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A educação na 'Constelação pós-nacional': o enfraquecimento da legitimação e do controle democrático, "expertocrático" e ético-profissional

Resumos

O presente artigo discute as atuais transformações nos sistemas educacionais em todo o mundo. Tendo como foco a União Europeia (UE) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) como atores de políticas, seu argumento é que tais transformações implicam uma tripla "economização" da política educacional, que pode ser constatada em todos os níveis da área educacional. A importância cada vez maior dessas organizações nas questões educacionais configura uma transição para uma "constelação pós-nacional" também na área educacional, na medida em que a soberania educacional nacional está, no mínimo, passando por reajustes. No entanto, a "economização" das políticas educacionais não se limita a aproximar a educação das necessidades da economia e a transformar seus serviços em mercadorias comercializáveis. Ela também afeta o nível operacional da educação. Uma lógica de produção está sendo implementada na descrição realizada pelas próprias instituições do sistema educacional, que deixaram de ser estabelecimentos burocraticamente administrados para ser concebidos como uma atividade comercial gerencialmente controlada, uma atividade na qual uma ação empresarial se faz necessária. Esse novo tipo de administração faz surgir o problema da legitimação democrática das decisões políticas que, em termos ideais, combina três elementos: o democrático, o "expertocrático" e o ético-profissional. O artigo discute as consequências de uma mudança no equilíbrio desses três elementos no caso da Alemanha.

"Economização" da educação; UE; OCDE; Educação internacional; Alemanha; Constelação pós-nacional


The article discusses current transformations in the education systems worldwide. Focusing on the European Union (EU) and the Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD) as policy actors, it argues that these transformations imply a triple economization of education policy which can be observed at all levels of the education sector. The increasing importance of these organizations in educational issues marks a transition to a "postnational constellation" also in the education field insofar as the national educational sovereignty is being at least readjusted. The economization of education policy is however not restricted to bringing education closer to the needs of the economy and to turning its services into tradable goods. Rather, it also impinges on the operative level of education. A logics of production is being implemented in the self-description of the institutions of the education system, which are no longer bureaucratically administered establishments, but are rather conceived of as managerially conducted production business in which entrepreneurial action is needed. This new governance raises the problem of democratic legitimation of political decisions which ideally combines three elements: democratic, expertocratic, and ethico-professional. The article discusses the consequences of a shift in the balance of the three components with reference to Germany.

Economization of education; EU; OECD; International Education Policy; Germany; Postnational constellation


A educação na 'Constelação pós-nacional': o enfraquecimento da legitimação e do controle democrático, "expertocrático" e ético-profissional* * Traduzido do alemão por Marcelo Parreira do Amaral.

Education in the 'Postnational Constellation': the weakening of democratic, expertocratic and ethicoprofessional legitimation and control

Frank-Olaf Radtke

Johann Wolfgang Goethe-Universität

Frank-Olaf Radtke é professor de Educação na Universidade Goethe, de Frankfurt, Alemanha. Obteve seu doutorado e pósdoutorado na Faculdade de Educação da Universidade de Bielefeld. Tem uma extensa quantidade de publicações sobre tópicos educacionais, tais como a educação e a migração, a "comodificação" da educação, a equidade e a igualdade na educação, entre outros. Frank-Olaf Radtke é o coeditor das séries Grundriss der Pädagogik/Erziehungswissenschaft (Kohlhammer) e Migration und Kultur(Cooperative).

Resumo

O presente artigo discute as atuais transformações nos sistemas educacionais em todo o mundo. Tendo como foco a União Europeia (UE) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) como atores de políticas, seu argumento é que tais transformações implicam uma tripla "economização" da política educacional, que pode ser constatada em todos os níveis da área educacional. A importância cada vez maior dessas organizações nas questões educacionais configura uma transição para uma "constelação pós-nacional" também na área educacional, na medida em que a soberania educacional nacional está, no mínimo, passando por reajustes. No entanto, a "economização" das políticas educacionais não se limita a aproximar a educação das necessidades da economia e a transformar seus serviços em mercadorias comercializáveis. Ela também afeta o nível operacional da educação. Uma lógica de produção está sendo implementada na descrição realizada pelas próprias instituições do sistema educacional, que deixaram de ser estabelecimentos burocraticamente administrados para ser concebidos como uma atividade comercial gerencialmente controlada, uma atividade na qual uma ação empresarial se faz necessária. Esse novo tipo de administração faz surgir o problema da legitimação democrática das decisões políticas que, em termos ideais, combina três elementos: o democrático, o "expertocrático" e o ético-profissional. O artigo discute as consequências de uma mudança no equilíbrio desses três elementos no caso da Alemanha.

