entre o aluno, o filósofo, o mundo e o problema passa, assim, a constituir-se por uma forma de mediação: parte-se da relação que determinado filósofo criou com o mundo, assumindo-a como modelo para, assim, relacionar-se com o problema.

Podemos dizer que, nesse contexto, a relação que o aluno estabelece com o mundo é mediada pelo modelo criado a partir do olhar de determinado filósofo, como se a possibilidade de uma experiência do mundo se desenhasse apenas na sombra da experiência vivenciada pelo pensamento do filósofo e não na experiência de um problema que emerge do olhar singular do aluno. Nessa relação, o aluno não mergulha diretamente na plurivocidade problemática que é o mundo, mas é sempre mediado pelo pensamento de um filósofo. Como se não bastasse essa mediação, surgem outras: (1) a explicação do comentador; (2) a explicação de outro comentador que explica o comentador; e (3) a explicação do professor (que assume o papel de um outro comentador). Assim, o modo de olhar o mundo é delineado na repetição das pautas de leitura das significações atribuídas pelas inúmeras mediações que antecedem e direcionam o contato do aluno com o mundo. A forma como essa relação se constitui evidencia, então, a questão de uma nítida desvalorização da experiência face ao conhecimento transmitido.

Nessa problemática acerca da experiência, vemos ressoar grande parte da história da Filosofia, não apenas com relação à discussão sobre a teoria do conhecimento que perpassa toda a Filosofia desde a Filosofia antiga. Segundo Larrosa (2004), na Filosofia clássica, a experiência foi entendida como um modo de conhecimento inferior. Se, para alguns autores clássicos, ela se afigura apenas como o início do verdadeiro conhecimento, para outros, a experiência é um obstáculo para esse mesmo conhecimento (para a verdadeira ciência).

A problemática da relação entre o conhecimento e a experiência desenvolve-se e encontra seu ponto de maior tensão no projeto das teorias filosóficas e científicas modernas. Nesse contexto, podemos dizer que um abismo foi criado entre o sujeito do conhecimento e o sujeito da experiência. A esse respeito Agamben (2005) afirma que: "Em certo sentido, a expropriação da experiência estava implícita no projeto fundamental da ciência moderna." (p. 25). Nesse livro, intitulado Infância e história, Agamben (2005) faz uma cartografia de como a relação entre a experiência e o conhecimento foi tensa na história da Filosofia moderna. Analisando o pensamento de Bacon, Descartes, Kant, Hegel, dentre outros, o filosofo italiano demonstra que fomos expropriados da possibilidade de fazer uma experiência7 7 . Apresentamos aqui uma pequena parte do debate feito ao longo da história do pensamento filosófico sobre a tematização da experiência, a fim de contextualizar nosso problema. Para maior aprofundamento ver Larrosa (2004), Jay (2004), Agamben (2005) e Gelamo (2006). .

Não estamos plenamente de acordo com a constatação tão veemente de Agamben (2005) a respeito da expropriação da experiência. Preferimos a concepção benjaminiana de empobrecimento da experiência. Pensamos que, de fato, não somos expropriados da experiência, mas somos constantemente expostos aos mecanismos que tentam, a todo momento, expropriar-nos dela. Ou seja, somos bloqueados e inibidos de fazer experiências, mas não somos privados da capacidade de fazê-las. Exemplo disso pode ser encontrado na tematização feita por Walter Benjamin através de uma análise que realizou sobre o seu tempo histórico.

No texto intitulado "Experiência e pobreza" a questão do empobrecimento da experiência é enunciada por Benjamin (1933a) de forma contundente. Para o filósofo:

Uma coisa é clara: a cotação da experiência baixou, e é precisamente numa geração que de 1914 a 1918 viveu uma das experiências mais monstruosas da História Universal. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Já não se podia constatar, naquela época, que as pessoas voltavam mudas dos campos de batalha? Não voltavam enriquecidas, senão mais pobres em experiência comunicável. Os livros sobre a guerra que proliferaram nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, isso não é estranho. Pois jamais houve experiências tão desmoralizantes como as estratégias de guerra de trincheiras, as econômicas pela inflação, as físicas pela fome, as morais pelos donos do poder. Uma geração que ainda fora à escola de bonde puxado por cavalos viu-se desabrigada, numa paisagem onde tudo, exceto as nuvens, havia mudado, e em cujo centro, num campo de forças de explosões e correntes destruidoras, estava o minúsculo e frágil corpo humano. (p. 195)

