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Notas psicanalíticas: os discursos contemporâneos acerca da avaliação educacional no BrasilI I- Este trabalho recebe apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP/ Processo Número: 13/02840-6).

Resumos

A partir da indagação conceitual própria da psicanálise no campo da educação, este trabalho reflete a respeito da outra cena da política de avaliação educacional no Brasil. Tendo como referência estudos de Freud, Lacan e psicanalistas contemporâneos, o artigo busca discutir o desejo que sustenta o imaginário social desse discurso hegemônico a respeito da avaliação e que determina as práticas discursivas pedagógicas contemporâneas. Para esta reflexão, parte-se da constatação de que as práticas discursivas articuladas em torno da avaliação externa da educação básica e da gestão do sistema público de ensino por resultados e incentivos geram os piores efeitos sobre o ato educativo, sobre o professor, sobre a criança e a própria gestão educacional. Tais práticas reinscrevem a educação a partir do discurso do capital, cuja marca é a produção em massa de capital humano de excelência, e do discurso científico-universitário de análise da política educacional, no qual o sujeito passa a ser identificado e rotulado de acordo com os resultados e padrões normativos. Esse cenário, característico das sociedades globalizadas, demanda novas análises, bem como pesquisas para ampliar o quadro teórico a respeito do estatuto do sujeito do desejo, do ato educativo e das possíveis posições que a criança assume junto à demanda do adulto no contexto de políticas educacionais que vinculam avaliação da educação e mecanismos de incentivos por resultados. Como conclusão, pontuamos que a vinculação entre avaliação e incentivo tem tornado a educação um acontecimento ainda mais difícil, pois reforça os efeitos do discurso pedagógico hegemônico e reduz as condições de a educação acontecer para grande parcela da população do nosso país.

Psicanálise; Educação; Avaliação Educacional; Subjetividade


Based on the conceptual inquiry characteristic of psychoanalysis in education, this work reflects on the other scene of the educational assessment policy in Brazil. Having as reference studies of Freud, Lacan and contemporary psychoanalysts, the article seeks to discuss the desire which sustains the social imaginary of such hegemonic discourse on assessment and determines contemporary educational discursive practices. For this discussion, I start from the observation that the discursive practices around the external evaluation of basic educationIII III Translator’s note: In Brasil, basic education comprises early childhood, primary and secondary education. and of the management of the public school system by results and incentives generate the worst possible effects on the educational act, on the teacher, on the child, and on the educational management itself. Such practices establish education based on the discourse of capital, whose mark is the mass production of excellent human capital, and the university scientific discourse of analysis of educational policies, in which the subject is identified and labeled according to results and normative standards. This scenario, which is characteristic of globalized societies, demands further analysis and research to expand the theoretical framework about the status of the subject of desire, the educational act and the possible positions that children take in the face of the demand of adults in the context of education policies which link educational assessment and incentive mechanisms for results. In conclusion, I stress that the linkage between assessment and incentives has made education an even tougher event, since it reinforces the effects of the hegemonic educational discourse and reduces the conditions for education to happen for a large portion of our country’s population.

Psychoanalysis; Education; Educational assessment; Subjectivity


Enunciado do problema

A política educacional de um país envolve investimentos por parte dos Estados modernos, além de ser área estratégica relacionada com a formação social, política, econômica e cultural de uma nação. A educação representa um setor que detém grande parcela do orçamento público, sendo alvo de disputas e interesses no interior da arena política que, na atualidade, responde cada vez mais aos discursos acerca da dita qualidade, eficácia e avaliação, noções amplamente incorporadas entre os políticos e gestores de políticas públicas.

A criação de sistemas de avaliação do ensino e da educação no Brasil está prevista na legislação educacional complementar (Leis e Diretrizes de Base da Educação Nacional — LDB (1996)), de modo centralizado na União. O artigo 9º estabelece, nos incisos VI, VIII e IX, as suas responsabilidades: “assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior [...]”; e, “avaliar [...] os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino”. (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 dez. 1996.)

Em relação à educação básica, foi a partir de 1990 que o governo federal passou a organizar o sistema nacional de avaliação. Como exemplos, têm-se o SAEB (Sistema Nacional da Educação Básica) - Portaria Nº 1.795/1994 – e o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) - Portaria Nº 438/1998. Em 2005, o SAEB foi revisto e dividido em duas avaliações, a ANEB (Avaliação Nacional da Educação Básica), com foco na gestão das redes de ensino das unidades federadas, e a ANRESC (Avaliação Nacional de Rendimento Escolar), conhecida como Prova Brasil, de base censitária e foco nas unidades escolares urbanas.

Sabe-se que a avaliação pode assumir diversos focos e sentidos, como aprendizagem, formação, desempenho dos alunos, professores, currículo, planos, projetos, programas e políticas. Assim, torna-se importante diferenciar a avaliação de aprendizagem (autoavaliação) ou aquela voltada à formação do aluno, que é realizada na escola pelo professor em sala de aula, da avaliação externa, feita pelos órgãos do Estado por meio de sistemas de avaliação em massa das redes de ensino público. A avaliação do aprendizado escolar pode ser considerada como uma oportunidade quando é colocada nas mãos de profissionais implicados com o ato educativo, impulsionando-os para formas diferentes e inventivas de lidar com a criação de laços sociais entre o professor e o aluno e com a transmissão escolar de algo reconhecido socialmente.

A avaliação, como âmago das práticas sociais escolares, como atividade meio do processo escolar, e não fim, como ação implicada com o ato educativo, permite ao aluno e ao professor conhecerem exatamente quais são as dificuldades e um caminho de atravessá-las, no limite das possibilidades reais da educação. Já a avaliação objetivada por meio dos sistemas de avaliação sobre o produto do ensino nacional, regional e local caracteriza-se, segundo Souza (2009SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian. Avaliação e gestão da educação básica no Brasil: da competição aos incentivos. In: DOURADO, Luiz Fernandes. Políticas e gestão da educação no Brasil: novos marcos regulatórios? São Paulo: Xamã, 2009., p. 33-34), por sua:

[...] ênfase nos produtos e resultados; atribuição do mérito a alunos, instituições ou redes de ensino; dados de desempenho escalonados, resultando em classificação; dados predominantemente quantitativos; destaque da avaliação externa, não articulada à autoavaliação.

Além disso, esse tipo de avaliação promove a exposição de ranqueamentos na mídia e meios de comunicação, tendo como característica a inscrição na lógica pragmática e gerencial da gestão educacional por parte do Estado.

A ideia central desse modelo de gestão educacional assenta-se, por um lado, na crença gerencial contemporânea de que tais sistemas são mecanismos capazes de induzir a melhoria na qualidade do ensino, e, por outro, no princípio de que a avaliação gera competição entre as redes de ensino, as escolas, os alunos etc. Nessa perspectiva, entende-se que a competição promove melhores desempenhos dos alunos e dos resultados escolares. Em tese, tal procedimento envolve toda a hierarquia administrativa do sistema de ensino, passível de maior controle, regulação e responsabilização de suas instituições e seus resultados, gerando um espaço de pressões competitivas no sistema educacional. Nesse contexto, os critérios de sucesso e fracasso de uma dada política passaram a ser definidos por metas e parâmetros de análise, monitoramento e avaliação externa do produto: os denominados outputs dos sistemas de ensino.

No Brasil, há menos de vinte anos, os governos federais vêm implantando tais sistemas, em uma conjuntura político-econômica caracterizada pela presença de crise do capital, competitividade global, reforma do Estado, desconcentração, descentralização e municipalização das atividades de ensino, centralização dos recursos e das decisões, aumento dos mecanismos de controle, regulação e responsabilização. Trata-se de um retrato da mudança estrutural do Estado e da própria educação.