Palavras-chave: "Economização" da educação — UE — OCDE — Educação internacional — Alemanha — Constelação pós-nacional.

Abstract

The article discusses current transformations in the education systems worldwide. Focusing on the European Union (EU) and the Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD) as policy actors, it argues that these transformations imply a triple economization of education policy which can be observed at all levels of the education sector. The increasing importance of these organizations in educational issues marks a transition to a "postnational constellation" also in the education field insofar as the national educational sovereignty is being at least readjusted. The economization of education policy is however not restricted to bringing education closer to the needs of the economy and to turning its services into tradable goods. Rather, it also impinges on the operative level of education. A logics of production is being implemented in the self-description of the institutions of the education system, which are no longer bureaucratically administered establishments, but are rather conceived of as managerially conducted production business in which entrepreneurial action is needed. This new governance raises the problem of democratic legitimation of political decisions which ideally combines three elements: democratic, expertocratic, and ethico-professional. The article discusses the consequences of a shift in the balance of the three components with reference to Germany.

Keywords: Economization of education — EU — OECD — International Education Policy — Germany — Postnational constellation.

Em 1612, durante o Reichstag do Sacro Império Romano-Germânico, em Frankfurt am Main, o humanista Wolfgang Ratke (Ratichius) apresentou um memorial com seu "novo método de ensino", que prometia a garantia da unidade e da paz em um Império ameaçado pela desintegração e pela guerra. Naquela época, às vésperas da Guerra dos Trinta Anos, isso representava mais do que uma promessa ostentatória. Com sua crença luterana no poder do ensino escolar, o didático Ratke demonstrou ter uma capacidade de imaginação muito maior do que seus contemporâneos. Ele antecipou o conceito moderno de educação pública como sendo parte do governo de uma população inteira, num tempo em que a implementação material desta não fora sequer pensada por seus contemporâneos.

Embora nessa época sua proposta tenha sido recebida com nada além de incompreensão da parte dos poderosos, esse evento marca o início de um processo de diferenciação functional entre a política e a pedagogia. A partir de então, a arte de governar e a arte de educar passam a ser consideradas complementares.

A ideia de um controle pedagógico da população1 1 Na versão inglesa do artigo:"pedagogical steering of the population". O verbo steer tem vários significados, todos relacionados a um direcionamento, regulação ou controle de um objeto ou de pessoas/ grupos. só pôde ser estabelecida durante a segunda metade do século XVIII, época influenciada pelo Iluminismo e o Humanismo europeus.

A educação do conjunto da população pelo poder público deveria transformar os diferentes grupos em uma "nação", ajudar a espécie humana em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, e qualificar o indivíduo de modo que ele pudesse ser útil aos diferentes sistemas funcionais da sociedade. Um sistema educacional abrangente, capaz de transcender a escola, tornou-se uma característica da soberania nacional dos Estados europeus durante o século XX, e serviu de modelo para a construção de Estados em todo o mundo.

Em 2000, quando o Conselho Europeu, em sua Declaração de Lisboa, afirmou que a "Aprendizagem Vitalícia" é um meio para que a Europa se transforme na "região mais competitiva do planeta" no período de alguns anos, aqui estava expressa exatamente a mesma lógica de controle pedagógico dos processos sociais que o Reichstag não desejava endossar quatro séculos antes. Paralelamente a isso, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) preparou o terreno para tais transformações ao retomar sua estratégia de comparações internacionais (avaliações em larga escala) dos sistemas de educação nacionais - que se tornaram bastante conhecidas na Alemanha com o acrônimo PISA-2000. O programa PISA tem como objetivo o aperfeiçoamento da qualidade dos resultados do processo educacional nas escolas, a fim de aumentar a empregabilidade dos graduados.

