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"Pensamento do fora", conhecimento e pensamento em educação: conversações com Michel Foucault

Resumos

O presente trabalho visa problematizar a suposta constituição virtuosa entre educação e conhecimento oriunda de certa herança cultural da modernidade ocidental. A problemática ancora-se na indagação difusa, porém insistente, a ecoar no campo educacional: "o que é o ato do pensar, em educação, na contemporaneidade?". A tomada das condições atuais do pensamento como um problema de pesquisa educacional coloca em questão a histórica articulação entre conhecimento e pensamento reflexivo, obrigando ao confronto de certos amálgamas pedagógicos caros ao campo educacional moderno. Tal enfrentamento se realiza na companhia dos pensadores Michel Foucault e Friedrich Nietzsche, dada a relevância estratégica de suas produções, particularmente acerca da linguagem, da produção da verdade e de suas implicações nos modos de conhecer e pensar. Busca-se operacionalizar uma crítica da linguagem em direção a uma crítica do pensamento em educação, na chave de uma problematização ético-política. Nesse trabalho, tal plataforma analítica configura-se a partir das discussões de Michel Foucault - tanto em relação à questão do pensamento do fora, tal como elaborada por Maurice Blanchot, como em relação ao pensamento da diferença, tal como formulado por Gilles Deleuze. Sugerimos que a exploração desse debate possa atuar como um exercício de exterioridade ou de pensamento diferencial no jogo com o conhecimento e com o pensamento reflexivo presentes no campo educacional - seja no âmbito dos fazeres pedagógicos cotidianos da escola, seja no campo da produção da pesquisa educacional.

Linguagem; Pensamento do fora; Pensamento reflexivo; Pensamento da diferença; Conhecimento educacional


This study aims to discuss the supposed virtuous constitution of education and knowledge originated from a certain cultural heritage of Western modernity. The study's problematic is anchored in the diffuse but insistent question which echoes in the educational field: "what is the act of thinking in education in contemporary times?". Studying the current conditions of thought as a problem of educational research calls into question the historical relationship between knowledge and reflective thinking, and it forces the confrontation of certain pedagogical amalgams dear to the modern educational field. Such confrontation takes place in the company of the thinkers Michel Foucault and Friedrich Nietzsche, given the strategic importance of their writings, particularly about language, the production of truth and their implications for the ways of knowing and thinking. I attempt to operate a critique of the language toward a critique of the thought in education, in the key of an ethical and political problematization. In this work, such analytical platform configures itself with Michel Foucault's discussions - both in relation to the matter of the thought of the outside, as developed by Maurice Blanchot, and the thought of difference, as formulated by Gilles Deleuze. I suggest that the exploration of this debate can be an exercise of exteriority or of differential thinking in the game with the knowledge and the reflective thinking present in the educational field - both in the ambit of school everyday pedagogical practices and in the field of the production of educational research.

Language; Thought of the outside; Reflective thinking; Thought of difference; Educational knowledge


ARTIGOS

"Pensamento do fora", conhecimento e pensamento em educação: conversações com Michel Foucault

Cintya Regina Ribeiro

Universidade de São Paulo

Correspondência Correspondência: Cintya Regina Ribeiro Faculdade de Educação da USP Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação Av. da Universidade, 308 05508-040 São Paulo /SP E-mail: cintyaribeiro@usp.br

RESUMO

O presente trabalho visa problematizar a suposta constituição virtuosa entre educação e conhecimento oriunda de certa herança cultural da modernidade ocidental. A problemática ancora-se na indagação difusa, porém insistente, a ecoar no campo educacional: "o que é o ato do pensar, em educação, na contemporaneidade?". A tomada das condições atuais do pensamento como um problema de pesquisa educacional coloca em questão a histórica articulação entre conhecimento e pensamento reflexivo, obrigando ao confronto de certos amálgamas pedagógicos caros ao campo educacional moderno. Tal enfrentamento se realiza na companhia dos pensadores Michel Foucault e Friedrich Nietzsche, dada a relevância estratégica de suas produções, particularmente acerca da linguagem, da produção da verdade e de suas implicações nos modos de conhecer e pensar. Busca-se operacionalizar uma crítica da linguagem em direção a uma crítica do pensamento em educação, na chave de uma problematização ético-política. Nesse trabalho, tal plataforma analítica configura-se a partir das discussões de Michel Foucault – tanto em relação à questão do pensamento do fora, tal como elaborada por Maurice Blanchot, como em relação ao pensamento da diferença, tal como formulado por Gilles Deleuze. Sugerimos que a exploração desse debate possa atuar como um exercício de exterioridade ou de pensamento diferencial no jogo com o conhecimento e com o pensamento reflexivo presentes no campo educacional – seja no âmbito dos fazeres pedagógicos cotidianos da escola, seja no campo da produção da pesquisa educacional.

Palavras-chave: Linguagem – Pensamento do fora – Pensamento reflexivo – Pensamento da diferença – Conhecimento educacional.

Marcada pela idade da razão, certa herança cultural da modernidade ocidental tem postulado uma correlação virtuosa entre educação e conhecimento. Tal sincronismo teria como lastro de virtude os valores humanistas, os quais, por sua vez, fundamentariam o empreendimento da razão moderna, sobretudo em relação ao seu horizonte civilizatório.

O presente trabalho situa-se numa chave de problematização dessa suposta constituição virtuosa entre educação e conhecimento. A partir de uma perspectiva genealógica, visamos a explicitação do caráter contingencial desse binômio, num esforço de desnaturalização de suas condições de efetuação.

Tal investida analítica justifica-se a partir da emergência de certas situações no tempo presente que têm se manifestado sob a forma de uma indagação difusa, porém insistente, a ecoar no campo educacional: o que é o ato do pensar, em educação, na contemporaneidade?

As próprias condições que conclamam a emergência da pergunta e que a tornam passível de enunciação já nos inserem na cena problemática na qual nos encontramos fatalmente implicados. Indagar sobre as condições contemporâneas do pensar ou, mais precisamente, tomar as condições atuais do pensamento como um problema de pesquisa educacional não é um procedimento analítico pautado por mera escolha epistemológica. Em nosso entendimento, tal gesto remete, antes, a um enfrentamento ético-político.

