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Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no "conhecimento dos poderosos" à defesa do "conhecimento poderoso"

Michael Young and the curriculum field: from the emphasis on the "knowledge of the powerful" to the defense of "powerful knowledge"

Resumos

Em novembro de 2013, Michael Young, professor emérito do Instituto de Educação da Universidade de Londres, esteve na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, participando como palestrante, ao lado do Professor Antônio Flávio Barbosa Moreira, da Universidade Católica de Petrópolis, do II Seminário FEUSP sobre Currículo – Escola e Sociedade do Conhecimento: aportes para a discussão dos processos de construção, seleção e organização do currículo. Na ocasião, expôs sua perspectiva atual sobre o debate teórico em torno do currículo, afirmando a falta de uma sólida teoria do conhecimento que oriente as discussões acerca das escolhas curriculares. Identificou uma recusa dos teóricos do currículo em enfrentar o que considera a função específica da educação: a promoção do desenvolvimento intelectual dos estudantes, com base no que define como conhecimento poderoso, intimamente ligado às áreas do conhecimento, nas universidades, e às disciplinas escolares. A reflexão central para esses teóricos, segundo Young, deveria se concentrar na pergunta: o que deve ser ensinado às crianças e jovens na escola? Vale destacar que sua posição atual contrasta, em diversos pontos, com a perspectiva que marcou o movimento da Nova Sociologia da Educação, na Inglaterra, no início da década de 1970, e que foi apresentada no livro Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education, editado por ele e considerado um marco do referido movimento. A entrevista a seguir pretende trazer elementos para a compreensão dessa transformação na análise, empreendida por Michael Young, das questões referentes ao currículo.

Currículo; Conhecimento poderoso; Conhecimento escolar; Disciplinas


On November 2013, Michael Young, the emeritus professor of the Institute of Education, University of London, visited Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. He and Antônio Flávio Barbosa Moreira, professor at Universidade Católica de Petrópolis were the keynote speakers of II Seminar of Faculdade de Educação on Curriculum – School and society of knowledge: processes of curriculum construction, selection and organization. In that occasion, Young presented his current perspective on the theoretical debate on curriculum, stating that we lack a consistent theory of knowledge to guide the discussion on curriculum choices. He argues that curriculum theorists refuse to tackle what he considers the specific function of education: to promote the intellectual development of students, based on powerful knowledge, which is closely linked to knowledge areas, in the universities, and to school disciplines. According to Young, curriculum theorists’ reflection should focus on the question: what must be taught to children and youth at school? His current position is dramatically different from the one which marked the movement of the New Sociology of Education in the seventies in England, and which was presented in Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education, a book edited by him and considered a milestone of that movement. This interview brings to light some elements which help understand the transformation of Michael Young’s analysis of curriculum matters.

Curriculum; Powerful knowledge; School knowledge; School disciplines


ENTREVISTA

Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no "conhecimento dos poderosos" à defesa do "conhecimento poderoso"* * Agradecemos a Leda Bec pela tradução do texto do inglês para o português.

Michael Young and the curriculum field: from the emphasis on the "knowledge of the powerful" to the defense of "powerful knowledge"

Cláudia Valentina Assumpção Galian; Paula Baptista Jorge Louzano

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: claudiavalentina@usp.br

RESUMO

Em novembro de 2013, Michael Young, professor emérito do Instituto de Educação da Universidade de Londres, esteve na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, participando como palestrante, ao lado do Professor Antônio Flávio Barbosa Moreira, da Universidade Católica de Petrópolis, do II Seminário FEUSP sobre Currículo – Escola e Sociedade do Conhecimento: aportes para a discussão dos processos de construção, seleção e organização do currículo. Na ocasião, expôs sua perspectiva atual sobre o debate teórico em torno do currículo, afirmando a falta de uma sólida teoria do conhecimento que oriente as discussões acerca das escolhas curriculares. Identificou uma recusa dos teóricos do currículo em enfrentar o que considera a função específica da educação: a promoção do desenvolvimento intelectual dos estudantes, com base no que define como conhecimento poderoso, intimamente ligado às áreas do conhecimento, nas universidades, e às disciplinas escolares. A reflexão central para esses teóricos, segundo Young, deveria se concentrar na pergunta: o que deve ser ensinado às crianças e jovens na escola? Vale destacar que sua posição atual contrasta, em diversos pontos, com a perspectiva que marcou o movimento da Nova Sociologia da Educação, na Inglaterra, no início da década de 1970, e que foi apresentada no livro Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education, editado por ele e considerado um marco do referido movimento. A entrevista a seguir pretende trazer elementos para a compreensão dessa transformação na análise, empreendida por Michael Young, das questões referentes ao currículo.

Palavras-chave: Currículo — Conhecimento poderoso — Conhecimento escolar — Disciplinas.

ABSTRACT

On November 2013, Michael Young, the emeritus professor of the Institute of Education, University of London, visited Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. He and Antônio Flávio Barbosa Moreira, professor at Universidade Católica de Petrópolis were the keynote speakers of II Seminar of Faculdade de Educação on Curriculum – School and society of knowledge: processes of curriculum construction, selection and organization. In that occasion, Young presented his current perspective on the theoretical debate on curriculum, stating that we lack a consistent theory of knowledge to guide the discussion on curriculum choices. He argues that curriculum theorists refuse to tackle what he considers the specific function of education: to promote the intellectual development of students, based on powerful knowledge, which is closely linked to knowledge areas, in the universities, and to school disciplines. According to Young, curriculum theorists’ reflection should focus on the question: what must be taught to children and youth at school? His current position is dramatically different from the one which marked the movement of the New Sociology of Education in the seventies in England, and which was presented in Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education, a book edited by him and considered a milestone of that movement. This interview brings to light some elements which help understand the transformation of Michael Young’s analysis of curriculum matters.

Keywords: Curriculum — Powerful knowledge — School knowledge —School disciplines.

