Acessibilidade / Reportar erro

Breve história do ensino superior brasileiro e da formação de professores para a escola secundária

A brief history of the Brazilian higher education and teacher education for secondary school

Resumos

O artigo trata da evolução do ensino superior brasileiro e sua relação com os modelos de formação de professores para escola secundária, ou seja, as séries finais do ensino fundamental e ensino médio. As análises concentram-se nos textos e documentos que abordam a genealogia da regulamentação do ensino superior, e, de modo particular, os cursos de formação de professores, tomando como base territorial de análise o Estado de São Paulo. Na medida em que se considera a educação como um fenômeno histórico, destacou-se o contexto político econômico a contar de 1930, quando a formação de professores foi elevada a nível superior e o ensino expandiu-se fortemente em função do aumento sensível da demanda social por educação. A faculdade de filosofia, inspirada na investigação científica e, inicialmente, concebida como núcleo integrador da nascente universidade, transmutou-se, constituindo--se em primeiro lócus institucional de ensino superior responsável pela formação de professores. Demonstraram-se a desarticulação da faculdade de filosofia no âmbito da universidade, que foi sendo substituída por outras formas de organização, e sua expansão como instituições isoladas de caráter privado, aqui denominada de novas faculdades de filosofia. Com o advento das licenciaturas curtas, essas instituições apresentaram um crescimento significativo, contribuindo com o processo de evolução do ensino superior para a consecução do binômio expansão/privatização.

Ensino superior; Faculdade de filosofia; Formação de professores


This article deals with the evolution of the Brazilian higher education and its relation to the models of teacher education for secondary school, i.e., the upper grades of primary education and secondary education. The analyzes focus on the texts and documents which address the genealogy of the regulation of higher education and in particular teacher education courses, taking the state of Sãoo Paulo as the territorial basis of analysis. Since this study considers education as a historical phenomenon, it focuses on the political and economic context after 1930, when teacher education was raised to higher education and when education grew strongly due to the marked increase in the demand for it. Inspired by scientific research and initially conceived as an integrating core of the nascent university, the faculty of philosophy transmuted itself and became the first institutional locus of higher education responsible for teacher education. The analysis demonstrated the disarticulation of the faculty of philosophy within the university. Other forms of organization gradually replaced the faculty. It also demonstrated the expansion of higher education as isolated private institutions, here called new faculties of philosophy. With the advent of short degrees, these institutions grew significantly, contributing to the process of evolution of higher education towards the achievement of the binomial expansion / privatization.

Higher education; Faculty of Philosophy; Teacher education


A brief history of the Brazilian higher education and teacher education for secondary school

Núria Hanglei Cacete

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: nuriah@usp.br

RESUMO

O artigo trata da evolução do ensino superior brasileiro e sua relação com os modelos de formação de professores para escola secundária, ou seja, as séries finais do ensino fundamental e ensino médio. As análises concentram-se nos textos e documentos que abordam a genealogia da regulamentação do ensino superior, e, de modo particular, os cursos de formação de professores, tomando como base territorial de análise o Estado de São Paulo. Na medida em que se considera a educação como um fenômeno histórico, destacou-se o contexto político econômico a contar de 1930, quando a formação de professores foi elevada a nível superior e o ensino expandiu-se fortemente em função do aumento sensível da demanda social por educação. A faculdade de filosofia, inspirada na investigação científica e, inicialmente, concebida como núcleo integrador da nascente universidade, transmutou-se, constituindo--se em primeiro lócus institucional de ensino superior responsável pela formação de professores. Demonstraram-se a desarticulação da faculdade de filosofia no âmbito da universidade, que foi sendo substituída por outras formas de organização, e sua expansão como instituições isoladas de caráter privado, aqui denominada de novas faculdades de filosofia. Com o advento das licenciaturas curtas, essas instituições apresentaram um crescimento significativo, contribuindo com o processo de evolução do ensino superior para a consecução do binômio expansão/privatização.

Palavras-chave: Ensino superior - Faculdade de filosofia - Formação de professores.

ABSTRACT

This article deals with the evolution of the Brazilian higher education and its relation to the models of teacher education for secondary school, i.e., the upper grades of primary education and secondary education. The analyzes focus on the texts and documents which address the genealogy of the regulation of higher education and in particular teacher education courses, taking the state of Sãoo Paulo as the territorial basis of analysis. Since this study considers education as a historical phenomenon, it focuses on the political and economic context after 1930, when teacher education was raised to higher education and when education grew strongly due to the marked increase in the demand for it. Inspired by scientific research and initially conceived as an integrating core of the nascent university, the faculty of philosophy transmuted itself and became the first institutional locus of higher education responsible for teacher education. The analysis demonstrated the disarticulation of the faculty of philosophy within the university. Other forms of organization gradually replaced the faculty. It also demonstrated the expansion of higher education as isolated private institutions, here called new faculties of philosophy. With the advent of short degrees, these institutions grew significantly, contributing to the process of evolution of higher education towards the achievement of the binomial expansion / privatization.

Keywords: Higher education - Faculty of Philosophy - Teacher education.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

Do ponto de vista político, o período que se estende de 1930 aos anos de 1970 foi marcado pelo rompimento com a velha ordem oligárquica brasileira e pelo aparecimento, evolução e destruição do populismo. No confronto das forças que desejavam a internacionalização da economia e as que defendiam um desenvolvimento independente teremos a vitória da primeira no âmbito da ruptura que se estabelece nos anos de 1960.

A partir de 1930, temos uma sociedade que lenta, mas progressivamente, industrializava-se com uma concentração cada vez mais ampla da população nos centros urbanos, o que contribuiu para a promoção de exigências cada vez maiores em relação à educação. Foi particularmente na região Sudeste, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, onde a demanda por ensino, e particularmente ensino superior, foi mais sentida.

O surgimento do ensino superior no país deu-se inicialmente sob a forma de cadeiras que foram sucedidas por cursos, posteriormente por escolas e por Faculdades de medicina, direito, engenharia, agronomia etc., todas eminentemente profissionais. Não existiam estudos superiores de humanidades, ciências ou letras. Segundo Anísio Teixeira (1989, p. 73-74)

[...] a falta de estudos superior de tipo acadêmico havia de tornar extremamente precária a formação dos professores para os colégios secundários [...]. Sabemos que todo sistema de educação, em seus diferentes níveis de estudos e em seus diferentes currículos e programas, só pode ensinar a cultura que na universidade ou nas escolas superiores do país se produzir. Não seria possível um curso secundário humanístico ou científico sem que a universidade, ou as escolas superiores tivessem estudos humanísticos ou científicos avançados. Como só teve o Brasil, no nível superior, escolas profissionais de saber aplicado, o seu ensino secundário acadêmico de humanidades e ciências teria de ser inevitavelmente precário e deficiente, como sempre foi durante essa longa experiência de ausência da universidade ou das respectivas escolas superiores para licenciar os docentes.

