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O ritual da lição na pedagogia: o aspecto performativo I I Este trabalho foi apoiado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPE - Propesq/UFPE e pela Fundação de Amparo à Ciência e a Tecnologia de Pernambuco (Facepe) por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no período de 2011-2014.

Resumo

No campo da pedagogia, é recorrente tratar a lição como uma ferramenta para o ensino e a aprendizagem. Neste artigo, argumentamos que, para além desse aspecto, traduz-se em um dos rituais mais significativos do processo educacional por seu caráter performativo. Sob o pressuposto de que é no campo do discurso pedagógico que se dá a estabilização do ritual da lição, desenvolvemos uma investigação na qual analisamos essa prática educativa em seu aspecto ritualístico, ou seja, como ritual e um caminho investigativo que observa a importância de se compreenderem práticas discursivas escolares atuais com foco em práticas discursivas, produzidas no contexto da modernidade. Elegemos um corpus de análise advindo de duas discursividades: a pedagogia jesuítica e a pedagogia moderna, de grande impacto no discurso educacional do século XX, em seus textos Ratio Studiorum, da Companhia de Jesus (1599-2009), e Primeiras lições de coisas, de N. Calkins, adaptação de Rui Barbosa (1861-1886). Nesses textos, analisados como discursos, deu-se visibilidade ao ritual da lição em seu aspecto performativo, ou seja, naquilo que marca posições, gestos e comportamentos. A análise indica uma regularidade que se mantém no que se refere aos enunciados reitores desses aspectos ritualísticos, um dos primeiros aspectos sagrados oriundos do discurso religioso cristão. Outro aspecto nessas discursividades é a função ritualística na produção do discurso da verdade.

Palavras-chave
Lição; Ritual; Ratio Studiorum; Lições de Coisas; Ação performática

Abstract

In the pedagogy field, one recurrently treats lessons as tools for teaching and learning. In this article, I argue that, beyond that aspect, the lesson translates into one of the most important rituals of the educational process due to its performative character. Under the assumption that it is in the field of pedagogical discourse that the stabilization of the lesson ritual occurs, I have developed a study in which I analyze the ritualistic aspect of this educational practice, that is, as a ritual and a research path which observes the importance of understanding current discursive school practices focusing on discursive practices, produced in the context of modernity. I have chosen an analysis corpus arising from two discursivities: Jesuit pedagogy and modern pedagogy, which greatly impacted on the educational discourse of the twentieth century, in the texts Ratio Studiorum, of the Society of Jesus (1599-2009), and Primeiras lições de coisas [Primary object lessons], by N. Calkins, adapted by Rui Barbosa (1861-1886). In these texts, analyzed as discourses, I have given visibility to the lesson ritual in its performative aspect, that is, to what marks positions, gestures and behaviors. Analysis indicates a regularity which remains with regard to the rectorial utterances of these ritualistic aspects, one of the first sacred aspects arising from the Christian religious discourse. Another aspect of these discursivities is the ritualistic function in the production of the discourse of truth.

Keywords
Lesson; Ritual; Ratio Studiorum; Lições de Coisas; Performative action

Introdução

A lição do ponto de vista etimológico está associada à palavra leitura, da qual é originária (lectio). É reconhecida a expressão lección ex cathedra para referi-la no sentido oficial ou infalível quando trata de pronunciamento do Papa. Está nomeada nos Lecionários com as Lições das Escrituras Judaicas, das epístolas e dos evangelhos. Em Aristóteles, é conhecida pela lição política (politike akroasis) e lições de física (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992.). Na Idade Média, está presente nas práticas de comentário de um texto e na disputatio, exame de um problema mediante o debate dos argumentos (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992.). No Renascimento, apresenta-se no contexto das escolas dos reformadores, como o Gimnasio de Estrasburgo, simultaneamente escola elementar e média, com as lecciones obligatorias y continuas, e na escola universitária com as lecciones públicas y libres (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992.). A consolidação da lição como uma ação recorrente no discurso da escolarização ocorre no século XIX com o tripé ler-escrever-contar associado ao uso de suportes didáticos como o caderno escolar (HÉBRARD, 2007HÉBRARD, Jean. A lição e o exercício: algumas reflexões sobre a história das práticas escolares de leitura e escrita. Educação, Santa Maria, v. 32, n. 1, p. 11-20, 2007.).

