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Gênero e culturas infantis: os clubinhos da escola e as trocinhas do Bom Retiro

Resumos

Este estudo trata de gênero e culturas infantis, entrecruzando os clubinhos das séries iniciais, analisados em pesquisa feita em uma escola do bairro de Pinheiros, São Paulo, em 2001, e as trocinhas do Bom Retiro, estudadas por Florestan Fernandes em 1942. Na busca de aspectos microestruturais e do efeito dessas interações na construção de diferentes significados de gênero, emergiram questões como: em que medida tais agrupamentos conseguiam estabelecer espaços de autonomia perante o mundo adulto?; elaboravam relações de gênero próprias de uma cultura infantil?; quais eram os pontos centrais sobre os quais se desenrolava a trama das relações de gênero em cada tempo e lugar? A partir da etnografia, foram produzidos 28 registros de campo do recreio de 1ª a 4ª série. Apenas nas 3as e 4as séries assistiu-se a quarenta aulas de cinquenta minutos (de educação artística e educação física), e foram entrevistados 29 meninos e 26 meninas. Ora segregadores ora agregadores, observou-se que os clubinhos (mistos ou de mesmo sexo) eram o modo como as crianças geriam suas relações, fosse para permitir grupos mistos sem conflito, fosse para manter o distanciamento entre os sexos de modo pacífico. Este estudo contribui para trazer à tona um pouco das culturas infantis em seu protagonismo relacionado ao gênero e possibilita a caracterização da escola como espaço contraditório, que pode desenvolver ações de suporte às crianças para ampliação de suas experiências.

Culturas infantis; Relações de gênero; Ensino fundamental; Séries iniciais


This study deals with gender and children's cultures, crossing the initial series clubinhos, analyzed in a research done at school in the Borough of Pinheiros in São Paulo in 2001 with the trocinhas of Bom Retiro studied by Florestan Fernandes in 1942. In the search for microstructural aspects and for the effect of these interactions in the construction of different meanings of gender, questions emerged such as: to what extent do these groups manage to establish spaces of autonomy before the adult world?; what were the central points upon which the interplay of gender relations developed at each time and place? Based on ethnography, 28 field records of breaktime activities of children from the 1st to the 4th series were made. For the 3rd and 4th series only, 40 classes of 50 min each were attended (artistic education and physical education), and 29 boys and 26 girls were interviewed. At times excluding, at times aggregating, the clubinhos (either mixed or single gender) were observed to be the way children used to manage their relations, either to allow mixed groups without conflict, or to keep the distance between the sexes in a peaceful manner. This study contributes to raise the topic of children's cultures in their main role associated to gender, and allows characterizing school as a contradictory space that can develop actions to support children in the expansion of their experiences.

Children's cultures; Gender relations; Fundamental education; Initial series


Gênero e culturas infantis: os clubinhos da escola e as trocinhas do Bom Retiro

Gender and children's culture: school clubinhos and the trocinhas of Bom Retiro

Tânia Mara Cruz

University of Southern Santa Catarina

Correspondência Correspondência: Tânia Mara Cruz Universidade do Sul de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Educação Av. Jose Acácio Moreira, 787 88704-000 - Tubarão/SC tania.cruz@unisul.br

RESUMO

Este estudo trata de gênero e culturas infantis, entrecruzando os clubinhos das séries iniciais, analisados em pesquisa feita em uma escola do bairro de Pinheiros, São Paulo, em 2001, e as trocinhas do Bom Retiro, estudadas por Florestan Fernandes em 1942. Na busca de aspectos microestruturais e do efeito dessas interações na construção de diferentes significados de gênero, emergiram questões como: em que medida tais agrupamentos conseguiam estabelecer espaços de autonomia perante o mundo adulto?; elaboravam relações de gênero próprias de uma cultura infantil?; quais eram os pontos centrais sobre os quais se desenrolava a trama das relações de gênero em cada tempo e lugar? A partir da etnografia, foram produzidos 28 registros de campo do recreio de 1ª a 4ª série. Apenas nas 3as e 4as séries assistiu-se a quarenta aulas de cinquenta minutos (de educação artística e educação física), e foram entrevistados 29 meninos e 26 meninas. Ora segregadores ora agregadores, observou-se que os clubinhos (mistos ou de mesmo sexo) eram o modo como as crianças geriam suas relações, fosse para permitir grupos mistos sem conflito, fosse para manter o distanciamento entre os sexos de modo pacífico. Este estudo contribui para trazer à tona um pouco das culturas infantis em seu protagonismo relacionado ao gênero e possibilita a caracterização da escola como espaço contraditório, que pode desenvolver ações de suporte às crianças para ampliação de suas experiências.

Palavras-chave: Culturas infantis - Relações de gênero - Ensino fundamental - Séries iniciais.

ABSTRACT

This study deals with gender and children's cultures, crossing the initial series clubinhos, analyzed in a research done at school in the Borough of Pinheiros in São Paulo in 2001 with the trocinhas of Bom Retiro studied by Florestan Fernandes in 1942. In the search for microstructural aspects and for the effect of these interactions in the construction of different meanings of gender, questions emerged such as: to what extent do these groups manage to establish spaces of autonomy before the adult world?; what were the central points upon which the interplay of gender relations developed at each time and place? Based on ethnography, 28 field records of breaktime activities of children from the 1st to the 4th series were made. For the 3rd and 4th series only, 40 classes of 50 min each were attended (artistic education and physical education), and 29 boys and 26 girls were interviewed. At times excluding, at times aggregating, the clubinhos (either mixed or single gender) were observed to be the way children used to manage their relations, either to allow mixed groups without conflict, or to keep the distance between the sexes in a peaceful manner. This study contributes to raise the topic of children's cultures in their main role associated to gender, and allows characterizing school as a contradictory space that can develop actions to support children in the expansion of their experiences.

Keywords: Children's cultures - Gender relations - Fundamental education - Initial series.

Na pesquisa de campo da qual este trabalho representa uma faceta1 1 Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla da autora, desenvolvida durante o doutorado. , analisei como se constituíram, na particularidade de uma escola, as relações sociais entre grupos infantis de séries iniciais e suas relações com o mundo adulto, em um processo de produção da vida cotidiana (HELLER, 1985) e não como estágio preparatório ou experimental de um devir. Fui a campo imbuída da preocupação com o todo, mas numa busca dos aspectos microestruturais e do efeito dessas interações infantis na construção das relações de gênero. Em que medida tais agrupamentos conseguiam estabelecer espaços de autonomia perante o mundo adulto? Acaso elaboravam relações de gênero próprias de uma cultura infantil? Quais eram os pontos centrais sobre os quais se desenrolava a trama das relações de gênero em cada tempo e lugar?