Partindo de uma das experiências mais brutais da história mundial, Benjamin sublinha a mudez daqueles que regressavam do campo de batalha. A referência à guerra permitia mostrar uma das formas radicais do empobrecimento das possibilidades de experienciar as situações a que o indivíduo está submetido e de experienciar e narrar a própria vida. Intimamente ligada a esse modo de silenciamento, a pobreza de experiência não reside na guerra em si, mas na prática de horror que constitui uma forma de violência pela qual se retira dos indivíduos a capacidade de fazer das experiências algo que tenha sentido para si. Nesse cenário de devastação, aqueles que foram expostos a condições extremas de violência vão perdendo sua capacidade de fazer experiência, de dela se apropriar e de lhe atribuir sentido. Sob o signo de um dizer silenciado, aqueles que regressavam da guerra encontravam-se empobrecidos em experiência comunicável. A possibilidade de narrar era arruinada pelo gesto daqueles que detinham o poder de desmentir a realidade dessa mesma experiência, retirando-lhe sua legitimidade. A desmoralização da narrativa contribuía para a mudez, uma vez que essas experiências não eram consideradas dignas de ser comunicadas. Essa atitude implicava a ausência, simultaneamente, do reconhecimento de si pela experiência de estar no mundo, da atribuição de um sentido a si mesmo na relação com o mundo e da possibilidade de narrar essa experiência.

Assim, a possibilidade de fazer uma experiência significativa da própria vida era retirada do homem. Para Benjamin (1933a),

[...] nossa pobreza de experiência nada mais é do que uma parte da grande pobreza que ganhou novamente um rosto – tão nítido e exato como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e cosmovisões do século passado nos mostrou tão claramente [para] onde conduz a simulação ou a imitação da experiência que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, admitamos que essa pobreza de experiências não é uma pobreza particular, mas uma pobreza de toda a humanidade. Trata-se de uma espécie de nova barbárie. (p. 196)

A pobreza da experiência, diagnosticada por Benjamin (1933a), apresenta-se como um rosto da grande pobreza que caracterizava o início do século XX e que ainda se alastra pelo século XXI. Não foram apenas as pessoas expostas aos horrores da guerra que viveram essa pobreza; trata-se de uma crise que afeta toda a humanidade. Ao deixar de ser perspectivada como uma pobreza particular, o alargamento da pobreza de experiência leva Benjamin (1933a) a se referir a uma nova espécie de barbárie. Essa figura permite-nos distender o olhar sobre os contornos da questão da experiência: não sendo mais marcada pelo empobrecimento originado pela guerra, mas pelo empobrecimento da experiência possível de ser feita em relação a nós mesmos, a partir de uma não vinculação da experiência à vida, a nova barbárie marca uma forma de empobrecimento da experienciação de nosso pensamento e de nossa vida em sua singularidade. Em lugar de fazer experiência e dar valor à experiência feita, valoriza-se e imita-se a experiência de outro (que, muitas vezes, já é, em si mesma, imitação de outra experiência), assume-se essa experiência como sendo a experiência válida e, assim, valoriza-se essa outra experiência em detrimento daquela que é feita por si.

Nesse contexto, é necessário ressaltar a diferença entre imitação e mímesis, diferença esta que pode ser encontrada no próprio Benjamin. Ao conceituar a faculdade mimética no texto intitulado "Teoria das semelhanças", Benjamin (1933b) afirma que

[...] os jogos infantis estão, por toda parte, impregnados de formas de comportamento miméticas e o seu âmbito não se limita, de modo algum, à imitação dos adultos. (p. 59)

Nesse sentido, pensamos que o problema da imitação está na exigência de fazer igual, repetir o mesmo identicamente. Diferente disso, a faculdade mimética possibilita-nos fazer como, ou seja, repetir diferentemente8 8 . Sobre esse aspecto ver especialmente Deleuze (1968). Confira, também, Gelamo (2008). . Assim, enquanto elo de si para consigo, a experiência de pensar por si é substituída pela imitação de um modo de significação do que é pensar verdadeiramente dado por um outro, deixando de se inscrever no espaço da experiência feita por si.