A implacabilidade do problema se manifesta porque a emergência e urgência da pergunta deixam entrever um horizonte de esgarçamento daquilo que historicamente temos legitimado como pensamento ou qualificado como ato de pensar. Tal situação obriga-nos a lançar mão de modos de pensamentos outros, permeáveis àquilo que ainda está por vir, possibilitando-nos fazer frente ao império do que se convencionou delimitar como o pensado e o pensável.

Ancorada em valores humanistas, a plataforma moderna que funda a aliança entre educação e conhecimento guarda, como princípio operatório, a indissociabilidade entre conhecimento e pensamento reflexivo. Nota-se que a pergunta sobre as condições contemporâneas do pensar nos obriga ao confronto de certos amálgamas pedagógicos caros ao campo educacional moderno, os quais muitas vezes reverberam historicamente de forma naturalizada e consensual, atualizando-se incansavelmente, como se funcionassem à moda de "mitos de origem".

Para tal enfrentamento, buscamos a companhia dos pensadores Michel Foucault e Friedrich Nietzsche, dada a relevância estratégica de suas produções, particularmente acerca da linguagem e suas implicações nos modos de conhecer e pensar.

De largada, num acento histórico, visamos atentar para os efeitos que a clássica correlação entre educação e conhecimento tem produzido no campo pedagógico, tomando como foco o problema do pensamento. A partir dessa plataforma e, numa ênfase ético-política, buscamos operacionalizar a crítica da linguagem – nas chaves nietzscheana e foucaultiana – na direção de uma crítica do pensamento em educação. Tal empreita visa fomentar possibilidades de outros modos de pensamento, seja no âmbito dos fazeres pedagógicos cotidianos da escola, seja no campo da produção da pesquisa educacional.

Considerando ambos os objetivos, propomos um percurso em três tempos: 1) no primeiro deles, apontamos de que modo os vetores do conhecimento e do pensamento reflexivo se apresentam como organizadores da educação moderna, seja no esteio de uma tradição iluminista, seja no universo das pedagogias críticas, sobretudo no âmbito das teorias curriculares; 2) num segundo movimento, propomos qualificar e problematizar o território das condições do pensamento na contemporaneidade nos rastros do pensamento de Foucault e Nietzsche. A partir dos pensadores, sustentamos que os atos de conhecer e pensar são operações de linguagem implicadas com efeitos ético-políticos; 3) por fim, buscamos destacar, no legado foucaultiano, a peculiar formulação de "pensamento do fora", bem como suas articulações com a produção de Gilles Deleuze acerca do "pensamento da diferença". Sugerimos que tal exploração possa atuar como um exercício de pensamento diferencial no jogo com o pensamento reflexivo presente no campo educacional.

Educação e conhecimento: o pensamento como problema educacional

Ao abordar a especificidade da análise genealógica, Foucault (1998a) afirma que uma dada emergência histórica "não é o surgimento necessário daquilo que durante muito tempo tinha sido preparado antecipadamente; é a cena em que as forças se arriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas" (p. 32).

Nessa perspectiva, ao evocarmos o princípio educacional que dispõe numa singular dobradiça as categorias de conhecimento e pensamento reflexivo, cumpre-nos indagar: sob que condições históricas esse jogo conceitual se materializa como verdade pedagógica? Quais forças discursivas triunfam quando da emergência dessa verdade educacional moderna que se faz ecoar na contemporaneidade?

Em outras palavras, uma indagação acerca do pensamento exige flagrar a cena das condições históricas que engendraram a formulação do problema do conhecimento e, particularmente, do pensamento reflexivo, alçando-os como objetos de atenção privilegiados à seara educacional, seja em sua dimensão científica ou filosófica.

Propomos, assim, uma breve aproximação ao universo das pesquisas educacionais, conferindo destaque às discussões das teorias curriculares, particularmente em suas vertentes críticas. Tal recorte justifica-se na medida em que as teorias críticas do currículo escolar – cujos pressupostos se organizam a partir da década de 1960 – têm explicitado a tomada da questão do conhecimento como foco investigativo.

Tomaz Tadeu da Silva (2002), autor de referência nesses estudos, aponta que "a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado" (p. 14). Quaisquer problematizações curriculares seriam, sobretudo, tentativas de respostas a urgências de seu próprio tempo. As demandas aí em curso implicariam uma ação pedagógica disparada por duas inquietações: a legitimidade do conhecimento a ser ensinado e os traçados identitários, os modos de subjetivação que se ambicionam e se configuram no processo de produção, circulação e legitimação de tal conhecimento.

Alinhado, entre outras, à perspectiva foucaultiana, Silva (2001) argumenta que "a tradição crítica compreendeu, há muito, que o currículo está no centro da relação educativa, que o currículo corporifica os nexos entre saber, poder e identidade" (p. 10).

Disso decorre o caráter político-estratégico de produção e validação do conhecimento escolar, bem como de investimento pedagógico nas metodologias dos atos de conhecer. Ambas as ações, por meio do currículo, operariam como vetores de produção de modos de subjetivação e, consequentemente, de formas de vidas sociais.

Ativados nessa arena curricular, conhecimento e subjetivação tornam-se efeitos de relações de poder. O currículo se produz como maquinaria de saberes, poderes e identidades.

Uma das linhagens de tradição crítica destacará um possível caráter dual da ação educacional. Por um lado, é reconhecida a força do currículo como um lugar de reprodução das relações sociais, sobretudo na conservação das condições de desigualdade social presentes no modelo econômico capitalista. Por outro, é reconhecida a força de resistência constitutiva da educação, no sentido de superação desse reprodutivismo social. Aqui, a capacidade de resistência se afirmaria na medida em que se atribuiria à esfera pedagógica, via ação curricular, o trabalho privilegiado de formação do pensamento crítico, tendo em vista processos de emancipação de sujeitos e produção de outras condições de existência social. Conservação e resistência seriam, pois, expressões de (re)produção das relações sociais. Para tal vertente, os movimentos das relações sociais e os modos de lidar com o pensamento nas práticas pedagógicas implicar-se-iam dialeticamente.