Na lógica da competitividade global, do aumento da demanda educacional e da produção de capital humano de alta qualificação, a exposição de um país ou das escolas à opinião pública (nacional e internacional), por intermédio de um ranking de indicadores de qualidade de ensino, tem simbolizado, de modo quase hegemônico, a performance da política educacional de um referido território, país, estado, município ou escola (CARNOY, 2004CARNOY, Martin; LOEB, Susana. A responsabilidade externa tem efeito nos indicadores educacionais dos alunos? Uma análise entre os estados dos EUA. Santiago do Chile: Preal, abr. 2004.; FREITAS, 2007FREITAS, Dirce Nei Teixeira de. A avaliação da educação no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.; MALET, 2010MALET, Régis. École, médiations et réformes curriculaires: perspectives internationales. Bruxelles-Montréal: Boeck-Universités, 2010.; SOUZA, 2009SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian. Avaliação e gestão da educação básica no Brasil: da competição aos incentivos. In: DOURADO, Luiz Fernandes. Políticas e gestão da educação no Brasil: novos marcos regulatórios? São Paulo: Xamã, 2009.; SOUZA; OLIVEIRA, 2007SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian; OLIVEIRA, Raíssa de. Sistemas de avaliação educacional no Brasil: características, tendências e uso dos resultados. Relatório de pesquisa Fapesp, jul. 2007.). Tal ênfase tem alterado o relacionamento entre o Estado e os profissionais da educação, que deixa de ser aquele calcado no mandato e na responsabilidade das autoridades educativas, para se estabelecer a partir do contrato de gestão e da accountability 1 1 - O termo accountability está sendo empregado enquanto processo de responsabilização, de acordo com sua emergência na literatura internacional de análise de políticas públicas. , da avaliação de desempenho e da eficácia das escolas.

Os estudos existentes no país enfatizam que a simples implantação dos sistemas de avaliação não tem contribuído para alterar o quadro de rendimento dos alunos. Ao contrário, no campo de avaliação de políticas educacionais, especialistas sustentam que não há evidências concretas do efeito-melhoria sobre a qualidade educacional. De modo consensual, os pesquisadores concordam que a forte ênfase na avaliação e nas provas externas distorce as finalidades da educação, pressionando as escolas ao estreitamento dos currículos em consequência de sua adaptação às exigências do sistema de monitoramento e avaliação (FRANCO; ALVES; BONAMINO, 2007FRANCO, Creso; ALVES, Fátima; BONAMINO, Alicia. Qualidade do ensino fundamental: políticas, suas possibilidades, seus limites. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 989-1014, out. 2007.; SOUZA, 2009SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian. Avaliação e gestão da educação básica no Brasil: da competição aos incentivos. In: DOURADO, Luiz Fernandes. Políticas e gestão da educação no Brasil: novos marcos regulatórios? São Paulo: Xamã, 2009.; SOUZA; OLIVEIRA, 2007SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian; OLIVEIRA, Raíssa de. Sistemas de avaliação educacional no Brasil: características, tendências e uso dos resultados. Relatório de pesquisa Fapesp, jul. 2007.). Os pesquisadores concluem que esses sistemas de avaliação têm servido tão somente para informar os gestores educacionais e ratificar os dados sobre “o baixo rendimento do aluno, considerando-se as expectativas definidas para o desempenho esperado no decorrer da trajetória escolar” (SOUZA; OLIVEIRA, 2007SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian; OLIVEIRA, Raíssa de. Sistemas de avaliação educacional no Brasil: características, tendências e uso dos resultados. Relatório de pesquisa Fapesp, jul. 2007., p. 39).

Fletcher (1995)FLETCHER, Philip. Propósitos da avaliação educacional: uma análise das alternativas. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, n. 11, p. 93-112, jan./jun. 1995., em estudo a respeito da produção em torno da avaliação escolar, observou que a lógica da produção da avaliação pressupõe a escolha de tipos de sanções políticas, econômicas e regulamentares, que são utilizadas como incentivos ou punições. No entanto, como alerta o pesquisador, tais mecanismos acabam por reforçar as desigualdades sociais e as diferenças cognitivas entre os mais pobres e os mais ricos. O autor analisou o caso da reforma educacional chilena, em que a criação de um sistema competitivo de desempenho, no setor da educação, não obteve impacto na qualidade do sistema, mas, ao contrário, acirrou as desigualdades escolares (CARNOY apud RAVELA, 2003).

Brighouse (2008)BRIGHOUSE, Tim. Education without failure? Royal Society of Arts Journal, v. 154, p.36-39, 2008., ao analisar os limites e as possibilidades do atual modo de avaliação do sistema britânico, comenta que a ênfase da avaliação restrita aos indicadores educacionais de sucesso tem gerado um clima educacional em que os alunos aprendem a fracassar - learn to fail, na medida em que os resultados estão sempre aquém das metas idealizadas. Malet (2010)MALET, Régis. École, médiations et réformes curriculaires: perspectives internationales. Bruxelles-Montréal: Boeck-Universités, 2010. também critica o foco unilateral das avaliações de desempenho acadêmico em um contexto marcado por tensões existentes entre a normatividade exigida pela burocracia, enquanto prescrição do trabalho, e os interesses, concepções e experiências subjetivas dos implementadores (secretários, gestores, diretores, coordenadores, professores). O pesquisador francês entende que a avaliação burocrática resulta em conflitos e resistências no âmbito da escola.

Para o autor, os conflitos ocorrem devido às prescrições impostas aos profissionais, sendo originados da relação dos profissionais da escola com o nível central da gestão educacional. Tais confrontos retratam as disputas entre diferentes concepções e visões acerca da avaliação e o próprio sentido da educação.

O estudo de Cassassus (2007)CASASSUS, Juan. El precio de la avaluación: la pérdida de calidad y la segmentación social. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 23, n. 1, p. 71-79, jan./abr. 2007., que analisou alguns casos na América Latina, revela os piores efeitos decorrentes das ações de responsabilização do Estado, em específico, dos programas em massa que vinculam avaliação e incentivos financeiros. Resumidamente, os efeitos foram: diminuir a dignidade do docente; minar a motivação intrínseca; enrijecer os currículos e destruir vínculos entre professores e alunos.

A despeito do risco de esgarçar ainda mais o laço social educacional, o fato é que o reconhecimento do fraco poder indutor de tais sistemas de gestão tem impulsionado os governos a criarem mecanismos de incentivos e a adotarem critérios para sua aplicação, conforme os resultados e os padrões pré-estabelecidos em novas formas de contratos de gestão.

No país, até o presente momento, a vinculação entre os resultados e incentivos não se configura como elemento central das políticas educacionais. Ações semelhantes foram adotadas pelo ministério da educação do Chile, na década de 1980, e, posteriormente, no México, na década de 1990. No Brasil, tais propostas são recentes, como podemos observar nos casos do estado de São Paulo, com a criação do Programa Qualidade na Escola e do IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo); os estados de Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo também possuem programas próprios de incentivo salarial articulado em torno dos resultados escolares e desempenho do aluno.

Tais casos retratam uma perigosa tendência da política educacional, na medida em que as redes de ensino municipais podem incorporar algo semelhante ao já operacional IDEB, como parâmetro para as metas, expandindo tais programas de bonificação salarial por desempenho educacional e avaliação da educação básica para os demais estados e municípios. Esses programas baseiam-se na ilusão de que tais mecanismos de incentivo e sansões por metas alcançadas podem ajudar a lidar com o dito baixo desempenho das políticas educacionais.

