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Apresentação

Presentation

Resumo

A proposta deste dossiê nasceu da minha circulação como membro de diferentes espaços acadêmicos de produção e divulgação de pesquisas em educação, especialmente no Grupo de Trabalho 23 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) – Gênero, Sexualidade e Educação –, e na Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH). Nesses encontros, percebia que cada vez mais, nos diferentes espaços acadêmicos, nas pesquisas, na mídia impressa e eletrônica, na publicidade, nos cursos de formação e nas preocupações que dizem de processos educativos, proliferam discursos e práticas de construção dos corpos. Também é recorrente a ideia de construção, o que faz com que essas ações de investimentos nos corpos sejam contraditórias, algumas vezes paradoxais, mas também repletas de relações de poder, prazer, desejos, de maneira que também tenhamos que falar de investimentos que são comemorados, fazendo com que os discursos e práticas também possam ser classificados como entusiasmados. Com isso, podemos dizer que o conhecimento do corpo, sobre o corpo e com o corpo é resultado de investimento, confronto, negociação e processos históricos, sempre relacionados aos desejos, medos, preocupações, sonhos de cada lugar, momento, cultura e grupo social. Estranhos, abjetos, cobiçados, construídos: corpos, desejos e educação é um dossiê que procura operar com esses pressupostos, dando lugar a diferentes configurações e funcionamento das sociedades ocidentais que nos convidam a explorar essas construções e valorizações que dizem dessas sociedades ocidentais e que as transformam, colocando sob suspeita os processos educativos dos sujeitos, assumindo-os como provisórios e contingentes.

Gênero; Sexualidade; Educação

Abstract

The proposal of this dossier came from my circulation as a member of several academic places for the production and dissemination of research on Education, especially in the Work Group 23 of the National Association of Post-Graduation and Research in Education (Anped)–Gender, Sexuality, and Education –, and at the Brazilian Association of Homo-Culture (ABEH). In such meetings, I realized that more and more, in different academic milieu, in research, in the media, in advertisement, in training courses and in the preoccupations concerning the educative processes, there is a proliferation of discourses and practices that construct the bodies. The very idea of construction is recurrent, which makes these actions of body investments to be contradictory, sometimes paradoxical, but also full of power relations, pleasure, desires, so that we must also mention investments that are celebrated, making it possible to classify discourses and practices as enthusiastic. Thus, we may say that the knowledge of the body, about the body and with the body is the result of investment, confrontation, negotiation, and historical processes, always related to the desires, fears, concerns, dreams of each place, moment, culture, and social group. Weird, abject, coveted, constructed: bodies, desires, and education is a dossier that seeks to operate with these assumptions, making room for different configurations and the functioning of Western societies which invite us to explore these constructions and appreciations which speak of these societies and which change them, putting under suspicion the educative processes of individuals, taking them as temporary and contingent.

Gender; Sexuality; Education

Corpos e desejos são discussões recentes no campo da educação. É possível dizer que um movimento convocou a aparição inesperada do paradoxo que marca essas discussões: a tentativa presente em cada sociedade de controlar e manipular os corpos e seus desejos. Essa tentativa é paradoxal, porque o investimento no controle foi capaz de produzir uma incessante vontade de falar, de produzir e de criar novos corpos e sujeitos:

Talvez seja possível dizer que havia, nas sociedades ocidentais, no final do século XIX, um duplo fenômeno muito importante, que era, por um lado, um fenômeno geral mas apenas situável no nível dos indivíduos, ou seja, o desconhecimento pelo sujeito do seu próprio desejo – e isso se manifestava especialmente na histeria – e, ao mesmo tempo, pelo contrário, um fenômeno de supersaber cultural, social, científico, teórico da sexualidade. Esses dois fenômenos – de desconhecimento da sexualidade pelo próprio sujeito e de supersaber sobre a sexualidade na sociedade – não são fenômenos contraditórios. Eles coexistem efetivamente no Ocidente, e um dos problemas é certamente saber de que modo, em uma sociedade como a nossa, é possível haver essa produção teórica, essa produção especulativa, essa produção analítica sobre a sexualidade no plano cultural geral e, ao mesmo tempo, um desconhecimento do sujeitos a respeito de sua sexualidade. (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2. ed. 2006., p. 58-59).