Essa situação começou a mudar. O governo provisório de Getúlio Vargas criou, entre outros, o Ministério da Educação e Saúde Pública cujo primeiro ministro, Francisco Campos, por meio de uma série de decretos, instituiu a chamada Reforma Francisco Campos, fruto da Revolução de 1930 e de um conjunto de interesses que assumiram o poder naquele momento. Entre esses decretos o de número 19.851, de 11 de abril de 1931 - Estatutos das universidades brasileiras - que, ao dispor sobre a organização do ensino superior instituindo o regime universitário, elevava para o nível superior a formação de professores secundários. Por esse decreto o ensino superior deveria ser ministrado na universidade a partir da criação de uma Faculdade de Educação Ciências e Letras, onde deveriam ser formados os professores secundários. Do ponto de vista da organização do sistema, a reforma previa duas situações: o sistema universitário oficial, mantido pelo governo federal ou estadual, ou livre, mantido por particulares, e o instituto isolado.

Para Francisco Campos "O ensino no Brasil é um ensino sem professores, isto é, em que os professores criam a si mesmos, e toda a nossa cultura é puramente autodidata". (Exposição de motivos do ministro Francisco Campos sobre a reforma do ensino superior, Diário Oficial, de 15 de abril de 1932, apud FÁVERO, 2000). Assim, a Faculdade de Educação Ciências e Letras deveria ter um caráter especial e misto e ser, antes de tudo e eminentemente, um Instituto de Educação.

A Faculdade de Educação Ciências e Letras assim concebida tinha como principal função a formação de professores para a escola secundária, sendo compatível com a produção do conhecimento e a prática da pesquisa. Essa dupla função, segundo Newton Sucupira (1969, p. 261) se justificava:

[...] em face de uma tradição de ensino superior profissional onde prevalecia a ideia de que a toda escola superior profissional deveria corresponder sempre uma especialidade técnica objetivável em termos de profissão liberal, seria prematura a criação de uma faculdade unicamente destinada à pesquisa científica pura.

A Faculdade de Educação Ciências e Letras idealizada por Francisco Campos não chegou a ser instalada. O nome adotado para as novas instituições, que, entre outras, teria a função de preparar professores para o ensino secundário, seria o de Faculdades de Filosofia ou Faculdades de Filosofia Ciências e Letras.

Essas faculdades, que historicamente se constituíram como lócus de formação dos professores secundários no Brasil, têm suas origens, segundo Sucupira (1969, p. 265) na Faculdade de Artes da Universidade Medieval:

Concebida como instituto universitário que engloba o conjunto das ciências e as humanidades, centro da pesquisa científica pura e dos altos estudos, surge com a Universidade de Berlim criada em 1810, sob a inspiração de

Wilhelm von Humboldt

.

A Faculdade de Filosofia seria então uma espécie de escola preparatória para as faculdades de teologia, direito e medicina, fundamentada na concepção do saber do idealismo pós-kantiano e no neo-humanismo alemão, que idealizava a formação humanista. Assim concebia-se que:

[...] a mais alta e autêntica forma da ciência é a filosofia [...]. A filosofia idealista da formação implica a unidade da filosofia e da ciência [...]. A imagem ideal do acadêmico é o homem total harmoniosamente formado. A preparação acadêmica profissional significa menos a aquisição de conhecimentos especializados do que a capacitação para a tarefa de liderança cultural e espiritual. Esta formação por sua vez, era fundamentalmente humanista no sentido das humanidades clássicas, remontando ao ideal helênico da

Paideia

. Daí a importância que assumem os estudos clássicos na Faculdade de Filosofia [...]. Esta, como tal se fechava ao mundo das profissões técnicas e oferecia tão somente a preparação científica para as profissões liberais. (SUCUPIRA, 1969, p. 265)

Inicialmente, duas seriam as principais funções dessa Faculdade: a formação geral, que deveria ser ampla e aprofundada, e a formação para a pesquisa científica. Uma terceira função lhe foi atribuída posteriormente, a formação científica do professor da escola secundária. Na verdade pouco ficou da ideia original que determinou a criação das Faculdades de Filosofia na Europa e que serviu de referência na organização do sistema universitário em outros países, inclusive no Brasil.

A própria filosofia considerada como princípio da integração do saber universal acabará sendo, também, uma especialização. Subsistirá da idéia humboldtiana da Faculdade de Filosofia a unidade do ensino e da pesquisa apanágio da universidade alemã, tornada o grande centro criador da ciência do século passado. (SUCUPIRA, 1969, p. 267-268).

A Reforma Francisco Campos para o ensino superior se aproximava desse modelo alemão de Universidade e significou, para a época, uma tentativa de dar organicidade e um caráter de universalidade ao incipiente ensino superior brasileiro. O ideal da pesquisa científica pura em um sistema tradicionalmente profissionalizante e a introdução dos estudos pedagógicos como condição para a formação de professores para a escola secundária em nível superior configuravam o ineditismo da reforma, que, entretanto, não se concretizou. Assim a ideia de uma unidade universitária especialmente voltada à formação pedagógica não se efetivou.

As condições necessárias para que se realizassem, ainda que de forma aproximada, os ideais da Reforma Francisco Campos vão ocorrer em São Paulo com a criação da Universidade de São Paulo, em 1934.

Em 25 de janeiro de 1934, o Decreto 6.284 instituiu a Universidade de São Paulo, cuja história de criação envolve negociações e conflitos relacionados à resistência da elite paulista ao governo central no Rio de Janeiro. Segundo Cardoso (1982), a criação da Universidade de São Paulo não se configura propriamente como resultado de iniciativas educacionais renovadoras, mas, como produto de um projeto político e ideológico. A universidade se implanta com uma clara missão: formar as elites intelectuais e dirigentes do país.

Apenas três seções foram previstas na Faculdade de Filosofia (e não de Educação) Ciências e Letras: Filosofia, Ciências e Letras. Os estudos de educação, ou uma Seção de Educação, não foram contemplados. Interessada na integração das escolas e no cultivo de estudos não profissionais, a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, assim concebida de princípio, negou a formação de professores no seu quadro. Entretanto, por razões de força puramente conjunturais, o curso de formação de professores secundários do Instituto de Educação de São Paulo foi incorporado à Universidade.

