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EDITORIAL

O presente número de Educação e Pesquisa traz os resultados de nossa segunda edição elaborada a partir de demanda dirigida, desta vez com o tema Desigualdade, diferença e políticas públicas para a educação. A Comissão Editorial da revista propôs uma seção temática e divulgou-a no meio acadêmico com o propósito de dar a conhecer o que vem sendo produzido e de agrupar em um único número reflexões sobre a temática sugerida em diferentes matizes, recortes empíricos e perspectivas teóricas. O resultado revelou-nos o grande interesse e o amplo impacto do tema na área da educação. Recebemos 151 resumos expandidos sobre os mais variados aspectos e oriundos de todas as regiões do país. Diante da imensa quantidade de trabalhos submetidos e da qualidade de muitos deles, decidimos dedicar toda a edição à temática proposta, possibilitando a diversificação de perspectivas com que tal assunto vem sendo investigado e debatido.

Com base nos critérios divulgados desde a chamada inicial, selecionamos catorze artigos completos e inéditos, os quais foram submetidos ao processo normal de avaliação por pares e à aprovação final pela Comissão Editorial. Agradecemos a todas e a todos que participaram desse processo, enviando e avaliando propostas, revisando e finalizando os artigos nos prazos estabelecidos, e colaborando efetivamente para a manutenção da regularidade e da qualidade desta publicação.

A pronta e maciça resposta de tantos pesquisadores brasileiros e também estrangeiros à chamada de Educação e Pesquisa confirma nossa premissa inicial: o debate sobre desigualdade e diferença vem ganhando força nas últimas décadas, tendo repercussão na definição e na implantação de algumas políticas públicas educacionais. Entendemos que essas questões marcantes nas sociedades contemporâneas dizem respeito às lutas pelo direito à diferença/igualdade e pela ampliação da cidadania, lutas estas que fazem frente e resistem a diferentes processos sociais de desigualdade, exclusão e desagregação agravados, na atualidade, pelas crises nas ordens social, política e econômica, local, regional e mundial.

No âmbito da educação brasileira, o debate está presente e tem-se intensificado. Assistimos a um significativo incremento de leis, planos e programas voltados ao enfrentamento das desigualdades, sejam elas relativas a deficiência, raça, etnia, gênero, diversidade sexual, geração e/ou territorialidade. Contudo, tanto na elaboração e na implantação das políticas públicas propostas, quanto na análise acadêmica sobre elas, observamos que termos como desigualdade, diversidade e diferença assumem significados variados: ora aparecem como equivalentes, ora como elementos dicotômicos, sem que os conceitos sejam estabelecidos com precisão. Há também inversões e equívocos, especialmente em políticas voltadas para a avaliação na educação, as quais exigem igualdade de mérito e de desempenho quando as condições dos sujeitos avaliados são desiguais.

Nesse sentido, eis uma das qualidades do conjunto de artigos aqui agrupados: eles nos mostram várias faces do debate sobre o tema nas últimas décadas e demonstram esforço rumo a uma maior precisão conceitual, sem desprezar certa polissemia que os termos assumem em distintas sociedades, culturas e épocas, evitando, assim, um enquadramento rígido de noções que historicamente se vêm constituindo. A atenção dos autores incide também sobre resultados de pesquisas, sobre a análise de políticas públicas concebidas e desenvolvidas em cada terreno, bem como sobre o impacto e o saldo de algumas dessas políticas. Em síntese, os artigos aqui reunidos brindam-nos com cuidadosas reflexões relativas às contradições que cercam os conceitos de diversidade, diferença e desigualdade, ao papel das políticas educacionais no sentido de dificultar e/ou promover a democratização da educação básica e, consequentemente, às inconsistências de propostas e ações voltadas para o acesso e a permanência de crianças, jovens, adolescentes, homens, mulheres, deficientes, negros, brancos e indígenas nas escolas brasileiras e de outros países. Trata-se de estudos que, com perspectivas teóricas diversas, apresentam balanços sobre as injunções que marcam o debate contemporâneo em torno de questões da diferença e da desigualdade; análises sobre a elaboração e a implementação de políticas; resultados de pesquisas com o objetivo de avaliar criticamente experiências de implantação de tais políticas, seja no Brasil, seja em outros países.