Ainda como resultado desse movimento recente na nossa sociedade e especialmente na educação, as feministas, na década de 1970, contribuíram para o debate, trazendo para a agenda acadêmica as reivindicações e propostas de inclusão das relações de gênero e sexualidades e seus atravessamentos com corpos e desejos. Temos, portanto, um contexto marcado pela pressão política e cultural dos grupos feministas, gays e lésbicos, que denunciavam a impossibilidade de compreender a sociedade sem levar em consideração sua realidade multifacetada e histórica. A educação não poderia ficar fora desse processo, seja como participante interessada nele seja como campo em que essas questões explodem. Por um lado, foram criados grupos de estudos e pesquisas, assim como disciplinas, linhas de pesquisas em programas de pós-graduação nas universidades brasileiras e estrangeiras, que contribuíram para ampliar o debate e construir novas formas de conhecimento e resistências. Por outro lado, as discussões em torno dos corpos e desejos deixaram de ser exclusividade dos campos da biologia, medicina, psiquiatria e passaram a povoar outros lugares e outras práticas discursivas, tais como as salas de aula, os seminários, os grupos de trabalho, as publicações na área da educação.

Condições de emergência que tornaram possível a organização de um dossiê como este, que investe numa série de práticas, representações, problematizações que nos convidam a pensar que cada sociedade produz corpos, desejos e processos educativos que tanto estão submetidos à gestão social quanto a constituem e ultrapassam. Corpos, desejos e educação são tomados como processos, resultados provisórios das disputas e negociações entre sujeitos e sociedades, sentimentos e objetos, pertencentes à história: “Nem o corpo, nem o gênero, nem a orientação sexual são essências, mas construções sociais por certo personalizadas e, portanto, revogáveis” (LE BRETON, 2012LE BRETON, David. Individualização do corpo e tecnologia contemporâneas. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 15-32., p. 18). O entendimento de corpo, gênero e sexualidades como construções reforça a ideia deste dossiê como parte desse processo de constituição do campo de conhecimento ligando gênero, sexualidades e educação. Considerando que este é um campo em crescimento, reunimos autores e autoras que compõem diferentes espaços acadêmicos de produção e divulgação de pesquisas em educação, especialmente no Grupo de Trabalho 23 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) - Gênero, Sexualidade e Educação, e na Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH). Nesses encontros e momentos de troca, ficava evidente a riqueza das temáticas, das perspectivas de investigação e dos atravessamentos que envolviam os processos educativos, as construções discursivas e os investimentos nos sujeitos e seus corpos. No que se refere ao campo da educação, era retomada com força a disputa entre a desconstrução da ideia de essência dos sujeitos e corpos e a defesa da lógica da construção, de um processo interminável e contraditório que envolve relações de poder, subjetividades, prazeres, desejos, experiências, enfim, intenções e práticas que são classificadas como entusiasmadas.

Isso significa afirmar que estamos trabalhando com a ideia de que o conhecimento do corpo, sobre o corpo e com o corpo é resultado de investimento, conflito, tensão, disputa e processos históricos, sempre relacionados aos desejos, medos, preocupações, sonhos de cada lugar, momento, cultura e grupo social. Estranhos... Abjetos... Cobiçados... Construídos: corpos, desejos e educação se traduz numa reunião de artigos que tem a intenção de colocar essas discussões em debate, principalmente no campo da educação, capaz de problematizar diferentes configurações e funcionamentos das sociedades ocidentais, recuperando o papel da educação de colocar sob suspeita o conhecimento e explorar essas construções a valorizações que dizem de nós mesmos e de como construímos o que chamamos de realidade, assumindo-as como provisórias e contingentes.