[...] em 1931, o Estatuto das Universidades Brasileiras elevara a nível superior a formação do professor secundário e meses antes da publicação do decreto de fundação da Universidade de São Paulo, criara-se, no Instituto de Educação de São Paulo, um curso para a formação de tal professor - o que o colocou, como de ensino superior (e só a ele no Instituto), no âmbito da Universidade quando, em 1934, ela mesma é fundada. (FÉTIZON, 1984, p. 130)

A formação de professores para o magistério secundário encontrava-se, até 1930, marginalizada em função das características da então escola secundária em número bastante restrito, em sua maioria privada e de caráter propedêutico.

A escola secundária está longe de ser, na época considerada como formativa [...] surge, historicamente, como um desdobramento da escola superior - instância propedêutica em que se transformam as artes liberais quando se estruturam nas universidades medievais, os três primeiros cursos profissionais, considerados propriamente "superiores" e "especializados": Direito, Medicina e Teologia. Assim a escola média vem atavicamente, voltada para o ensino superior como sua instância preparatória, condição que no caso brasileiro, explica, parcialmente, sua tardia organização no sistema público. (FÉTIZON, 1984, p. 141)

As faculdades de filosofia ciência e letras foram criadas no Brasil sem referências, pois faltaram modelos para esse tipo de ensino em função da tradição no país de escolas profissionais isoladas. Fundada como centro de alto saber, a nova instituição surgiu marcada pela missão estrangeira de professores responsáveis pela docência e pesquisa. Nesse sentido, as Faculdades de Filosofia acabaram por desempenhar papel importante no ensino superior brasileiro. Entretanto, para Teixeira (1969), essa experiência se frustrou, salvo o caso das duas maiores, a do Rio e a de São Paulo, as quais se multiplicaram muito mais.

[...] como escolas normais de professor secundário do que como Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras [...]. Depois dessas duas tentativas de implantação da universidade moderna, entre nós, voltamos à linha de menor resistência da simples criação de novas escolas, guardando o molde antigo de isolamento, autossuficiência e independência de cada escola. (TEIXEIRA, 1969, p. 46)

A transmutação da Faculdade de Filosofia de centro de altos estudos de caráter universal para escolas profissionais especializadas, no caso, na formação de profissionais para o magistério secundário, é resultado, segundo Fernandes (1962), de uma tradição cultural e de uma mentalidade acadêmica que impediu que as faculdades de filosofia operassem como centro básico de ensino universitário comum. Tais escolas foram sendo assimiladas pelo padrão brasileiro de escola superior isolada e especializada cuja redefinição serviu de base para a sua degradação progressiva. Entendidas como meros equivalentes das demais escolas superiores, a criação das Faculdades de Filosofia "deixou de ser um empreendimento complexo, arriscado e difícil" (FERNANDES, 1962, p. 230). Concorreram para esse "processo de empobrecimento funcional" outras influências como a falta de professores qualificados, a má utilização de recursos financeiros e os "interesses extrapedagógicos na expansão da rede de faculdades de filosofia privadas". (FERNANDES, 1962, p. 230).

A expansão do ensino superior brasileiro deu-se muito mais pela multiplicação de escolas que pela ampliação das já existentes. As faculdades de filosofia, embora previstas originalmente como núcleo central da universidade, acabaram por se multiplicar, isoladamente, acompanhando a tradição do ensino superior brasileiro de escolas profissionais isoladas, respondendo à pressão por ensino superior de uma sociedade em processo de mudança, com crescente aspiração a esse nível de ensino.

Essa demanda foi altamente explorada pela nova classe média urbana em formação. Inicialmente, foi uma demanda pela ampliação do ensino público secundário, criando, consequentemente, condições para pressão no nível subsequente, ou seja, o superior. Essa pressão traduzia-se pela procura de novos cursos, particularmente os das faculdades de filosofia. Em 1954, a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior apontava que essas instituições contavam com o maior número de estabelecimentos no país (40) e o número de alunos (10.816) só era suplantado pelo dos cursos de Direito (17.854). (ALMEIDA JÚNIOR, 1956).

É nessa época que se consolida o ensino superior privado no país, sendo que as instituições isoladas privadas mais antigas do período 1945-1961 datam de 1951 (SAMPAIO, 2000). Entre 1955 a 1960, os cursos fundantes dessas instituições são basicamente voltados para a formação de professores secundários por meio da criação de faculdades de filosofia, ciências e letras.

A decisão de expandir-se mediante a criação de cursos voltados para a formação de professores não é aleatória e responde à confluência de três fatores. Primeiro, a vigência de uma legislação, a de 1931, cuja concepção de universidade se baseava na existência de um núcleo de Filosofia, Ciências e Letras em torno do qual seriam organizadas as demais escolas de formação para profissões liberais. Segundo, a existência de clientela motivada pelas novas oportunidades de acesso ao ensino superior e de carreira no magistério; ou seja, a relativa ampliação da rede de ensino público médio, nos anos 50, funcionou nas duas pontas do sistema: de um lado, aumentou a demanda por ensino superior e, de outro, alimentou o próprio mercado ocupacional para os egressos dos cursos de Filosofia, Ciências e Letras. Por fim, a estratégia das próprias instituições para se expandirem sem dispor de muitos recursos financeiros; esses cursos, em geral, tendem, até hoje, a funcionar baseados em recursos humanos. (SAMPAIO, 2000, p. 51-52)

O que queremos ressaltar é que a estratégia das instituições privadas de se expandirem pela via das faculdades de filosofia só foi possível frente às condições que já vinham se estabelecendo no processo de expansão do ensino superior, caracterizado pela multiplicação de escolas. Esse processo, entretanto, não se deu em todas as áreas ou cursos dada à resistência de certas corporações profissionais à ampliação de matrículas e escolas (como, por exemplo, em medicina). A ampliação ocorreu em áreas de menor resistência e seguindo a lógica de implantação de cursos a custos baixos, por essa razão as faculdades de filosofia apresentavam-se como alternativa à expansão.

Em 1957, dos 28 cursos de formação de professores secundários no país, ministrados em faculdades de filosofia ciências e letras, 21 eram em instituições particulares. Dos 1.991 alunos matriculados nesses cursos, 1.401 estudavam em instituições particulares. A maioria dessas instituições era, até aquele momento, fundamentalmente católica. (IBGE, 1957)

No período analisado, os cursos de formação de professores em faculdades de filosofia realizavam-se, predominantemente, em universidades. Em 1957, dos 28 cursos existentes, 15 eram em universidades e 13 em instituições isoladas. Essa situação mudou no início de 1960 com a expansão das faculdades de filosofia sob a forma de estabelecimentos isolados privados não confessionais.