Desde que a lição se individualizou no corpo da prática pedagógica, podemos dizer que há uma interpretação que considera que, em sua regularidade, mantém-se como uma ferramenta didática importante para o processo de ensino e de aprendizagem. Nessa ótica, diz-se dela como aula (LEITE, 2006); como uma exposição de um professor no contexto da escolarização de crianças e jovens; como aquilo que o professor marca para estudar, recordar, ensinamento, norma de proceder. Está relacionada a um horário, a uma disciplina, a parte de um texto retirado de um manual, de uma aula ou de um caderno, que um aluno deve aprender, decorar ou recitar (ARÉNILLA et al., 2001ARÉNILLA, Louis et al. Dicionário de pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget. 2001.; DUARTE, 1986DUARTE, Sergio Guerra. Dicionário brasileiro de educação. Rio de Janeiro: Antares: Nobel, 1986.; HOZ, 1970HOZ, Victor García. Diccionario de pedagogia. Tomo II. G-Z. Calábria; Barcelona: Labvor, 1970. p. 235-239.). Existe, de certa maneira, uma naturalização da lição em uma existência ad æternum. Na perspectiva pedagógica, dá-se visibilidade a uma função estritamente operativa do processo educativo. Os manuais pedagógicos, as cartilhas, os livros didáticos, os livros paradidáticos e o caderno escolar têm sido os principais artefatos culturais de disseminação das lições no campo da educação.

Olhares críticos sobre a lição vêm sendo desenvolvidos em diferentes campos de saber. Por exemplo, a ação de repetir o folhear de um livro, o modo de sentar, de assumir a assimetria da relação entre quem pergunta e quem responde, tal como expresso na histórica peça de teatro A Lição, de Eugène Ionesco (1951). Há também um olhar sobre sua função de lentes pelas quais podemos nos observar e nos normalizar, tal como diz Nietzsche (1996NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1996., p. 290) ao se perguntar “por que vivo? Que lição devo aprender da vida? Como me tornei assim como sou e por que sofro então com esse ser-assim?”.

No campo específico da educação, há uma crítica à lição como sinônimo de tarefa no contexto de um programa curricular, desde os anos 1920 (DEWEY, 1978DEWEY, John. Vida e educação I: a criança e o programa escolar: interesse e esforço. Tradução de Anísio Teixeira. São Paulo: Melhoramentos; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1978.). A crítica de Saviani (1991SAVIANI. Dermerval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1991., p. 56) é feita à escola tradicional e aos seus métodos, nos quais tal prática como exercício é um referente para a assimilação do conhecimento. Questiona-se a lição em seu aspecto puramente didático e sobre a possibilidade da lição como um ato de ler na amizade e na liberdade (LARROSA, 1999LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascarados. Belo Horizonte: Autêntica, 1999., p. 173-174). Críticas são dirigidas às mesmas em manuais pedagógicos

[…] sobre a educação dos corpos e almas de seus alunos, lições sobre o modo de sentar e andar, sobre as formas de colocar cadernos e canetas, pés e mãos, que acabam por produzir um corpo escolarizado. (LOURO, 2010LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perceptiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2010., p. 61).

Embora reconheçamos a importância de tais enfoques, a nossa análise tem como objeto não a lição em si, mas o ritual no qual ela opera no contexto de sua individualização no campo do discurso pedagógico.

O ritual da lição tem visibilidade no campo dos estudos sociológicos e estéticos. Lição, como aula, em suas conotações nobres e solenes, conforme nos diz Perrone-Moisés (1988)PERRONE-MOISÉS, Leyla. Posfácio. In: BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988. Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Collège de France, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. no livro Aula de Barthes; à maneira de um “ritual de incorporação e investidura”, menção de Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Lições da aula. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. Aula inaugural proferida no Collège de France., p.3) em Lições da aula. Nesse caso, realça-se a autoridade do discurso legítimo, proferido por quem tem o direito e o seu sentido relacional do status de quem fala e de quem escuta, do lugar de enunciação e do próprio ritual que encerra na instituição daquele que profere a lição.

Esse ritual, pouco presente nos estudos do campo da educação, pode, a nosso ver, indicar melhor a sua função educativa, particularmente quando relacionada aos processos de produção dos sujeitos da educação, ou seja, no que pode realizar o ritual da lição nas opções em relação a valores, gestos e comportamentos. Há algo mais significativo que o binômio punição/recompensa na ação pedagógica, a exemplo do ritual do castigo pela lição incorreta ou a premiação pela lição bem dada? Como não identificar o parentesco desses elementos advindos das cerimônias religiosas na educação escolarizada se grande parte do discurso educacional na modernidade foi institucionalizada pela interpenetração das regras do discurso da Contrarreforma religiosa (Pedagogia Jesuítica, Pedagogia dos Irmãos de Vida Comum, Pedagogia dos Irmãos Morávia) com as regras do discurso cientificista da escola moderna?