Em última análise, estarão falando sempre dos processos que nos constituem, dos desejos que nos movem, dos discursos que nos capturam, das resistências e existências que somos capazes de criar. Na nossa sociedade, o desejo diz de processos de decifração daquilo que somos. O desejo tem a sua função reconhecida não somente nos atos sexuais, mas também em todos os campos do comportamento dos sujeitos, de maneira que os desejos falam de processos educativos. Queremos, nestes artigos, colocar em discussão a problematização dessa atitude que aprendemos a desenvolver conosco e que diz da relação entre eu–verdade–confissão–desejo–corpos. Somos ensinados por nossa cultura a buscar nos nossos corpos os nossos desejos e vamos confessando, pelo menos para nós mesmos e mesmas, aquilo que sentimos e nomeando e dando sentido a tudo isso como nossas verdades. Assim, vamos nos constituindo em meio a esses saberes e transformando a nós mesmos e mesmas como objetos de conhecimento e de investigação. Somos capazes de dizer o que somos, de dar significado as nossas verdades a partir dos nossos desejos. Os nossos desejos nos situam, dão-nos lugares de sujeitos.

Essas são discussões que ainda precisam ser ampliadas, aprofundadas, problematizadas pelo campo da educação. Nesse sentido, buscamos reunir neste dossiê um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras brasileiras e de outras nacionalidades a partir da provocação de pensar diferentes situações que estão presentes na nossa sociedade e que dizem de uma época em que os seres humanos transcendem as limitações físicas e mentais de suas construções e relações. Pensar essas modificações e atualidades considerando-as como educativas, na medida em que educam nossos olhares, nossos fazeres, nossos desejos..., é uma forma de ressaltar a força da desconstrução das nossas pesquisas e temáticas para a educação. Dizer que existem poucas produções tratando das relações entre corpos, desejos e educação nos coloca numa posição de investimento e desafio para contribuir para a constituição desse campo problemático de investigação. Para essa contribuição, reunimos um grupo de pesquisadoras e pesquisadores envolvidos na instigante proposta de explorar outros modos de pensar, de ser e de agir no campo da educação.

Corpos, desejos e educação dizem de um campo conceitual e político, que envolve um investimento exaustivo nas suas relações. Assim, medicina, direito, nutrição, educação física, história e demais áreas do conhecimento falam dessas relações, ressignificam as formas como entendemos, conhecemos e nos relacionamos com aquilo que chamamos nossos corpos. A educação também é convocada a falar das relações possíveis entre essas categorias. Nas escolas e fora delas, classificamos os outros pelos seus corpos, colocamo-nos em relação com esses outros e seus corpos, que nos dão um lugar de sujeito, somos chamados e chamadas a transformar nossos corpos e desejos em objetos de conhecimento, somos capazes de falar de nós mesmos e mesmas a partir deles, de maneira que os corpos e desejos são centrais nos processos, estratégias e práticas pedagógicas. A educação escolar e aquela que diz da produção dos sujeitos têm funcionado como instâncias autorizadas a educar e a produzir os corpos e desejos. Por tudo isso, “Corpos, desejos e educação” é um dossiê que não busca o consenso, entendendo que os artigos que compõem este número envolvem disputa de valores, de poder, de verdades, de comportamentos legitimados e em negociação, enfim, dão lugar à existência de importantes nexos entre corpos e desejos, de maneira que se tornam um tema/objeto de estudos e pesquisas atuais e fundamentais para o campo da educação.

O primeiro artigo que compõe o dossiê é o de Gracia Trujillo, intitulado Pensar desde outro lugar, pensar lo impensable. Hacia uma pedagogía queer. Nele, a autora toma sua prática docente como professora de sociologia da educação como detonadora da discussão sobre os limites e os desafios que a diversidade de gênero e sexual representa na educação. Para isso, ela parte de uma experiência de formação docente com um filme que tem a escola como foco para apostar nos questionamentos, para colocar sob suspeita nossas formas de pensar. Vai construindo seus argumentos em torno do fracasso da escola em olhar para e lidar com a diversidade de gênero e sexual e propõe uma pedagogia queer, defendendo que a escola é povoada por diversos corpos e desejos não heteronormativos, que são invisibilizados, que nos colocam o desafio de pensar a educação desde outro lugar.