As faculdades de filosofia não conseguiram cumprir adequadamente seus objetivos iniciais fundadores e tampouco se constituir como escola de formação consistente de professores. A existência das faculdades de filosofia, como instituições voltadas à formação do professor para a escola secundária, instituindo um modelo de referência para essa formação está, a nosso ver, intimamente relacionada às características assumidas pelo crescimento do sistema de ensino superior no Brasil.

Das originais faculdades de filosofia, ciências e letras à faculdade de educação

A partir dos anos de 1960, houve a ruptura do pacto populista que se constituía dentro de uma ordem de interesses diferenciados, como forma de representação dos setores populares. O regime estabelecido pós 1964 consolidou a hegemonia do grande capital, consubstanciada na aliança entre o empresariado, os tecnocratas e o militares, na gestão de um modelo econômico concentrador de renda e progressivamente internacionalizado.

A educação, nos marcos do regime autoritário, tinha papel estratégico no processo de reorientação da política e da economia brasileira. O governo militar promoveu uma ampla reforma educacional atingindo os diferentes níveis do sistema com o objetivo de adequar a educação às necessidades do desenvolvimento.

No início dos anos 1960, já se prenunciavam as mudanças significativas que iriam ocorrer no âmbito do ensino superior e, particularmente, no que diz respeito ao rumo que tomariam as faculdades de filosofia.

Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 4.024, promulgada em 20 de dezembro de 1961, após um longo período de debates nos órgãos legislativos, não mais se exigia a presença obrigatória de uma faculdade de filosofia para a constituição de universidades.

O desprestígio das faculdades de filosofia se acentuava e eram muitas as críticas que diziam respeito, entre outras, à sua função integradora. Nesse sentido, a exigência que constava do projeto da LDB, aprovada em dezembro de 1961, de que no conjunto universitário houvesse obrigatoriamente uma faculdade de filosofia, ciências e letras foi vetada e assim justificada:

A rede nacional de ensino superior conta já, com mais de 70 faculdades de filosofia, que vêm exercendo, salvo raras exceções, exclusivamente a função de formar professores de grau médio. Nessas circunstâncias, a exigência de que toda universidade mantenha uma dessas faculdades torna-se desnecessária. Acresce que as funções de órgão integrador que se deseja atribuir a tais faculdades também podem ser exercidas por outros órgãos, tais como os institutos centrais que já vêm sendo estruturados em algumas universidades federais. (BRASIL, 1961 apud CARNEIRO, 1968, p. 331-332).

A formação de professores para a escola secundária, entretanto, continuaria a ser realizada nas faculdades de filosofia, ciências e letras, conforme o Artigo 59, dessa mesma Lei, o que justifica a sua contínua expansão nesse período. Contudo, no âmbito das Universidades, as faculdades de filosofia foram progressivamente sendo substituídas por outras formas de organização. No início dos anos 60, a Universidade de Brasília substituiu a faculdade de filosofia pelos institutos centrais de ensino básico, criando a Faculdade de Educação, que passou a assumir a formação pedagógica dos professores. As universidades federais foram posteriormente adotando essa solução em sua reestruturação, por meio dos Decretos-leis nº 53/66 e 252/67, que, posteriormente, também foi incorporada pela Lei da Reforma Universitária 5.540/68.

Assim, os princípios que nortearam o estabelecimento das faculdades de filosofia foram sendo revistos promovendo uma mudança no caráter dessas instituições.

Não cremos que nesta altura da evolução de nosso sistema universitário pudéssemos, ainda, recuperar o papel de integração que estaria reservado à faculdade de filosofia, mesmo que retirássemos de seu âmbito o setor pedagógico, conservando-lhe apenas as duas funções de realizar a pesquisa e formar 'trabalhadores intelectuais especializados' e dotando-a de uma organização mais plástica e funcional. Assim pensaram os idealizadores da Universidade de Brasília ao substituir a faculdade de filosofia pelo conjunto de institutos centrais. [...] O projeto de reforma da Universidade de São Paulo, onde a Faculdade de Filosofia foi uma experiência bem sucedida do ponto de vista da pesquisa, propõe também sua transformação numa série de institutos correspondentes às suas áreas de conhecimento. [...] A ideia da Faculdade de Filosofia, como instituição englobante [...] repousa numa concepção da unidade do saber cujos fundamentos metafísicos e epistemológicos já se encontram ultrapassados. Além disso, a extrema especialização que define o saber científico moderno torna praticamente impossível reunir numa mesma unidade disciplinas tão diversas, sem acarretar sérios inconvenientes, tanto de ordem administrativa como funcional. (SUCUPIRA, 1969, p. 271)

Em 1962, a Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo foi transformada em Departamento de Educação e, a partir de 1969, com a reforma da Universidade, extinguiu-se e desmembrou-se a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criando-se, a partir do Departamento de Educação, a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

O que se preconizava com a adoção do modelo das Faculdades de Educação era que a formação do profissional de educação assumisse um caráter científico e acadêmico, além da necessidade de preparação de quadros especializados em administração, planejamento e professores para a escola secundária, que apresentava um processo crescente de ampliação. Teixeira (1969) deixava (muito) claro quais eram, naquele momento, a escala e a urgência do problema da formação do magistério e o papel das Faculdades (ou Escolas) de Educação.

[...] cumprem-nos reconhecer que a necessidade nacional de preparo do magistério é de grande escala e de imensa urgência, ante o crescimento vertiginoso e avassalante do sistema escolar em todos os seus níveis. Essa conjuntura, que é a de fazer o difícil e fazê-lo em grande escala e depressa, obriga-nos a planejar a formação do magistério no Brasil em termos equivalentes aos de uma campanha para a formação de um exército destinado a uma guerra já em curso. Isso deve forçar-nos à mobilização de todo o sistema escolar para o ataque ao problema da formação de um magistério em ação. Associando seu treinamento à prática mesma do ensino. Será, para manter a comparação com a necessidade bélica, um treinamento em serviço, um treinamento em batalha. Ora, a primeira necessidade da guerra é a de um estado-maior com a capacidade de estudo e decisão acertada. [...] Estas [Escolas de Educação] seriam os estados-maiores centrais, com a responsabilidade de formular o pensamento condutor de todo o esforço, elaborar as técnicas e programas de ação, levantar e caracterizar a situação educacional existente e formar e treinar o corpo de mestres e especialistas destinado a conduzir a prática educativa. (TEIXEIRA, 1969, p. 240-241)

A desarticulação das faculdades de filosofia, cingida em diferentes institutos com a consequente criação das Faculdades de Educação, não era, entretanto, uma solução consensual e causava preocupações. Temia-se que a falta de integração entre a formação pedagógica e a formação específica, além do caráter excessivamente teórico dos cursos, agravasse-se com a separação e a distância física entre as diferentes unidades. Entretanto, essa distância era o corolário de uma prática que havia imposto, desde a criação dos primeiros cursos de formação de professores nas faculdades de filosofia, uma incompatibilidade de objetivos dentro do mesmo curso e uma oposição entre as disciplinas científicas e as disciplinas didático-pedagógicas.