Entende-se que o ritual da lição disseminado por aquelas vertentes sofreu transformações significativas ao longo dos séculos mais recentes em consequência tanto da perda do sentido do sagrado como das lutas sociais, culturais, políticas, e do desenvolvimento das ciências, da escola e do currículo. Pode-se inferir, contudo, que se mantém o predomínio dessas visões traduzidas não necessariamente no que ensinamos, mas principalmente no modo como ensinamos por meio de rituais.

Ritual, performatividade, ritual profano

Ritual é uma palavra de origem latina, vem de ritus, remete à ordem prescrita, associada a formas gregas, a exemplo de artus no sentido de prescrição, de ararisko como harmonizar, adaptar e arthmos, que significa elo, junção, e cuja raiz ar deriva do indo-europeu védico (rta, arta) e remete à ordem do cosmo, das relações entre os deuses e os homens e dos homens entre si (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 29). O ritual está associado a um conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual ou de postura), com caráter repetitivo e carga simbólica (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 30).

O conceito de performatividade advém da distinção feita por J. L. Austin entre enunciados constativos (que descrevem um fato ou situação) e enunciados performativos (que realizam a ação) (SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.). A relação entre ritual e linguagem está na análise dessa prática como uma ação performativa (PEIRANO, 2002PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40.). Nesse aspecto, interessa o funcionamento da linguagem não em termos denotativos, mas performativos. Nessa perspectiva, em diálogo com Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna: Il Mulino, 1995., o ritual é visto como um sistema construído culturalmente e como um sistema comunicativo em contextos específicos. Os rituais nessa versão devem ser vistos como um complexo de palavras e ações, e nesse sentido interessa saber como se dá a interconexão entre palavras e ações.

Peirano, ao tratar da performatividade, observa sobre a eficácia do rito em seu caráter performativo em três sentidos: naquele proposto por Austin, segundo o qual dizer é fazer como ato convencional; no sentido de uma performance, que usa meios de comunicação diversos pelos quais os atores experimentam o evento; e, por fim, no sentido de remeter a valores vinculados ou inferidos pelos atores durante a performance (PEIRANO, 2002PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40., p. 27).

No contexto da escola, o ritual é tratado como profano, do cotidiano, como microrritual de passagem para escola. Rivière fala nos ritos de chegada à escola com os cumprimentos para as professoras e de despedida dos pais, ritos de ordem com os horários compartimentalizados, as filas e os ritos de atividade como ir ao pátio, falar e escutar (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 119). Os microrrituais, quaisquer deles, conferem à vida cotidiana uma sacralidade que a nosso ver tem como função principal regular a ação humana. Observa-se também o caráter sagrado dos microrrituais em sua função protetora do “nosso eu profundo […], pois eles [os microrrituais] nos lembram de que somos humanos somente porque outros seres humanos nos constituem como tais” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise de discurso. São Paulo: Contexto, 2004., p. 437-438).

O ritual da lição remete ao discurso pedagógico, isto é, ao discurso que formula a racionalização dos processos formadores relativos ao sujeito a ser educado, aos objetivos da educação e às modalidades educativas.

O ritual, a nosso ver, está implicado com a ordem do discurso em uma dada sociedade e opera por meio de relações de poder. Essa perspectiva fica evidenciada no modo de tratamento do mesmo por Foucault. Para ele,

[O ritual] define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso; o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor constrangedor. Os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos, [pedagógicos] e em parte também os políticos, não são dissociáveis desse exercício de um ritual que determina para os sujeitos falantes, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis convenientes. (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999., p. 12).

Sendo o ritual um operador social tal como está nomeado em sua etimologia (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 29), o ritual da lição não teria elementos da ordem das cerimônias e das orações que compõem o serviço religioso expresso nos lecionários – leituras obrigatórias nas missas dominicais e nas missas em dias de festa? E ainda, esse ritual, como os rituais profanos (do cotidiano), não tem elementos de referência como o ritmo, a cena, a relação de assimetria que oferece segurança nas relações sociais e culturais e nas práticas sociais e culturais? Esses elementos não seriam eles mesmos uma condição de manutenção de práticas discursivas no campo da educação? Rivière (1996)RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., em seu estudo sobre os rituais profanos, identifica nesses rituais, inclusive nos rituais da escola, essa marca do sagrado, da cerimônia. Para ele, a ritualidade, mesmo a dita profana, conserva resíduos religiosos, antes sacralizados, como a dança, a expressão corporal, a festa, pois “existem formas de sacralidade fora da religião nas quais se inscrevem vários dos nossos ritos cotidianos” (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 36).