Apresentamos inicialmente dois artigos com discussões sobre os conceitos de desigualdade, diversidade, diferença e justiça. A partir de um levantamento da produção acadêmica publicada em periódicos de 1990 a 2007 e da análise de documentos oficiais da política educacional do governo federal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Tatiane Cosentino Rodrigues e Anete Abramowicz, no texto intitulado O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação, examinam diferentes usos, concepções e significados atribuídos aos conceitos de cultura, diversidade e diferença na educação, estabelecendo um contraste entre usos e conceituações teóricas. Em Igualdade, desigualdade e diferenças: o que é uma escola justa?, por sua vez, Flávia Schilling expõe alguns dos resultados de uma pesquisa sobre as percepções do justo e do injusto coletadas entre alunas/os do curso de pedagogia da Universidade de São Paulo (USP) e estudantes do ensino médio, professores e gestores de uma escola pública de São Paulo. A autora ressalta a dificuldade em se obter uma definição abstrata do que é justo, e é pela análise da injustiça ocorrida nas escolas que seu trabalho chega a algumas definições do que poderia ser uma escola justa. Ela nos mostra, porém, que essa mesma escola revela-se como um lugar difícil e conflituoso.

Um grupo maior de artigos expressa a relevância do tema da deficiência no debate sobre diferença, diversidade e desigualdade na educação, o que se evidenciou pelo grande número de resumos recebidos a esse respeito. Aqui reservamos espaço para quatro textos que examinam aspectos distintos da política de educação especial nos âmbitos nacional e internacional. Dois deles privilegiam o debate em torno da educação de surdos. Ana Claudia Balieiro Lodi, no texto Educação bilíngue para surdos e inclusão segundo a Política Nacional de Educação Especial e o Decreto nº 5.626/05, desvenda os diferentes sentidos de educação bilíngue e de inclusão nos documentos examinados à luz da teoria discursivo-enunciativa de Bakhtin. Para a autora, enquanto a Política Nacional de Educação Especial defende a inclusão dos alunos surdos no sistema regular de ensino, o Decreto nº 5.626/05 define a educação de surdos como um campo específico do conhecimento, distanciando-se da educação especial. Em Política para uma educação bilíngue e inclusiva a alunos surdos no município de São Paulo, Cristina Broglia Feitosa de Lacerda, Neiva de Aquino Albres e Silvana Lucena dos Santos Drago examinam a mesma temática, agora com ênfase na atual política para educação de alunos com surdez no município de São Paulo, que conta com surdos inseridos nos dois contextos educacionais destacados pelo artigo anterior: escolas municipais de educação bilíngue (para alunos surdos) e escolas regulares (que recebem alunos ouvintes e surdos).

Em seguida, Carla K. Vasques, Simone Moschen e Roselene Gurski discutem a implementação das diretrizes inclusivas com base na hermenêutica filosófica, que oferece os tempos e os focos de leitura apresentados no trabalho. Sob o título Entre o texto e a vida: uma leitura sobre as políticas de educação especial, o artigo conclui que igualdade e diferença são reconhecidas nos documentos como princípios. Todavia, na concretude das escolas, ainda persiste a noção do diferente como desigual. No quarto texto desse bloco, Monica Maria Farid Rahme oferece-nos a análise de algumas das questões centrais referentes às experiências educacionais de inclusão desenvolvidas em três países. Em Inclusão e internacionalização dos direitos à educação: as experiências brasileira, norte-americana e italiana, a autora indica, entre outros aspectos, o crescente processo de internacionalização do direito à educação, que molda semelhanças entre essas distintas realidades.