Apresentação

Em 1971, Michael Young editou uma obra que se tornou a expressão de uma importante mudança na forma de compreender o currículo no contexto europeu. Intitulado Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education, o livro reuniu textos de diversos autores que compunham o denominado movimento da Nova Sociologia da Educação (NSE), entre eles Pierre Bourdieu, Geoffrey Esland, Neil Keddie, Basil Bernstein e o próprio Michael Young.

A perspectiva a que se opunham esses autores era aquela que defendia uma concepção técnica do currículo, centrada em questões tais como: quais os melhores métodos ou as melhores estratégias para garantir que se atinjam os resultados esperados em relação ao processo de escolarização e quais as melhores formas de organizar o ensino e o currículo para esse mesmo fim. Nessa abordagem, não havia espaço para discutir o que se ensinava, o que era tomado como um dado sobre o qual seria desnecessário refletir. Cumpre destacar, entretanto, que, como afirmam Moreira e Silva (2002): "não se deve entender o campo [do currículo] como monolítico, já que outras intenções podem ser identificadas, tanto em suas manifestações iniciais como nos estágios subsequentes". De todo modo, nas suas origens, as diferentes intenções presentes no campo, "de formas diversas, procuraram adaptar a escola e o currículo à ordem capitalista que se consolidava" (2002, p. 11).

A NSE introduziu uma nova forma de analisar o currículo, que incidia exatamente sobre as escolhas que se fazia para definir o que deveria ser ensinado, afirmando que a seleção de conhecimento definida era a expressão dos interesses dos grupos que detinham maior poder para influir nessa definição. Assim, de uma visão de currículo supostamente neutra, não problematizadora das escolhas realizadas em torno do conhecimento, passava-se a uma visão crítica dessas escolhas, que claramente assumia o viés político da temática do currículo. Moreira e Silva (2002) consideram que:

A NSE constituiu-se na primeira corrente sociológica de fato voltada para o estudo do currículo. O grande marco de sua emergência tem sido considerado o livro editado por Young, Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education (1971). [...] foi considerável a influência da NSE no desenvolvimento inicial e nos rumos posteriores da Sociologia do Currículo, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. (p. 19-20, grifos do autor)

É nesse contexto de identificação das relações de poder incrustradas no currículo, de denúncia do silenciamento de muitas vozes na definição do que é relevante, em especial daquelas oriundas das classes economicamente menos favorecidas, que Michael Young apresenta sua primeira forma de abordagem do currículo. O próprio autor, em texto de produção recente (YOUNG, 2010), ao voltar a atenção para suas ideias nesse período, destaca duas delas, que ele ainda hoje assume como verdadeiras: (1) educação e conhecimento são inseparáveis; e (2) o conhecimento, e especificamente o currículo, não é dado, mas uma construção social (p 10).

Identifica também dois argumentos construídos na década de 1970 sobre os quais repousava essa sua primeira abordagem: o primeiro deles é que a estrutura do conhecimento no currículo pode ser vista como expressão da distribuição de poder na sociedade; e o segundo é que a estruturação do conhecimento em qualquer sistema de ensino determina como as oportunidades educacionais são distribuídas e para quem. Nesse sentido, Young ressalta quatro consequências dos argumentos anteriormente apresentados. Uma delas é que, se se considera que o que conta como conhecimento é socialmente construído e, portanto, é expressão das relações de poder na sociedade e na escola, o currículo é fundamentalmente um instrumento político para manter as relações de poder existentes. Outra consequência é que, se a estrutura do conhecimento é uma expressão da distribuição de poder na sociedade, não pode haver nenhuma base objetiva para distinguir diferentes tipos de conhecimento; qualquer conhecimento teria o mesmo valor. Uma terceira seria que os esforços para distinguir o conhecimento escolar do conhecimento cotidiano seriam apenas meios que alguns grupos utilizam para legitimar suas perspectivas sobre o conhecimento e para mascarar as relações de poder que as sustentam (o que chama de tese do "conhecimento é poder"). E, por fim, essa abordagem ofereceria uma base poderosa para criticar o currículo escolar e mesmo qualquer tipo de conhecimento especializado ou institucionalizado, já que qualquer seleção de conhecimento seria sempre uma imposição dos interesses de grupos poderosos (YOUNG, 2010, p. 10-11).

Passadas algumas décadas, Michael Young assume outra perspectiva, ao afirmar que o que importa nas discussões sobre currículo é saber se o conhecimento disponibilizado na escola é "conhecimento poderoso", ou seja, um conhecimento que permite que os alunos compreendam o mundo em que vivem:

As escolas devem perguntar: "Este currículo é um meio para que os alunos possam adquirir conhecimento poderoso?". Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição. (YOUNG, 2007, p. 1297)

Sua preocupação passa a ser a de firmar uma posição contrária à defesa de um currículo por resultados, instrumental e imediatista, ressaltando a necessidade de garantir acesso ao conhecimento, em especial para crianças e jovens dos grupos sociais desfavorecidos; defende que a escola não se afaste de sua tarefa específica, disponibilizando o conhecimento especializado, que não se acessa na vida cotidiana e que pode oferecer generalizações e base para se fazer julgamentos, fornecendo parâmetros de compreensão de mundo. Entende que, para o desenvolvimento dessa compreensão de mundo, é importante dispor de conhecimentos e formas de pensamento que permitam problematizar a prática social com base nos conhecimentos especializados, de forma a aprofundar o entendimento das múltiplas relações envolvidas nos fenômenos naturais e sociais.