Sob essas problematizações, analisamos a lição em seu aspecto ritualístico, ou seja, como ritual da lição e um caminho investigativo que observa a importância de se compreender práticas discursivas escolares atuais, no caso o ritual da lição, com foco em práticas discursivas, produzidas no contexto da Modernidade. Esse é um dos caminhos de reapropriação de enunciados do passado para compreender as condições de produção de práticas discursivas no campo da educação atual (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugalia, 1996.; VARELA, 2000VARELA, Julia. O estatuto do saber pedagógico. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 87-96.). Pressupõe-se que é no campo do discurso pedagógico que se dá a estabilização da prática do ritual da lição. No campo pedagógico, pelo modo de difusão e pelo campo de utilização. Nessa perspectiva, elegemos duas discursividades fundadoras, a pedagogia jesuítica e a pedagogia moderna. Pode-se dizer que elas são discursividades fundadoras no sentido dado por Foucault, discursividades que refletem um discurso que produziu “alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos” (FOUCAULT, 1992FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992., p. 21). Os corpora de análise eleitos foram: Código Pedagógico dos Jesuítas; Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599-2009) e Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores de N. Calkins (1861-1886). Nesses textos particulares, deu-se visibilidade ao ritual da lição, ou seja, naquilo que marca: posições, gestos e comportamentos e à gramática recorrente, observando a sua eficácia, ou seja, os seus efeitos na ação performativa (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.; RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996.; PEIRANO, 2002PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40.).

Os microrrituais escolares não refletem todas as ações da escola, pois a existência de um ritual está associada a uma encenação instituída com significação simbólica que remeta a valores, a uma ação que tenha o aspecto de comunicação codificada, que respeite uma ordem bem definida e dê lugar a comportamentos repetidos. Esses microrrituais podem ser ritos de chegada e acolhimento, ritos da ordem, ritos de atividade em ordem sequencial e aqueles associados a momentos importantes e festivos (RIVIÈRE, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis: Vozes, 1996.).

O ritual da lição nos discursos da pedagogia jesuítica e da pedagogia moderna

A pedagogia jesuítica emerge no seio da Igreja Católica tendo como instituição a ordem religiosa Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola em 1540 no contexto da Contrarreforma. Essa ordem assume o compromisso de propagar a fé com as missões, lutar contra os infiéis e heréticos e educar os jovens (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 177). Essa instituição funda escolas, seminários e universidades para os seus membros e para leigos e tem por modelo os ginásios protestantes, assemelhando-se à prática pedagógica dos Irmãos de Vida Comum (MIRANDA, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Lisboa: Esfera do Caos, 2009., p. 23).

A Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, ou como é mais conhecida Ratio Studiorum, materializa o discurso filosófico educacional da Companhia de Jesus com um deslocamento do pacifismo erasmiano (humanismo cristão) para assumir de forma incondicional a filosofia de Aristóteles e a filosofia escolástica de São Tomás de Aquino (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 177). Como regime escolar e currículo de estudos, a Ratio Studiorum é reconhecida em sua habilidade pedagógica e didática. Realça-se o modo como propôs uma regulamentação de estudos, na qual recorreu sistematicamente ao sentimento de emulação como importante forma de convencimento ao trabalho, ao estudo, pela distribuição pública de prêmios e o estímulo à delação por parte dos chefes de classe e dos decuriões (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 178). Essa prática era também o principal instrumento disciplinador (MIRANDA, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Lisboa: Esfera do Caos, 2009., p. 34-35).