Nessa busca, chamou-me a atenção uma das formas de organização das relações de gênero entre crianças na escola que se dava por meio de clubinhos. Apesar de poucas crianças fazerem referência aos clubinhos em seus locais de moradia, Júlio2 2 Os nomes de crianças, adultos e escola são fictícios. , um aluno da 4ª série, revelou ter participado de um clube misto em seu bairro (Entrevista, nov. 2001). A referência dessa criança levou-me a olhar o contexto escolar de modo diferente e a refletir sobre relações possíveis com a produção de Florestan Fernandes (1979), que, em 1942, analisou as trocinhas no bairro Bom Retiro, São Paulo, em material publicado pela primeira vez em 1944. Não me proponho a derivar os clubinhos na escola diretamente das trocinhas de rua, mas apenas a estabelecer um diálogo reflexivo sobre/entre ambos. Eles diferem entre si no tempo, já que meio século separam-nos, e no espaço, visto serem as trocinhas organizações de rua e não escolares. Sobre o bairro Bom Retiro, cabe dizer que, na década de 1940, ele mesclava indústria e comércio com uma população de origem italiana, mas já abrigava extensa comunidade judaica devido à 2ª Guerra Mundial. A partir dos anos 1950, o bairro presenciou um deslocamento de famílias italianas em direção a outros bairros próximos, como Pinheiros.

Foi pensando na geografia das relações culturais - uma vez que minha pesquisa deu-se com crianças de uma escola situada em Pinheiros, oriundas de setores médios e trabalhadores - que surgiu a proposta deste artigo, cuja análise dos dados visa, de algum modo, dialogar modestamente com o trabalho de Florestan Fernandes em seu estudo precursor da sociologia da infância. Por isso, não pretendo apresentar os clubinhos da Escola Estadual Luisa Mahim como uma continuidade das trocinhas, mas apenas compreendê-los e estabelecer algumas relações possíveis. Para Fernandes (1979), a ação das trocinhas (grupos de meninos) e trempas (grupos de meninas) era um modo de o folclore realizar sua influência conservadora nos papéis atribuídos a homens e mulheres. O olhar que trago parte de outra referência, considerando a criança como coprodutora da cultura, não apenas infantil, mas inserida em um jogo de influências recíprocas com a cultura adulta.

O espaço escolar

Localizada no bairro Pinheiros, na cidade de São Paulo, a E. E. Luisa Mahim oferecia, em 2001, educação básica a 670 estudantes, possuía quarenta professores, duas orientadoras pedagógicas, um inspetor e três inspetoras. Havia duas turmas por série, da 1ª à 4ª série (mantenho a classificação da época da pesquisa de campo), tendo cada uma delas cerca de trinta estudantes. Em cada turma, 60% eram negros (pretos e/ou pardos) e 40% não-negros3 3 De acordo com autoclassificações feitas pelas crianças no bojo da pesquisa Fracasso escolar: articulações entre gênero e cor/raça (CARVALHO, 2001, 2004). . Pais e mães trabalhavam como funcionários públicos, professores de diferentes níveis de ensino, profissionais liberais, trabalhadores domésticos, operários, motoristas de caminhão, funcionários do setor de comércio ou comerciantes.

O espaço do recreio era vasto e diversificado: um parquinho4 4 O parquinho foi desativado logo no começo das aulas, pois estava muito deteriorado. ; um improvisado campinho de futebol; uma miniquadra de vôlei; um pátio descoberto que servia de quadra de futebol; um pátio coberto, com algumas mesas para lanche em um canto e amarelinha no chão; uma cozinha onde eram servidos os lanches da Associação de Pais e Mestres; e uma pequena lanchonete. As crianças circulavam por entre jardins, intercalados por trechos de terra batida e áreas cimentadas. Conversavam ou brincavam em uma área repleta de grandes árvores, algumas frutíferas, canteiros de flor e um pouco de mato, que, em sua extremidade, fazia fronteira com um rio. Apesar da aparente sensação de abandono, o conjunto passava relativo clima de rua e liberdade. Muitas visitas ocorreram sem que eu tomasse o lápis e o papel, até que me familiarizasse com aquele ambiente aberto, como infinitas cenas de um mesmo filme a disputar meu olhar, e que me sentisse, enfim, como parte dele, ainda que na categoria de uma visitante ocasional. Ao adentrar num espaço infantil como o recreio escolar, preocupava-me em encontrar um modo de inserir-me como etnógrafa, sem que parecesse uma adulta-vigiando-as-crianças, e, ao mesmo tempo, manter-me atenta aos cuidados éticos da pesquisa.

De infâncias e metodologias

Apesar de compreender, em conformidade com Mariano Narodowski (1998), que a infância no Ocidente moderno tem a marca da heteronomia, da dependência e da obediência ao adulto em troca de proteção, parto do pressuposto de que as contradições permeiam os espaços e de que as crianças não respondem passivamente às expectativas construídas sobre elas.

As culturas infantis não nascem num vazio social ou no mundo exclusivo da infância, mas resultam de diferentes processos vividos pelas crianças durante a institucionalização escolar, a organização de seu tempo livre, a inserção familiar e o acesso aos meios de comunicação de massa (PINTO, 1997; SARMENTO, 1997). Refletir sobre a infância não implica a procura de uma definição singular, mas possibilita compreender quais são as diferentes realidades em que as crianças estão inseridas e como elas se estruturam em sistemas organizados em contextos sócio-históricos e geográficos distintos. O recreio escolar, em sua teia de relações, é um dos espaços socioculturais em que aparecem imbricadas cultura infantil e cultura escolar.