O relatório da missão da UNESCO, encarregada de orientar a implantação das Faculdades de Educação, a convite do governo brasileiro, deixava claro a preferência por uma concepção de curso de formação de professores que reforçava essa prática e que consistia em:

[...] separar completamente o trabalho propriamente científico do trabalho profissional. Neste sistema, os futuros professores freqüentam nos institutos ou departamentos exatamente os mesmos cursos que seus colegas pretendentes a outras carreiras que não o magistério. Estudam física, Matemática, História, Línguas estrangeiras etc. após três (às vezes quatro) anos de estudos, recebem certificado ou diploma de Bacharel. Só então passam a freqüentar a Faculdade de Educação, preparando-se para a carreira escolhida [...]. Tal sistema oferece a vantagem de simplificar a administração e a planificação dos estudos, visto que uma única autoridade (a Faculdade de Educação) é responsável pela direção. Além disso, permite aos estudantes concentrar efetivamente seu interesse sobre uma coisa de cada vez. E tem a vantagem de não sobrecarregar os alunos durante o terceiro ou quarto ano de estudos. Se for exigido dos futuros professores, e só deles, acrescentar aos estudos científicos, já tão difíceis,

um pesado fardo pedagógico,

como é possível esperar que eles obtenham resultados correspondentes aos dos colegas que se destinam unicamente à pesquisa científica? (LAUWERYS, 1969, p. 313-314, grifo nosso).

Esse modelo, que de certa forma já vinha sendo praticado, consolidava o bacharelado como via ou como requisito para a formação de professores para a escola secundária, estabelecendo uma hierarquização dos estudos em que a formação pedagógica tinha um caráter complementar e fundamentalmente prático.

Não se trata de compreender simplesmente a teoria, mas de levá-la à prática. A experiência tem demonstrado que o sistema de cursos não constitui método idealmente eficiente de preparar os futuros professores para a carreira; urge reduzir a proporção de tempo atribuído aos cursos teóricos, didáticos, de História da Educação, etc. (LAUWERYS, 1969, p. 314).

Os problemas existentes nos cursos de formação de professores secundários nas faculdades de filosofia não foram sanados com a criação das Faculdades de Educação. Pelo contrário, a mesma precariedade e desprestígio, que marcaram as seções de pedagogia e de didática nas faculdades de filosofia, persistiram e até se agravaram com a criação das novas faculdades de educação e com a desarticulação das faculdades de filosofia.

Entretanto, esse processo de desarticulação, principalmente no âmbito das universidades, não se justificava apenas em função dos problemas presentes em sua estrutura funcional. É no contexto político daquele momento que vamos encontrar as razões que, somadas a essas, conduziram a esse processo. A faculdade de filosofia, em meados da década de 60, principalmente após o golpe militar de 1964, era lugar privilegiado de discussão e reflexão acerca da realidade brasileira, assumindo papel de liderança no movimento estudantil. O caso da Universidade de São Paulo é revelador:

[...] a solução de desmembramento por Institutos e Faculdades significou, não só a liquidação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como, por via de conseqüência, o aniquilamento da idéia que presidia à fundação da Universidade de São Paulo. Uma radicalização política a partir do receio da subversão levara, pois, à extinção daquela Faculdade: desmembrado em diversas unidades isoladas, umas das outras, o núcleo de contestação perdia sua coesão, sendo mais fácil mantê-lo sob controle. (FÉTIZON, 1984, p. 154-155)

Estava em curso, naquele momento, uma mudança radical nos rumos que deveriam tomar as faculdades de filosofia.

A atual reestruturação da universidade brasileira ao determinar o desdobramento da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, extinguiu, portanto, uma instituição já ultrapassada pelo estado presente das ciências e pelos princípios da moderna organização universitária. A instituição, contudo, poderá subsistir, entre nós, à maneira dos Colleges norte-americanos independentes de universidade. (SUCUPIRA, 1969, p. 272)

As novas faculdades de filosofia

As críticas à preparação do professor secundário nas faculdades de filosofia em meados da década de 1960 se acentuavam. As falhas apontadas eram, em linhas gerais, as seguintes:

a) Coincidência de objetivos múltiplos, cuja conciliação não vem sendo alcançada (formação simultânea do professor e do pesquisador etc.);

b) Inadequação da preparação do professorado que vai funcionar no primeiro ciclo da escola secundária, dominada por um sentido de 'especialismo' não harmonizável com o que deve ser a docência nessa fase discente;

c) Deficiências na prática docente;

d) Precariedade na obtenção de maior fixação profissional à docência;

e) Alienação em relação a estudos concretos, concernentes ao campo específico ao qual se aplicará a docência: escola secundária brasileira. (ABREU, 1966, p. 99-100)

As faculdades de filosofia vinham, nesse período, apresentando um crescimento significativo, sobretudo, como iniciativa do setor privado do ensino superior. Entretanto, faltavam professores licenciados frente ao aumento das matrículas no ensino médio.

Já naquele momento existia um claro desvio dos licenciados para outras funções que não o magistério. Até 1960, eram 41.033 diplomados por faculdades de filosofia contra um registro de apenas 5.395 para o exercício da docência na escola secundária (ABREU, 1966). Essa desproporção entre os formados pelas faculdades de filosofia e o exercício da docência era compensada por dois mecanismos: pela adaptação dos diplomas em cursos superiores profissionais (como engenharia e advocacia) mediante complementação pedagógica e pelos exames de suficiência.

Os exames de suficiência asseguravam, aos profissionais graduados em escolas superiores, diferentemente da faculdade de filosofia, o indispensável registro para lecionar onde houvesse a falta de diplomados por essas faculdades, instituindo um regime permanente de emergência, e podemos dizer de improvisação, para assegurar a quantidade de professores exigida pela escola secundária.