De forma radical, afirma a importância da produção das áreas de conhecimento, nas universidades e nos centros de pesquisa, como fonte para a seleção do conhecimento especializado que deverá compor o currículo, a ser recontextualizado nas disciplinas escolares. Afirma que estas representam, numa forma adequada à transmissão escolar, o mais próximo que se chegou até agora na tentativa de explicar o mundo natural e social. Destaca, nesse sentido, o caráter de incompletude desse conhecimento, sempre sujeito a revisões, o que identifica como o diferencial de sua perspectiva em relação a uma visão tradicional de currículo:

Em contraste com a visão tradicional, as disciplinas não são vistas como parte de algum cânone fixo definido pela tradição, com conteúdos e métodos imutáveis. [...] Ao adquirirem conhecimentos das disciplinas, [os estudantes] estão ingressando naquelas "comunidades de especialistas", cada uma com suas diferentes histórias, tradições e modos de trabalhar. (YOUNG, 2011, p. 617)

Assume e defende, portanto, o valor social de uma distribuição mais justa do conhecimento poderoso, cujo acesso deveria ser possibilitado a todos:

a escolarização representa (ou pode representar, dependendo do currículo) os objetivos universalistas de tratar todos os alunos igualmente e não apenas como membros de classes sociais diferentes, grupos étnicos diferentes ou como meninos e meninas. (YOUNG, 2011, p. 619-620)

Apresentadas, em linhas gerais, as diferenças nas formas de abordagem do currículo nesses dois momentos da trajetória intelectual de Michael Young, a entrevista com o autor pretende trazer mais elementos para a compreensão das transformações em suas ênfases nos dois momentos, o que é especialmente relevante no contexto brasileiro, em que não se conta com a tradução de muitas de suas obras. Além disso, suas afirmações incidem no que pode ser considerado o ponto nevrálgico das discussões atuais sobre o currículo: a relação entre a definição de um currículo comum e o atendimento às especificidades, às diferenças de múltiplas naturezas presentes nas escolas. Provocam-nos, assim, a pensar na tensão entre igualdade e equidade.

Cláudia Valentina Assumpção Galian é graduada em biologia, completou o mestrado e o doutorado em Educação no Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Paula Baptista Jorge Louzano é pedagoga formada pela Universidade de São Paulo, mestre em Educação Internacional Comparada pela Universidade de Stanford, doutora em Política Educacional pela Universidade de Havard. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado no Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas em Educação da Faculdade de Educação da USP.

Entrevista

Sua perspectiva sobre o currículo mudou dos anos 1970 para cá. O senhor poderia descrever brevemente essas duas perspectivas e explicar como se deu a mudança?

Como sociólogo, quando comecei a pensar sobre o currículo, eu queria ver quais teorias sociais eu poderia trazer para essa discussão. Em meu primeiro livro, Knowledge and Control [Conhecimento e controle], publicado em 1971, o primeiro capítulo, logo depois da introdução, consiste num artigo intitulado "O currículo e a organização social do conhecimento". Basicamente, eu entendia o currículo como um conjunto de relações de poder. Isso era importante, porque, se fosse possível entender o currículo assim, então seria possível mudá-lo. Era uma resposta, uma reação à ideia de que o currículo era algo fixo e de que todo mundo deveria se adaptar a ele. Eu queria expor a ideia de que, na verdade, o currículo é uma construção social, que reflete certos tipos de interesses, inclui algumas coisas e exclui outras, estratifica o conhecimento, valoriza algumas coisas em detrimento de outras, e que você pode explorar os diferentes interesses envolvidos em todo esse processo. Foi o que esse livro tentou fazer.

Essas ideias tiveram um grande impacto na época, porque constituíram a primeira tentativa de abordar o currículo dessa maneira. Ao longo dos anos, gradualmente, escrevi alguns artigos sobre essa teoria do currículo como um conjunto de relações de poder. Aos poucos, percebi que, no fundo, ela não se apoiava numa boa noção de conhecimento. Tendia a ver o conhecimento como qualquer coisa. Dessa forma, as relações institucionais de poder, a burocracia, ou o que acontece em uma fábrica, ou numa família, tudo era considerado conhecimento. Mas percebi que essa talvez não fosse uma ideia muito adequada para definir o conhecimento, porque há um tipo de conhecimento que é produzido em qualquer sociedade, e que, na verdade, é o melhor que se desenvolveu para explicar o mundo. E há uma razão para que seja considerado melhor. Pensando dessa forma, por que não trazer esse conhecimento para o currículo?

Isso me levou a estudar diferentes teorias do conhecimento. No início, estudei a fenomenologia, a sociologia do conhecimento, de Max Weber, um pouco a respeito da produção dos interacionistas simbólicos americanos e voltei a Durkheim e ao psicólogo Vygotsky, em busca de diferentes maneiras de pensar sobre o conhecimento. Durkheim me ajudou a entender que, na verdade, todo conhecimento, inclusive o currículo, é uma construção social, mas o que a sociedade faz é legitimar certos conhecimentos como verdadeiros e confiáveis, e considerar outros como ideologicamente inclinados ou ligados a interesses específicos.

Eu já tinha constatado anteriormente que o fato de a produção do conhecimento ter uma base social sempre comprometerá o seu objetivo de alcançar a "verdade". O que Durkheim me ensinou foi que o que a sociedade faz com o conhecimento não é função apenas de ideologia e interesses, mas também depende de objetividade e fidedigndade. Um exemplo óbvio é o que acontece com a física. Não há dúvida de que se trata de uma construção social, mas tampouco há dúvida de que esse conhecimento possui objetividade e de que é o mais próximo da verdade que chegamos na explicação sobre o mundo natural, o que, até certo ponto e de maneiras diferentes, pode ser aplicado também a outras disciplinas. Isso me fez repensar completamente minhas ideias sobre o currículo. Não se trata apenas da importante questão sobre quem tem acesso ao conhecimento, mas também é uma questão de quais pesquisas devem ser desenvolvidas. A pesquisa sociológica anteriormente produzida abordava o currículo com o intuito de identificar os seus vieses: um viés que o opunha aos interesses dos trabalhadores, um que o opunha aos interesses das mulheres, outro, contrário aos interesses dos negros... Tudo isso é importante, mas também é importante verificar se o currículo disponibiliza de fato um conhecimento relevante, porque seria necessário que o fizesse. E isso levou a uma abordagem muito diferente de pesquisa, que passou a ser desenvolvida em meu trabalho posterior.

Houve alguma experiência concreta que influenciou essa mudança de perspectiva, tal como o trabalho que desenvolveu na África do Sul, por exemplo?