Aqui me apoio na abordagem sociocultural dos estabelecimentos escolares, conforme afirma Leila de Alvarenga Mafra (2003), para quem pesquisar a cultura na escola significa

examinar nos estabelecimentos escolares as características ou manifestações socioculturais específicas ou a diversidade e diferenças étnico-culturais marcantes entre os corpos discente e docente. [...] Metodologicamente, esses estudos privilegiam os processos, experiências, relações e um conjunto sistemático de manifestações que revelam como diferentes expressões culturais se interagem a outras no cotidiano escolar e demarcam a identidade distintiva de grupos sociais específicos, nos níveis cultural e simbólico. (p. 125-126)

Em tal processo, ao estabelecerem relações sociais, as crianças são por estas produzidas, em uma trama complexa que designamos como culturas infantis. No interior dessa trama, elas constroem interpretações próprias e reelaboram ou reproduzem informações do mundo adulto, ao mesmo tempo em que agem sobre ele, transformando-o (CORSARO; EDER, 1990; SARMENTO, 1997). Sobre a infância, Manuel Pinto (1997) afirma:

As crianças têm algum grau de consciência dos seus sentimentos, idéias, desejos e expectativas; são capazes de expressá-los e efetivamente os expressam. [...] Há realidades sociais que só a partir do ponto de vista das crianças e de seus universos específicos podem ser descobertas, apreendidas e analisadas. (p. 65)

Tratar a criança como sujeito e em equivalência ao adulto significa questionar a hierarquia que termina por transformá-la em mero objeto de pesquisa. Nessa linha, ao apontar os cuidados éticos da pesquisa sobre a infância, Pia Christensen e Alan Prout (2002) argumentam que as crianças são atores sociais e propõem o conceito de simetria ética, em que ressaltam a diferença entre uma ética para e uma ética com, no sentido de que a simetria implica um caminho de duas vias, definido também por elas e não para elas. Em outras palavras, podemos pesquisar com crianças e não apenas as crianças, inserindo-as no processo de pesquisa e mantendo uma escuta do que elas nos têm a dizer.

Por ser processual, a etnografia permite esse cuidado. Apesar de haver explicitações prévias sobre o tema de pesquisa aos sujeitos envolvidos, a aproximação lenta e as explicações sucessivas no trabalho em campo por meio de frequentes conversas com as crianças corroboram essa visão ética. Na etnografia, a construção do problema baseia-se em um processo gradual de ir a campo com questões norteadoras e familiarizar-se com a situação e com os sujeitos. Com crianças já alfabetizadas, ela permite mostrar anotações em procedimentos que ampliam vínculos e favorecem a autorreflexão infantil no processo de contar fatos ou esclarecer dúvidas.

Sendo apenas uma pesquisadora em espaço tão vasto, eu perambulava pelo pátio, priorizando as ações, mas conversando com as crianças sobre os fatos ali vivenciados. Fernandes (1979) assim analisa o papel da conversação durante o trabalho de campo:

Essa colaboração com os pesquisados, por seu lado, criou muitas vezes condições favoráveis ao entabulamento de conversas mais ou menos demoradas com os membros das "trocinhas". É óbvio que, no caso, essas conversações constituem verdadeiras e completas entrevistas. Quando existem possibilidades de orientá-las, como verifiquei, permitem elucidar muitos pontos importantes. (p. 234)

Em meu caso, acompanhava grupos e, eventualmente, crianças isoladas. Quando situações se repetiam, observava-as para ver se havia rotina e algum significado particular para as crianças (COULON, 1995). Foram produzidos 28 registros. No intuito de aproximar-me mais dos grupos, assisti a quarenta aulas de cinquenta minutos, distribuídas pelas quatro turmas de 3ª e 4ª séries, e priorizei as disciplinas de educação artística e educação física por realizarem atividades coletivas. As observações em sala esclareceram-me aspectos observados no recreio e aproximaram-me das crianças.

Ao todo, foram entrevistadas 55 crianças de 3ª e 4ª séries, sendo 26 meninas e 29 meninos. As duplas de entrevistados(as) eram sempre do mesmo sexo, pois relações de maior confiança e amizade na escola estão baseadas nesse pertencimento, como pude verificar em outras pesquisas sobre melhor amigo(a) na escola, com crianças de 4th, 5th e 6th grades (HALLINAN; TUMA, 1978), de 6th grade (MEDRICH, 1982 apud THORNE, 1997) e de 9 a 12 anos (BERNARDES, 1989). Entrevistei os(as) inspetores(as) e, ao término do recreio ou das aulas, pude ter com eles(as) conversas informais que aguçaram meu olhar em campo.

Gênero: um conceito em construção

O conceito de gênero, apesar de ser relativamente novo e de ter modos diferentes de apropriação, expressa a ideia de que os significados de ser homem e ser mulher decorrem não da natureza, mas de processos culturais que estão presentes em todos os espaços e que são, por sua vez, permeados por relações de poder, hierarquias e desigualdades. Em outras palavras, "não é o momento do nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino" (LOURO, 2008, p. 18), mas a cultura em que está inserido.

O corpo, ao mesmo tempo em que se instaura como significado concreto de corpo, ganha um significado de gênero. Pensando assim, podemos dizer que as diferenças de gênero não são simplesmente resultado das representações sobre as diferenças de sexo (NICHOLSON, 2000). Por outro lado, se é possível afirmar que não há corpo sem gênero, sem significado, não se poder dizer o inverso, ou seja, que não há gênero sem o corpo ou, em seu sentido mais complexo, sem o sujeito do qual derivou.

Ainda que os gêneros tenham sua origem concreta nas relações entre homens e mulheres e nos significados construídos historicamente, é claramente perceptível que, como dimensão simbólica, eles podem ganhar vida própria e servir de referencial para práticas sociais. Como um efeito de volta, descolados de sua matriz original, em combinações variadas e até insólitas, vemo-los sendo utilizados nos meios de comunicação, nos espaços religiosos, nas normas estéticas etc. Têm o poder instituinte de alterar a forma de agir de homens e mulheres em contextos diferentes dos quais se originaram, seja perpetuando significados antigos para homens e mulheres, seja instituindo, em determinados meios, práticas diferenciadas das realizadas por esses mesmos homens e mulheres em outros espaços de sua convivência.

Entretanto, em ambos os sentidos, ao necessitarem ser incorporados por sujeitos concretos (não passivos) para se manifestarem, os gêneros refletem as contradições de sua incorporação ou negação e, num processo dialético, refazem-se em novas significações. Desse modo, relações de gênero implicam relações - entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres - mediadas pelos gêneros, mas estes são conjuntos de significados. A partir desse raciocínio, torna-se claro que não se pode utilizar gênero como sinônimo de mulheres e homens. Há sujeitos e há significados. Estes não são, entretanto, significados neutros do ponto de vista do poder, uma vez que expressam desigualdades sociais a partir do pertencimento a uma composição particular de sexo/gênero. Nessa perspectiva, pode-se dizer, então, que relações de gênero implicam poder e hierarquia em todos os níveis.