A despeito do vetor político-progressista das teorias críticas, torna-se imprescindível esgarçar-lhes sua composição discursiva a fim de levarmos ao limite a problematização acerca do pensamento à qual nos propomos.

O aparecimento ou a formulação da questão da resistência como um objeto afeito ao campo educacional desponta num cenário de forças discursivas que têm como lastro uma ontologia do sujeito e da verdade.

Em um estudo problematizador das abordagens educacionais críticas, a pesquisadora Maria Manuela Garcia (2002) aponta que, para tais discursos, "o esclarecimento, através da conversão do olhar e das consciências, é condição de redenção e salvação" (p. 88). Tal concepção salvacionista da educação sugere uma implicação moralizante, seja no âmbito individual ou social.

Destaquemos alguns vetores discursivos que informam e conformam a herança educacional crítica. De largada, o princípio do esclarecimento como organizador da vida humana, ou seja, o investimento no ato do conhecer como condição de iluminação, libertação, enfim, emancipação do homem diante dos limites de sua existência. O esclarecimento encontra no simbolismo da iluminação sua expressão lapidar.

Problematizando a incidência do uso das metáforas visuais no modo como, a partir do programa iluminista, as epistemologias modernas têm pautado essa possibilidade de acesso à verdade das coisas, o pesquisador Alfredo Veiga-Neto (2002), observa:

O Iluminismo alimentou a esperança de haver uma perspectiva privilegiada, áurea, perspectiva das perspectivas, a partir da qual se explique o mundo e se chegue à Verdade ou – numa versão probabilística – muito perto dessa Verdade. (p. 28)

A libertação ou emancipação pelo conhecimento ancora-se numa aposta incondicional na possibilidade de encontro do homem com a verdade, tendo a razão como bússola. Para a educação moderna, tal princípio produz os seguintes desdobramentos: de um lado, a certeza de um sujeito ontológico, uma consciência fundada na razão, o pressuposto de um ser cognitivo ou epistemológico fértil em potencialidades educativo-formativas; de outro, uma verdade como possibilidade, um destino a ser alcançado por meio do trabalho de esclarecimento sustentado na educação da razão.

É nesse engenho que o pensamento reflexivo, suposto manifesto de uma suposta razão, produz o conhecer – celebrado encontro do sujeito com a verdade. Assim, seja nos rastros da tradição iluminista ou histórico-crítica, o investimento pedagógico na razão faz do pensamento reflexivo uma das peças molares das tecnologias educacionais presentes na contemporaneidade. É exatamente a tomada do pensamento reflexivo como verdade pedagógica virtuosa que se faz objeto de questão neste trabalho.

Reflexividade e exterioridade do pensamento: algumas considerações

A problematização acerca do pensamento como reflexão é um desdobramento de uma crítica maior, qual seja, a questão do conhecimento como lastro da cultura moderna. Adentremos nesse horizonte crítico, pois.

As considerações foucaultianas em torno da questão do conhecimento e da verdade encontram inspiração ética na obra nietzscheana. Em uma de suas passagens sobre o problema do conhecimento, Nietzsche (2008) atiça:

Que transposições arbitrárias! A que distância voamos além do cânone da certeza! [...] Acreditamos saber algo das coisas mesmas se falamos de árvores, cores, neve e flores, e, no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. [...] As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (p. 55-56)

A provocação do filósofo alemão traz à cena problemas cruciais ao pensamento moderno. Atentemos particularmente para dois focos: o primeiro deles refere-se à condição de arbitrariedade da linguagem, conferindo ao conhecimento e, portanto, à produção de verdade um caráter também arbitrário. O segundo remete à peculiaridade da cultura ocidental moderna, com seu ato de "esquecimento" ou suspensão do próprio processo linguístico de valoração de valores. Essa operação cultural que se faz na linguagem por meio da omissão do processo arbitrário de valoração e definição do verdadeiro e do falso confere a esse ilusionismo da verdade um estatuto de certeza. É esse arbítrio da linguagem que, ao inventar a malha de valores sociais, dá corporeidade à cultura.

Nietzsche, na explicitação desse processo de valoração dos valores, instaura prioritariamente uma crítica à cultura moderna, na medida em que esta se dispõe como pedra angular de fundação e sustentação de formas de vida que se conduzem como impotentes. Entretanto, para além desse alvo temporal, desdobra-se a extemporaneidade de uma crítica radical à linguagem, uma vez que esta é a própria maquinaria que institui essa usina de valoração.

Disso decorre que não haveria isenções nos modos de conhecer e postular a verdade. Inspirado no filósofo intempestivo, Foucault (1999a) complementa:

O conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado. É essa relação estratégica que vai definir o efeito de conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo. O caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana, mas sempre do caráter polêmico e estratégico do conhecimento. Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha. (p. 25)

Nessa crítica, o conhecimento não seria expressão de aderência ou continuidade entre sujeitos, palavras e coisas. Invenção humana, o mesmo seria produto de combate, efeito de lutas movidas por aquilo que Nietzsche (1998, 2001, 2008) qualificaria como "vontade de verdade" – esse moto contínuo das relações de poder.

A verdade do conhecimento seria, sobretudo, um efeito contingencial de relações de forças em litígio – uma espécie de conflito entre verdades na disputa pelo estatuto da verdade. Na acepção foucaultiana, o conhecimento como embate produziria, mais precisamente, efeitos de verdade. Estes sim, em virtude de sua natureza contingencial, se tornariam objetos privilegiados de problematizações por parte dos sujeitos, em sua atualidade.

Se, em relação ao conhecimento, sua condição perspectiva remete à contingência histórica, sua disposição estratégica se encontra intimamente vinculada à questão do poder. Em outros termos, são as configurações históricas que armam estrategicamente os diferentes vetores de forças, ou seja, as múltiplas relações de poder nas quais os homens se encontram situados. Tais articulações conferem ao conhecimento, ou, mais especificamente, a esses efeitos de verdade, sua implicação política.