Essa situação justificava a necessidade de mudanças que deveriam ser operadas na estrutura funcional da faculdade de filosofia. Nas universidades, a faculdade de filosofia já vinha sendo substituída por institutos e faculdades, que assumiam a formação profissional e acadêmica dedicada à pesquisa nas diferentes áreas do conhecimento. À Faculdade de Educação caberia a formação pedagógica dos professores, consagrando-se assim o bacharelado como passagem obrigatória para a obtenção da licenciatura. Restavam ainda as instituições isoladas ou não universitárias, que deveriam também ser reformuladas.

A situação está a exigir profunda transformação dos cursos das faculdades de filosofia, pela adoção de currículos especiais, para a preparação da grande variedade de professores secundários de 1º e 2º ciclos. (TEIXEIRA, 1969, p. 286).

Essas transformações iriam se realizar sendo o Conselho Federal de Educação (CFE) a instância definidora desse processo. Ao Conselho Federal de Educação, criado pela LDB 4.024/61, caberia uma série de atribuições que lhe conferiam substancial soma de poder, como a de estabelecer o currículo mínimo e a duração dos cursos superiores, além do controle sobre o funcionamento dos estabelecimentos isolados federais e particulares. Cabia, portanto, ao CFE um papel importante no processo de reestruturação das faculdades de filosofia, assim como na ordenação da expansão do ensino superior no país.

No início dos anos 1960, o CFE estabeleceu, através do Parecer 292/62, as matérias pedagógicas para a licenciatura. O seu relator, o Conselheiro Valnir Chagas, deixava claro que não era mais possível o esquema de três anos de bacharelado mais um de didática:

[...] não há que se inferir que todo o ensino profissional deva ser feito concomitantemente, como num ciclo à parte e sem qualquer ligação com as matérias de conteúdo [...]. Ademais, é por todos os títulos desaconselhável separar o "como ensinar' do 'que ensinar" [...]. A licenciatura é um grau apenas

equivalente

ao bacharelado e não

igual

a este mais Didática como acontece no conhecido esquema 3 + 1. (BRASIL, Parecer CFE 292/62)

A licenciatura e o bacharelado seriam então graus distintos, que poderiam ser obtidos através de disciplinas comuns. Dois conjuntos de estudos comporiam a licenciatura: o primeiro reunindo as matérias de conteúdo, que variavam conforme o endereço profissional do estudante; e o segundo composto pelas matérias pedagógicas comuns a todos. Seriam elas: psicologia da educação, compreendendo adolescência e aprendizagem; didática; elementos de administração escolar (substituída posteriormente por estrutura e funcionamento de ensino de 2º grau) e prática de ensino, sob a forma de estágio supervisionado, cujas horas de atividades foram distribuídas ao longo de cinco semestres e não mais concentradas em um ano. A duração da formação pedagógica foi reduzida de um quarto (no esquema 3 + 1) para um oitavo do período total de duração do curso, mantido em quatro anos. O Parecer destacava a necessidade de articulação entre esses dois conjuntos de estudos, embora os tratassem de forma separada.

Segundo Castro (1974, p. 639), o texto do Parecer 292/62 "consagra o uso do termo 'licenciatura' para a totalidade do curso que prepara o professorado". O Parecer assinala:

Os currículos mínimos dos cursos de licenciatura compreendem as matérias fixadas para o bacharelado, convenientemente ajustadas em sua amplitude, e os estudos profissionais que habilitem ao exercício do magistério nos estabelecimentos de ensino médio. (CASTRO, 1974, p. 639)

Consolidava-se, assim, uma tendência de separação da licenciatura do bacharelado, buscando promover as mudanças exigidas em função das críticas formuladas.

O conceito de licenciatura, distinto do bacharelado, estabelece uma fase marcada pela convivência de dois modelos básicos de formação: o primeiro estabelecido no final dos anos 1930, em que o bacharelado se apresentava como requisito para a obtenção do diploma de licenciatura; e o segundo, que, de certa forma, já vinha sendo praticado, estabelecido em meados da década de 1960, quando a licenciatura se configurava como um modelo individualizado, distinto, portanto, do bacharelado, embora mantendo correlações.

A ideia presente no conceito de licenciatura distinto do bacharelado era a de que, para obter os dois diplomas, o aluno deveria prolongar os estudos: se fosse inicialmente bacharel, a extensão se faria no âmbito das disciplinas pedagógicas; caso fosse licenciado, no aprofundamento das disciplinas científicas. Ambos os cursos tinham duração mínima de quatro anos letivos.

Entretanto, no decorrer dos anos 1960 e início dos anos 1970, começou a se delinear outra tendência: a de estabelecer uma ruptura, no âmbito das licenciaturas, separando em cursos distintos a formação de professores para o ginásio (1º ciclo) e para o colégio (2º ciclo), inaugurando uma nova fase no processo de formação de professores.

Assim é que a Indicação s/nº do CFE de 9/10/1964, baseada na falta de professores para a escola secundária e na precariedade que representavam os exames de suficiência, instituiu para as faculdades de filosofia um conjunto de três licenciaturas individualizadas, que deveriam formar o professor para o ensino no 1º ciclo ou ginásio. A justificativa era a seguinte:

As faculdades de filosofia não se encontram em condições de fazer face à carência de professores, não obstante sua extraordinária expansão [...]. O desafio que enfrentamos é, justamente, o de treinar o maior número de professores com o mínimo de habilitação necessária no menor tempo possível. (BRASIL, Indicação s/nº CFE 9/10/1964)

Adotou-se então um tipo de licenciatura com três anos de duração, ao invés de quatro nas áreas de Letras (Português e uma língua viva), de Estudos Sociais (História, Geografia, Organização Social e Política do Brasil) e Ciências (Ciências Físicas e Biológicas, Iniciação às Ciências e Matemática). Ainda segundo a indicação, a ideia era formar um professor polivalente para o ciclo ginasial.

Essa figura do professor polivalente se justificaria sob vários aspectos: em primeiro lugar o professor ginasial não há de ser um especialista puro; em segundo lugar, do ponto de vista pedagógico formativo o ideal seria que, no primeiro ciclo, o mesmo mestre se ocupasse de várias matérias; finalmente porque contribuiria para resolver o problema da falta de professores. (BRASIL, Indicação s/nº CFE 9/10/1964)

Os licenciados nesse 1º ciclo (ou ginásio) poderiam lecionar no 2º ciclo (ou colégio) enquanto não houvessem professores suficientes formados em quatro anos. Segundo o Conselheiro Newton Sucupira, relator da indicação, essa seria uma medida de emergência para acelerar a expansão da escola secundária, medida essa que, segundo o Parecer, havia sido implementada na Inglaterra no pós-guerra através dos Emergency Training Colleges.