Em outras palavras, tomarei gêneros como constructos simbólicos de feminilidades e masculinidades, vistos em relação ou separadamente; as relações de gênero serão evocadas quando estiver referindo-me a relações sociais entre homens e mulheres, mediadas pelos gêneros. Ao falar, por exemplo, em aproximações entre meninos e meninas em uma brincadeira mista, posso utilizar como equivalente a expressão aproximação entre os sexos. Os conteúdos dessa aproximação, por sua vez, podem ter consequências para as relações de gênero, construindo identidades (identidades culturais mutáveis e não essencialistas, resultados de disputas e mediações), ou para as representações de gêneros masculinos e femininos disponíveis socialmente.

Ao trabalhar a multiplicidade de gêneros, Connell (1995, 1997) utiliza o conceito de configuração de gênero como um conjunto de práticas sociais (de trabalho, de sexualidade, de experiências corporais, de afetividade, de política etc.) coerentemente ligadas a determinado significado de gênero. Ainda que possam ser construídos originariamente a partir de indivíduos, esses sentidos só ganham status de configuração quando são incorporados/constituídos em práticas coletivas de determinados grupos (como a masculinidade/feminilidade do mundo sindical operário, a do mundo acadêmico etc.) e configuram-se como projetos de gênero presentes na sociedade. Tais configurações podem até persistir para além da existência do próprio grupo que as criou, ao serem incorporadas de maneira diluída na sociedade e passarem a fazer parte do rol de gêneros disponíveis socialmente. Entretanto, a existência de distintas configurações que se produzem de modo criativo e inventivo não implica uma neutralidade ou mesmo uma harmonia entre elas, nem se dá de modo autônomo, porque estão inseridas em determinadas relações de poder sociais e históricas, como classe e raça/etnia. Essas referências permitem questionar tanto a visão de que os gêneros e as relações de gênero são apresentados como sempre dicotômicos e antagônicos, quanto o papel da escola como reprodutora desses modelos.

Voltando meu olhar para as relações de gênero desenvolvidas na E. E. Luísa Mahim, em um processo de construir/decodificar os elementos da configuração de gênero presentes nos grupos, optei por buscar os arranjos de gênero que permeavam os grupos de crianças, mas sem estruturar, de modo fixo, as configurações de gênero vigentes na escola como um todo. A não combinação com as categorias classe e raça/etnia deu-se em função de que estas não fundamentavam os critérios de montagem e funcionamento dos grupos infantis estudados, ainda que houvesse manifestações individuais de racismo em interações criança-criança, o que analisei em outro artigo.

Modos de sociabilidade na escola

Apesar das formas fluidas das interações infantis, foi possível agrupá-las em dois modos de sociabilidade: um deles, que designei como sociabilidade do conflito e analisei anteriormente (CRUZ, 2004), está ligado a situações de convivência entremeadas de frequentes conflitos (um terço); no outro, que será aprofundado aqui, as crianças estabeleciam relações tranquilas e de comum acordo (dois terços). Nessas atividades amistosas, as crianças brincavam, lanchavam ou conversavam, dividindo-se em três agrupamentos de dimensões semelhantes: grupos só de meninas, grupos só de meninos e grupos mistos. A separação entre meninos e meninas predominava nas 1as e 2as séries, mas diminuía consideravelmente nas 3as e 4as séries.

Os meninos que participavam de atividades amistosas com as meninas tendiam a querer jogos de perseguição e a evitar brincadeiras que pudessem ser, segundo o ponto de vista deles, atribuídas à feminilidade tradicional; o mesmo não ocorria com as meninas, que participavam de brincadeiras consideradas tradicionalmente masculinas. Essa análise coincide com os estudos de situações semelhantes realizados por Barrie Thorne (1997) e Eleanor Maccoby (1990), que a justificam devido à menor pressão social sobre os receios de perda da feminilidade das meninas em brincadeiras mistas ou consideradas de meninos.

No Brasil, pude encontrar apenas um estudo, de Ileana Wenetz (2005), sobre relações de gênero e recreio nas séries iniciais (e na adolescência); a pesquisa foi realizada em uma escola pública de Porto Alegre e apresenta um mapa da composição dos grupos. Ainda que seu foco esteja em relações de gênero, brincadeiras e erotismo, podemos fazer aqui algumas correlações. Naquela pesquisa, igualmente, a autora constatou a existência de grupos só de meninos, só de meninas ou mistos (estes variando quanto à predominância de meninos ou meninas) e analisou que suas divisões davam-se por

gênero, idade, interesses e, ainda, por outros motivos: vizinhança, amizade ou outros tipos de relações sociais que articulam significados no convívio cotidiano da escola. (p. 116)

Segundo ela, as crianças integravam grupos não fixos e neles vivenciavam tanto "relações afetivas e harmoniosas quanto hostis e agressivas" (p. 116), a depender dos integrantes e das situações. Apesar de seu eixo ser brincadeiras e sexualidade no recreio, Wenetz (2005) apresenta-nos elementos sobre a sociabilidade infantil conforme categorizei em minha pesquisa, mas que designei como sociabilidades de modo amistoso ou conflituoso.

Ao centrar meu olhar sobre as relações possíveis entre os modos de sociabilidade amistosa e a existência de grupos mistos ou de mesmo sexo, verifiquei que muitos desses grupos organizavam-se por meio do que as crianças designavam como clubinhos. Por fim, sobre a organização de clubinhos, construí a hipótese de que este era um dos modos de sociabilidade existente na cultura infantil e escolar daquelas crianças, neste caso, ancoradas sobre uma regulamentação das relações de gênero em que questões e divergências internas eram decididas de modo consensual.

Para compreender os clubinhos, foco central deste artigo, faz-se necessário olhar de perto os critérios de sua montagem, de seu funcionamento e, em seguida, o modo como os integrantes geriam suas relações cotidianas.

Critérios de pertencimento e formas de organização dos clubinhos

Os clubinhos da E. E. Luiza Mahim variavam entre agrupamentos de seis, oito ou vinte crianças em três subgrupos: só de meninos, só de meninas e mistos. Diferentemente dos demais grupos que se formavam e se desfaziam a todo instante, os clubinhos possuíam regras bem rigorosas de entrada e permanência. Ser de um clube significava participar de atividades comuns, como jogar, conversar, ocupar um mesmo espaço físico de modo protegido e até namorar.