Assim, a crítica à cultura moderna ocidental é, sobretudo, política, pois coloca em causa o trabalho genealogicamente orquestrado da linguagem e do poder, maquinaria esta que se encontra na base do processo de produção do conhecimento e de lastreamento e naturalização da verdade.

Inevitavelmente, tais inflexões pulverizam as categorias de sujeito e verdade como referências ontológicas de organização da vida social. A raiz dessas desconstruções se encontra na crítica à soberania da razão, atitude que, por apontar o caráter irredutivelmente histórico da virtude da racionalidade, torna explicitada a genealogia mundana desse valor.

Diante de tais implicações, o entendimento acerca dos atos de pensamento também demanda deslocamentos analíticos. Insistimos que a crítica ao pensamento reflexivo se faz como derivada da crítica à soberania da cultura ocidental. Ora, o pensamento, como ato consciente, reflexivo, apresenta-se de modo especular – uma espécie de forma expressiva da razão. Propõe-se tomá-lo agora como efeito inequívoco de arbitrariedades tramadas nas contingências da linguagem e do poder.

Herdeiro da intempestividade nietzscheana, Foucault (1997, 1999a, 1999b) atualiza a crítica em relação a esse lugar privilegiado que a cultura ocidental moderna reservou ao pensamento reflexivo, expondo sua condição de tecnologia de poder contemporaneamente implicada na condução de formas de vida.

Ao discutir a emergência do homem como objeto das ciências humanas, o pensador forja inusitadas correlações entre linguagem e pensamento. Destaquemos um momento estratégico no qual o autor aciona relações entre o "cogito" cartesiano e aquilo que tomará como o impensado:

Não fora também a partir do erro, da ilusão, do sonho e da loucura, de todas as experiências do pensamento não-fundado que Descartes descobrira a impossibilidade de elas não serem pensamentos – de tal modo que o pensamento do mal-pensado, do não verdadeiro, do quimérico, do puramente imaginário, aparecesse como lugar de possibilidade de todas essas experiências e primeira evidência irrecusável? (FOUCAULT, 1999b, p. 446)

Atentemos à singularidade dessa argumentação: a emergência do "cogito" advém exatamente das condições de possibilidade de um pensamento errante. A evidência irrecusável do "eu penso" é uma consequência da errância do pensar, e não de uma suposta racionalidade dada a priori. É da turbulência do pensar errante que se engendra a certeza da pontualidade da razão.

Essa imagem sugere a existência de um espaço imponderável do pensamento como articulador das próprias condições do pensar. A esse imponderável, a esse acaso do pensamento, Foucault (1999b) qualifica como "o impensado". E complementa:

O homem não pôde desenhar-se como uma configuração na epistème, sem que o pensamento simultaneamente descobrisse, ao mesmo tempo em si e fora de si, nas suas margens mas igualmente entrecruzados com sua própria trama, uma parte da noite, [...] um impensado que ele contém de ponta a ponta, mas em que do mesmo modo se acha preso. (p. 450)

Assim, a noite do pensamento seria sua própria condição de produção. Por trazer em si o impensado, o pensamento guardaria seu próprio impensável. Instiga-nos o jogo de exterioridade que aqui se enuncia. O impensado não se localizaria no interior do homem, não seria manifestação ou expressão de interioridade de um suposto sujeito ontológico. Ao contrário. O impensado, o impensável do pensamento, seria, antes, uma força advinda da exterioridade, o lado de fora do homem.

Foucault (2001) empresta do escritor Maurice Blanchot essa apreensão de exterioridade da linguagem, então nomeada como um pensamento do exterior ou pensamento do fora:

Esse pensamento que se mantém fora de qualquer subjetividade para dele fazer surgir os limites como vindos do exterior. [...] Um pensamento que em relação à interioridade de nossa reflexão filosófica e à positividade de nosso saber constitui o que se poderia denominar "o pensamento do exterior". (p. 222)

O deslocamento da linguagem e do pensamento para esse lugar dessubjetivado, de exterioridade, afronta a segurança da centralidade reflexiva como condição de maioridade do pensar. Por transgredir radicalmente os pressupostos da modernidade em relação à soberania do sujeito, da razão e das políticas da verdade que lhe são imanentes, essa situação potencializaria os encontros do homem com outros possíveis da linguagem, outras existências a serem forjadas, pois. Diz-nos ainda Foucault (1999b):

O cogito não conduz a uma afirmação de ser, mas abre justamente para toda uma série de interrogações em que o ser está em questão: que é preciso eu ser, eu que penso e que sou meu pensamento, para que eu seja o que não penso, para que meu pensamento seja o que não sou? Que é, pois, esse ser que cintila e, por assim tremeluz na abertura do cogito, mas não é dado soberanamente nele e por ele? (p. 448)

Numa torção radical em relação à verdade moderna, o enunciado sugere que o cogito não remeteria ao fechamento da certeza do ser, mas, ao contrário, seria ocasião de abertura às interrogações do pensamento, forçando-o a mover-se em direção ao seu "fora". Necessário pontuar que tal "exterioridade", essa condição do fora do pensamento, não se constituiria como um lugar de isenção em relação ao poder. Ao contrário: é a condição mesma de enfrentamento do poder a partir de uma linguagem outra que singularizaria sua exterioridade.

Nessa perspectiva, o exercício do pensamento não se confundiria com um pensar reflexivo, tal como postula a tradição moderna, mas se encontraria exatamente nessa possibilidade de criação de um pensar singular – outra linguagem, pois.

Esse modo de tomar o pensamento produz reverberações intensivas no horizonte do conhecimento. Se a linguagem do conhecer investe na reflexão como condição de formatação e apropriação de si e do mundo, tal tecnologia produz, necessariamente, a conformação dos limites das coisas, circunscrevendo assim os territórios do pensável.

Capturado linguística e politicamente, e na perspectiva de uma crítica da verdade, o conhecimento seria nada mais do que efeito de articulação das redes de saberes e poderes que, materializadas na cultura, produzem e conduzem formas de vida qualificadas como virtuosas.