Certamente. A experiência sul-africana foi muito importante para mim. Estive lá depois do fim do apartheid, depois de instaurado o primeiro governo democrático. Eu estava trabalhando com várias organizações democráticas, que reuniam professores e educadores, sindicatos etc., para tentar elaborar um novo currículo. A primeira tentativa de elaboração de um novo currículo foi por meio da adoção de uma versão da minha teoria do conhecimento anteriormente apresentada, que basicamente sugeria que o currículo era a expressão das relações de poder. Nós não queríamos que as pessoas no poder tomassem decisões sobre o melhor conhecimento; portanto, a conclusão a que se chegou foi de que isso deveria ser decidido pelos professores. Assim, não se impôs nenhum tipo de currículo aos professores; esperou-se que eles fossem capazes de criá-lo. Mas é claro que isso não funcionou, porque os professores tinham sido mal formados, não tinham recebido formação adequada para aquilo e não sabiam o que fazer com a autonomia que lhes havia sido concedida. E, com isso, dei-me conta de que era preciso pensar novamente sobre o conhecimento e descobrir um jeito melhor, particularmente porque se desejava que o currículo de fato oferecesse oportunidades para o desenvolvimento das pessoas. O que aconteceu na África do Sul desde então é que eles gradualmente começaram a construir um currículo que levasse a sério a base social do conhecimento e que estabelecesse o que deve ser disponibilizado às crianças e jovens.

Qual tem sido o papel dos teóricos do currículo no debate curricular em todo o mundo? O senhor tem sido muito crítico em relação a isso.

Eu sou muito crítico no que se refere à maioria das teorias do currículo porque elas têm fugido justamente da discussão sobre o conhecimento, muito influenciadas pelos estudos culturais e por ideias filosóficas. Essas teorias perderam o contato com o seu objeto de estudo, que é essencialmente aquilo que se ensina às crianças e o que elas aprendem na escola. Uma das consequências disso é que, em muitos países, inclusive no meu, os políticos responsáveis pelo estabelecimento do currículo nacional não prestam a menor atenção ao que dizem os teóricos do currículo, porque estes não têm nada a dizer. E, portanto, desenvolvem-se currículos frágeis, formulados por políticos e seus assessores, sem nenhum conhecimento especializado, porque eles não querem ouvir os teóricos do currículo. Não quero generalizar para o mundo todo, mas é um problema específico que tem ocorrido na Inglaterra. Aí, quando as coisas não funcionam, você tem um sem fim de modismos que são trazidos para o debate.

Há também outro efeito negativo: o papel da teoria do currículo na formação de professores tem sido drasticamente reduzido, pelo menos na Inglaterra, de modo que a formação de professores, hoje, é definida principalmente com base em conjuntos de padrões ou competências que focalizam, muito restritamente, a gestão da sala de aula e o desempenho obtido no seu interior. Quaisquer formadores de professores com uma visão mais abrangente foram expulsos do sistema. Portanto, os professores já não estudam filosofia, história ou sociologia enquanto estão em formação. Eu acho isso muito sério, porque essas disciplinas eram uma base da profissão e hoje os estudantes são formados quase como tecnólogos da educação, são preparados para oferecer conjuntos de instruções.

É importante dizer que eu não atribuo toda a responsabilidade aos teóricos do currículo. Também tem havido uma grande pressão dos governos para impor sistemas de responsabilização e controlar mais a formação de professores, preocupados que estão com uma excessiva influência das universidades. Portanto, a pressão sobre a formação dos professores tem sido enorme.

E qual deveria ser o papel dos teóricos do currículo?

Há diferentes tradições de teorias do currículo. Sou um sociólogo e, portanto, ofereço uma tradição específica de teoria social para o currículo; outras pessoas trazem outras tradições. Acho muito importante que as diferentes tradições aprendam umas com as outras e, assim, não se tornem exclusivas. Mas acho que o que eu posso fazer é desenvolver uma espécie de esquema teórico geral para analisar o currículo existente, expondo as premissas sobre as quais os currículos são organizados, para, só então, decidir se podemos mudá-los de alguma forma.

Acho que precisamos nos concentrar em dois tipos de questões para pesquisa em currículo, que partem das ideias de Bernstein. Uma delas é a que focaliza a tensão entre a pressão externa, exercida pelos governos, e a pressão interna, exercida pelos próprios professores. De um lado, sempre haverá a pressão dos governos sobre a definição de qual é o conhecimento que deve estar nos currículos; de outro, também sempre haverá, ou deveria haver, certas pressões dos profissionais da educação envolvidos no processo de escolarização de crianças e jovens e dos professores de áreas disciplinares específicas. Eles deveriam ter influência sobre como o currículo é desenvolvido e, particularmente, sobre como o conhecimento produzido nas universidades, no que chamamos de campos de conhecimento, pode ser recontextualizado na escola para ser ensinado como disciplinas a alunos de idades diferentes. Podemos explorar essa tensão entre a pressão externa e a pressão interna em casos diferentes, por meio de pesquisa histórica ou de investigações que incidam sobre situações atuais. Essa é uma área de pesquisa.

O outro tipo de pesquisa no qual precisamos nos concentrar é o que incide sobre o processo de recontextualização, ou seja, sobre a maneira como o conhecimento especializado, produzido pelos pesquisadores de diferentes campos, é retirado do contexto onde foi desenvolvido e inserido noutro contexto, que tem como principal objetivo a transmissão e o acesso a esse conhecimento. E, também, sobre como esse conhecimento é selecionado para compor o currículo. Precisamos saber muito mais sobre esse processo do que sabemos hoje. Acho que essa é uma grande prioridade para a pesquisa.

O que é triste na área do currículo é que, como a teoria do currículo perdeu contato com seu objeto, há pouca pesquisa, não sabemos quase nada sobre como o currículo está sendo implementado nas escolas. Como os teóricos do currículo estão lendo os filósofos e as teorias literárias, eles não tratam dessa questão.

Sua produção mais recente trata do "conhecimento poderoso". O que quer dizer com essa expressão?