A agenda de Lisboa e a estratégia PISA partilham da mesma visão comum, a de que a educação pública pode ser usada como um instrumento útil de controle para que se possa alcançar um desenvolvimento socialmente desejável. Hoje, não se trata da promessa prematura feita por um pedagogo excessivamente autoconfiante, mas existe uma forte crença na viabilidade sociotécnica de objetivos sociopolíticos — que parece estar solidamente estabelecida nos discursos públicos — que podem ser prescritos pelo sistema politico e colocados em prática pelo sistema educacional. A educação mais abrangente do conjunto da população tornou-se uma opção política que é frequentemente invocada quando problemas sociais estão à espera de soluções.

1.

Lisboa e PISA representam, possivelmente, um divisor de águas importante na história do discurso sobre a educação global. As Declarações da UE e os estudos comparativos realizados pela OCDE, associados a esses nomes de cidades, parecem relativizar a importância do Estado-nação; atores influentes na política educacional adentraram esse cenário à guisa de organizações transnacionais. Cada vez mais, a educação torna-se uma questão política internacional.

De modo complementar às competências dos Estados-membros, a Comissão da UE reivindica para si a sua própria jurisdição em relação à política educacional (Keeling, 2006). O mesmo ocorre com a OCDE, e poder-se-ia mencionar outras organizações, tais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (Martens; Rusconi; Leuze, 2007). A crescente importância dessas organizações em questões educacionais, tanto em escolas quanto em outras instituições correlatas, marca a transição para uma "constelação pós-nacional" (Habermas, 1998) também na área educacional, na medida em que a soberania nacional em educação — que fora, até então, defendida com tanto zelo pelos Estadosnação — está, no mínimo, passando por ajustes. A novidade é que organizações transnacionais reivindicam o fato de influenciar, pelo menos indiretamente, o desempenho das instituições pertencentes aos sistemas nacionais de educação, por meio do estabelecimento de metas e de acordos sobre seus objetivos - da educação infantil à universidade.

A internacionalização do discurso sobre a educação nos últimos 20 anos tem sido empiricamente associada à tripla "economização" das políticas educacionais. Em todos os documentos internacionais, a educação: 1) tem sido analisada em termos surpreendentemente unidimensionais, como uma forma de exploração da população, e subordinada, em sua essência, a objetivos econômicos; 2) está, ao mesmo tempo, sendo tratada como se fosse um bem econômico que pode ser produzido; e 3) está sendo comercializada como qualquer outra commodity do setor produtivo. Essa estreita associação não deve causar surpresa. As organizações em questão são, à exceção da UNESCO, organizações internacionais e transnacionais, cujos objetivos são a promoção dos sistemas econômicos e do desempenho destes. Segundo seus estatutos, sua condição é a de guardiões do livre mercado; ou seja, elas estão comprometidas com a ideia de que a distribuição de bens e serviços será mais bem regulada se ocorrer por meio de um mecanismo de atribuição de preços.

Os governos dos Estados-membros da UE e da OCDE se juntaram — pelo menos até meados de 2008 — numa crença paradigmática no poder harmonizador do mercado e da competição, que seriam capazes de criar o equilíbrio entre a busca individual de vantagens e a riqueza social de um modo geral. O paradoxal princípio de controle do laissez-faire — descoberto pelos filósofos morais do século XVIII, descrito de modo contundente por Adam Smith como a "mão invisível" e radicalizado por Milton Friedman no século XX — foi condensado em um programa dentro do neoliberalismo. Ele dominou o discurso público dos últimos trinta anos e definiu os limites entre o que podia ser dito e pensado. O efeito visível de sua aplicação é a desregulamentação e a ativa globalização dos mercados financeiros internacionais (commodities, serviços e mão-deobra), adotadas por virtualmente todos os governos após 1989.

A área da economia da educação (Becker, 1993) encontrou uma forma plausível de correlacionar educação e economia ao usar a terminologia dos mercados de educação, do investimento em capital humano e da exploração dos recursos educacionais da população ainda inexplorados.