Encontro-me com Lívia da 1ª série, que fala do clube de que participa. Eu pergunto o que é: "Pode ser um tanto de gente que pega um monte de galho, monta casinha, vai montando, só os meninos que não são chatos participam". Pergunto se é sempre misto e ela diz: "Não; pode ser só de menino, só de menina ou misto". (Diário de campo, 08 maio 2001)

O grupo de Larissa, da 4ª série, convida-me para ir ao seu clubinho, que está sendo montado atrás das bananeiras. Lá vejo umas meninas brincarem de pega-pega enquanto outras lancham. (Diário de campo, 23 out. 2001)

E como se dava a montagem dos clubinhos? Havia regras para entrar e outras para neles permanecer. Os clubinhos começavam a partir dos sete anos e, com maior frequência, iniciavam-se separados por sexo (eventualmente permitindo a entrada temporária de integrantes de outro sexo); mesclavam-se, de fato, a partir das 3as e 4as séries, tendo o crescente interesse sexual como um fator de aproximação. As crianças mais velhas organizavam-nos de modo mais fugaz, tendendo para o misto, o que levava meninas dessas mesmas séries, mas com maior desejo de distanciamento dos meninos, a participarem dos clubinhos das meninas de 1as e 2as séries.

É bom destacar que, em termos de funcionamento, os clubinhos não diferiam entre si apenas pelo fato de serem de meninas, de meninos ou mistos. O que diferenciava um clube do mesmo sexo de um misto era que, neste último, deixava de existir o critério de pertinência do mesmo sexo. No clube misto, as características de gênero perdiam também em importância e permitia-se a expressão das diferentes masculinidades e feminilidades, sendo a pedra angular a submissão à disciplina coletiva, à qual eram acrescidas amizades, afinidades e características pessoais. Ao contrário, nos clubes de mesmo sexo, os motivos alegados para a proximidade eram as preferências por determinadas brincadeiras, que podiam estar demarcadas em coisas de meninos e coisas de meninas, ou afinidades pessoais, todas elas vinculadas ao padrão tradicional de associar pertencimento de sexo e de gênero em menino-masculino e menina-feminina.

Vejamos o que nos tem a dizer Florestan Fernandes (1979) a respeito da composição das trocinhas (grupos de meninos) e das trempas (grupo de meninas). Segundo ele, é na puberdade (dos 12 anos em diante) que os círculos se fecham por sexos e que a separação torna-se mais forte, porque, entre os meninos, já havia "uma consciência grupal, viva e consistente, expressa pelo 'nós' coletivo e pela expressão 'troça' ou 'trocinha'" (p. 237). As trocinhas, assim chamadas pelos meninos à época, situavam-se nesse último grupo e eventualmente permitiam a entrada de crianças menores, desde que submetidas aos mais velhos. O autor argumentava, ainda, que, além de os meninos buscarem sua diferenciação em habilidades masculinas, mantendo parcialmente os jogos e agregando o futebol, eles estabeleciam a sexualidade como elemento fundante:

Como os contatos com os membros do grupo valem como uma iniciação à malícia, a diferenciação dos grupos por sexos torna-se ainda mais extrema, não sendo absolutamente permitido meninas. As relações intergrupais se definem em torno dos indivíduos do mesmo sexo e as relações que qualquer membro do grupo mantenha com pessoas de sexo diferente e da mesma idade, mais ou menos, são encaradas como coisas puramente individuais de conquista (namoro, por exemplo). (p. 238)

Havia, portanto, critérios de pertencimento a determinados sexo, gênero e orientação sexual. Apesar da importância da sexualidade, nas trocinhas, as brincadeiras eram definidas em torno de habilidades masculinas (eventualmente jogos e predominantemente futebol), e, nas trempas, de habilidades femininas (eventualmente jogos e predominantemente rodas, casinha e comidinha), o que gerava o apelido de muleconas para as meninas transgressoras e de veadinhos ou maricas para os meninos. Havia uma diferenciação favorável ao poder masculino quando a punição se referia a sexualidade e namoro, porque as meninas, negativamente, ficavam mal-faladas, ao passo que os meninos, positivamente, eram considerados mais homens.

Na escola, pude observar que, em alguns momentos, construíam-se também fugazes clubinhos de mesmo sexo, devido às relações de intimidade entre colegas e ao tema tratado, que girava em torno do desejo de privacidade para conversar sobre sentimentos, inclusive amorosos e sexuais. Nos clubes mistos, além de as regras para a montagem dos grupos não estarem atreladas ao pertencimento de sexo, havia critérios como o quantum de intensidade, ritmo ou agressividade era suportado na brincadeira; as negociações a esse respeito produziam intensas discussões de gênero sobre as regras a serem praticadas no pega-pega, no futebol e na amarelinha. Os critérios de divisão por sexo ou por características pessoais confundiam-se nos clubinhos da escola, pois, de certo modo, as afinidades relacionavam-se com significados variados e de ruptura sobre o que era ser menino ou menina para cada uma daquelas crianças, que incluíam neles seus referenciais extraescolares. Tais afinidades eram vinculadas à aceitação ou rejeição do que designo como normatividade dominante de gênero (binária, antagônica e complementar) e orientação sexual heteronormativa (baseada na heterossexualidade).

Em relação à aproximação entre os sexos, penso que os critérios de montagem refletem mudanças históricas, já que os clubinhos da escola tendiam para o misto exatamente quando o aprendizado amoroso-sexual ampliava-se nas 3as e 4as séries. Pude constatar, inclusive, uma influência das crianças da 5ª série com quem conviviam parcialmente no recreio; estas vivenciavam relações de gênero mais flexíveis e que foram citadas nas entrevistas como modelo almejado por muitas crianças de 3ª e 4ª séries, particularmente por aquelas que se rebelavam contra as formas de separação que observavam persistir entre elas. Já os clubes mistos, agrupamentos não encontrados por Fernandes (1979), expressavam relativa flexibilidade nas concepções de gênero ao basearem sua seleção de participantes predominantemente em características gerais, tais como afinidades e amizades.

Como forma autônoma de gerir suas relações de gênero, as crianças elaboravam, nos clubinhos da escola, regras de convivência sem intervenção de adultos. Tamanha organização e a própria designação de clubinho encontrada na E. E. Luisa Mahim podem estar relacionadas a alguns aspectos das antigas formas de organização interna das trocinhas. Era comum haver, dentro das trocinhas, equipes de futebol com regras bem rígidas, e por isso a nomenclatura clube podia apresentar-se como sinônimo.