Na chave nietzscheano-foucaultiana, ao pensamento não caberia a condição pacífica de guardião da cultura e dos valores modernos, fazendo reverberar a conformidade do homem com supostas ontologias do mundo e de si. Refratário a qualquer modo de complacência diante das condições do viver, o pensamento seria de qualidade eminentemente combativa: um vetor de força que se faria contínuo no jogo do poder, produzindo a transgressão do pensável como gesto incondicional de resistência.

O caráter radical da experiência do pensar se encontraria numa dobra estratégica no plano de nossas indagações e de nossos posicionamentos perante a vida: primeiramente, a recusa a um modo de questionamento paradoxalmente dócil, que se conserva alheio diante da necessidade de enfrentamento da naturalização do mundo; em seguida, o investimento no ato de problematização das condições linguísticas de produção desse mundo e, sobretudo, de produção de nós mesmos nesse mundo.

Essa experiência-limite é expressa por Foucault (1998b) na seguinte passagem:

[...] única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, os descaminhos daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. (p. 13)

Nessa filosofia como atitude, o desafio do viver afirmativo encontra-se na coragem desse embate nos vetores de saber-poder que nos subjetivam. Essa invenção de exterioridade do pensar como ato político; esse estranhamento de si e das coisas do mundo e, em última instância, da própria linguagem que produz e territorializa esse mundo, parece ser a condição da força que intensifica esse pensamento não reflexivo – pensamento do não pensado.

Assim, esse pensamento estrangeiro, nômade, indomável, abriria fissuras na linguagem do conhecer, forjando assim a ultrapassagem das fronteiras do pensável. A abertura dessa espécie de "vão" na linguagem, essa lacuna que faz eclodir o improvável do pensamento, seria a condição para pensar o impensável – o impossível do próprio pensamento.

Por isso, o autor francês insiste que a questão do pensamento é de ordem ético-política, na medida em que implica duplamente nossas relações com o mundo e com nós mesmos. Foucault (1998b) nos provoca: trata-se de um exercício filosófico – "saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente" (p. 14). E ao mesmo tempo nos convoca: "somos prisioneiros de algumas concepções de nós mesmos e de nossa conduta. Devemos libertar nossa subjetividade, nossa relação a nós mesmos" (FOUCAULT, 2003, p. 318).

É o contato visceral com a atualidade que nos obrigaria, ético-politicamente, a um trabalho do pensamento sobre o próprio pensamento. Por não se realizar na impunidade da cultura, o ato de pensar diferentemente remete à atitude política de resistência. Ao comentar o estatuto do pensamento na obra foucaultiana, Gilles Deleuze (1992) afirma:

No momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranqüilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um "ato arriscado", uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. (p. 128)

Lançar-se a esse "fora" do pensamento, a essa experiência de exterioridade que se afirma de modo irredutível, transtornando a endogenia do sujeito e do conhecimento, parece engendrar a própria experiência de resistência. Daí a afirmação de Foucault (1999b) de que o pensamento "é, em si mesmo, uma ação – um ato perigoso" (p. 453). No limite, tal experiência coloca em risco aquilo que nos torna familiar e estranho a nós mesmos: a própria linguagem. Diz-nos Deleuze (1992) que, para Foucault, "o próprio pensamento lhe aparece como máquina de guerra" (p. 128).

O pensamento como experiência de resistência instaura necessariamente um plano de criação. Tal ato se faz como uma espécie de "dobra" do pensamento, na qual é a própria linguagem que se encontra sub judice, exausta diante dos rebatimentos infinitos dos atos de reflexão – esse jogo especular das representações e seus avessos.

A hipótese analítica do pensamento do fora interessa-nos estrategicamente na medida em que parece se apresentar como dobradiça articuladora de uma série de outras inflexões acerca do pensar na obra foucaultiana. Trata-se de lançar o pensamento fora dos cânones que autorizam o pensar, em direção a outro pensar. A exterioridade instaura um território performático para a experiência de um pensamento não reflexivo cujo modo de funcionamento se faria por meio da afirmação da condição de uma diferença. Aqui, pensar é fazer diferir – ato arriscado, pois.

A fim de explorarmos as singularidades desse modo de pensamento que busca incansavelmente acessar o seu fora, propomos uma aproximação em relação ao pensamento da diferença, tendo em vista a distensão desse debate no domínio educacional.

O "pensamento do fora" como um pensamento diferencial

O tratamento da questão do pensamento como um problema político é o cerne tanto da crítica à cultura ocidental, perpetrada por Nietzsche, quanto da problematização das políticas da verdade na atualidade, conduzida por Foucault. A fim de precisarmos esse lugar singular do pensamento, tomemos a ironia nietzscheana referente à formação dos conceitos:

Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado pelo arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse "folha", eventualmente uma folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial. Denominamos um homem "honesto"; por que agiu tão honestamente – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. (NIETZSCHE, 2008, p. 56)

O pensador enuncia a crítica a um pensamento forjado numa arena cultural cuja linguagem se fundamenta em operações identitárias de "igualação do não igual" e, consequentemente, de exclusão do não igual. Legitima-se, na linguagem, o jogo das identidades e seus antagonismos, bem como as múltiplas relações entre essas categorias dispostas de antemão nas grades do conhecer.

Incisivo, o enunciado convoca-nos a tomar os próprios atos de pensamento – ou melhor, a própria atualidade desses modos de pensar – como um problema político e, portanto, alvo de nossa investida crítica.

Esses atos de conformação do mundo e de nós mesmos, acionados pelo esforço de domesticação da recalcitrância, ou seja, de cooptação do "não igual" à gradificação do "igual", parece-nos, aqui, configurar o lugar mesmo das questões éticas que implicam a despotencialização de nosso viver.

Assertiva, a lança nietzscheana aponta ainda a inversão bem-sucedida que historicamente tem produzido e atualizado a legitimidade dessa linguagem de pensamento. Tal inversão, ao tomar o efeito pela causa, institui o conhecimento – em sua forma política de "conceito" – como o a priori organizador da verdade das formas de vida.

Eis o flagrante a um pensamento que, materializado como operação de linguagem, insiste no trabalho de modulação do mundo pautado pelo esforço de submissão do não igual – ou seja, da diferença – a uma grade de variação em torno de certos valores tomados como fundamentos. Traçam-se assim fronteiras do pensamento a banir o impensável.