Em síntese, é importante pensar como podemos compreender esse estado paradoxal e contraditório que se expressa, por um lado, com as ações dos governos investindo tempo e aplicando recursos, tão escassos, nos sistemas de avaliação em massa, e, por outro, com as evidências de estudos que têm alertado para os baixos impactos efetivos na melhoria da qualidade do ensino e os altos riscos que tais modelos de gestão da educação representam para prática escolar e para o ato educativo em si.

Dito de outro modo, como é que um mau negócio, tanto para a nação quanto para a própria criança, vem ganhando hegemonia no interior da burocracia educacional do Estado? Será que os educadores e os gestores educacionais querem mesmo aquilo que eles desejam? Ou seja, fantasiar um ideal de rendimento, um ideal de aluno, um ideal de criança, em detrimento das reais condições para que a educação aconteça, não torna o ato educativo um acontecimento ainda mais difícil? Os efeitos da política de padronização e uniformização do produto escolar são incompatíveis com o enunciado: direito de educação para todos.

Ao que parece, o imaginário social dominado pela moral político-pedagógica atual, fundado sob os auspícios da classificação e da competitividade, nada quer saber sobre tais dispositivos que, inevitavelmente, produzem a exclusão do sujeito do desejo e o rompimento do laço social produzido na escola. Até o presente momento, ao que se pode apreender, gestores e políticos envolvidos com a educação nada querem saber acerca dos efeitos negativos que produz a atual política de avaliação escolar, tais como a radicalização do abismo psicossocial existente na educação brasileira, o aumento da intolerância com relação às diferenças e o empobrecimento dos conteúdos escolares e da vida cotidiana das crianças. São os alunos, em última instância, que acabam pagando com o próprio desejo a causa obsessiva da educação.

Na perspectiva psicanalítica, sabe-se que tal engodo imaginário possui sua origem em um desconhecimento sistemático de questões que afetam o âmago da empresa educacional, tais como o infantil sexual2 2 - O infantil sexual, marca da atemporalidade do inconsciente, revela as vicissitudes do desejo em jogo em todo ato de educar alguém, uma criança, um adulto, um adolescente. Entretanto, o educador desconhece o desejo impossível de sua tarefa, isto é, o impossível de fabricar uma criança como imagem e semelhança daquela que ele foi um dia, o ideal de criança (inconsciente) que o adulto possui. e a dimensão inconsciente do desejo. Disso resulta que toda e qualquer prática pedagógica que parte de uma noção idealizada e naturalizada do desenvolvimento do aluno desconhece a realidade do desejo e a impossibilidade de os resultados serem totalmente satisfatórios. Em outras palavras, trata-se de um desejo em prol de um ideal representado pelo objeto semblante do alto rendimento educacional, mas que está a serviço de um desejo de morte, fadado a conduzir a um estado pior de coisas.

Psicanálise e educação: um discurso analítico no campo da educação

No alvorecer do século XX, a psicanálise foi instaurada no campo discursivo das ciências naturais e humanas pelo médico austríaco Sigmund Freud. Desde então, uma nova hermenêutica dos processos subjetivos convocou os demais discursos a respeito do humano em suas condições a se defrontarem com o inconsciente como determinação da ação, conforme demonstrou Foucault em Nietzsche, Freud e Marx (1987). Ao investigar os processos inconscientes constitutivos da subjetividade, em sua dimensão clínica e teórica, Freud forneceu instrumentos importantes para os pesquisadores do campo das ciências humanas em geral.

Sabe-se que houve um grande esforço de Freud para fazer da psicanálise uma ciência. Embora ele tenha fracassado em seu intento, seu legado inaugurou um novo campo discursivo que interroga o sujeito cindido (inconsciente/consciente). A psicanálise então subverte o modelo cartesiano de produção de conhecimento, deslocando a noção de sujeito da razão ou da consciência para a noção de sujeito do desejo ou do inconsciente. O sujeito epistêmico, oriundo do pensamento cartesiano, não pode ter outro lugar senão o da ciência, cujo pressuposto de produção de conhecimento encontra-se na dimensão do objeto, isto é, a verdade do sujeito. No caso, o desejo do cientista não interessa, mas sim a causa formal, a ideia ou o modelo.

De modo contrário, para a psicanálise, a dimensão do ser inclui-se na determinação inconsciente acerca do saber, retratado como a verdade do desejo, que emerge materialmente em sua singularidade simbólica por meio dos atos falhos, dos lapsos de memória, dos chistes e dos sonhos.

Sigmund Freud se pretendia um homem da ciência e, como tal, seu discurso era comprometido com as ciências experimentais. É curioso observar que, em nome de um saber científico, o psicanalista chegou à descoberta do inconsciente, apontando a diferença radical quanto ao seu objeto de estudo, o qual determinou sua teoria sobre a divisão do sujeito – Spaltung –, ou como em Lacan, a “divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade” (LACAN, 1998LACAN, Jacques. A ciência e a Verdade (1966). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 870). Ao escutar o sofrimento do outro, Freud captou a verdade (lógica) do desejo inconsciente dos pacientes, de tal forma que a moral científica e médica não a aceitaram na época. Será o psicanalista francês Jacques Lacan quem, mais tarde, destacará a força da descoberta da psicanálise. Em 1966, no texto “A ciência e a verdade” (1998LACAN, Jacques. A ciência e a Verdade (1966). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892., p. 877), Lacan afirma:

A oposição das ciências exatas às ciências conjecturais não pode mais sustentar-se, a partir do momento em que a conjectura é passível de um cálculo exato (probabilidade) e em que a exatidão baseia-a apenas num formalismo que separa axiomas e leis de agrupamento de símbolos. [...] pela posição da psicanálise, dentro ou fora da ciência, indicamos também que essa questão não pode ser resolvida sem que, sem dúvida, modifique-se nela a questão do objeto da ciência como tal.

Lacan faz menção ao conceito de objeto a, que funda toda dialética do desejo e do sujeito. É relevante mencionar que o retorno a Freud, realizado por Lacan, possibilitou releituras importantes para o avanço da psicanalise. O denominado objet petit a (objeto pequeno a) é um termo inventado por Lacan para enfatizar a determinação inconsciente do objeto, marca radical da diferença em relação à noção de objeto da ciência, e designar o “objeto desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de não ser representável, ou de se tornar um ‘resto’ não simbolizável” (ROUDINESCO; PLON, 1988ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998., p. 551). Embora o conceito tenha sofrido modificações e novas articulações, a noção de objeto pequeno a indica o objeto causa do desejo, e não o objeto do desejo em si, pois o desejo sexual não tem objeto3 3 - Para a psicanálise, a dimensão inconsciente do desejo está fundamentalmente relacionada à causa sexual, que remete ao objeto primordial perdido, o qual está para o funcionamento psíquico enquanto estrutura que mantém economicamente a dinâmica libidinal da causa do desejo. . Assim, o pequeno a é uma espécie de matriz inconsciente que produz os objetos nos quais o desejo se alienará. É importante considerar que, nessa leitura psicanalítica, o sujeito não é causa de si, já que está alienado à função significante do Outro. Nessa operação primordial, o objeto a pode ser entendido como um corte no grande Outro4 4 - No percurso de Lacan, a noção de “o grande Outro”, designado pela letra a maiúscula [A], assume diferentes significados ao longo de seu ensino. O Outro pode surgir como demanda, como desejo (objeto a), como gozo e, conforme sua formalização no campo linguístico, o Outro representa a estrutura de linguagem. Em suma, como ordem simbólica que antecede o próprio ser. , como parte que se destaca e recorta para o sujeito a falta no Outro, isto é, como marca da impossibilidade do sujeito de restituir a completude do objeto perdido e do encontro do sujeito com o desejo do Outro. Por ser a marca da falta, o objeto a precipita a emergência do sujeito, enquanto uma diferença irredutível, marcado desde então pelo desejo de saber sobre esse impossível objeto não simbolizável.