Quando o líder não é o chefe formal, tacitamente todos o consideram o chefe eventual, aparecendo, do mesmo modo, como a alma de tudo. Pode haver outros cargos (quando os membros da trocinha podem contribuir, se o líder não guarda o dinheiro, apresenta-se a necessidade de um tesoureiro; do mesmo modo, escolhe-se o treinador, um juiz, o capitão, etc.) aos quais o membro do grupo não se pode furtar, sob pena de ser punido. Aliás, do que observamos, esses lugares são desejados: por isso, só raramente alguém não os aceitaria. (FERNANDES, 1979, p. 239, grifos meus)

Pode-se afirmar, pois, que de modo geral as relações entre os membros dos grupos infantis se orientam segundo padrões democráticos de conduta, quer com relação à nacionalidade, à classe social e à admissão de novos membros (p. 243)

Diferentemente do que ocorria com os clubinhos (e mesmo com as trempas), o fato de estarem atreladas ao futebol gerava intensas disputas e conflitos entre as trocinhas, mas observei aspectos como definição de liderança e seleção de membros.

Rafael, da 3ª série, vem até a escada e grita para uma menina: "Você saiu do grupo? Se não saiu, vem que vai ter reunião agora!" Neste mesmo agrupamento, voltam sete meninos e ficam perto das meninas. Rafael discute com uma menina sobre quem entra e quem sai: "Já tem muita gente no clube!". Eu me aproximo de uma menina que conheço, pergunto por que a outra não pode entrar e ela diz: "Ela é muito oferecida, exibida!" [...]; e completa, orgulhosa: "O nosso clube tem presidente e secretário". (Diário de campo, 8 maio 2001)

Estou observando uma rodinha de meninas da 2ª série com uns brinquedos de casinha e bonecas. Correndo, chegam meninas também pequenas dizendo que precisavam de meninas para o clube contra clube. Nesse momento, jogam-se sobre uma turma que brincava no chão. Todas se levantam e saem correndo juntas. (Diário de campo, 13 set. 2001)

A divisão por idade ou série não me pareceu um critério claro para a montagem dos grupos no recreio, assim como a prática da chamada oral não pareceu estar rigidamente atrelada à marcação de presenças (Diário de campo, 17 maio 2001), ambos os elementos existindo, quem sabe, apenas devido à presença de práticas semelhantes em salas de aula.

Paralelamente ao clube de mesmo sexo presente na E. E. Luiza Mahim, a exemplo dos clubes do Bolinha e da Luluzinha eternizados nas animações, havia o clube misto, invenção das crianças para vivenciarem relações de gênero sem conflitos e com alguma forma de gestão no emaranhado de subjetividades presentes no recreio escolar. Se a existência dos clubes de mesmo sexo garantia a calmaria interna de quem se recusava à mistura, apesar das pressões externas de crianças que queriam nele entrar, a existência de clubes mistos revelava uma forma de meninos e meninas estarem juntos de maneira consensual.

Nem só Bolinha, nem só Luluzinha: os clubinhos em ação

À calmaria interna do clubinho de mesmo sexo contrapunha-se a ação individual de meninos ou meninas para nele entrar e brincar com um(a) colega em especial, mesmo sendo do sexo não admitido, em um movimento de tentar quebrar as fronteiras demarcadas. Tais ações recebiam, porém, forte reação contrária em pequenas explosões de indignação, ora de meninos, quando alguma menina solicitava entrar em seus clubes, ora o inverso. Eventualmente, havia reação dos(as) descontentes com a determinação do clube de mantê-los excluídos, e, nesse momento, só lhe restava procurar os adultos, já que sua vontade implicava, claramente, ir contra a decisão de não apenas um indivíduo, mas de um grupo deliberadamente organizado e regrado em forma de clube, no qual predominava a forma coletiva de resolver problemas. Nesse caso, o adulto tinha que negociar com integrantes ou representantes do clube em questão, em nome da criança que reivindicava sua entrada. Tais ações corriqueiras e isoladas adquiriam uma dimensão coletiva e de forte discussão de significados de gênero. A grande indagação das crianças excluídas era o porquê da rejeição.

Eventualmente, era possível que o clubinho com integrantes de um mesmo sexo se rendesse aos apelos de uma inspetora e permitisse a entrada temporária de um integrante de outro sexo, mas quase sempre as tentativas eram infrutíferas. A entrevista com a inspetora Rosa deixa transparecer indicativos da regulamentação desses grupos:

Nos clubinhos, às vezes, elas não deixam os meninos brincarem: "Hoje estou num dia legal, então hoje eles podem. Hoje não estou num dia legal, então eles não podem". [risos] [...] Então elas correm atrás da gente: "Tia, eles tão atrapalhando a brincadeira!", e eles: "Hoje eu queria brincar!". [Rosa dizia:] "Vamos, vamos, as meninas querem brincar sossegadas, só entre elas, a gente podia respeitar isso, vocês não acham?". [E os meninos respondiam:] "Ô tia, mas eu queria brincar!". Então eu dizia: "Senta aqui um pouquinho, enquanto me reúno com as meninas, pergunto qual a brincadeira e por que vocês não podem participar". [E elas respondiam:] "Ah, tia, a gente queria brincar só a gente hoje". Elas não dão um argumento concreto. (Entrevista, nov. 2001)

Rosa mediava as interações e ouvia as reivindicações das crianças, ora garantindo os interesses do clubinho de mesmo sexo, convencendo os demais a aceitarem o impedimento, ora procurando convencer o grupo de mesmo sexo a rever sua proibição de entrada de alguém do outro sexo. Podemos supor que a expressão sossegadas, utilizada pela inspetora, derivasse de sua visão de gênero sobre a feminilidade e as motivações das meninas, no sentido de que, sem a presença dos garotos, haveria menos conflitos. Mas o que se pode deduzir claramente dessa situação é que a inspetora fazia um esforço de aproximação ao mediar as relações, questionando a regra da não entrada de um ou outro sexo.