Vou tentar primeiro explicar sua origem. Inicialmente, não concebi essa expressão como um conceito isolado. Eu estava preocupado com a forma pela qual o currículo estava sendo abordado, particularmente sob a perspectiva da sua identificação com as relações de poder. A teoria do currículo estava estudando o currículo com uma abordagem que eu chamei de "conhecimento dos poderosos", mostrando quem tomava as decisões, quem selecionava o que entrava ou não no currículo. Num certo sentido, o conceito de "conhecimento poderoso" foi uma mudança de perspectiva, pois dizia: "não olhem apenas para os que estão decidindo sobre o currículo, olhem para o próprio conhecimento e se perguntem como esse currículo específico pode incorporar um conhecimento que, uma vez adquirido pelos jovens, será poderoso para eles, em termos de como eles verão o mundo, como poderão interpretá-lo e possivelmente transformá-lo".

Quando comecei a usar o conceito de "conhecimento poderoso", no bojo de uma tensão com o conceito de "conhecimento dos poderosos", não era um conceito isolado, era um conceito dual. Hoje, acho que qualquer pesquisa sobre o currículo precisa estar baseada nos dois conceitos, pois o currículo sempre tem relações de poder embutidas nele. Numa sociedade cheia de desigualdades, aqueles que detêm o poder sempre tentam fixar o currículo de maneira a atender seus interesses. Isso é uma característica do mundo em que vivemos, não podemos escapar dela e é importante expô-la e torná-la explícita. Foi por isso que concordei com o Antônio Flávio, quando ele disse que há uma convergência entre o conhecimento dos poderosos e o conhecimento poderoso.

Esse é um ponto. Outro é tentar tornar explícitas as premissas do que queremos dizer com conhecimento poderoso - e isso é muito importante, porque se trata de saber se os jovens estão tendo acesso a um conhecimento que pode ser de grande valor para eles. Devido às mudanças na economia britânica, jovens que costumavam deixar a escola aos 15 ou 16 anos para trabalhar em fábricas que não exigiam nenhuma qualificação, agora ficam na escola até os 17 ou 18. Mas, muitas vezes, como os professores não têm uma noção clara do que é conhecimento relevante, tentam adaptar o currículo aos interesses dos jovens e, quando estes chegam ao final de seus estudos, não adquiriram nenhum conhecimento adicional. É por isso que é tão importante ter alguns critérios sobre o conhecimento poderoso para ser capaz de analisar criticamente o currículo desenvolvido nas escolas.

Minha teoria parte da premissa de que um currículo que incorpore o conhecimento poderoso é um currículo que se concentra no conhecimento ao qual os jovens não têm acesso em casa. É distinto da experiência pessoal deles e, essencialmente, desafia essa experiência. Esse é o ponto principal de onde parto.

O segundo ponto é que o conhecimento poderoso é o conhecimento especializado oriundo dos campos do conhecimento - ou das disciplinas, como as chamamos na escola. Ambos - os campos do conhecimento e as disciplinas - têm limites em torno deles, mas os limites não são estáticos, apenas proveem uma certa estabilidade. Não são, como afirmou Pierre Bourdieu em um de seus primeiros artigos, limites arbitrários. Não significa isso. Os limites não são arbitrários. Nós organizamos o conhecimento para separar química e física, por exemplo, ou história e geografia, porque descobrimos que podemos entender mais os fenômenos quando estabelecemos esses limites. Mas são limites sociais, não são fixos. Tínhamos uma fronteira clara entre biologia e química, mas novos conceitos surgiram e agora temos um novo campo de conhecimento chamado bioquímica. Sempre há esse tipo de mudança acontecendo, mudanças por meio das quais se rompem alguns limites e se criam outros.

Considero os limites, as fronteiras, extremamente importantes, principalmente para os professores. Se eu for professor de história ou física na escola, não quero estar completamente isolado, quero ser parte de uma comunidade mais ampla de especialistas em história ou em física, em conexão com as universidades e com os professores da disciplina em nível superior. Mas, se eu estiver ensinando uma disciplina chamada "Meio ambiente" ou "Abastecimento local de água", não haverá como eu ser parte de uma comunidade de professores e pesquisadores. É muito importante que os professores sejam parte de uma comunidade mais ampla e são os limites entre as disciplinas que vão definir isso. Por isso, os limites são tão importantes para os professores. Mas acho que também são particularmente importantes para os alunos que vêm da classe trabalhadora ou dos segmentos mais vulneráveis da sociedade. Quando esses alunos chegam à escola e entram em contato com um conhecimento totalmente estranho, eles precisam desenvolver novas identidades na relação com o novo. As disciplinas lhes conferem elementos para a construção de identidade, bem como segurança como aprendizes. Vão chegar a um ponto em que desejarão romper os limites, ultrapassar as fronteiras, mas, se não souberem identificar os limites, tampouco poderão rompê--los e, se conseguirem, não saberão avaliar se conseguiram ou não. Então, nunca saberão se estão aprendendo mais ou não. Portanto, os limites também desempenham um papel importante para os alunos.

O que eu diria, como alguém que lecionou ciências no ensino médio, é que os limites entre química e física, por exemplo, têm um papel importante para ajudar os alunos a focalizar certos tipos de problemas. Nesse sentido, eles captam uma mensagem sobre como estamos interpretando o mundo natural. Você deve lembrar do conceito da periodicidade dos elementos, por exemplo. É um conceito incrivelmente importante, porque permite entender do que é feito o mundo. Todo mínimo pedacinho do Universo, não importa a quantos milhões de anos-luz esteja de nós, todo pedacinho é feito dos mesmos elementos da tabela periódica. E esse é um pensamento notável. De repente, ao focalizar a tabela periódica, você vê uma unidade no Universo, capta uma mensagem sobre como entendemos o mundo natural.

Então o senhor acha que a escola não deve trabalhar de forma interdisciplinar ou transdisciplinar?