Conforme Lacan, a causação do sujeito decorre dessas duas operações psíquicas, a alienação e a separação, referidas na relação do sujeito com o grande Outro. Assim, ao mesmo tempo em que cifra o impossível do desejo, o pequeno a precipita a operação de cissura e separação em relação ao grande Outro, na medida em que carece de sentido e completude. Ao propor o ternário real, simbólico e imaginário (RSI) – enquanto registros psíquicos nos quais se desenvolve toda experiência humana, Lacan articula a tópica simbólica ao grande Outro, como as regras de linguagem que submetem os seres falantes, isto é, como lugar do significante e da função paterna.

O registro psíquico imaginário se definiu como o lugar do eu (moi), retratado como lugar das ilusões do eu5 5 - Lacan diferenciou Moi, o “eu imaginário” das identificações egóicas, e Je, o sujeito do inconsciente e do desejo. Assim, Moi coincide com o sujeito do enunciado, isto é, como ideal imaginado à alienação do Outro simbólico, que se opõe ao sujeito da enunciação Je, sujeito do inconsciente. Será justamente a emergência do sujeito do inconsciente que produz o não--sentido, que carece de significação, ao mesmo tempo em que fixa o desejo ao discurso, no interior das leis da linguagem humana. , da alienação, do engodo, da captação especular e fusão com o corpo da mãe. Já o real foi inscrito por sua negatividade, ou seja, como um resto impossível de simbolizar, marca do estatuto real do objeto a.

Pode-se dizer que o eu imaginário investe o Outro enquanto uma ilusão de retorno à completude perdida e imposta pelo significante e pela função paterna, mas, por ser impossível, tal retorno emerge o real do objeto a, que opera como garantia de algum prazer e impulsiona à causação do sujeito. À sombra desse lugar perdido surge o pequeno a, causa do desejo e do sujeito, marca da presença e da ausência do Outro. Tal experiência fundamenta os famosos aforismos de Lacan, “o desejo do homem é o desejo do Outro” (LACAN, 2005LACAN, Jacques. O seminário: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Livro 10., p. 33), e a noção do “inconsciente estruturado como linguagem” (LACAN, 1985LACAN, Jacques. O seminário: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Livro 11., p. 27), formulada a partir dos estudos linguísticos da época. Dessa forma, o retorno empreendido por Lacan reitera o inconsciente freudiano como a outra cena, ou lugar terceiro que escapa à consciência, isto é, o sujeito do desejo marcado pelo impossível da linguagem.

Após essa breve e necessária digressão, pode-se dizer que o cientificismo de Freud, enquanto um legado simbólico de sua época, levou-o a trilhar o caminho de sua descoberta, ou seja, a de que a representação do ser humano como racional, dono de si mesmo, dos seus pensamentos e ações, não passava de um obstáculo, uma resistência em relação ao saber inconsciente e, por conseguinte, um impasse a toda divisão constitutiva do psiquismo, no qual se fundamenta a noção de sujeito e de subjetividade para a psicanálise.

Em outras palavras, a hipótese do inconsciente constitui uma forma de lidar com aquilo que afeta o discurso científico, justamente naquilo que lhe escapa, tal como o efeito real e simbólico do inconsciente, que causa furo no conhecimento, a falha como sintoma do saber do outro. Desse modo, a verdade e o saber surgem em lugares opostos. A verdade enquanto um poder imaginário e ilusório, tal como encarnado na figura do cientista, do político, do educador, do médico, do pregador, do xamã, constitui um correlato da ilusão de viver em um mundo fechado por totalidades significantes e causas eficientes. A estrutura de verdade6 6 - Na perspectiva lacaniana, a verdade possui uma estrutura equivalente à ficção e ao mito. Confira: O seminário 18: de um discurso que não fosse semblante (LACAN, 2009); O mito individual do neurótico (LACAN, 2008). domina e exclui qualquer falta, falha ou conflito que possa advir na relação do sujeito com o conhecimento, com seus objetos de saber.

É relevante notar que, para Lacan, o sujeito do inconsciente vem afirmar que o sujeito cartesiano está ali, “no âmago da diferença” toda, que implica o outro, ou seja, o avesso da psicanálise. Tal diferença pode ser retratada pelo estatuto que assumiu o discurso do mestre, enquanto conhecimento científico, bem como pela verdade produzida pelo discurso universitário e o seu avesso, o saber inconsciente, um saber que não se sabe, irredutível e inefável, denominado por Lacan (1992)LACAN, Jacques. O seminário: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. Livro 17., no seminário 17, como discurso psicanalítico.

Para a psicanálise, existe uma diferença radical entre o saber e o conhecimento. Lacan apresenta o saber como uma operação resultante do sujeito do inconsciente, enquanto o conhecimento é tratado por sua origem racional e instrumental, como a informação e a tecnologia produzidas e acumuladas por meio da ciência. Já o saber, que é da ordem de um saber que não se sabe, trata da experiência do sujeito do desejo com o saber inconsciente. Esse saber é também meio de gozo e, por isso mesmo, um saber inconsciente sobre a perda de gozo (objeto a), condição do laço social produzido pelo desejo de saber sobre a vida e a morte, sobre o falta-a-ser do sujeito, sobre a realidade e a dimensão impossível do desejo.

O desenvolvimento da psicanálise tem demonstrado que todo processo de socialização implica o processo particular de constituição pulsional do indivíduo. Freud, em 1913, escreveu:

[...] a psicanálise estabeleceu uma estreita conexão entre as realizações psíquicas de indivíduos, por um lado, e de sociedades, por outro, postulando uma mesma e única fonte dinâmica para ambas. (FREUD, 1996FREUD, Sigmund. O interesse científico da psicanálise (1913). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1996., p. 187)

O médico austríaco sustentou, em 1925, que a educação, assim como a política e a psicanálise, eram profissões ou práticas impossíveis (FREUD, 1996b), uma vez que a dimensão do desejo escapa a toda tentativa de normatização, controle racional e consciente do ser humano. Na leitura psicanalítica apresentada por Kupfer (2001KUPFER, Maria Cristina. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2001., 2005KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 2005.), Lajonquière (1993LAJONQUIÈRE, Leandro de. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Petrópolis: Vozes, 1993., 1997LAJONQUIÈRE, Leandro de. Dos “erros” e em especial daquele de renunciar à educação: notas sobre psicanálise e educação. Estilos da Clínica. v. 2, n. 2, p. 27-43, 1997. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/estic/article/viewFile/60716/63765>. Acesso em: 10 jan. 2014.
http://www.revistas.usp.br/estic/article...
, 1998LAJONQUIÈRE, Leandro de. A psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação. n. 8, maio/jul, 1998., 2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010.) e Cohen (2006COHEN, Ruth Helena Pinto. A lógica do fracasso escolar: psicanálise e educação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006. 192 p., 2009COHEN, Ruth Helena Pinto (Org.). Psicanalistas e educadores: tecendo laços. Rio de Janeiro: Wak, 2009.), a educação, conforme designou Freud, situa-se como uma das profissões impossíveis na medida em que a dimensão inconsciente, que torna os atos humanos singulares, não permite nenhuma previsibilidade e padronização de resultados. Sempre há um resto, marca da impossibilidade de a demanda ser respondida de modo pleno.