No caso relatado, as diferenças de sexo que fundamentavam a separação grupal eram apresentadas à inspetora de modo implícito e pouco elaborado verbalmente pelas meninas. Por trás dessas tentativas individuais de crianças que não estavam em clubinhos, mas desejavam circunstancialmente neles entrar, estava a necessidade de meninos participarem, em clubes de meninas, de atividades cuja tônica de gênero era mais acentuada para a feminilidade, como boneca e casinha, ou de meninas participarem, em clubes de meninos, de atividades com características de masculinidade, como a brincadeira de lutas corporais. O fato de uma menina conseguir entrar em um clube de meninos (e vice-versa) provocava, por instantes, uma ruptura das fronteiras de sexo e podia ocasionar a quebra das fronteiras de gênero, por desamarrar as habilidades das características generificadas. Eventualmente, a entrada de uma criança de outro sexo relativizava a rigidez da amarração - para determinado sexo, determinado gênero -, mas os clubes que se estruturavam com integrantes do mesmo sexo visavam precisamente manter, para determinado sexo, determinado gênero, e, por isso, eram quase impermeáveis a apelos.

A meu ver, eram os clubes mistos que quebravam fronteiras, utilizando a identidade coletiva de pertencimento ao clube como referencial em primeiro plano e deixando livre a questão das habilidades. De certo modo, eles agrupavam as crianças que queriam agir em relações de gênero menos dicotomizadas que outras, sem terem que entrar em conflito para isso.

A separação entre os sexos na escola é assunto presente em muitos estudos sobre relações de gênero na infância. Na França, é tema dos militantes da coeducação (educação mista), os quais, desiludidos, perguntam-se: de que adiantaria a escola mista se ela continuaria reproduzindo distanciamentos entre os sexos?; o que se poderia fazer para que as crianças não reproduzissem as dicotomias?; a estrutura escolar favoreceria esse distanciamento entre os sexos mesmo sem o perceber? Claude Zaidman (1994), ao trazer a fala de um diretor escolar para quem "o regime misto é como um molho de vinagrete: se parar de misturar se separa!" (p. 354), analisa as contradições do regime misto escolar.

[...] é esclarecedor partir da observação do pátio do recreio, lugar em que entram em jogo os corpos nas brincadeiras sexuadas, antes de estudar as relações na sala de aula, a relação com o saber. No pátio do recreio, o gênero é o fator dominante de definição da situação. Na sala de aula, ele não entra na definição oficial da situação, mesmo se intervém amplamente ao nível das práticas sociais pelo viés dos estereótipos e dos comportamentos diferenciados das crianças.5 5 A autora utiliza ora os conceitos de relações de sexo e relações de gênero como sinônimos, ora os conceitos de sexo e de gênero, conforme minha abordagem. (p. 355)

Trata-se de questões para reflexão e pesquisa, pois pude observar relatos de crianças integrantes de clubes de mesmo sexo no recreio que, em suas relações familiares ou de vizinhança, brincavam de modo misto, mas diziam ser diferente na escola. A separação entre os sexos foi relatada em um levantamento exaustivo feito por Thorne (1997) sobre a literatura em língua inglesa, no qual a separação por sexo em crianças de 3as, 4as e 5as séries registrou-se em 85% das pesquisas, com uma diferença para menos em Luria e Herzog (1985, apud THORNE, 1997), que observaram índices diferentes por setor social, sendo separadas por sexo 80% das crianças de classe média e 63% das crianças de classe média alta. Nos estudos de Maccoby (1988) sobre escolas norte-americanas, essa separação incluía a pré-escola e ampliava-se para a adolescência.

Os clubes da E. E. Luiza Mahim, ao empreenderem uma ação regulamentadora própria, tanto reforçavam a separação quanto produziam a mescla entre os sexos. No entanto, essa criação infantil enfrentava obstáculos no recreio. Apresentando de modo simplista os princípios da escola mista e universal, o inspetor Paulo argumentava, de modo categórico, que defendia uma escola única para todos. Ele declarou praticar, decisivamente, uma postura contrária aos clubinhos:

Paulo: [...] as coisas que eu mais vejo eles fazendo aí, coisa de menino, é ficar batendo figurinha e jogando futebol. Aí tem o clubinho, que eles às vezes ficam separando território ali.

E.: Pra que serve esse clubinho?

Paulo: Fica uns quatro, cinco estudantes [...], mas eles já pararam, tinha muita madeira e aí fui jogando fora [...].

E.: É por que eles usavam a madeira para dividir os clubinhos?

Paulo: É. Acho que às vezes sai muita confusão.

E.: Que tipo?

Paulo: Tem uma menina que quer entrar e eles não deixam [...].

E.: Quando acontecia isso, o que você fazia?

Paulo: A gente tinha que intervir, acabar com o clube.

E.: Você acabava com o clube, Paulo?

Paulo: É, a escola é de todos! (Entrevista, nov. 2001)

Se aparentemente Paulo agia por uma democratização dos espaços, na verdade, sua ação eliminava qualquer possibilidade de autonomia infantil, já que tanto clubinhos de mesmo sexo quanto clubinhos mistos vivenciavam solicitações de entradas individuais e utilizavam demarcações espaciais. Assim, o inspetor desestruturava não apenas ações que favoreciam a separação entre os sexos, mas também ações que buscavam mesclar os sexos, questionando as relações de gênero ali praticadas.

A organização espacial, um dos componentes do clubinho, fazia parte da cultura infantil daquela escola e delimitava o raio de ação de cada grupo. As crianças brincavam em espaços fixados a partir do que dispunham no recreio, como árvores ou sucatas compostas de tábuas, cadeiras velhas ou fitas plásticas utilizadas na reforma do prédio, utilizando tais espaços como símbolos de limite entendidos pelas demais crianças, ainda que não legitimados pela escola.

A delimitação espacial, que parece ser uma necessidade infantil de construção e preservação de identidade, foi também encontrada nas trocinhas e trempas do Bom Retiro, onde havia um traçado imaginário sobre as ruas, indicando proximidade com a moradia ou, simplesmente, relações de poder entre os meninos que demarcavam suas áreas de atuação.