No gesto de imitação (da experiência) ecoa a mesma forma de simulação de aprendizagem que perpassa a problemática da transmissão do conhecimento no ensino da Filosofia. Perspectivada como imitação, a possibilidade de formação desenvolve-se no interior de um processo que separa o pensamento e a vida, imobilizando o movimento de passagem de sentido entre ambos. Nesse processo não ocorre um exercício filosófico acerca de um conhecimento que tem como ponto de partida uma experiência do aluno, mas, ao contrário, apenas se repete o pensamento de um filósofo (de seu comentador ou do professor-explicador), fechado sobre si mesmo, sem que seja possível a abertura à experiência de pensar um problema que afeta filosoficamente a vida do aluno, isto é, a partir da experiência do/com o próprio filosofar. Nessa modalidade de imitação – de uma experiência e de um conhecimento – o pensamento e a vida são separados: o homem é ferido em sua própria vida, retraindo a sua possibilidade de fazer a experiência de estar vivo e narrar a vida.

É válido ressaltar, nesse ponto do texto, que em alemão existem dois conceitos que são traduzidos, muitas vezes indiscriminadamente, para a língua portuguesa como "experiência": Erfahrung e Erlebnis. Segundo Gagnebin (1986), no contexto da obra benjaminiana pode-se entender Erfahrung como uma experiência que é coletiva e socialmente coletivizada entre as pessoas. Por outro lado, entende-se Erlebnis como uma experiência vivida por um indivíduo e que pode ser entendida como uma vivência solitária que alguém faz de uma determinada situação e para a qual é atribuído sentido sem, no entanto, que este seja partilhado pelas outras pessoas. Esse dois conceitos vão se modificando e tomando-se mais densos ao longo da obra de Benjamin. Porém, existe outra possibilidade de interpretação dos conceitos de Erfahrung e Erlebnis frequentemente utilizados por Benjamin. Para Morey (2007), Erfahrung diz respeito à experiência durável, ao passo que Erlebnis diz respeito a uma experiência vivida instantaneamente e que envolve choque.

Apesar do grande interesse que temos pela obra de Benjamin, o que nos importa neste momento não é fazer uma contextualização, ou mesmo uma hermenêutica, dos conceitos de experiência em sua obra9 9 . Para isso, conferir os textos mencionados acima de Gagnebin (1986) e Morey (2007). . Dado os limites da reflexão a que aqui nos propomos, apenas indicamos para a possibilidade de uma aproximação maior de nossa abordagem da interpretação de Morey (2007) do que daquela feita por Gagnebin. Essa aproximação nos permite indicar a possibilidade de fazer uma experiência de choque (Erlebnis) com os textos de Benjamin naquilo que ele nos dá a pensar para, a partir daí, colocarmo-nos "frente e contra a experiên-cia durável (Erfahrung)" (p. 350).

Assim, amparados pela leitura que Morey (2007) faz da obra de Benjamin, podemos fazer uma digressão da parábola do vinhateiro recuperada por Benjamin (1933a), para tentar elucidar melhor a problemática da transmissão, da imitação e da possibilidade de ainda se fazer a experiência.

Na referida parábola benjaminiana, um velho vinhateiro, que já estava prestes a morrer, diz a seus filhos que existe um tesouro escondido na sua vinha e, para que eles encontrem esse tesouro, só seria necessário cavar a terra. Seus filhos, então, cavaram-na, mas não encontraram nenhum tesouro. Porém, a vinha herdada foi a que mais produziu em toda a região onde moravam. Nessa parábola, podemos notar que o velho não transmite simplesmente de forma abstrata e pela explicação o seu conhecimento de agricultor ou a sua experiência com a vinha dizendo a eles o que devem fazer com ela, como devem cavar, adubar e colher; não pede a eles que o imitem na condução do vinhedo. Mas ele lhes oferece algo muito mais caro: a possibilidade de fazer, por si sós, uma experiência de escavação. O que o pai dá aos filhos não é a sua experiência; não transmite uma verdade a seguir ou ações a imitar, mas ajuda-os a fazer/viver uma experiência de vinhateiro. Talvez o velho vinhateiro soubesse, por experiência, que, ao experienciarmos alguma coisa, abrimos um ferida em nosso corpo/pensamento e ficamos profundamente marcados por uma cicatriz, que dificilmente se apaga, e que muito diferente disso é termos acesso a determinadas informações sobre a experiência de outra pessoa; informações que se constituem em nuvens que se apagam com o primeiro vento que passa. Por isso ele não informou seus herdeiros, mas possibilitou que eles experienciassem, ou seja, que fizessem uma experiência de choque (Erlebnis) que, possivelmente, tornaria-se uma experiência durável (Erfahrung). O que o velho vinhateiro/filósofo deixou foram rastros para que seus herdeiros pudessem fazer suas experiências. Rastros repletos de vestígios que foram seguidos e perseguidos pelos seus filhos, que repetiram diferentemente em suas escavações a experiência de seu pai.