Goldenberg (2010, p. 8) esclarece que “é menos o ‘ser’ que o ‘fazer’ que chama a atenção do dito espirituoso de Freud, quando da escolha de três verbos, em vez de três substantivos (governar, educar e curar)”, demonstrando seu interesse por tais práticas. Com relação aos ofícios impossíveis, o autor comenta:

E o adjetivo “impossível” com que qualifica o trabalho dos políticos (mas também dos professores, médicos e o próprio, do psicanalista) não vem aí anunciar-lhes a impotência. Ao contrário, em que pese o contra-senso, “impossível” indica as condições de possibilidade dessas tarefas. Eis a diferença entre se dispor a alcançar um ponto preciso ou aproximar-se dele de modo assintótico, sem esperar chegar, mas também sem perdê-lo de vista (GOLDENBERG, 2006GOLDENBERG, Ricardo. Política e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006., p. 8).

Assim, ao tratar a educação como uma prática impossível, fadada ao fracasso, não se quer destituí-la de seus anseios legítimos de socialização, humanização, formação e subjetivação, dos quais depende a sociedade de seres falantes, mas lembrar que a impossibilidade faz parte de todo ato educativo, na medida em que seus “resultados serão sempre insatisfatórios” (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 26).

Para a psicanálise, o que torna impossíveis tais práticas sociais, sublinhadas por Freud, são as dimensões do desejo inconsciente e da linguagem, as quais são responsáveis pelos laços sociais. Nessa perspectiva, considerar a presença do sujeito do inconsciente no ato educativo, como dimensão impossível da educação, implica ao menos uma relação de compromisso, no intuito de simbolizar o educável (as exigências da civilização) e o ineducável pulsional (a repetição do gozo), como forma de abordar sua dimensão real, permitindo novas formas de sublimação do real da pulsão. Ressalte-se que a sublimação é compreendida aqui enquanto um processo psíquico responsável por desviar a pulsão de seu destino puramente sexual, sublimando-a em satisfação obtida por meio dos objetos culturais. Como enfatiza Lajonquière (2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010., p.62-63):

[...] educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem à criança conquistar para si um lugar numa história, mais ou menos familiar, e, dessa forma, poder se lançar às empresas do desejo.

Assim, temos a educação enquanto um laço social moderno que introduz a criança no mundo da cultura. Nesse processo de constituição do sujeito, a psicanálise nos possibilita pensar uma educação preparada para a realidade impossível do desejo, um referencial que concebe “a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, coloca em relevo o seu estofo de laço social” (LAJONQUIÈRE, 2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010., p. 78).

Em momentos diferentes de seu percurso, Freud (1913, 1914) destacou a importância da psicanálise para a educação, postulando a relevância da sexualidade infantil e dos processos psíquicos inconscientes, como a sublimação, a transferência e a identificação, os quais estão envolvidos na subjetivação e na transmissão do conhecimento. Também alertou para a necessidade de se pensar uma educação psicanaliticamente esclarecida, que incluísse os conflitos pulsionais na agenda educacional (FREUD, 1996FREUD, Sigmund. O interesse científico da psicanálise (1913). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1996.; 1996aFREUD, Sigmund. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar (1914). In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1996a.), destacando-se, fundamentalmente, a função estruturante da subjetividade pela educação, por meio de renúncia pulsional que incide sobre a constituição do sujeito como via possível para as pulsões humanas, como possibilidade de laço social. Em suma, como possibilidade de se inscrever o pulsional enquanto processo de sublimação.

Freud partia da concepção de que o funcionamento psíquico visava a um único objetivo, a busca de satisfação, diminuindo o desprazer ou tensões internas (princípio de prazer-desprazer). Ao mesmo tempo em que afirmava o imperativo do princípio de prazer, dizia que tal objetivo era impossível e estava fadado ao fracasso, devido ao antagonismo e à contradição existentes entre os impulsos inconscientes e as restrições culturais. Nesse aspecto, referia-se ao mal-estar como condição estrutural para a economia libidinal do psiquismo.

Crítico à moral religiosa que dominava a educação de sua época, Freud questionou o sofrimento oriundo de algumas práticas que se demonstravam impróprias e impossíveis. Em “O Interesse Científico da Psicanálise” (1996), publicado originalmente em 1913, ele afirmou:

A psicanálise tem frequentes oportunidades de observar o papel desempenhado pela severidade inoportuna e sem discernimento da educação na produção de neuroses, ou o preço, em perda de eficiência e capacidade de prazer, que tem de ser pago pela normalidade na qual o educador insiste. E a psicanálise pode também demonstrar que preciosas contribuições para a formação do caráter são realizadas por esses impulsos associais e perversos na criança, se não forem submetidos à repressão, e sim desviados de seus objetivos originais para outros mais valiosos, através do processo conhecido como sublimação. Nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições. A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras (FREUD, 1996FREUD, Sigmund. O interesse científico da psicanálise (1913). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1996., p. 191).

Já em “Mal-estar na civilização”, publicado originalmente em 1930, em uma nota de fim de página, Freud (1996cFREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, 1996c, p. 67-151., p. 137) comenta sua visão a respeito da educação: “[...] a educação se conduz como se enviasse a uma expedição polar pessoas vestidas com roupa de verão e equipadas com os mapas dos lagos italianos”. Ele constata que a educação “oculta o papel que a sexualidade desempenhará em suas vidas”, isto é, nada quer saber sobre o desejo em causa na mesma. A noção de educação, que se engendra a partir do pensamento psicanalítico, portanto, pode ser enunciada como educação para a realidade impossível do desejo. Tal abordagem difere radicalmente da noção pedagógica de ensino, entendida como um conjunto de saberes positivos sobre a suposta adequação natural entre meios e fins da educação.

Assim, a psicanálise ressalta o sentido simbólico da educação – enquanto experiência constitutiva e subjetivante –, que vai além das finalidades sociais (conformação social), políticas e econômicas. A finalidade econômica e social da educação é real, mas a educação também é determinismo de formação e de subjetivação. Nessa perspectiva, a educação revela ser estrutura simbólica, lócus de produção da palavra, ou seja, sua característica consiste em gerar marcas simbólicas capazes de enlaçar o sujeito do desejo num curso singular de uma história, “mais ou menos familiar, e, dessa forma, poder se lançar às empresas do desejo” (LAJONQUIÈRE, 2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010., p.63), revelando ser o desejo o próprio estofo do laço social produzido pela educação.

No que tange à diferença entre educação e ensino, também se acentua a diferença intrínseca entre aprender e educar alguém. Pode-se dizer, conforme Hannah Arendt (2011ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 221-247., p. 247), que:

[...] não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia, [...] é muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado.

Arendt nos lembra de que a educação não se reduz ao discurso pragmático objetivado por meio de conhecimentos especializados, os quais reduzem o ato educativo ao controle metodológico da aprendizagem. A partir da constituição do sujeito do desejo, a psicanálise fornece-nos a possibilidade de pensarmos a dimensão estrutural da educação como a própria função do desejo, resultantes do encontro impossível dos mais novos com os mais velhos, das crianças com os adultos. Como lembra Lajonquière (2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010., p. 63):

A sujeição de uma criança ao desejo não constitui uma nova meta educativa. É o próprio estofo da educação e, portanto, não cabe falar na singularidade de uma pedagogia psicanalítica em sentido estrito.