A nova política educacional transnacional é neoliberal na medida em que, na sua essência, tem por objetivo uma mudança de estratégia, ou seja, passando de estratégias de "correção de mercado" para estratégias de "preparação de mercado" (Scharpf, 2001). A lista de serviços sociais — que até então não tinham interesses comerciais como objetivo — começou a ser radicalmente reduzida há algum tempo, e hoje o prospecto de mercados reais está aberto também a serviços no setor educacional. Desde 1995, serviços comercializáveis internacionalmente estão sendo listados nos extensos catálogos do acordo GATS2 2 Sigla em inglês para Acordo Geral sobre Comércio e Serviços. ; estes se encontram, basicamente — na esfera regulamentada da educação não-especializada, e para além desta — na área de assistência à pré-escola, no ensino de adultos e profissionalizante, bem como no ensino superior.

2.

No entanto, a "economização" das políticas educacionais não se limita a aproximar a educação das necessidades da economia e a transformar seus serviços em mercadorias passíveis de comercialização. Ela também afeta o nível operacional da educação. À técnica de "coordenação aberta" (que é usada pela UE em relação a seus membros) e ao "Novo Gerenciamento" (Nova Gestão) baseado em indicadores — com o qual a OCDE busca o aperfeiçoamento das instituições educacionais —, são adicionados instrumentos de controle que estão presentes no setor educacional e cujos moldes estão nos métodos de gerenciamento da qualidade característicos de empresas.

A introdução dessas novas técnicas de controle na área da educação adota um mode-lo de pensamento bastante familiar à administração de negócios: a lógica da produção. Tal lógica está sendo implementada na descrição realizada pelas próprias instituições do sistema educacional, que deixaram de ser estabelecimentos burocraticamente administrados para ser concebidas como uma atividade comercial gerencialmente controlada, na qual uma ação empresarial se faz necessária.

Essa visão está sendo produzida por uma "comunidade epistêmica" (Haas, 1992), interligada em nível internacional, de peritos em educação que, se quiserem ser aceitos — por assim dizer — nessa comunidade, devem partilhar paradigmaticamente uma gama de crenças. Juntamente com jornalistas e fundações operativas, eles alinham a política e a opinião pública à sua visão das instituições educacionais e dos problemas a serem enfrentados dentro destas. Com a finalidade de impor o novo regime (market regime), politicos, associações comerciais, empresas de consultoria e pesquisadores na área educacional unem-se em uma "coalizão de defesa" (advocacy coalition) (Sabatier; Jenkins-Smith, 1999) das políticas educacionais neoliberais, nas quais as premissas ideológias (o sistema de crenças) e os interesses politicos se agrupam seletivamente em torno de determinadas linhas de pesquisa educacional.

A Economia da Educação e a Econometria estão passando por uma notável revitalização. Convictos da existência de leis ubíquas e aparentemente naturais, consultores empresariais ousam converter não somente as funções econômicas, mas também várias funções sociais — incluindo a educação — em um esquema de investimentorendimento e traduzi-las em metas a serem atingidas por meios técnicos e organizacionais.

O conhecimento exigido dos administradores será proporcionado pela eficácia escolar e por pesquisadores educacionais empíricos. Assim como a Econometria, essas linhas de pesquisa (Scheerens; Bosker, 1998) operam com um modelo processo-produto, que busca estabelecer correlações entre as intervenções pedagógicas e os seus efeitos. Muito embora esse modelo tenha sido rejeitado há tempos pelas ciências da educação e tenha sido substituído por um modelo de utilização de recursos (Fend, 1998) — que também deriva da área econômica —, muitas pesquisas estão sendo encomendadas (sobretudo por psicólogos cognitivos) com o objetivo de encontrar regularidades aparentemente naturais e nomológicas nos processos de ensino e aprendizagem. Assim como os economistas, esses pesquisadores também baseiam-se em modelos nãohistóricos e descon-textualizados, construídos sobre a correlação entre algumas poucas variáveis, e tentam fornecer um conhecimento com soluções sólidas para o novo gerenciamento educacional - seja ele para a educação infantil, para a escola básica ou para a educação de adultos.