Um terceiro grupo de artigos analisa dimensões mais específicas e até mesmo mais plurais da diferença e da desigualdade, discutindo aspectos conceituais, desafios e problemas gerados pela realização de programas e políticas específicas relativas a raça, etnia, gênero, diversidade sexual, geração e espaço no contexto escolar. Tais trabalhos problematizam resultados, impactos e equívocos de programas de governo aplicados em contextos urbanos e rurais para jovens, crianças, negros, homossexuais e povos indígenas. São artigos que se aproximam quando tocam nas questões mais amplas que o tema da desigualdade/diferença tangencia, mas que facilmente embaralham qualquer esforço no sentido de sequenciá-los. Mesmo assim, arriscamos uma alternativa entre tantas outras possíveis.

Os dois primeiros textos desse grupo aproximam-se pelo eixo étnico-racial. Em Desafios do currículo multicultural na educação superior para indígenas, Moisés David, Maria Lúcia Melo e João Manoel da Silva Malheiro voltam-se para a questão de como as universidades têm enfrentado os desafios curriculares para oferecer educação aos povos indígenas que acessam o ensino superior. Utilizando-se de documentos oficiais e informações de portais de notícia, os autores fazem um desenho da realidade da educação indígena no país e confirmam alguns de seus problemas por meio de pesquisa com universitários indígenas da Universidade Federal do Pará. Constatando que os cursos são oferecidos dentro de uma perspectiva etnocêntrica, o artigo rebate a ideia em voga de que o acesso à educação deve reduzir-se ao mero oferecimento de vagas ou a uma lógica curricular hegemônica, inflexível, e afirma uma concepção de currículo multicultural que supõe respeito à diversidade, aos saberes e valores culturais, bem como ao diálogo entre diferentes grupos sociais. Já o artigo Políticas de promoção de igualdade racial e programas de distribuição de livros didáticos, de Paulo Vinicius Baptista da Silva, Rozana Teixeira e Tânia Mara Pacifico, estuda a relação entre políticas de promoção da igualdade racial e a distribuição de livros didáticos. Mais especificamente, os autores investigam como livros de português, história, geografia e ciências representam o negro e a relação entre brancos e negros. Considerando que os editais do Programa Nacional do Livro Didático apresentam recomendações visando à valorização dos segmentos étnico-raciais, eles concluem que ainda há predominância de discursos e imagens que denotam hierarquias entre brancos e negros e sugerem a presença de racismo.

Na sequência, o preconceito e a estigmatização raciais cedem lugar à desigualdade de gênero e à diversidade sexual em Sigam-me os bons: apuros e aflições nos enfrentamentos ao regime da heteronormatividade no espaço escolar. Em seu artigo, Fernando Seffner discute quão complexa é a relação entre as questões de gênero e sexualidade nas práticas escolares cotidianas e quão difícil é tomar o diferente fora de uma normatividade instituída e aceita pela maioria, mesmo quando há a intenção de combater preconceitos. Esse é o caso das ações propostas em três escolas públicas de Porto Alegre, observadas e analisadas pelo autor com o propósito de fazer uma "discussão conceitual e política que envolve hoje categorias como diferença, diversidade, inclusão, igualdade e desigualdade, em articulação com as categorias do campo específico: gênero, sexualidade e masculinidades no espaço escolar".

Mais adiante, Maria Inês Caetano Ferreira, no texto Educadores e a implementação de diretrizes contra desigualdades: o caso do Projovem Urbano, apresenta os resultados de uma investigação sobre a experiência dos educadores do referido programa na Região Metropolitana de São Paulo, apostando no estabelecimento de relações entre educador e educando em que se considerem o respeito às diferenças e o compromisso com a inclusão. Com base em concepções teóricas que preconizam a escola como terreno de reprodução das relações de desigualdade, sob a ótica dos docentes, a autora confirma a possibilidade de efetivação de relações menos assimétricas que conferem ao jovem maior confiança e elevação de sua autoestima.

Por meio de dados de avaliações como a Prova Brasil, o Censo Escolar e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), e a partir das características do perfil e da unidade escolar, o artigo Contexto escolar e indicadores educacionais: condições desiguais para a efetivação de uma política de avaliação educacional, de Maria Teresa Gonzaga Alves e José Francisco Soares, analisa e discute a relação entre o Ideb e o contexto escolar. O estudo confirma a estreita vinculação entre baixo nível socioeconômico dos alunos e baixo rendimento, bem como o peso que as condições de infraestrutura e complexidade da escola têm para aumentar as dificuldades em melhorar a qualidade de seu ensino e alcançar um índice de desenvolvimento mais favorável.