Seguindo a mesma linha de construção em torno da provocação de pensar o que pode o campo da educação, temos o artigo de Cristian Poletti Mossi – O que pode um corpo na produção de pesquisas em Educação? Anotações para uma teoria em ato –, que busca problematizar a ideia de um corpo consciente, bem ajustado, assim como a de um corpo produzido por um sentido de educação que busca a disciplina e a docilidade dos corpos. No entanto, não podemos deixar de considerar as possibilidades de fuga presentes nessas constituições. São essas possibilidades que são construídas no artigo, que demonstra o caráter aberto dos corpos, com suas fendas, com aquilo que escapa, apostando na impossibilidade de se pensar nos corpos e na educação como essências escondidas que necessitam ser decifradas. Corpos, desejos e educação são aqui entendidos como possibilidades de encarar o pensamento como criação.

No terceiro artigo, Joanalira Corpes Magalhães e Paula Regina Costa Ribeiro analisam artigos científicos no campo da biologia, os quais, ao olhar e construir as diferenças entre corpos masculinos e femininos, vão produzindo explicações sobre as origens da homossexualidade. Nesse caminho, em Esquadrinhando corpos abjetos: as homossexualidades nas redes de enunciações científicas, as pesquisadoras encontram processos que estão presentes nas escolas, tais como as tecnologias que estão servindo para observar corpos e produzir saberes sobre eles, sobre sujeitos detentores de determinadas identidades de gênero e sexualidade presas à destinação biológica. Por fim, defendem que problematizar as homossexualidades como resultado de construção de saberes da ordem biológica é uma possibilidade de colocar sob suspeita as formas como vamos sendo ensinados e ensinadas, como ensinamos, mantendo o investimento num sentido de educação como aquele que questiona os ensinamentos, valores e representações.

O artigo de Constantina Xavier Filha segue a mesma linha de análise presente nos anteriores, ou seja, faz uma reflexão que diz da construção de corpos não como objeto de investigação, mas como local da cultura, de um processo educativo de construção dos sujeitos. Assim, Violências e direitos humanos em pesquisa com criançasolha para o que está acontecendo dentro e fora das escolas, entendendo que falar de violência e direitos humanos exige esse encontro. Partindo de uma pesquisa mais ampla, a autora toma as falas das crianças e suas produções de imagens para colocar em debate temas como diferença, violência contra criança e de gênero. Considerando as diferentes formas de violência que circundam as crianças, dentro e fora da escola, e tomando-as como representações, permeadas por relações de poder, a análise nos chama a olhar para essas representações não como simples descrições, mas como construtoras de realidade, de subjetividades e identidades generificadas.

Fechando esse grupo de pesquisadoras e pesquisadores, temos o artigo de Priscila Gomes Dornelles e Maria Cláudia Dal´Igna, que mantém a proposta de trabalhar com uma concepção de educação que, ao mesmo tempo, olhe para o que acontece na escola e na educação formal, mas também para o que ocorre fora dela, ampliando o sentido de educação para algo que diz da constituição dos sujeitos. Nesse sentido, Gênero, sexualidade e idade: tramas heteronormativas nas práticas pedagógicas da educação física escolar segue a linha de problematizações em torno daquilo que sabemos para questionar como as práticas da educação física escolar podem ser uma maneira de saber o que fazemos e o que é feito de nós. Tendo como foco de análise o atravessamento entre gênero, sexualidade e idade nas aulas de educação física, as autoras nos brindam com a análise dessa complexa rede de constituição dos sujeitos, para nos provocar a pensar as margens e rupturas desse processo prescritivo-restritivo que marca a escola.

Referências

  • FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2. ed. 2006.
  • LE BRETON, David. Individualização do corpo e tecnologia contemporâneas. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 15-32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2014
  • Aceito
    02 Mar 2015
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