Em 1965, o CFE, através dos Pareceres 236/65 e 81/65, instituíram as normas para os cursos de licenciatura polivalente para o ginásio (1º ciclo) nas áreas de Letras e Ciências, respectivamente.

Em 1966, o conselheiro Newton Sucupira, através do Parecer CFE 106 (portaria MEC 117/66), estabeleceu o currículo para o funcionamento da licenciatura em Estudos Sociais, composto por: História, Geografia, Fundamentos de Ciências Sociais e as matérias pedagógicas, conforme o Parecer 292/62, num tempo útil de 2025 horas aula, em cerca de três anos.

Segundo o Parecer CFE 106/66, as licenciaturas polivalentes em Letras, Ciências e Estudos Sociais:

[...] Sendo de mais modestas exigências, [...] se tornam mais acessíveis às Faculdades do interior que embora continuem a ostentar o nome de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, são na realidade algo como os

Teachers Colleges

americanos. Missão, aliás, importantíssima na atual fase de expansão da escola média e de que se deveria dar conta a grande maioria de nossas Faculdades de Filosofia, renunciando à pretensão de formar também pesquisadores. É desejável mesmo que as novas Faculdades a se instalarem no interior, comecem com as licenciaturas de 1º ciclo, podendo, posteriormente, evoluir para Faculdades de Filosofia com as licenciaturas tradicionais, assim como nos Estados Unidos, os

Teachers Colleges

igualando-se aos

Liberal Arts Colleges

, terminando alguns por se transformarem em universidades. (BRASIL, Parecer CFE 106/66)

Com a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º graus, a LDB 5.692, de 25 de agosto de 1971, instituem-se as licenciaturas curtas, estabelecendo-se uma integração geral do sistema educacional, desde o 1º grau até o nível superior. Pela nova LDB, o ensino primário e o 1º ciclo do ensino médio (ginásio) foram transformados em um único ciclo de 1º grau, com oito séries. O 2º ciclo de ensino médio (colégio) foi transformado em 2º grau (três ou quatro anos) universal e compulsoriamente profissional.

A formação de professores, para essa nova estrutura do ensino, seria feita da seguinte forma: para o ensino nas quatro primeiras séries do 1º grau - em escola de 2º grau; para o ensino nas quatro últimas séries do 1º grau - em curso superior de curta duração; e para o ensino no 2º grau - em curso superior de longa duração.

O estabelecimento de um novo currículo para a escola de 1º e 2º graus determinou uma mudança nos modelos existentes para a formação de professores, dando força à ideia de polivalência.

Nos anos 1960 e início dos anos 1970, uma parcela das faculdades de filosofia já havia abdicado da formação do bacharel e da condição de instituição dedicada à pesquisa científica, assumindo exclusivamente a formação do licenciado. Com o advento das licenciaturas polivalentes e das licenciaturas curtas, muitas faculdades de filosofia assumiram esses cursos.

Esse período foi marcado pela grande expansão do setor privado a partir da criação de inúmeras faculdades de filosofia, ciências e letras, criadas em sua grande maioria, nos anos de 1960 e 1970, tendo as licenciaturas polivalentes e as licenciaturas curtas como cursos inaugurais. São essas que estamos denominando de novas faculdades de filosofia, ciências e letras, que surgiram então com sua denominação apresentando esses três títulos isolados ou combinados dois a dois. Encerrou-se assim o ciclo das faculdades de filosofia concebidas como modelo integrador/articulador das universidades. Abriu-se, entretanto, uma nova fase na qual as novas faculdades de filosofia se expandiram e se multiplicaram como escolas isoladas, constituindo-se em agências de formação compulsória (e reduzida) do professor da escola secundária.

Um fator que contribuiu para a criação dessas instituições isoladas, que exigiam pequenos investimentos, foi o processo de interiorização. Reforçado pelo conceito de que a educação levava ao desenvolvimento econômico, o provincialismo das cidades do interior encontrava na criação de uma escola superior a oportunidade de a cidade adquirir o prestígio perdido pelo desenvolvimento das áreas metropolitanas. (FONSECA, 1992).

Foi no Sudeste e particularmente em São Paulo que esses cursos proliferaram. O Estado de São Paulo é o exemplo mais completo do processo de interiorização por meio das faculdades de filosofia. Esse processo iniciou-se nos anos de 1960 e prosseguiu durante todo o período de expansão do sistema nos anos de 1970.

Esse ramo [...] genericamente designado por "filosofias" congregava o maior contingente de estudantes e apresentou o crescimento mais acelerado e desordenado de toda a rede de estabelecimentos de ensino superior [...] A grande expansão de matrículas no ramo das faculdades de filosofia se deu nos cursos chamados livrescos e coincidem com a instalação de novas faculdades especialmente particulares no interior do Estado. [...] cerca de 56% das faculdades de filosofia iniciaram suas atividades depois de 1961 e, com frequência, nas áreas que implicam em menor investimento. (PASTORE, 1972, p. 99).

No Estado de São Paulo, em 1971, o ramo de ensino superior que apresentava o maior número de matrículas inicial era o da Filosofia, Ciências e Letras com 80.225 e o segundo ramo era o das Engenharias com 35.919. Em relação à entidade mantenedora, as instituições privadas apresentavam 147.820 matrículas iniciais e as instituições públicas estaduais 38.040. (SÃO PAULO, 1971).

Para finalizar

A expansão do ensino superior no país é resultado de uma combinação de muitos fatores, entre os quais podemos destacar o papel desempenhado pelas faculdades de filosofia na consecução do binômio expansão/privatização. O Estado de São Paulo é exemplo revelador desse processo. Por outro lado, a criação das licenciaturas curtas polivalentes deu novo fôlego ao projeto expansionista do setor privado de ensino superior não confessional, sendo que o setor público, salvo algumas exceções, resistiu à implantação desse modelo de licenciatura.

Outro fator a ser destacado diz respeito ao padrão de ensino superior estabelecido pela Lei da Reforma Universitária 5.540/68, que deveria ser público, gratuito, associar ensino e pesquisa, sendo preferencialmente oferecido por Universidade. Esse padrão acabou por revelar-se tão inviável como inadequado. A expansão do ensino superior não atendeu às exigências homogeneizadoras da lei, sendo que os estabelecimentos isolados, que eram admitidos apenas como exceção àquele padrão, apresentaram o maior crescimento.