Em As indicações dos organismos internacionais para as políticas nacionais de educação infantil: do direito à focalização, Rosânia Campos dedica-se a identificar as orientações dos organismos internacionais (UNESCO e UNICEF) para a educação infantil na América Latina e o modo como tais orientações são incorporadas pelas políticas educativas locais. A análise privilegia os documentos desses organismos que preconizam a "adoção da educação infantil como estratégia de combate à pobreza e, desse modo, como uma via para promover a equidade social". Para a autora, essa ideia tem consequências negativas na medida em que desqualifica a criança como cidadão com direitos, o que acentua a natureza compensatória de políticas de expansão e inclusão das crianças pequenas. Assim, seu estudo reposiciona a discussão sobre a educação infantil como direito de todas as crianças independentemente de seu nível socioeconômico.

Gelsa Knijnik e Fernanda Wanderer, em seu artigo Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e educação matemática, discutem a face da temática em contexto rural por meio de uma análise sobre o desenvolvimento e o impacto do Programa Escola Ativa (PEA), voltado para a área de matemática e implementado em escolas rurais multisseriadas do Rio Grande do Sul. Documentos oficiais sobre o programa e entrevistas com professores e formadores envolvidos no projeto constituem o corpus da pesquisa realizada pelas autoras. Os elementos destacados indicam que, a partir das orientações pedagógicas, o programa analisado não escapa da lógica de reprodução das desigualdades e reforça hierarquias entre modos de vida urbana e rural, processo este que aparece de maneira nítida na educação matemática, sobretudo em domínios como a geometria. A análise "mostrou que há um tensionamento entre as orientações pedagógicas oferecidas aos professores e as atividades propostas aos alunos na área da matemática, e que o programa conduz a conduta dos professores, dos alunos e, de modo mais amplo, da população camponesa".

Fechamos a sequência de artigos com Evolución de losmodelos metodológicos y su relación con la política educativa en España, de Sonsoles San Román Gago, o único trabalho de autoria estrangeira selecionado para esta edição. A fim de discutir a temática em pauta com base na realidade espanhola, a autora explicita e procura compreender a relação entre as mudanças nas políticas educacionais e o desenvolvimento de modelos culturais, ideológicos, metodológicos e curriculares. O percurso histórico desse processo por ela analisado indica a forte e permanente influência de políticos e da Igreja Católica, em muitas ocasiões, no desenho curricular e na definição de conteúdos e metodologias que configuram diferentes políticas educativas naquele país.

Plenamente integrado ao debate aqui proposto, o ponto de vista sociológico de Danilo Martuccelli, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Paris-Descartes (Sorbonne), finaliza este número de Educação e Pesquisa. A entrevista com ele realizada por Maria da Graça Jacintho Setton e Marilia Pontes Sposito, sob o título Como os indivíduos se tornam indivíduos? Entrevista com Danilo Martuccelli, inaugura uma seção da revista dedicada à publicação de entrevistas. Nela, o professor apresenta resultados de seus trabalhos desenvolvidos na França e também com pesquisadores latino-americanos sobre processos de individuação e sobre os desafios estruturais do trabalho e da escolarização nas sociedades contemporâneas.

Como já é costume de nossa publicação, oferecemos a versão em inglês de parte do conteúdo a fim de garantir sua maior divulgação junto ao público estrangeiro. Neste número, o destaque foi dado aos textos de Tatiane Rodrigues e Anete Abramowicz; Ana Claudia Balieiro Lodi; Moisés David Neves, Maria Lúcia Melo e João Manoel da Silva Malheiro; Paulo Vinicius Baptista da Silva, Rozana Teixeira e Tânia Mara Pacifico; Fernando Seffner; e, por fim, à entrevista com o Prof. Danilo Martuccelli - todos disponíveis no site da SciELO.

Cláudia Pereira Vianna

Vinício de Macedo Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013
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