Não, não é isso que estou dizendo. O que digo é que devemos construir o currículo de forma a habilitar os alunos a se engajar com as disciplinas, de forma a que cheguem depois a conseguir constatar que os limites entre as disciplinas não são inteiramente fixos e que é possível avançar para além deles. Não vejo problema algum com o currículo interdisciplinar, desde que, antes, os alunos já tenham tido acesso às disciplinas que compõem o currículo interdisciplinar. Caso contrário, eles não saberão onde estão, ficarão confusos. Se você ler Bernstein, ele deixa muito clara a distinção entre o currículo do tipo coleção e o currículo do tipo integrado1 1 - O currículo coleção, para Bernstein, é aquele que mantém fronteiras bem claras entre as disciplinas, que se mantêm distanciadas; no currículo integrado, as fronteiras entre as disciplinas são enfraquecidas, com tendência à aproximação entre elas. . O problema com o currículo integrado, diz ele, é que você precisa ter algum princípio para integrar. Quais são as premissas subjacentes? Não sabemos isso necessariamente, o que significa que os alunos não compreendem o arranjo e acabam perdidos.

O senhor poderia dar alguns exemplos do poder implícito da disciplina no currículo escolar?

Acho que a primeira coisa a dizer é que o currículo escolar é constituído a partir dos campos do conhecimento e das disciplinas. Os campos do conhecimento são a base sobre a qual desenvolvemos novos conhecimentos. As disciplinas são a base sobre a qual transmitimos conhecimento para as próximas gerações. Portanto, as disciplinas escolares são sempre contextualizadas a partir dos campos do conhecimento.

Acho que já falei bastante do papel das disciplinas em termos de identidade dos professores, de identidade dos alunos e de evidências para os avaliadores sobre a progressão dos alunos. A força da disciplina é que você pode realmente ver como os alunos progridem de um conceito para outro. Se não houver a disciplina, você não tem como saber se o aluno aprendeu ou não.

Obviamente, as disciplinas das ciências naturais são mais diretas, os conceitos são inequívocos, pois há definições precisas dos conceitos. Quando se trata de ciências sociais e das ciências humanas em geral, as coisas ficam mais complicadas, porque há debates inerentes a elas. O que você precisa tentar fazer é dar aos alunos uma ideia da natureza desses debates, em vez de passar todos os conceitos. Eu não recomendaria ter algumas disciplinas das ciências sociais no currículo até pelo menos 17 ou 18 anos. Acho que se pode ter história, particularmente, porque há menos debates em história e porque você quer que os jovens desenvolvam algum tipo de consciência histórica, sobre como o presente tem um passado, alguma noção das evidências históricas, documentos etc. Você também quer que tenham algum tipo de ideia do que sejam as mudanças sociais, do papel dos diferentes atores nas mudanças sociais. E, claro, você também quer que saibam algo sobre a própria história nacional. Por exemplo, no caso do Brasil, é preciso que eles saibam que a escravidão foi uma parte integrante da história do país, que, por acaso, foi também parte integrante da nossa história - as grandes cidades de Bristol e Liverpool, por exemplo, foram inteiramente construídas com os lucros do tráfico negreiro. Esse é apenas um exemplo. Mas é desejável que um jovem saiba que seu país foi parte dessa história.

Não creio, com relação à literatura, que haja maneira de evitar alguma noção daquilo que às vezes é chamado de cânones, ou seja, alguma noção de cânone literário. Por exemplo, volte ao século XIX, em qualquer país, e verá que inúmeros romances foram escritos, mas só alguns poucos ainda são lidos. Ainda se lê Jane Austen (Orgulho e preconceito), em parte porque é exibido na tevê, e é uma grande história. Mas tinha muita gente escrevendo no mesmo período que Jane Austen e nunca se lê as obras dessas pessoas. Eu gostaria que todos os alunos tivessem acesso aos romances que sobreviveram ao teste do tempo. Diferentemente das ciências... O currículo de química no Brasil, por exemplo, deve ser muito parecido com o da Inglaterra. Mas, o de literatura, não! Porque a literatura tem uma história nacional. Portanto, acho que o currículo de literatura deve incluir alguma noção de cânones, apesar dos muitos debates ao redor desse conceito.

Como outro exemplo, mesmo não sendo um especialista em geografia, de jeito nenhum, tenho a impressão de que as crianças já são geógrafas, em algum sentido, pelo simples fato de que estão no planeta. Elas têm um bom sentido do espaço. Em um de meus artigos, eu dou o exemplo de um menino na cidade. O menino tem um entendimento muito bom da cidade, um entendimento de senso comum, do cotidiano. Mas é limitado a essa cidade específica onde ele vive e à sua visão dessa cidade. Chega um ponto em que ele precisa de um bom professor de geografia, que tem um conceito muito diferente de cidade. Eu acho que, ao redor dessa noção de espaço, é possível trabalhar vários conceitos.

Tivemos um debate interessante sobre o currículo de geografia na Inglaterra, sobre se deveríamos ensinar alunos do início do ciclo secundário sobre o aquecimento global e a mudança climática e sobre o que causa esses fenômenos - porque há um grande debate a respeito. Um dos argumentos com que simpatizo é que existe um grande interesse em ensinar tópicos relevantes da atualidade, como aquecimento global e mudança climática, mas querem ensinar a crianças que ainda não sabem o que é o clima! É preciso ter um conceito razoavelmente claro do que seja o clima antes de poder aprender qualquer coisa sobre aquecimento global e mudança climática. O que pode acabar acontecendo é que, sem esses conceitos, o currículo se transforme em um bate-papo como o que se tem em casa; e não se precisa da escola para isso.

O Brasil é muito diverso, geográfica, social e culturalmente. Como conciliar toda essa diversidade com o acesso ao conhecimento poderoso que o senhor propõe?

Há duas coisas que eu poderia dizer sobre isso. Uma é que, não importa quão diversa seja sua sociedade, há um certo conhecimento que é importante que seja acessível a todos - a língua portuguesa, por exemplo.