Essa questão é fundamental, pois demarca outra incursão da psicanálise no campo da educação, não nos moldes das linhas de trabalho já conhecidas no interior da conexão psicanálise-educação, tais como a psicanálise aplicada à educação, a psicanálise de crianças, ou mesmo a pedagogia psicanalítica, mas, como uma prática interessada em debater e analisar as condições de possibilidade da educação, enquanto efeito de uma filiação simbólica.

Trata-se, portanto, de um campo discursivo que interroga certas tendências no âmbito da empresa educacional, as quais se revelam, à luz da psicanálise, ilusões, sintomas, resistências, inibições, obsessões; e, fundamentalmente, como uma prática que visa a subverter os discursos educacionais hegemônicos de acordo com a lógica da inscrição do sujeito do desejo. Assim, a psicanálise alerta para certas tendências ditas naturais, como as ilusões tecnocientificistas ou as ilusões (psico)pedagógicas (LAJONQUIÈRE, 2009LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e ilusão (Psico)Pedagógica: escritos de psicanálise e educação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). Isso que, à luz da psicanálise, surge como ilusão e como desconhecimento sistemático a respeito da dimensão impossível do desejo posta em jogo em todo ato educativo.

A outra cena dos discursos de avaliação da educação básica

O desconhecimento sistemático da impossibilidade de satisfazer as atuais exigências da avaliação por metas e resultados, por mais que venham acompanhadas das boas intenções, revela a neurose pedagógica que prevalece no campo educacional – efeito do recalcamento psíquico7 7 - Recalque é uma operação psíquica, conforme Freud propôs à teorização do aparelho psíquico, que procura manter inconscientes certas representações que ameaçariam provocar desprazer ao sujeito. O recalque atua sobre pensamentos, ideias, fantasias, lembranças etc. que não se ajustam à imagem ideal que o sujeito possui do mundo e de si mesmo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p.430). A dimensão imaginária domina qualquer tentativa de furar a perfeição da imagem ideal que a sustenta, retirando de cena a dimensão simbólica e real do desejo, que marca de diferenças a experiência e aventura humanas. de um saber ou de um desejo. Esse recalque alimenta a ilusão pedagógica moderna, bem como reforça o mal-estar pedagógico, anunciado pelos educadores e pelos discursos a respeito da ineficácia pedagógica ou insucesso das políticas públicas de educação básica.

A aproximação da psicanálise ao campo da educação permite questionar a outra cena dos discursos avaliativos, isto é, o desejo inconsciente de melhorar a qualidade da educação e do ensino, que alimenta a crença dos gestores em relação à avaliação e às metas de gestão. Tal ilusão se sustenta no desejo de ser avaliado na mesma medida, de ser comparado em tudo ao outro, com a mesma régua ou modelo, tal como os organismos multilaterais e o mercado avaliam os sistemas de ensino do mundo globalizado. Entretanto, no centro dessa demanda narcísica de reconhecimento, de idealização, que clama por ser mais um-igual, opera-se no inconsciente uma violenta rejeição à diferença, e, portanto, ao desejo de saber, marca da demanda educacional. Nesse sentido, a busca do mesmo, do idêntico, do igual ao outro, isto é, o desejo de não desejar nada diferente do idealizado acaba se revelando como uma fantasia narcísica impulsionada pelo desejo de morte e, como tal, só pode conduzir ao pior, como nos lembra o mito de Narciso.

Tal abordagem possibilita-nos interrogar as ilusões pedagógicas, na medida em que fornece uma ferramenta passível de articular a demanda direcionada às metas de desempenho com o discurso pedagógico hegemônico: a potência imaginária do discurso pedagógico e político recalca o fato de que a empresa educativa “encontra-se hoje norteada por metas radicalmente impossíveis que o próprio discurso (psico)pedagógico formula para si mesmo” (LAJONQUIÈRE, 1998LAJONQUIÈRE, Leandro de. A psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação. n. 8, maio/jul, 1998., p. 93). Portanto, deve-se perguntar sobre “o desconhecimento que os pedagogos professam do caráter radicalmente impossível das metas autopropostas” (LAJONQUIÈRE, 1998LAJONQUIÈRE, Leandro de. A psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação. n. 8, maio/jul, 1998., p. 93).

Assim, o discurso da avaliação surge como um engodo, justamente por ser uma ilusão de controle a respeito do saber impossível da educação, isto é, sobre a demanda escolar e o desejo de saber do aluno. Como fonte de ilusão, a avaliação se coloca como única realidade à pergunta constitutiva do sujeito: o que quer o outro de mim? Na medida em que a avaliação acredita fornecer no real essa resposta, enquanto realidade de ensino e de aprendizagem, suprime-se a falta estrutural implícita na demanda educacional – falta que possibilita a precipitação do objeto causa do desejo –, como causa do saber do sujeito, como (dis)curso do desejo do Outro.

Na realidade, trata-se de uma ilusão destinada ao fracasso, na medida em que a diferença e o desejo – que retratam o sujeito inscrito simbolicamente por meio da educação, como subjetividade singular – deixam de operar em detrimento do ideal dominante na política pedagógica dos resultados. Tal disposição ocasiona, por sua vez, no âmbito das relações e das práticas do cotidiano escolar, a impossibilidade de os laços sociais corresponderem aos efeitos de filiação simbólica que se espera, minimamente, no ato educativo, enquanto condições que envolvem a socialização, humanização, singularização-subjetivação dos mais novos.

O engodo imaginário fica protegido pela neurose educacional, caracterizando-se por um desconhecimento das questões que afetam o âmago da empresa educacional, tais como a impossibilidade de adequar as práticas pedagógicas a partir de uma noção idealizada e naturalizada de desenvolvimento do aluno. Nesse caso, como já destacado por Lajonquière (1998LAJONQUIÈRE, Leandro de. A psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação. n. 8, maio/jul, 1998.; 2009LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e ilusão (Psico)Pedagógica: escritos de psicanálise e educação. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.; 2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010.), com relação ao desejo latente nas ilusões psicopedagógicas, tal desejo retrata um desejo de não desejar, que nega a possibilidade ao sujeito de reconhecer a sua própria história como diferença. Tal condição só faz promover a lógica especular da avaliação e reforçar o terror pedagógico dentro das escolas, ou pior, a desistência do adulto do ato educativo.

De outro modo, o desejo que subjaz às avaliações é de cunho narcísico, isto é, sua inscrição imaginária impulsiona a fantasia de não ser diferente do ideal educacional da moda, que, por sua vez, implica o apagamento das diferenças e dos aspectos simbólicos de outras identificações possíveis. Como efeito dessa lógica avaliativa, o sujeito fica totalmente tributário da relação dual e imaginária com o Outro. Enfim, fica capturado pela imagem que o determina, ou seja, os resultados aferidos pela análise dos sistemas educacionais. É o ser ou não ser avaliado que torna a questão singular, e não a massificação do ensino em direção à padronização e uniformização.

O que tal discurso desconhece é que, para que haja vínculos sociais, ou de ensino, ou de funcionamento burocrático, para que a criança se inscreva no laço social proposto no discurso da escola, é necessário que o Outro não se reduza a um objeto para seu gozo próprio. Maud Mannoni (1973)MANNONI, Maud. Educação impossível. Lisboa: Moraes, 1973., em seu clássico trabalho Educação Impossível, alertava para o fato de que a criança não deveria ser tomada como suporte de conhecimentos e saberes científicos, ou seja, a criança não deveria ser utilizada para suportar a suposta verdade de uma teoria. Ao questionar o exagero positivista da pedagogia moderna, a psicanalista denunciou o terror pedagógico iluminista que predominava no sistema de ensino nacional francês. Tratava-se de uma pedagogia que oscilava entre os ideais de liberdade do século XIX e os princípios de disciplina oriundos da tradição religiosa dos jesuítas do século XVII. Como efeito, Mannoni apontou a dimensão do político, primeira instância de ação, como possibilidade de questionar as condições necessárias para que a educação aconteça, bem como o avesso, o que não deve ser feito para que a educação se torne um difícil acontecimento.