O Conselho Federal de Educação adotou medidas que possibilitavam a ampliação do ensino privado por meio de estabelecimentos isolados. Entre 1968 e 1972, foram encaminhados ao CFE 938 pedidos de novos cursos, sendo que 759 desses foram aprovados (MARTINS, 1988). O que ocorreu foi que o setor público, em especial, ficou impedido de estabelecer um processo de ampliação e diversificação de suas instituições, prevalecendo a universidade como modelo único. A indissociabilidade ensino/pesquisa exigia uma universidade de elite na medida da impossibilidade de se conciliar ensino de massa com o desenvolvimento da pesquisa científica. Como a Reforma Universitária incidiu especialmente sobre as universidades, atingiu basicamente o setor público e poucas universidades privadas confessionais. O setor privado de ensino, que era formado em sua maioria por instituições não universitárias, foi muito menos atingido pela reforma.

No período de 1960-1972, o crescimento das matrículas nos estabelecimentos isolados foi de 983%, enquanto o da universidade não superou os 40% (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 1976. p.10). A maioria dos estabelecimentos isolados era nesse período (e até hoje) composta por instituições privadas. Assim constata-se que o setor privado foi o responsável pelo substancial aumento de oferta de ensino superior no período em questão.

No processo de expansão do ensino superior, não se estabeleceu apenas uma dualidade expressa por um setor público e um setor privado. Ocorreu, além disso, uma diferenciação entre as instituições relacionada à qualidade acadêmica e ao público a quem essas instituições dirigem seus produtos. O ensino superior privado, surgido a partir da década de 1960, retirou o monopólio dos grupos confessionais e caracterizava-se pela mera transmissão de conhecimentos e pela questionável qualidade. Considerado um setor de menor prestígio, estava dirigido às camadas sociais médias urbanas mais desprovidas de capital econômico e consideradas com menor vocação acadêmica.

As novas faculdades de filosofia cumpriram um papel importante na ampliação do setor privado de ensino superior. Foi a partir delas que se fundaram muitas das primeiras instituições privadas, inicialmente como um pequeno negócio funcionando como uma espécie de acumulação primitiva. Os cursos de licenciatura nos anos de 1960 e 1970 se constituíram como estratégicos para um empreendimento que exigia pequeno capital inicial e que iria operar a um custo reduzido.

Foram esses mesmos cursos que permitiram a acumulação necessária para que essas instituições, em um segundo momento, já com capital suficiente, abandonassem os cursos de licenciatura e oferecessem novos cursos, que exigiam investimentos mais significativos, porém com maiores garantias de rentabilidade.

Nesse contexto, muitas instituições evoluíram para a condição de grandes empresas, algumas delas ascendendo ao status de universidade, passando, nos anos de 1980 e 1990 a constituírem-se, verdadeiramente, como um poderoso empreendimento capitalista. (SAMPAIO, 2000; MARTINS, 1988; CALDERÓN, 2000).

Recebido em: 12.09.2012

Aprovado em: 14.08.2013

Núria Hanglei Cacete é professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

  • ABREU, Jaime. Status do professor do ensino médio no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 46, n.103, p. 91-108, jul./set. 1966.
  • ALMEIDA JÚNIOR, Antonio. Problemas do ensino superior São Paulo: Nacional, 1956.
  • BRASIL, Ministério da Educação e Cultura, Conselho Federal de Educação. Parecer 292/62. Documenta, Rio de Janeiro, n. 10, p.95-100, dez.,1962.
  • ______. Parecer 106/66. Documenta, Rio de Janeiro, n. 46, p.36-88, fev., 1966.
  • CALDERÓN, Adolfo Ignacio. Universidades Mercantis: a institucionalização do mercado universitário em questão. São Paulo em Perspectiva: Revista da Fundação SEADE, v.14, n.1, p. 61-72, jan. 2000.
  • CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. A universidade da comunhão paulista São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982. (Coleção educação contemporânea: Série: Memória da educação).
  • CARNEIRO, José Fernando. Reestruturação do ensino universitário no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 50, n. 112, p. 330-345, out./dez., 1968.
  • CASTRO, Amelia Domingues de. A licenciatura no Brasil. Revista de História, São Paulo, v. 50, n. 100, p. 627-652, out./dez, 1974.
  • FÁVERO, Maria de Lourdes de. Universidade e poder: análise crítica/ fundamentos históricos: 1930-1945. Brasília: Plano, 2000.
  • FERNANDES, Florestan. Formação de profissionais e especialistas nas faculdades de filosofia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 37, n. 85, p. 227-233, jan./mar., 1962.
  • FÉTIZON, Beatriz A. de Moura. Educar professores?: questionamentos dos cursos de licenciatura da Universidade de São Paulo. São Paulo: FEUSP, 1984.
  • FONSECA, Dirce Mendes da. O pensamento privatista em educação Campinas: Papirus, 1992.
  • FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Cursos superiores de duração reduzida Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Instituto de Recursos Humanos, 1976. 2 v.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário estatístico do Brasil Rio de Janeiro, 1957.
  • LAUWERYS, J. Instalação e desenvolvimento das faculdades de educação no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos Rio de Janeiro, v. 51 n. 114, p. 305-339, abr./jun. 1969.
  • MARTINS, Carlos Benedito. O novo ensino superior privado no Brasil (1964-1980). In: ______ (Org.). Ensino superior brasileiro: transformações e perspectiva. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • PASTORE, José. O ensino superior em São Paulo: aspectos quantitativos e qualificativos de sua expansão. São Paulo: Nacional, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1972.
  • SAMPAIO, Helena. Ensino superior no Brasil: o setor privado. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2000.
  • SÃO PAULO, Governo do Estado de. Secretaria de Economia e Planejamento. Departamento de Estatística. Ensino superior em São Paulo, 1971.
  • SUCUPIRA, Newton. Da faculdade de filosofia à faculdade de educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 51, n. 114, p. 261-276, abr./jun. 1969.
  • TEIXEIRA, Anísio. Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1989.
  • ______. Escolas de educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v. 51 n. 114, p. 239-259, abr./jun. 1969.
  • Breve história do ensino superior brasileiro e da formação de professores para a escola secundária
    I I- Trabalho apresentado em forma de comunicação no VIII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, São Luís/MA, Brasil, realizado de 22 a 25 de agosto de 2010.
  • I Breve história do ensino superior brasileiro e da formação de professores para a escola secundária I - Trabalho apresentado em forma de comunicação no VIII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, São Luís/MA, Brasil, realizado de 22 a 25 de agosto de 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      14 Ago 2013
    • Recebido
      12 Set 2012
    Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Av. da Universidade, 308 - Biblioteca, 1º andar 05508-040 - São Paulo SP Brasil, Tel./Fax.: (55 11) 30913520 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revedu@usp.br