Na atualidade, a vertigem dos fatos que se acumulam leva-nos à consideração equivocada de que existe uma intensificação das experiências. Todavia, o acesso a uma informação não se constitui como um saber (e aqui é preciso entender o saber em sua raiz etimológica que corresponde a sabor, conforme já nos alerta Alberto Caeiro em seu poema O guardador de rebanhos: "Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido"), mas, muitas vezes, como o lastro de um acúmulo de informações que permanecem num plano de realidade, no qual aquilo que ocorre não se constitui em uma experiência. Nessa forma de transmissão, as imagens são pervertidas num processo de desfiguração dos sentidos. Ainda que a vontade de possuir o conhecimento dos fatos em si mesmos esteja continuamente presente, o desejo de fazer uma experiência, de narrar e de ouvir aquilo que se experiencia, dilui-se na alucinação de um ritmo de fatos em que eles não se constituem como experiências-acontecimento.

Uma possível chave para tentar responder esse problema talvez esteja justamente na compreensão da razão e do modo por meio do qual estamos nos tornando cada vez mais pobres em experiência, ou seja, na procura de caminhos que poderiam nos afastar da condição empobrecida e de, portanto, criar condições para que a experiência de pensamento possa acontecer. Um lugar no qual isso poderia ocorrer seria o próprio ensino da Filosofia. Porém, a maneira como a Filosofia vem sendo ensinada não contribui para que os problemas apontados anteriormente sejam solucionados, uma vez que também essa maneira contribuiu, como pudemos notar, para que nos tornássemos mais pobres em experiências, valorizando certo tipo de transmissão do conhecimento do saber filosófico, o qual distancia o aprendiz do pensar por si e, amparado no pensamento dos filósofos, da própria vida como principal forma de ensinar a Filosofia. Os conhecimentos recebidos pela transmissão passaram a ser os legítimos instrumentos que deveriam ser usados para a compreensão e integração da/na vida.

O ensino da Filosofia não valorizou a experiência, mas a transmissão do conhecimento e a reprodução daquilo que foi dito pelos grandes filósofos. O empobrecimento da experiência contribuiu, assim, para o enfraquecimento dos modos de vida das pessoas, de um pensar filosoficamente sobre a vida; nesse lugar, foi colocado um modo de vida estilizado. O ensino da Filosofia, ao invés de criar um lugar de resistência ao empobrecimento da experiência, e, consequentemente, ao empobrecimento da vida, acabou por contribuir para o seu crescimento, transformando a existência em uma mortalha.

A pobreza de experiência, apresentada por Benjamin (1933a), expõe o declínio de uma forma de vida na qual o homem se percebe como parte de uma trama de sentidos e se relaciona intimamente com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Nesse lugar de empobrecimento de si, a relação com um conhecimento acumulado, e extrínseco ao espaço-tempo vivido pelo indivíduo, foi constituindo-se como a única referência significativa para ele. Assim, a representação de um modo de perspectivar o mundo que se situa em uma referência extrínseca ao conhecimento desencadeou no indivíduo a impossibilidade de fazer uma experiência de si mesmo. Enfim, de experimentar a própria vida como uma intensidade de viver e de narrar aquilo que se vive.

O problema da experiência e do conhecimento no ensino da Filosofia, conforme o apresentamos, parece delinear-se como um problema que escapa das imagens dogmáticas do pensamento (Deleuze, 1968), que foi sedimentada durante longo tempo na história do pensamento sobre o ensinar a Filosofia. Esse problema se afigura, ainda, como um problema que afeta decisivamente toda a ação do professor em sala de aula, no entanto, não se configura simplesmente como um problema de ordem pedagógica, didática ou educacional, mas como um problema filosófico que afeta a contingência diária do ensinar a Filosofia (Gelamo, 2007). Nesse sentido, esse problema atinge a própria vida do filósofo que é professor de Filosofia; atinge a nossa própria existência ao nos questionar: o que fazemos nós, filósofos, quando nosso ofício é ser professor de Filosofia?