Seguindo a afirmativa de que há um “discurso do domínio e da transparência, de prever tudo, de controlar tudo e de saber tudo” (CHARLOT, 2006CHARLOT, Bernard. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, abr. 2006.), que se refere também à disposição atual dos gestores de políticas públicas em torno da qualidade, da eficácia e da avaliação das políticas educacionais, não se pode não deixar de questionar o lugar ocupado pelo aluno enquanto produto da política educacional. Se esse laço social está marcado pelo domínio, a sua inscrição no discurso universitário transformará o aluno e os implementadores em objeto para sustentar sua prática de saber em torno dos resultados.

Esse é o caso de políticas educacionais que, por meio do cientificismo educacional, têm transformado o processo educacional em um verdadeiro produtor de sintomas, na medida em que “usa e abusa de métodos educacionais arrojados, fazendo da criança cobaia, objeto de suas experimentações, em nome das modernas pedagogias” ou algum ideal educacional (COHEN, 2006COHEN, Ruth Helena Pinto. A lógica do fracasso escolar: psicanálise e educação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006. 192 p., p.100), por um lado, e, por outro, destituindo e desautorizando o saber do educador em nome de arrojados modelos administrativos e novas tecnologias educacionais.

O rendimento esperado do aluno, implícito nos sistemas de avaliação, conforme algumas denominações taxinômicas, tais como básico, adequado ou avançado, revela uma lógica de proporcionalidade fundamentada na psicobiologia naturalista de desenvolvimento da criança. Nessa perspectiva, a meta ou índice observado remete ao nível de desenvolvimento parcial dos conteúdos, competências e habilidades requeridos para a série escolar em que se encontram as crianças. Estabelece-se, assim, o império do discurso e da ilusão (psico)pedagógica. Trata-se de uma crença positivista na naturalidade do desenvolvimento da criança, bem como na proporcionalidade entre a intervenção educativa e o desempenho a priori esperado em termos cognitivos e maturacionais –, uma forma de se pensar a problemática educativa que, por ser considerada natural e sustentada por pedagogias de diversos matizes científicos, não levanta suspeita sobre suas consequências:

[...] a mudança na demanda de agora, que busca metas impossíveis, reforça uma série de sintomas e efeitos discursivos da pedagogia moderna, que acabam, invariavelmente, reforçando a psicologização do cotidiano escolar. (LAJONQUIÉRE, 1998LAJONQUIÈRE, Leandro de. A psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação. n. 8, maio/jul, 1998.)

Portanto, no momento em que a política educacional passou a ser inscrita pela métrica dos padrões internacionais de gestão da qualidade da educação, isto é, a ser operada de modo hegemônico por meio das práticas de avaliação em massa, destacam-se os efeitos de apagamento da diferença e do próprio desejo implicado no ato educativo. Temos visto, tão somente, a repetição do mesmo: o fracasso escolar, o baixo rendimento e o aumento no quadro de desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, na medida em que os sistemas educacionais transformam-se em sofisticados mecanismos a serviço da classificação, seleção, fracasso e exclusão escolar.

Tal realidade revela a outra face do problema: o real do abismo psicossocial existente na educação brasileira, cujo sistema de ensino público foi sendo sistematicamente montado para (re)produzir o fracasso escolar dos diferentes, das crianças pobres, transformando as diferenças em desigualdades sociais, déficits de aprendizagem, problemas psicológicos e neurológicos dos alunos etc. Além disso, o que temos historicamente acompanhado é um total apagamento do sentido da educação, isto é, em nome do que se educa uma criança? Vemos, portanto, um desconhecimento sistemático da filiação simbólica que opera os discursos no campo educacional, bem como os efeitos produzidos sobre os laços sociais. Como destaca Lajonquière (2013LAJONQUIÈRE, Leandro de. Do que não se quer saber na formação de professores. In: CARVALHO, Anna Maria Pessoa de (Org.). Formação de professores: múltiplos enfoques. 1. ed. São Paulo: Sarandi, 2013, p. 39-60., p. 47-48),

[...] a instalação e consolidação da escola moderna é consubstancial à vida das democracias que souberam fabricar um estado de bem-estar efetivamente norteado pela justiça social, sendo esse um lance de estofo eminentemente político, no sentido do caráter fundador das ações levadas a cabo no seio da polis. Não se trata de que a escolarização em si mesma produza efeitos isolados considerados marcadores de desenvolvimento social. Trata-se de que, se a escola acabou vingando num dado país, o é pelo fato de sua fundação fazer parte do processo mesmo de fundação de uma nação para todos. [...] Portanto, não há de que se surpreender que a um país, como o nosso, no qual a distribuição da riqueza é impermeável às mudanças, lhe corresponder funcionalmente um sistema escolar “a duas velocidades”, ou seja, de fato um não-sistema de educação nacional. Neste caso, o país não chega a ter um sistema de educação nacional, embora possa vir a ter um agrupamento de escolas diferentes, ora para ricos, ora para pobres, todas sempre sujeitas às facetas da lógica mercantil, que coloca em xeque os princípios mesmos da relação com o saber.

Como efeito agravante, sob a globalização econômica e financeira do capital, tem-se a dominância do discurso capitalista no campo da educação. Isso implica pensar que o laço social predominante, produzido em torno da política educacional e que tem como referência a escola laica, obrigatória e gratuita, destinada à formação dos cidadãos, deixa de operar como significante mestre e passa a se inscrever a partir da dominância do discurso do mestre capitalista. Sabe-se que a lógica do consumo submete tudo e todos à produção de objetos, bem como de capital humano, marca perversa do aumento de interesses econômicos sobre as políticas educacionais.

Essa relação econômica com o saber, efeito da dominância do discurso capitalista no campo da educação, inscreve o ato educacional enquanto uma troca em termos de mercado, no qual a avaliação cifra o valor de cada um no sistema de trocas. Em suma, o conhecimento se transforma em valor, marca recente de nossa sociedade do conhecimento. Paralelamente, assiste-se à migração das técnicas administrativas de mercado para a administração pública, assim como os critérios de avaliação e os exigentes padrões de qualidade e competitividade dos serviços privados vão sendo sistematicamente implantados no campo das políticas educacionais. Por fim, opera-se a fusão do discurso capitalista ao pragmatismo científico e tecnicista da eficácia escolar. O discurso capitalista declina o sujeito do desejo da demanda escolar e perverte o sentido formativo da educação ao produzir, em detrimento do cidadão da polis, o sujeito do desejo consumista.

No momento em que o resultado da avaliação cifra o sujeito, isto é, quando produz um valor de troca para o capital, tal como operam os programas de bônus salariais associados à gestão e à avaliação dos resultados escolares, o saber deixa de ser atribuído à operação educativa para ser um savoir-faire capitalista, isto é, deixa de ser a lei significante do desejo, que viabiliza inscrições e laços sociais, e passa a ser lei do mercado, cuja predominância é a lei do mais forte.