A eficácia dessa empreitada se faz na própria operação de linguagem que institui os embates históricos da verdade. É num mesmo golpe que se produz o efeito e a condição necessária de uma operação de invenção e legitimação de uma verdade. Dito de outro modo, é no mesmo movimento que se produz uma verdade e o horizonte de pensamento que a faz reverberar. A legitimação da verdade é indissociável dos mecanismos de legitimação da linguagem que a produz.

Demarca-se assim a arena autorizada na qual se travam as lutas pelo dizer verdadeiro; no rebote, é essa mesma arena que produz a contingência e a inteligibilidade de novas lutas. Considerando a problemática do poder, podemos afirmar que a condição político-estratégica da linguagem busca conformar de véspera a paisagem pensada de lutas que podem acontecer, ou seja, estas só se validam porque se alojam no horizonte do pensável – espécie de racionalidade estratégica que atualiza o pensar possível. Blindado se faz o pensamento na clausura da reverberação infinita do mesmo de si, ironicamente disfarçado em múltiplos temas com supostas variações.

A histórica e bem-sucedida repetição desses mecanismos convoca-nos a uma atitude de suspeita diante do pensado e do pensável, exigindo-nos um pensar cuja linguagem tenha por vetor não mais o esforço identitário de qualificação e naturalização da (des)igualdade, mas a urgência política de criação de diferença.

Foucault (2005) discute pontualmente acerca de um pensamento da diferença em um trabalho intitulado Theatrum Philosophicum, ocasião na qual comenta duas publicações de Gilles Deleuze: Diferença e repetição e Lógica do sentido.

O que é pensar? Eis a questão que conduz esse ensaio. O pensador ancora sua análise na problematização da diferença, temática acionada e formulada por Deleuze. E então comenta:

Tomemos a diferença. Ela é analisada, habitualmente como a diferença de ou em alguma coisa: por trás dela, além dela – mas para sustentá-la, situá-la, delimitá-la e, portanto, dominá-la – coloca-se com o conceito, a unidade de um gênero que se supõe que ela fracione em espécies [...]; a diferença se transforma então no que deve ser especificado no interior do conceito, sem ultrapassá-lo. (FOUCAULT, 2005, p. 243)

Usualmente, a ideia de diferença é abordada como algo relacional, elemento que se compara e se distingue numa série identitária, previsível. Trata-se de uma forma de dominar o objeto desviante da série e nomeá-lo, qualificá-lo sempre em relação a algo considerado previamente como uma unidade referencial. Foucault explica-nos então que, nessa perspectiva, o conceito – síntese de identidades – abarca a diferença em seu interior, qualificando-a como algo que se define por níveis de aproximação ou distanciamento em relação à identidade pré-configurada. É nesse sentido que a diferença se encontra especificada no conceito, sem ultrapassá-lo. O pensador complementa:

[...] a diferença se estabelece quando a representação efetivamente não mais apresenta o que tinha estado presente, e o teste do reconhecimento é colocado em xeque. Para ser diferente é preciso inicialmente não ser o mesmo, e é sobre esse fundo negativo, acima dessa parte sombria que delimita o mesmo, que são, em seguida, delimitados os predicativos opostos. [...] a diferença se encontra dominada por um sistema que é o do oposicional, do negativo e do contraditório. (FOUCAULT, 2005, p. 244-245)

Essa crítica coloca em xeque a coexistência singular entre o mesmo e o outro. A gradação em torno do mesmo – com seus matizes de igualdades, semelhanças e antagonismos – é o mapa mesmo no qual a diferença será qualificada como não semelhante, desigual. Incorporada à série conhecida, a diferença se faz dócil – materialidade especular de um outro consubstanciado pela negação, pelo oposicional, pelo avesso radical do mesmo. No tabuleiro dos valores, o outro se faz como mera variação do mesmo. Eis a armadilha dessa linguagem que, capturando a diferença, torna o pensamento refém das operações de reflexividade, sequestrando-lhe a possibilidade de experiência de sua própria exterioridade.

Do ponto de vista político, essa qualificação da diferença a partir de uma suposta condição valorativa de negativação – seja como categoria de contraposição, oposição, contradição etc. – a dispõe de modo reativo, invariavelmente. Nessa chave, a diferença define-se, reativamente, por "aquilo que não é", ou pelo grau de distanciamento em relação a algo que é definido a priori como "a identidade" ou "o mesmo", ou ainda, aquilo que deveria ser.

A concepção de diferença que a obra deleuziana enuncia e que será objeto da discussão de Foucault será radicalmente outra. Uma vez que a diferença, consubstanciada como variação em torno da identidade, se encontra aprisionada no conceito, Foucault (2005) defende que:

[...] para liberar a diferença é preciso um pensamento sem contradição, sem dialética, sem negação; um pensamento que diga sim à divergência; um pensamento afirmativo, cujo instrumento é a disjunção: um pensamento do múltiplo – da multiplicidade dispersa e nômade que não é limitada nem confinada pelas imposições do mesmo; um pensamento que não obedece ao modelo escolar (que truque a resposta pronta) mas que se dedica a insolúveis problemas. (p. 245-246)

Na provocação foucaultiana, o pensamento da diferença define-se pela envergadura afirmativa, jamais por uma condição reativa. Isso significa que tal pensamento não se contrapõe, mas se impõe de modo irreverente e singular como força intensiva. Daí seu caráter múltiplo, arredio à simples lógica da variabilidade ou modulação em torno de um eixo identitário. Seu movimento remete ao acaso das disjunções e não à previsibilidade das polarizações ou modulações que mantém o mesmo e o outro como efeitos do mesmo jogo de linguagem.