Uma mesma área de vizinhança pode conter várias 'trocinhas', agrupando-se os imaturos em qualquer lugar: no meio das ruas, nas calçadas, nos campos, nos terrenos baldios, nos quintais grandes, etc. As meninas, geralmente, não passam das calçadas ou dos quintais de suas casas (em alguns bairros preferem designar os seus agrupamentos com outras palavras: 'trempa' ou 'trempinhas'). Os meninos têm em alta dose o significado de propriedade, aceitando todos os membros das 'trocinhas' ou limites das áreas ou 'zonas' de cada uma. É claro que não determinam qual é esse limite. Mas entre eles há uma espécie de convenção tácita que impede a invasão da 'zona' de outros grupos. Com a determinação de sua 'zona', as 'trocinhas' recebem um nome (o da rua em que está; ou se há mais de uma 'trocinha', de duas ruas: a 'trocinha' da rua da Graça com Correia de Melo, por exemplo). (FERNANDES, 1979, p. 241)

Encontramos aí uma clara divisão por sexo dos espaços com influência em relações de gênero dicotômicas: o espaço da casa, da proximidade, é para as meninas, enquanto o das ruas, do mundo, é para os meninos, o que se dá à custa do aprendizado de força e poder. Fernandes (1979) observa que as culturas infantis, no contexto por ele estudado, são responsáveis pela internalização das normas sociais por meio não de uma ação de imitação exata de sua realidade próxima, mas de funções sociais da cultura dos adultos vivenciadas pelas crianças. Entre outros exemplos, ele menciona a influência de colegas de mesmo sexo no controle para a perpetuação das normas.

Sobre a influência de colegas de mesmo sexo nos clubinhos, transcrevo, a seguir, um pequeno relato de Patrícia, aluna da 4ª série:

Patrícia: [...] eu gosto muito de brincar com a 1ª série, com crianças menores do que eu, daí tem o clube com a 1ª série, então eu e a Larissa brincamos [...].

E.: E é só de menina, esse clube?

Patrícia: Tinha um menino. Só porque tinha só um menino, acho que ele não gostava de ficar no meio de muitas meninas. Parece que os amiguinhos dele gozavam da cara dele, e ele não tava mais. (Entrevista, nov. 2001)

Na forma de clubinhos, as crianças buscavam administrar autonomamente suas relações em grupos mistos - no caso de quem gostava da convivência recíproca protegida sob certas condições - ou em grupos de mesmo sexo, para garantir uma separação radical entre os sexos. Nesse segundo caso, a estratégia dos clubinhos permitia um espaço reservado para as meninas que viam nos meninos uma postura agressiva (ou, no mínimo, incômoda), e para os meninos que evitavam a entrada e a interferência delas em seus modos de brincar e de se relacionar.

Compreender os clubinhos permite não apenas conhecer uma faceta das culturas infantis em determinada época, mas também revelar as estratégias coletivas de regulamentação das relações de gênero em uma escola no início do século XXI, mesmo que tal organização não fosse dominante ali. Os clubinhos possibilitam, ainda, ver a criança em seu protagonismo, interagindo com inspetores(as) em um jogo de influências recíprocas entre cultura de adultos e cultura de crianças, numa produção particular de uma cultura escolar em relação aos gêneros.

Considerações finais

Esta pesquisa insere-se no movimento da sociologia da educação de considerar a criança como um tema de estudo não menos importante do que outras categorias sociais. Apesar de situar as crianças na totalidade social e na temporalidade que permeia os sentidos da ação humana, este trabalho reflete a preocupação com a infância como um espaço social jamais vazio, uma vez que é sucessivamente preenchido por novas gerações. Tal olhar sobre a infância não se reduz a uma descrição de suas práticas, mas busca compreender as interações em determinada cultura infantil, bem como suas estratégias, seus dilemas e seu jogo de influências recíprocas com o mundo adulto. A dificuldade de encontrar bibliografia nacional sobre o recreio remete a uma necessidade urgente de pesquisas sobre as crianças e suas experiências nas relações de gênero, não apenas na escola, mas nas intersecções entre esta e as relações de vizinhança e de outros espaços de sociabilidade.

A opção de estudar o espaço do recreio, pedagogicamente considerado irrelevante, revelou a existência de um pulsante universo infantil, de risos e lágrimas, de invenções e tradições, de disputas e submissões, que me permitiu (re)conhecê-lo como um intenso espaço de vivência das relações de gênero. Relacionei os clubinhos com estudos de Florestan Fernandes (1979) sobre as práticas infantis de rua na cidade de São Paulo na década de 1940 e com eles dialoguei.

Um dos aspectos que mais me chamou a atenção nos clubinhos foi a importância atribuída a eles pelas crianças como forma de aproximar ou distanciar os sexos, com uma regulamentação própria, sem intervenção dos(as) inspetores(as) ali presentes, ainda que, a seu modo, cada um(a) deles(as) tentasse interferir, em processos de negação ou de suporte respeitoso - neste último caso, eventualmente acrescentando uma ação crítica. Nos clubinhos, quando queriam brincar de modo misto, as crianças rompiam a divisão entre os sexos e relativizavam as fronteiras de gênero, podendo brincar de atividades masculinas, neutras e, mais raramente, femininas. Se o objetivo era a separação entre os sexos, o clubinho de mesmo sexo cerrava suas portas para que, no interior dele, as meninas pudessem exercer suas feminilidades e os meninos, suas masculinidades. A forma de organização de clubinhos mistos ou de mesmo sexo era a alternativa construída pelas crianças a fim de evitar os conflitos, fonte de angústia e insatisfação para muitas delas, em um processo de autorregulamentação para gestão de seus próprios interesses.

Deste mergulho, penso ter trazido à tona um pouco de uma cultura infantil, em particular, e também uma caracterização da escola como espaço contraditório, que pode desenvolver ações de suporte às crianças e, assim, ampliar espaços de experiências para a crítica às desigualdades sociais e aos preconceitos em relação às questões de gênero e a todas as demais diferenças.

Recebido em: 22.12.2010

Aprovado em: 08.08.2011

Tânia Mara Cruz é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), com ênfase em relações de gênero e raça/etnia, e formadora em gênero e feminismo junto a movimentos sociais e instituições educativas.

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  • Correspondência:
    Tânia Mara Cruz
    Universidade do Sul de Santa Catarina
    Programa de Pós-Graduação em Educação
    Av. Jose Acácio Moreira, 787
    88704-000 - Tubarão/SC
  • 1
    Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla da autora, desenvolvida durante o doutorado.
  • 2
    Os nomes de crianças, adultos e escola são fictícios.
  • 3
    De acordo com autoclassificações feitas pelas crianças no bojo da pesquisa
    Fracasso escolar: articulações entre gênero e cor/raça (CARVALHO, 2001, 2004).
  • 4
    O parquinho foi desativado logo no começo das aulas, pois estava muito deteriorado.
  • 5
    A autora utiliza ora os conceitos de
    relações de sexo e
    relações de gênero como sinônimos, ora os conceitos de sexo e de
    gênero, conforme minha abordagem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      22 Dez 2010
    • Aceito
      08 Ago 2011
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