Eu tive muita dificuldade na África do Sul porque eles têm 12 línguas diferentes (e alguns países africanos têm muitas mais). Houve um grande debate: será que devemos ensinar todas essas línguas nas escolas? Não! O conhecimento poderoso, na África do Sul, é o conhecimento da língua inglesa e você não pode escapar disso. Então, a primeira coisa que eu queria dizer é essa, não importa quão diversa seja a sociedade. A segunda coisa é que o currículo nacional deve consistir num conjunto de diretrizes sensíveis aos diferentes campos do conhecimento, mas suficientemente abertas para permitir que as escolas as interpretem nos diferentes contextos. As escolas vão ter mais margem para interpretar em certas disciplinas - digamos, geografia e história - e não terão tanta margem para a interpretação em física e química, por exemplo. Mas as diretrizes são necessárias.

Se vocês caminharem em direção à definição de um currículo nacional no Brasil, é importante deixar sob a responsabilidade integral das escolas um terço ou um quarto da semana letiva. Ou seja, não esperem que o currículo nacional seja aplicado a semana inteira, mas talvez quatro dias, não sei, é discutível. É aqui que entra a gestão do currículo. A equipe da escola precisa ter um conhecimento suficiente de teoria do currículo para poder interpretar na sua escola esse currículo comum, de forma que haja algum tipo de diálogo entre o nacional e o local. E isso é perfeitamente factível! É uma coisa sempre tratada como um problema, mas, mesmo que você tenha nascido e crescido numa comunidade no meio da Amazônia, você tem o direito democrático ao conhecimento poderoso. Essas crianças precisam ter algum conhecimento de coisas como a matemática, onde quer que estejam. Não existe uma versão "especial" da matemática para cada comunidade cultural, embora haja quem diga coisas desse tipo, como alguns antropólogos. Pessoalmente, acho isso uma bobagem.

O senhor poderia dar algum exemplo concreto de adaptação desse conhecimento poderoso ao nível local em qualquer país, mesmo a Inglaterra, a Nova Zelândia ou a África do Sul?

A área com que tive mais contato foi com os alunos entre 15 e 16 anos de idade, que estão abandonando a escola, entediados. Ao longo dos anos, criamos vários currículos especiais para esse grupo, com nomes do tipo "Matemática para alunos em risco de evasão", "Geografia ou Ciências para alunos em risco de evasão" e tivemos um currículo chamado "Matemática para a maioria". Todos esses currículos partem do princípio de que há conhecimentos especiais para certos tipos de alunos. O que esse tipo de currículo afirma é: "o contexto em que você vive vem em primeiro lugar e o conhecimento vem em segundo lugar. Você vai sentir que é mais fácil, não terá de se esforçar tanto para progredir para além disso". Eu penso que tudo isso nega aos alunos o acesso ao seu direito democrático ao conhecimento. Não digo que seja fácil ensinar. É muito mais fácil oferecer experiências felizes, organizar visitas e pequenas excursões. Mas ensinar esse conhecimento é uma responsabilidade dos professores e, nas universidades, devemos fazer todo o possível para apoiá-los.

Em um de seus artigos, o senhor propõe que se estabeleça claramente a distinção entre currículo e didática. Como isso pode nos ajudar na busca por qualificar o debate no campo do currículo?

Nas coisas que escrevi recentemente, afirmo que a distinção entre currículo e didática é importante por duas razões. Uma delas é que, se não houver a distinção, corre-se o risco de colocar no currículo muitas coisas relacionadas à experiência dos alunos, coisas que não deveriam estar lá. A experiência dos alunos é essencial para o professor, porque é por aí que ele deve começar, com aquilo que os alunos trazem para a sala de aula; esse é o principal recurso do professor. Mas o trabalho do professor é sempre levá-los desse ponto inicial para algum outro lugar. Então, essa distinção é fundamental porque, no currículo, você só tem coisas que não estão relacionadas à experiência pessoal dos alunos. Não há, por exemplo, nada relacionado à maneira como as pessoas usam certas substâncias químicas localmente; só há as noções e conceitos da química.

Mas acho que a distinção entre currículo e didática é teórica, não prática. Porque, na prática, se você é um professor, universitário ou de ensino básico, as duas coisas caminham juntas. Você não fica o tempo todo fazendo a distinção, "isto é currículo, isto é didática". Mas, se você está elaborando currículos - seja em nível individual, local ou nacional - , então a distinção é importante, porque o currículo define o que se ensina, que direção você vai tomar, enquanto a didática trata do como. É como eu disse no seminário de hoje: jamais colocaria os museus, por exemplo, no currículo, mas acho que eles têm um papel importante na didática, como um recurso para aprender história ou outra disciplina.

Como suas ideias poderiam ser aplicadas para guiar uma reforma curricular?

Acho que o problema com essa pergunta é que ela está demasiado relacionada à especificidade de alguns países. Por exemplo, os países escandinavos têm conselhos locais responsáveis pelo currículo, que são bastante independentes do Ministério da Educação. E esse é um formato diferente, de origem histórica, que eles têm e nós não temos na Inglaterra, por exemplo. Portanto, acredito que o importante, ao se pensar em reforma curricular, é trabalhar com alguns princípios.

Em primeiro lugar, você precisa ter clareza sobre o conhecimento que você deseja que as crianças aprendam. Esse é o ponto de partida. Em segundo lugar, e isso foi dito há algum tempo por um teórico do currículo, não há desenvolvimento de currículo que não seja desenvolvimento e formação de professores. O currículo não tem um significado completamente independente dos professores, que o tornam parte de seu trabalho. Então, em suma, qualquer reforma curricular deve ser uma colaboração entre um organismo curricular nacional e as várias associações profissionais de professores, principalmente aquelas relacionadas às disciplinas específicas. Também deverá envolver vários especialistas das universidades e assim por diante. Precisa ser assim. É o único jeito de realizar uma reforma curricular.