De um modo geral, consolida-se uma racionalidade como um meio a justificar uma finalidade; uma racionalidade que fica visível nos princípios gerais daquilo que poderia ser a definição de educação dada pela UE e pela OCDE: a produção mais eficiente e eficaz de competências economicamente úteis da parte dos graduados, que são orientados na direção do ideal do homo economicus. Isso tem sido conceitualizado mais claramente no programa de Aprendizado Vitalício, que enfatiza a necessidade de um investimento continuo no próprio capital humano.

3.

É discutível se o fenômeno da transnacionalização da política pode ser interpretado como uma perda da soberania do Estado-nação, o que poderia ser equiparado a uma diminuição de poder "a contragosto" (Zürn; Binder; Ecker-Ehrhardt; Radtke, 2006). Por um lado, é verdade que os instrumentos do novo controle "expertocrático" - que se valem de comparações internacionais e intranacionais, dependem de provas científicas e de suas necessidades inerentes e delas resultantes - só podem ser consolidados nas relações internacionais se, e somente se, atenderem aos interesses politicos domésticos. Os Estadosmembros e suas elites funcionais devem envolverse com um regime transnacional dentro de um terreno de questões particulares fora de suas próprias considerações. A diferente implementação dos processos de Lisboa e o PISA nos Estadosmembros nos oferece claros exemplos das diferentes interações entre os níveis nacional e transnacional.

A decisão de utilizar mecanismos de controle próprios da área econômica na esfera dos serviços públicos recebe uma forte motivação em nível nacional, sobretudo porque eles têm demonstrado que garantem um consumo de recursos mais racionais quando os custos são comparados aos benefícios. Os Estados de Bem-Estar Social tomaram essa decisão em meio à política de redução da proporção de gastos governamentais em relação ao PIB e no contexto da ideologia do "Estado enxuto". Os serviços postais, de transporte, de abastecimento de água e energia, de saúde e sociais passaram a ser regulados por meio do mecanismo de atribuição de preços; é chegada a vez do setor educacional de custo elevado. Desse modo, melhora-se a eficiência dos recursos empregados, abrindo novas fontes de financiamento por meio dos impostos dos usuários e de doações, que podem compensar a escassa - e programaticamente gerida - receita advinda de impostos.

A concentração de competências por parte das organizações transnacionais corresponde à disposição dos governos nacionais em fazer uso da expertise disponível para objetivos politicos domésticos - o que, significativamente, é proporcionada pelos "consórcios" encomendados por empresas internacionalmente ativas de avaliação e por institutos de pesquisa. Descobertas científicas em ciências sociais são normalmente caracterizadas por uma ambiguidade, e é por essa mesma razão que as provas empíricas fornecidas por esses pesquisadores na área da educação podem ser úteis aos tomadores de decisão, que delas se beneficiam de modo seletivo, chegando a conclusões que são convenientes a seus interesses politicos (Tillmann , 2009). Em ciência política, o conceito de "Nova Razão de Estado" descreve uma inclinação consistente dos governos nacionais a estimular uma pressão política doméstica, com o auxílio de organizações internacionais, a fim de que sejam superadas resistências a seus projetos de reformas (Wolf, 2000). Exemplos disso são a diminuição da duração do período escolar (de 13 para 12 anos), a introdução de exames (comparativos) padronizados, da instrução pré-escolar e das escolas em período integral.

Embora os atores transnacionais devam respeitar a autonomia dos governos nacionais, eles dependem, de fato, dos esforços de cooperação da parte destes: o método de gestão em vários níveis talvez possa lhes garantir a liberdade de ação. A gestão em vários níveis é o método usado por organizações transnacionais para exercer influência sobre os governos nacionais; ela pode, dependendo das circunstâncias, criar uma turbulência nos sistemas nacionais e, assim, influenciar indiretamente as tradições de políticas educacionais e formas comuns de pensamento. No entanto, nem o nível transnacional nem o nacional são capazes de manter o controle sobre a dinâmica politico-administrativa que eles desencadeiam.

4.