Recebido em 18.06.09

Aprovado em 06.04.10

Rodrigo Pelloso Gelamo possui Licenciatura e Mestrado em Filosofia e Doutorado em Educação. Atualmente é professor do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da FFC/UNESP (Marília). Seu interesse de pesquisa está relacionado à problemática filosófica do ensino, especialmente ao ensino da Filosofia e à Filosofia da Educação.

* Pesquisa financiada pela FAPESP.

  • AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
  • BÁRCENA, F. La experiencia reflexiva en educación Barcelona: Paidós, 2005.
  • BENJAMIN, W. (1933a) Experiência e pobreza. In: _____. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 195-198.
  • ______. (1933b) Teoria das semelhanças. In: _____. Sobre arte, técnica linguagem e política Tradução Maria Amélia Cruz. Lisboa: Relógio d'Água, 1992. p. 59-69.
  • CHAUI, M. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: BRANDÃO, C. et al. O educador hoje 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 51-70.
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  • FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
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  • GELAMO, R. P. O problema da experiência no ensino da filosofia. Educação e Realidade, v. 31, p. 9-26, 2006.
  • ______. Ensino de filosofia para não filósofos. Filosofia de ofício ou ofício de professor: os limites do filosofar. Educação e Sociedade, v. 28, p. 231-252, 2007.
  • ______. Pensar sem pressupostos: condição para problematizar o ensino da filosofia. Pro-Posições, v. 19, p. 161-174, 2008.
  • JAY, M. Songs of experience: modern American and European variation on a universal theme. Berkeley: University of California Press, 2004.
  • LARROSA, J. Algunas notas sobre la experiencia y sus lenguajes. In: ______. Trajetórias e perspectivas da formação de educadores São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 19-34.
  • MOREY, M. Pequeñas doctrinas de la soledad Madrid: Sexto Piso, 2007.
  • RANCIÈRE, J. Le maître ignorant: cinq leçons sur l'émancipation intellectuelle. Paris: Fayard, 1987.
  • Correspondência:
    Rodrigo Pelloso Gelamo
    Av. Hygino M. Filho, 737 - CP 182
    17.525-900 – Marília – SP
    E-mail:
  • 1
    . Confira especialmente a terceira parte do livro Vigiar e punir – Foucault (1975).
  • 2
    . Gelamo (2006) apresenta uma série de outras dificuldades que se pode encontrar no ensino da Filosofia. Aqui apenas enunciamos alguns deles para contextualizar o problema central que pretendemos desenvolver neste artigo.
  • 3
    . Cf. Gelamo (2006; 2008).
  • 4
    . Desde 2009, o Estado de São Paulo vem utilizando um material de apoio pedagógico para o ensino da Filosofia que integra uma ação da Secretaria da Educação denominada São Paulo faz escola. Esse material é composto por doze cadernos para os alunos e doze cadernos para os professores distribuídos nos três anos do ensino médio.
  • 5
    . Para Rancière, a noção de compreensão contribui para legitimar a lógica da explicação, tornando-a mais problemática. Para o autor, "infelizmente, é justamente essa pequena palavra, essa palavra de ordem dos esclarecidos – compreender – que faz todo o mal. É ela que paralisa o movimento da razão, destrói sua confiança em si mesma, expulsa-a de sua via própria ao quebrar em dois o mundo da inteligência, ao instaurar a ruptura entre o animal tateador e o pequeno cavalheiro instruído, do senso comum à ciência" (Rancière, 1987, p. 18-19).
  • 6
    . Segundo Bárcena (2005), somos herdeiros de uma ansiedade que não permite aceitar a ambiguidade, a falta de clareza e certeza, nem a diversidade de opiniões, a não ser que todas elas se encaminhem e concluam para uma proposição em que prevaleça o acordo racional.
  • 7
    . Apresentamos aqui uma pequena parte do debate feito ao longo da história do pensamento filosófico sobre a tematização da experiência, a fim de contextualizar nosso problema. Para maior aprofundamento ver Larrosa (2004), Jay (2004), Agamben (2005) e Gelamo (2006).
  • 8
    . Sobre esse aspecto ver especialmente Deleuze (1968). Confira, também, Gelamo (2008).
  • 9
    . Para isso, conferir os textos mencionados acima de Gagnebin (1986) e Morey (2007).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Aceito
      06 Abr 2010
    • Recebido
      18 Jun 2009
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