O que se produz sob o imperativo desse discurso, diz Lacan, é a mais-valia, ou o mais-de-gozar do mestre capitalista, que se faz à custa da economia libidinal do sujeito. Dito de outro modo, o sujeito será destituído de seu mais gozar (objeto a), na medida em que a passagem do discurso do mestre para o discurso capitalista retrata, justamente, a destituição do saber inconsciente sobre o desejo do sujeito, sobre a causa do seu desejo. Sabe-se que tal discurso retrata a foraclusão da lei e do desejo. O termo foraclusão designa o mecanismo da psicose, a partir do modelo da paranoia, que opera a rejeição de um significante do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, diz-se que o simbólico (um significante) foi foracluído, ou seja, não está integrado no inconsciente, mas (ele) retorna sob forma alucinatória no real (ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998., p.245).

Em O seminário 7: a ética da psicanálise, Lacan inscreve o discurso da ciência na ordem da estrutura da paranoia, uma vez que, ao negar a Coisa e criar um objeto no real, ela promove a foraclusão e/ou apagamento do sujeito. Nessa perspectiva, pode-se dizer que:

Na lógica dos discursos do domínio, o sujeito sofre um apagamento, referente à foraclusão do simbólico enquanto dimensão subjetiva, produzido pela própria escritura do discurso. Ao produzir seu próprio objeto de saber, a ciência apaga o sujeito. Será justamente o simbólico foracluído pelo discurso universitário-científico que retorna no real como fracasso do simbólico.(PASSONE, 2013PASSONE, Eric Ferdinando Kanai. Fracasso na implementação das políticas educacionais: sintoma e emergência do sujeito. Estilos da Clínica, v. 18,n. 1, p.53-70, jan./abr., 2013., p. 64)

Para esse sujeito, resta-lhe a desistência, a revolta ou o sintoma. Ao desistir do ideário da educação, o sujeito fica fora do discurso, como os loucos, os evadidos, os desistentes, os excluídos etc. Ao se revoltar contra o discurso oficial, o sujeito tenta retomar as rédeas do poder; aqui, temos o inconsciente como política do desejo que instaura em ato um novo estado. Como exemplo, vemos os estudantes universitários que se revoltam contra o discurso hegemônico do mestre moderno, reivindicando reconhecimento do Estado sobre sua posição de poder, enquanto escravo do saber. Ao sintomatizar, temos o sujeito do laço social instaurado pelos discursos modernos, enfim, o discurso concreto que instaura o campo da realidade transindividual do sujeito e se manifesta como produto dos discursos educacionais (PASSONE, 2012PASSONE, Eric Ferdinando Kanai. Fracasso na implementação de políticas educacionais: uma abordagem pelo discurso psicanalítico. 2012. Tese (Doutorado em educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.).

No âmbito da educação básica, tanto para os governos, sejam de esquerda ou de direita, e mesmo para muitos especialistas e gestores educacionais, não existe nenhum problema com o atual excesso avaliativo dos sistemas e redes de ensino. A despeito do reiterado baixo desempenho, do aumento da medicalização de educandos e do adoecimento docente, não é de se estranhar que o empenho discursivo da política em torno da qualidade educacional tenha obliterado o real das condições educacionais brasileiras, negando, basicamente, a existência de dois tipos de escolas, que, como sabemos, movimentam-se em ritmos e direções diferentes.

A cegueira institucional, organizacional e política ou não querer saber acerca do sensível abismo educacional existente entre as diferentes classes sociais brasileiras remete-nos aos efeitos perversos. Trata-se de um não querer saber nada da dívida simbólica que herdamos com a fundação de nossa nação e a negação sistemática das condições históricas e subjetivantes implicadas com a formação de novos cidadãos para a polis. Como destaca Lajonquière (2010LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010., p.63), os sistemas escolares deveriam “formar uma idiossincrática nação, isto é, uma espécie de grande família, na qual bem poderia tão só haver um agrupamento de solipsistas”.

Assim, conclui-se que, ao se buscar os padrões ideais de desempenho, o sistema de ensino torna ainda mais difícil o acontecimento dito educacional, marca da educação ao longo da história imposta pelas elites políticas e econômicas do país, que significa não reconhecer a dívida educacional que a nação herdou na sua própria fundação. Ao negar essa dívida simbólica, também se deixa de lado a história, a diferença, o desejo, comprometendo o laço social e as condições de civilidade na polis.

Afinal, as avaliações estão contribuindo para quê? Ao que podemos apurar, a vinculação entre avaliação e incentivo torna a educação um acontecimento ainda mais difícil, reforçando os efeitos do discurso pedagógico hegemônico e reduzindo as condições de a educação acontecer. Não se pretende esgotar o assunto, mas antes apresentar um recorte específico acerca do estudo nessa área, ressaltando sua produção como um saber que interroga as condições para que a educação aconteça.

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  • I- Este trabalho recebe apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP/ Processo Número: 13/02840-6).
  • 1
    - O termo accountability está sendo empregado enquanto processo de responsabilização, de acordo com sua emergência na literatura internacional de análise de políticas públicas.
  • 2
    - O infantil sexual, marca da atemporalidade do inconsciente, revela as vicissitudes do desejo em jogo em todo ato de educar alguém, uma criança, um adulto, um adolescente. Entretanto, o educador desconhece o desejo impossível de sua tarefa, isto é, o impossível de fabricar uma criança como imagem e semelhança daquela que ele foi um dia, o ideal de criança (inconsciente) que o adulto possui.
  • 3
    - Para a psicanálise, a dimensão inconsciente do desejo está fundamentalmente relacionada à causa sexual, que remete ao objeto primordial perdido, o qual está para o funcionamento psíquico enquanto estrutura que mantém economicamente a dinâmica libidinal da causa do desejo.
  • 4
    - No percurso de Lacan, a noção de “o grande Outro”, designado pela letra a maiúscula [A], assume diferentes significados ao longo de seu ensino. O Outro pode surgir como demanda, como desejo (objeto a), como gozo e, conforme sua formalização no campo linguístico, o Outro representa a estrutura de linguagem. Em suma, como ordem simbólica que antecede o próprio ser.
  • 5
    - Lacan diferenciou Moi, o “eu imaginário” das identificações egóicas, e Je, o sujeito do inconsciente e do desejo. Assim, Moi coincide com o sujeito do enunciado, isto é, como ideal imaginado à alienação do Outro simbólico, que se opõe ao sujeito da enunciação Je, sujeito do inconsciente. Será justamente a emergência do sujeito do inconsciente que produz o não--sentido, que carece de significação, ao mesmo tempo em que fixa o desejo ao discurso, no interior das leis da linguagem humana.
  • 6
    - Na perspectiva lacaniana, a verdade possui uma estrutura equivalente à ficção e ao mito. Confira: O seminário 18: de um discurso que não fosse semblante (LACAN, 2009LACAN, Jacques. O seminário: de um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. Livro 18.); O mito individual do neurótico (LACAN, 2008LACAN, Jacques. O mito individual do neurótico (1953). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.).
  • 7
    - Recalque é uma operação psíquica, conforme Freud propôs à teorização do aparelho psíquico, que procura manter inconscientes certas representações que ameaçariam provocar desprazer ao sujeito. O recalque atua sobre pensamentos, ideias, fantasias, lembranças etc. que não se ajustam à imagem ideal que o sujeito possui do mundo e de si mesmo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p.430). A dimensão imaginária domina qualquer tentativa de furar a perfeição da imagem ideal que a sustenta, retirando de cena a dimensão simbólica e real do desejo, que marca de diferenças a experiência e aventura humanas.
  • III
    Translator’s note: in Brazil, basic education comprises early childhood, primary and secondary education.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2014
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2013
  • Aceito
    12 Nov 2013
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