Essa nova gestão faz surgir o problema da legitimação democrática das decisões políticas. Métodos de controle indireto por meio de indicadores, dados comparativos (padrões de desempenho, ranqueamentos) ou acordos quanto a metas tendem a suspender os complexos procedimentos que normalmente são proporcionados por políticas democráticas.

Nos Estados constitucionais modernos, toda intervenção séria na vida dos grupos ou dos indivíduos requer, idealmente, uma combinação de três elementos: a legitimação democrática, a "expertocrática" e a ético-profissional. Com a adoção de uma postura normativa, interesses distintos devem ser deliberadamente comparados uns com os outros, com base em um conhecimento adequado de um ponto de vista intencional/racional, mas também de um ponto de vista valorativo/ racional. Nesse modelo, a política de Estado assume o papel moderador de propor decisões aglutinatoras e de garantir o seu cumprimento até nova ordem. A justificação da ordem social em importantes esferas da vida deve ser negociada mediante o debate público entre partidos politicos, associações, a ciência, a administração e as profissões. De modo semelhante — e particularmente —, as decisões na esfera da educação pública devem ser justificadas de acordo com princípios geralmente reconhecidos de uma ordem política justa (Forst, 2007) — mais do que nunca, pois a educação afeta as oportunidades de participação do indivíduo na vida social.

Por um lado, os especialistas da OCDE, da Comissão da UE e de conselhos nacionais, tais como a Conferência Permanente dos Ministros da Educação e Assuntos Culturais do Länder na República Federal da Alemanha (KMK) comparam eufemisticamente a nova gestão a uma desideolo-gização das políticas educacionais. Por outro, observadores mais críticos veem nessas novas técnicas de controle um sintoma do enfraquecimento dos elementos democráticos da tomada de decisões. Alguns autores falam de uma despo-litização e de uma "desdemocratização" do setor educacional. "Os mercados", alertou Jürgen Habermas (2005), de um modo geral,

[...] que não podem ser democratizados como administrações de Estado, estão cada vez mais assumindo funções de controle em esferas da vida que até então eram dispostas de um modo normativo, ou seja, politicamente ou por meio de formas pré-políticas de comunicação. A esfera que está sujeita à legitimação pública também está diminuindo. (p. 15)

Nesse momento, o que parece ocorrer também no setor internacionalizado da educação é que "uma coordenação de ações por meio de valores, normas e o uso de uma linguagem direcionada a um consenso (verständigungsorientiert)" (p. 32) está sendo substituída por uma atividade comercial tecnoctata e também por uma clara raciona-lidade de mercado, cujos efeitos podem ser estimados e avaliados retrospectivamente.

A UE e a OCDE — cujos órgãos executivos não são democraticamente eleitos — não dispõem de nenhuma outra estrutura normativa de orientação além de seu mínimo denominador comum, ou seja, seu compromisso com o livre mercado e com o ideal da eficácia e da eficiência, ambas economicamente definidas. Pelo me-nos até esse momento, o mecanismo democrático de tomada e de legitimação de decisões esteve, em grande parte, ausente na UE e na OCDE. Esse fato proporciona aos especialistas — cuja legitimidade está baseada no conhecimento científico (provas) — uma influência cada vez maior. Enquanto a internacionalização da política for equivalente a sua "expertocratização" e esta, por sua vez, estabelecer o regime de controle da produção como o padrão da política nacional, ocorrerá um desmantelamento "frio" das formas de controle democrático e de legitimação também no setor educacional. Se tal perda virá acompanhada por um ganho correspondente em racionalidade — que teria, então, de ser mensurada em termos de ganhos no desempenho do sistema —, isso está para ser demonstrado por meio de avaliações da estratégia empregada.

5.

A introdução da nova gestão traz prejuízos não somente ao elemento democrático nos processos de tomada de decisão. O segundo elemento — o próprio elemento "expertocrático", a que se deu ênfase — que deveria ser baseado na descrição mais realista da realidade, tem seu alcance consideravelmente limitado com as novas práticas de controle. Numa situação em que pesquisas encomendadas são realizadas para um mercado simulado e sob a necessidade permanente de conseguir os chamados financiamentos de pesquisa junto a terceiros, pesquisadores da área da educação — considerando que eles estejam aptos a realizar pesquisas — não têm tido outra alternativa a não ser concordar com as demandas de políticos para obter conhecimento causal ou que se assemelhem a normas.