Nos termos de Judith Revel (2004), "é necessário pensar diferencialmente a diferença, quer dizer, restituir-lhe uma positividade que lhe é própria" (p. 80). Por isso, o pensamento da diferença seria também um pensamento a-categórico. As categorias tornam o pensamento cativo, adestrando-o e conduzindo-o a rotas previamente delineadas. Intempestivo, dada sua potencial multiplicidade, o pensamento a-categórico afirma-se à revelia de quaisquer projeções linguísticas

Do ponto de vista político-estratégico, é a condição afirmativa do pensamento que o dispõe diferencialmente nas relações de poder. Pensar diferencialmente seria, sobretudo, um ato político de produção de outros efeitos de verdade no conjunto das verdades legitimadas. Pensar seria instaurar uma diferença ou, mais precisamente, um efeito de verdade diferencial que não se alojaria no pensável.

Em seu belo ensaio A vida dos homens infames, Foucault (2003) nos diz que aquilo que atiça a experiência do pensamento é uma condição-limite, quando nos confrontamos ou nos chocamos com o poder. Nessa visão combativa, caberia ao pensamento, como máquina de guerra, o exercício de sua própria ultrapassagem. Aqui, pensar é fazer diferir, jamais (fazer) refletir.

Ao referir-se ao seu próprio trabalho como intelectual, o autor formula impecavelmente a especificidade desse modo de beligerância política:

[...] na realidade, o que quero fazer, e aí reside a dificuldade da tentativa, consiste em operar uma interpretação, uma leitura de um certo real, de tal modo que, de um lado, essa interpretação possa produzir efeitos de verdade e que, do outro, esses efeitos de verdade possam tornar-se instrumentos no seio de lutas possíveis. Dizer a verdade para que ela seja atacável. Decifrar uma camada de realidade de maneira tal que dela surjam as linhas de força e de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis, as vias traçadas e os atalhos. É uma realidade de lutas possíveis que tento fazer aparecer. [...]. O efeito de verdade que procuro produzir reside na maneira de mostrar que o real é polêmico. (FOUCAULT, 2003, p. 278-279)

A condição afirmativa do pensamento e dessa forma de luta encontra-se no ato mesmo de produção de outros efeitos de verdade de modo a confrontar a prevalência de um dado jogo de verdade. A potência dessa estratégia se faz no deslocamento da linguagem de guerra: aqui, pensar não remeteria à suposta reflexividade como fundamento de iluminação em relação à verdade. Trata-se de esforço de produção diferencial de outros efeitos de verdade, de modo que o diagrama de forças vencedoras possa ser perpassado e desestabilizado por forças estrangeiras de resistência. Nessa condição, pensar é resistir.

Um horizonte de pensamento e suas implicações educacionais

Decorre desse debate um intenso efeito provocativo na área de educação. Apontamos no início de nosso percurso a indagação difusa que, em suas múltiplas variações de estilos, compõe a atualidade problemática do campo educacional – o que é o ato do pensar, em educação, na contemporaneidade?

Ao problematizarmos o ato do pensar, em educação, evocamos duas frentes, genealogicamente articuladas. Na primeira delas, podemos situar os modos como os atos de pensamento constituem as práticas educativas. Aqui, os fazeres pedagógicos são a materialidade mesma do pensamento. Na segunda, podemos tomar os modos como as questões acerca daqueles atos de pensamento (constitutivos das práticas educativas) se tornam objeto de outro pensar, aqui qualificado como um pensamento educacional.

Enquanto no primeiro caso nos referimos estritamente à experiência dos atos de pensamento produzidos no cotidiano escolar, no segundo reportamo-nos especificamente à experiência do pensamento travada nos atos das pesquisas educacionais.

De acordo com o percurso argumentativo desse trabalho, sustentamos que ambos os planos têm se movido historicamente num jogo de linguagem conduzido pelo pensamento reflexivo. Sugerimos que o encontro da educação com a exterioridade de seu pensamento ou com um pensamento da diferença possa desencadear contínuos movimentos confrontativos em relação às políticas de verdade que tem despotencializado as práticas pedagógicas na contemporaneidade.

Sinalizamos dois movimentos articulados, os quais, em nosso entendimento, podem contribuir com a intensificação dessas problematizações.

O primeiro deles diz respeito ao cotidiano escolar e suas práticas pedagógicas. Trata-se, sobretudo, de radicalizar o problema do conhecer na contemporaneidade, privilegiando, como arena, o próprio fazer educacional.

Isso pressupõe, do ponto de vista das práticas pedagógicas, um trabalho do pensamento que ultrapasse a prática do conhecer como jogo meramente reflexivo de linguagem. Isso requer forjar atos de pensamento como gestos de problematização intensiva dos regimes de valores que conformam, cunham e legitimam um pensar socialmente autorizado. Tal alvo se justifica na medida em que são tais regimes que instituem os objetos epistemológicos, as respectivas áreas e disciplinas de conhecimento que lhes resguardam mediante senhas de acesso, bem como as grelhas de subjetivação moralizantes daí desdobradas.

Trata-se, enfim, de uma atitude política de recusa à naturalização dos regimes de verdade linguisticamente produzidos. Esse enfrentamento se faz no campo da linguagem porque os objetos das lutas são práticas de valoração do mundo, bem como os modos como a educação se faz linguagem dessa operação de valoração.

Assim, viver diferencialmente o cotidiano escolar demanda habitar esse desassossego da linguagem, assumindo o trabalho do pensamento como gesto de divergência afirmativa em busca de criação, recusando a reflexividade dócil rumo à compreensão.

O segundo movimento remete ao modo como a própria experiência do pensamento torna-se objeto de um pensar educacional. Situamo-nos na arena da pesquisa educacional, na qual a própria experiência do pensamento investigativo se faz alvo de nossas interpelações.

Na perspectiva de um pensamento da diferença, o enfrentamento de tal problema supõe uma atitude de crítica radical da linguagem científica e filosófica em educação, de modo a deflagrar as operações valorativas que tomaram certos valores como fundamentos de verdades educacionais, particularmente no cenário da modernidade e seus desdobramentos contemporâneos.

Ora, se a questão da valoração coloca em tensionamento os atos do conhecer e pensar, o próprio conhecimento que se produz no campo educacional por meio de pesquisas científicas, bem como de produções filosóficas, também se faz matéria de problematização desse pensar diferencial. Aqui, são as próprias verdades educacionais talhadas pelo conhecimento pedagógico historicamente lastreado que demandam outra experiência do pensar.