Nós fizemos uma reforma curricular recentemente que ignorou completamente os professores. Houve uma enorme oposição e antagonismo. E essa reforma ignorou os professores porque o governo não gostava do que os professores estavam dizendo - eu mesmo não gostava de algumas coisas que eles estavam dizendo. De qualquer forma, esse é um jeito profundamente improdutivo de fazer uma reforma curricular. Porque, na verdade, gerou oposição. Em coisas como uma reforma curricular, é preciso ter todo mundo junto com você, de alguma forma. É preciso ter o elemento democrático. Parece-me que vocês terão um problema no Brasil, porque será muito difícil estabelecer esse nível de acordo. Mas penso que, se tivesse de fazer essa reforma num país tão grande como o Brasil, eu verificaria: o que está acontecendo em diferentes estados; e o que está acontecendo em diferentes campos do conhecimento. Assim, poderia identificar, de uma maneira ou de outra, algumas grandes áreas de consenso e usá-las como modelo para ter algo mais nacional. Acho que começaria pequeno em vez de tentar produzir um grande pacote.

O senhor falou da reforma na Inglaterra, que o governo não ouvia o que os professores diziam. O que eles diziam? Qual era o principal conflito?

Eles diziam o seguinte: "Não venham impor suas ideias, nós somos os especialistas, nós é que sabemos sobre currículo, nós é que sabemos o que as crianças podem fazer, sabemos o que elas podem aprender e o que não podem... Em suma, o que vocês estão fazendo ignora toda a nossa experiência". Simples. Mas não é simples, porque eles têm mesmo experiência. Mas também têm, acredito, alguns pontos de vista muito equivocados. E tanto a experiência deles como seus pontos de vista equivocados têm de valer alguma coisa. Há muitas crianças de quem os professores simplesmente desistiram. Decidiram que essas crianças não conseguem aprender. E elas provavelmente conseguem! Isso tem a ver com as expectativas que eles têm em relação aos seus alunos. Claro que nem tudo é expectativa, mas ela é muito importante. Em meu país, e pode ser que o mesmo aconteça aqui, os professores estão acuados, eles se sentem ameaçados, vítimas de imposições, por causa das infindáveis mudanças que o governo faz ao longo do tempo, e acabam ficando numa oposição pétrea. Se você visitar os países escandinavos ou mesmo a França ou a Alemanha, os professores não estão em oposição, porque sempre foram vistos como parte da conversa. Nós temos que caminhar nessa direção, mas não estamos avançando muito.

Por onde começar uma reforma curricular?

Nos últimos dez ou 15 anos, a ideia de que estou mais convencido é esta: você tem de começar pelo conhecimento. Se você não começar pelo conhecimento, você não está começando pelo que é específico da escola, é o propósito dela e é o que a sociedade está esperando dela. Por um lado, os teóricos do currículo, particularmente alguns da esquerda começam pela ideia da reprodução. As escolas estão envolvidas na reprodução das relações de classe, é fato. Mas, se você começa por aí, você não sabe para onde ir em seguida! É isso que penso. No entanto, se você começa pelo conhecimento, você também começa a ver em que áreas o acesso ao conhecimento não ocorre.

A outra coisa que penso tem um pouco a ver com o que o Antônio Flávio disse. E é claro que eu sei que o conhecimento não é a única coisa a considerar, há também a desigualdade social, a infraestrutura das escolas, os recursos destinados à educação. São questões muito importantes, mas são de um tipo diferente. São questões políticas: quais são as prioridades de gasto em um país? Aí você tem de se envolver com política, tirar do poder o partido que estiver no poder etc.

No caso específico das escolas, não deveríamos sequer esperar que elas façam tudo. Na verdade, o que estou tentando argumentar é que já esperamos que as escolas façam coisas demais! Esperamos que sejam agências de assistência social, esperamos que ajudem as pessoas a encontrar emprego, esperamos que mudem os hábitos alimentares das crianças, que as impeçam de se contaminarem com Aids, que combatam a gravidez adolescente... Tenho uma amiga que passa a maior parte de seu tempo de pesquisa tentando pensar maneiras de evitar que meninas engravidem! Porque esse é mesmo um problema grave, tanto aqui quanto na Inglaterra, e ela faz um trabalho muito sério a respeito. Mas a verdade é que, quando você tem jovens entediados, sem nada para fazer em suas vidas, uma das coisas que eles fazem é isso mesmo. Eu tenho duas filhas que têm muitos outros interesses na vida - e nenhum deles é engravidar. Elas estiveram envolvidas com o aprendizado, e o aprendizado tem importância para elas. Não cabe à escola resolver os problemas sociais, de forma alguma. Mas, se a escola for bem-sucedida em seu papel específico, alguns desses problemas podem diminuir.

Quando eu era um jovem sociólogo radical, costumávamos assumir aquele slogan: "o pessoal é político". E, então, tudo era político, tudo que você fazia era político. Mas cheguei à conclusão de que esse slogan não ajuda. É claro que ele não é totalmente falso: quando se pensa nas relações professor-aluno, são relações políticas. Então, você começa a construir uma espécie de situação de conflito entre o aluno destituído de poder e o professor poderoso, e você começa a estimular os alunos a resistirem, e os sindicatos também resistem... No fim, o slogan não ajuda a entender o contexto. Mas é terrivelmente atraente para teóricos radicais do currículo. São boas intenções, mas, na verdade, não ajudam nada. Essa foi uma das coisas que aprendi quando trabalhei na África do Sul, nos anos 1990. Os alunos tiveram um papel importante na resistência ao apartheid e isso se expressava nas escolas pela recusa em aprender o africâner, por exemplo. Mas, depois de 1995, o próprio Nelson Mandela dizia aos alunos: "Vocês já não são lutadores políticos. Vocês precisam aprender".

Bibliografia do entrevistado

  • MOREIRA, Antônio F. B.; SILVA, Tomaz T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: MOREIRA, Antônio F. B.; SILVA, Tomaz T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade São Paulo, SP: Cortez, 2002. p. 7-37.
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  • YOUNG, Michael F. D.; MULLER, Johan. On the powers of powerful knowledge. Review of Education, London, v. 1, n. 3, p. 229-250, oct. 2013.
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    Agradecemos a Leda Bec pela tradução do texto do inglês para o português.
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    - O currículo coleção, para Bernstein, é aquele que mantém fronteiras bem claras entre as disciplinas, que se mantêm distanciadas; no currículo integrado, as fronteiras entre as disciplinas são enfraquecidas, com tendência à aproximação entre elas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
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