A fim de estimular a receptividade dos pesquisadores às exigências externas, o establishment politico começou então a transferir a pesquisa educacional das universidades para recém-fundados "institutos de serviços" e a reformular as ciências educacionais baseadas na universidade. Não apenas nesses novos "institutos de serviços", mas também em pesquisas universitárias, as questões estudadas deixaram de seguir a lógica da disciplina acadêmica. O contexto em que ocorrem as descobertas está sendo prescrito externamente pelo assim chamado financiamento programático. A orientação paradigmática desejada é intensamente implementada por meio de financiamentos a pesquisas e de políticas de nomeação de membros do corpo docente. A administração educacional suspende a competição acadêmica para a obtenção do melhor conhecimento a respeito de paradigmas e linhas de pesquisa e cria para si a pesquisa educacional de que ela necessita (Radtke, 2003).

Por fim, também o terceiro componente, o elemento ético-profissional da legitimação das práticas educacionais, está sendo prejudicado pelo novo sistema de controle. Quando instituições educacionais são concebidas como empreendimentos comerciais, deve ocorrer uma mudança nos princípios orientadores do nível operacional da educação. O modelo do profissional (professor, assistente social) está sendo substituído pelo do gerenciador (da sala de aula), que — em termos de ação causal — dispõe de técnicas para alcançar os objetivos de seus empregadores ou para satisfazer as necessidades do mercado. A consequente redução da competência para tomar decisões de modo autônomo tende a interromper o mecanismo específico de moderação (direcionado para os valores) da ação profissional intencional/racional baseada numa postura ética.

Uma característica específica da ação professional no modelo particular de profissionalismo é a sua "potência moral: a 'orientação rumo ao coletivo' das profissões" (Brunkhorst, 1992, p. 70). A ação profissional "se distingue do comportamento estratégico do homem de negócios 'com orientação própria' e dos interesses do administrador que se molda ao mercado". A ação profissional é conduzida por "formas superiores de solidariedade universal". A conquista específica de um profissionalismo desenvolvido, exigida em todas as profissões nas quais as funções são preenchidas em interação com os clientes e no lugar deles, está ameaçada ao ser reprimida pelas novas técnicas de controle e pela adoção do modelo do gerenciador, não somente no sistema educacional. O preço a ser pago é a ausência de empatia.

6.

As novas técnicas de controle contextual3 3 O conceito de "controle contextual" (context steering, Kontextsteuerung) refere-se à teoria dos sistemas de N. Luhmann, para a qual sistemas complexos e auto-organizados (política, economia, ciência, etc.) não podem ser controlados de forma direta e linear sem causar uma série de efeitos e reações não intencionados. Sistemas estão sempre envoltos em um meio ambiente, em um contexto; em consequência, o controle somente pode ser descrito como uma tentativa de um sistema influenciar outro sistema. Processos de ensino-aprendizagem, por exemplo, não poderiam ser adequadamente descritos como uma série de instruções diretas, mas sim como uma sequência de ações ao longo de uma estratégia de controle. , de gerenciamento da qualidade e de controle de desempenho foram introduzidas como reação à nãogovernabilidade ("bloqueio das reformas") de complexos sistemas funcionais da sociedade. Do ponto de vista dos reformadores, foi registrado um sucesso inicial estrondoso. A nova gestão levou a sérias turbulências no sistema educacional, da educação infantil à educação superior, e provocou reações às demandas externamente estabelecidas. É claro que esse sucesso inicial não deve criar ilusões no estabelecimento educacional: uma gestão sólida também inclui um sólido desgoverno. Aquilo que produz muitos efeitos também pode causar muitos efeitos colaterais.

Uma consequência óbvia da nova gestão no setor educacional é a tendência a uma redução do controle democrático e ético-profissional e à legitimação dos processos educacionais agora concebidos como processos de produção. Se acrescentarmos a isso o fato de que os resultados das pesquisas empíricas em educação são inconclusivas, frágeis e metodologicamente inadequadas como base para decisões políticas, deve-se antecipar que haverá, na sequência, decepções e, em breve, uma reforma da reforma terá de ser empreendida.