No sentido de precisar o debate, apontemos uma problemática que, em nosso entendimento se apresenta como estratégica no redimensionamento da experiência do pensamento em educação no horizonte da pesquisa.

Numa perspectiva clássica, a pedagogia, as ciências da educação, bem como o espectro de suas interdisciplinaridades, têm sido as plataformas legítimas de oferecimento de ênfases analíticas privilegiadas capazes de lidar epistemologicamente com os respectivos objetos.

O campo educacional tem se orientado a partir de categorias clássicas que conferem lastro às pesquisas: currículo/conhecimento, metodologia de ensino, sujeito-aluno, sujeito-professor, relação professor-aluno, didática, ensino, aprendizagem, gestão etc. A despeito das variabilidades históricas, podemos afirmar que esses referenciais investigativos tendem a reverberar intensamente na contemporaneidade, mantendo a organização dos debates no campo.

Esse modo de tomar a educação a partir de recortes complementares é ressonante ao modo como a herança moderna empreendeu o trabalho do conhecer. De algum modo, as questões de pesquisa ou os temas candentes em educação tendem a encontrar na sedimentação dessas categorias um espaço legítimo de formulação de problemas e de autorização do pensar.

Um dos efeitos possíveis desse movimento é o risco de que o pensamento se obrigue, linguisticamente, a estabelecer uma correlação necessária e reflexiva entre categorias e problemas. Afirmamos que esse rígido amálgama se posiciona como um dos impasses diante do campo de possibilidades da experiência de um pensamento diferencial.

Certo consenso investigativo em relação às categorias pedagógicas clássicas da pesquisa em educação explicita a solidez daquilo que qualificamos como conhecimento educacional, ou, mais criticamente, maquinaria de produção de verdades educacionais.

A afirmação de um pensamento da diferença implica a resistência à assunção de tais categorias como ancoragem – referenciais de verdade – para o pensamento.

Enfatizamos que tal postura analítica não equivale à mera substituição de certas temáticas, teorias ou conceitos em detrimento de outros. A radicalidade desse pensamento transtorna a nervura das próprias perguntas, nublando o horizonte consensual dos chamados problemas educacionais, bem como dos arsenais teóricos e conceituais que lhes dão materialidade e continência.

Na mirada nietzscheano-foucaultiana, a criação de outros modos de problematização faz-se possível na medida mesma de uma atitude de recusa ante a consolidação de pressupostos representacionais que conformam a linguagem e o pensamento. Pragmaticamente, podemos afirmar que a condição linguística para a formulação de outros problemas é o radical estranhamento em relação ao espectro temático e teórico-conceitual legitimado por determinado campo de conhecimento.

Argumentamos que é na interrupção do vício expressivo e representacional da maquinaria reflexiva, com toda sua reverberação identitária do conhecer, que se abre, no mesmo golpe, a impensável diferença.

Formular outros problemas em educação; outros modos de formulação de problemas em educação. A dupla implicação está atrelada ao modo como flagramos a condição do fora do pensamento em educação, ou, mais incisivamente, de um pensar diferencial em educação.

A aproximação das discussões acerca do pensamento do fora e do pensamento da diferença com a área da educação demanda ainda alguns apontamentos relativos à potencialidade dessa interlocução.

Primeiramente, torna-se imprescindível enunciar que esse deslocamento das discussões sobre pensamento reflexivo para o âmbito da exterioridade ou da diferença não visa a proposição de outra abordagem ou corrente educacional germinada a partir de mais uma vertente crítica das práticas pedagógicas. O compromisso rigoroso dessa análise se situa na refutação radical de quaisquer possibilidades prescritivas de outra verdade pedagógica.

Disso decorre uma segunda inflexão, qual seja, apontar o lugar dessa crítica no interior do campo. Trata-se, nessa chave, de ultrapassar o estatuto da crítica analítico-comparativa e suas consequentes avaliações das diversas abordagens autorizadas a enunciar um pensamento educacional. A crítica que ora se formata incide sobre as próprias condições históricas de valoração que configuraram a emergência de certas verdades educacionais em detrimento de outras. Linguagem e poder são tomados inevitavelmente como forças indissociáveis e, sobretudo, produtoras dos próprios objetos aos quais pretendem lançar as malhas cifradas do conhecer – seja, como vimos, no campo dos fazeres pedagógicos ou da pesquisa educacional.

A singularidade dessa crítica faz despontar um terceiro aspecto de extrema relevância para a área: trata-se de situar o modo como essa crítica opera, evocando comprometimentos educacionais ético-políticos. Necessário assinalar que as operações desconstrutivas da linguagem e do pensamento não atuam como meros artifícios retóricos, mas constituem, no ato analítico mesmo dessas desconstruções, a instauração de um vetor linguístico disparado pelo movimento da diferença. É o atravessamento desse vetor na própria arena do debate educacional que passa a funcionar ético-politicamente como elemento de resistência e redimensionamento dos jogos de verdade. Retomando Foucault (2003), trata-se, nessa luta, de tornar a verdade atacável, fazendo-a emergir por meio de outro jogo de verdade.

Se nos alinhamos, de algum modo, à herança da tradição crítica em relação às questões de educação e poder na modernidade, articulando-a à crítica da cultura moderna perpetrada por Nietzsche, bem como às hipóteses analíticas propostas por Foucault em relação ao poder, à linguagem e ao pensamento, faz-se necessário suspeitar do gesto virtuoso que, ao naturalizar a clássica relação entre conhecimento e educação, finda por retroalimentar e fortalecer a maquinaria da linguagem, sequestrando do viver as possibilidades da experiência do pensamento.

Recebido em: 13.03.2010

Aprovado em: 24.06.2010

Cintya Regina Ribeiro é mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), licenciada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH- USP), docente junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, integrante do Coletivo de Pesquisadores sobre Educação e Relações de Poder (CoPERP).

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  • Correspondência:
    Cintya Regina Ribeiro
    Faculdade de Educação da USP
    Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação
    Av. da Universidade, 308
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      24 Jun 2010
    • Recebido
      13 Mar 2010
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