Sabe-se, há tempos, que em um contexto de diferenciação funcional, a economia é melhor gerida por economistas, a ciência por cientistas ou acadêmicos, e a educação, por educadores especializados. Os políticos não devem esquecer — nem mesmo quando estão sob pressão da opinião pública - que eles não são capazes, sozinhos, de gerenciar bancos, manufaturar carros, realizar pesquisas ou educar crianças. A tarefa que lhes cabe envolve a criação das condições ideais, de modo geral, para as organizações e as profissões qualificadas, nas quais as funções sociais — por exemplo, a educação - possam ser realizadas a contento.

Se, numa política educacional internacionalizada — por razões compreensíveis — for dada ao elemento "expertocrático" uma ênfase excessiva, em que os objetivos são determinados por meio de comparações e, então, apresentados como limitações factuais para as quais não restam alternativas, os outros dois elementos — a democracia e a profissão — estarão imediatamente ausentes. O tão debatido desconforto com um mundo cada vez mais organizado em termos econômicos (simulado nos moldes do mercado) — que pode ser hoje observado no contexto de uma tripla "economização" da educação em todos os níveis — estimula o impulso de estabelecer a oposição, politica e moralmente, a uma realidade social que é percebida como irracional, injusta e indesejada.

A esperança de poder controlar e governar democraticamente complexos sistemas (internacionais) baseados em valores pode representar uma ilusão ainda oculta ou um excesso utópico ainda não resgatado de uma semântica política tradicional. Essa esperança, contudo, marca a aspiração — à qual não se pode renunciar na constelação pós-nacional — de continuar agindo política e pedagogicamente, ou seja, buscar uma ordem social de uma forma orientada por normas e com a qual a maior parte das pessoas possa concordar. Esta aspiração continuará sendo importante enquanto não desejarmos ficar entregues à sorte da evolução social e sua distribuição de ganhos e perdas — mesmo quando nos mantemos cientes dos limites da influência da política e da pedagogia sobre os sistemas individuais e funcionais da sociedade.

Na tradição do Estado-nação, a tarefa dos sistemas de educação pública era a de dar condições aos futuros cidadãos para que possam reivindicar uma participação política consciente. Esse objetivo que visa à capacidade de julgamento do cidadão deve, então, constituir

o padrão de desempenho para a OCDE e para a União Europeia se estas desejarem deixar de ser uma comunidade econômica e transformarse uma comunidade política, superando as crises da economia de mercado na condição de

Correspondência:

Frank-Olaf Radtke

Johann Wolfgang Goethe-Universität

Fachbereich Erziehungswissenschaften

Institut für Allgemeine Erziehungswissenschaft

Robert-Mayerstr 1

60054 - Frankfurt am Main

e-mail: f.o.radtke@em.uni-frankfurt.de

Recebido em 12.11.09

Aprovado em 03.02.10

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  • *
    Traduzido do alemão por Marcelo Parreira do Amaral.
  • 1
    Na versão inglesa do artigo:"pedagogical steering of the population". O verbo steer tem vários significados, todos relacionados a um direcionamento, regulação ou controle de um objeto ou de pessoas/ grupos.
  • 2
    Sigla em inglês para Acordo Geral sobre Comércio e Serviços.
  • 3
    O conceito de "controle contextual" (context steering, Kontextsteuerung) refere-se à teoria dos sistemas de N. Luhmann, para a qual sistemas complexos e auto-organizados (política, economia, ciência, etc.) não podem ser controlados de forma direta e linear sem causar uma série de efeitos e reações não intencionados. Sistemas estão sempre envoltos em um meio ambiente, em um contexto; em consequência, o controle somente pode ser descrito como uma tentativa de um sistema influenciar outro sistema. Processos de ensino-aprendizagem, por exemplo, não poderiam ser adequadamente descritos como uma série de instruções diretas, mas sim como uma sequência de ações ao longo de uma estratégia de controle.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Aceito
      03 Fev 2010
    • Recebido
      12 Nov 2009
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