Com base nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, a Ratio Studiorum constitui-se em um manual prescritivo e normativo de ações pedagógicas, coletivas e individuais dirigidas fundamentalmente para a juventude. Essa pedagogia teve forte adesão da opinião pública na época pela realização de cerimônias solenes, atribuição de prêmios literários no contexto das lições (disputas) públicas, orações inaugurais e com as grandes representações teatrais. Desses eventos participavam familiares dos alunos, membros das universidades e da hierarquia civil e eclesiástica (MIRANDA, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Lisboa: Esfera do Caos, 2009., p. 24). A lição na Ratio Studiorum aparece no contexto das XXX seções nas quais estão indicadas as regras para o provençal, o reitor, o prefeito dos estudos e os professores das diferentes faculdades e áreas disciplinares, as normas para exames, as regras para alunos e as regras para as academias. São lições das Sagradas Escrituras, lições privadas, lições públicas, lições de disputa, lições ordinárias, lições de casa. Vale dizer que esse programa de estudos alcançou vários países da Europa e também de outros continentes, como China e Brasil. Com efeito, “por meio deste documento, os jesuítas institucionalizaram efectivamente o ensino dos studia humanitatis e fizeram deles o distintivo de sua acção pedagógica” (MIRANDA, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Lisboa: Esfera do Caos, 2009., p. 25). Essa pedagogia predominou até 1773, quando foi dissolvida a Companhia de Jesus, inclusive com sua expulsão de várias localidades, tal como ocorreu no Brasil. A filosofia subjacente à Ratio Studiorum manteve uma forte influência em versões da pedagogia moderna.

A pedagogia moderna emerge no cenário da Revolução Industrial no final do século XVIII e meados do século XIX e, com ela, a lição consolida-se como ferramenta importante na transmissão da cultura e no processo de civilidade. Nesse cenário, as revoluções americana e francesa conduzem à ruptura com a prática feudal em diferentes aspectos e ao predomínio das ideias do Iluminismo. A moral no pensamento de Kant em convergência com o pensamento de Rousseau e de Locke afirma a educação como condição para a formação do homem verdadeiro. Por sua vez, os vínculos de interdependência entre diversas partes do mundo possibilitam que os acontecimentos em um continente repercutam em outros, particularmente entre a América e a Europa, permitindo, assim, a circulação dessa nova rede discursiva sobre educação. Essa rede discursiva constitui uma das positividades na instituição do que se reconhece como modernidade. A pedagogia moderna, nesse contexto, busca uma exigência metódica de inclusão no ensino dos novos métodos científicos e, nesse sentido, os métodos intuitivos, como aquele que passou a ser identificado como Lição de Coisas (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 202).

Essas são mudanças que ocorrem no contexto de transformações descontínuas, no sentido dado por Foucault em sua tese sobre as diferentes epistemes e os processos descontínuos. Essa tese se baseia no “fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo” (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugalia, 1996., p. 66).

Nesse cenário de mudanças, a pedagogia moderna é produzida e, ao mesmo tempo, ela mesma, com suas diferentes discursividades, produz a modernidade. Dentre essas discursividades, destacamos duas que são o esteio do método intuitivo materializado em Lições de coisas: a Didática Magna de Comenius e a educação intuitiva de Pestalozzi. Embora faça parte do contexto educacional do no século XIX, o método intuitivo tem como constelação discursiva os trabalhos do pastor protestante Comenius no século XVII com sua fecunda obra Didática Magna e os trabalhos de Giovanni Enrico Pestalozzi com seus argumentos filosóficos sobre a relação entre intuição e conhecimento. Com Comenius, temos a aplicação na educação da ideia de que nada pode ser objeto do intelecto se antes não tenha sido objeto dos sentidos. Pestalozzi é referência desse texto por aquilo que argumentou em defesa da ideia de que a forma, o número e nome são os elementos da intuição, que podem ser entendidos como algo que se assemelha à forma a priori do conhecimento, tal como na perspectiva kantiana. Assim, a forma corresponderia ao espaço; o número, ao tempo; e o nome, ao conceito (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1992ABBAGNANO, Nicola; VISALBERGHI, Aldo. Historia de la pedagogía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 323).

A quadragésima edição de Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores, de autoria de N. A. Calkins, publicada em 1861 nos Estados Unidos, foi a versão traduzida e adaptada no Brasil por Rui Barbosa e publicada pela Imprensa Nacional do Rio de Janeiro no ano de 1886. Para Barbosa (1886)BARBOSA, Rui. Preâmbulo do tradutor. In: CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas. Tradução de Rui Barbosa. 40. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886., a principal justificativa pedagógico para a adaptação desse manual pedagógico para educação no Brasil está em substituir a forma de ensino em suas práticas, que ele classifica como mecânicas e estéreis e que a criança em vez de ser

o mais activo collaborador na sua propria instrucção, como exigem os canones racionaes e scientificos do ensino elementar, representa o papel de um recipiente passivo de formulas, definições e sentenças, embutidas na infancia a poder de meios mais ou menos comprenssivos. (BARBOSA, 1886BARBOSA, Rui. Preâmbulo do tradutor. In: CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas. Tradução de Rui Barbosa. 40. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886., p. VI).

Em contraponto com a escola verbalista, formalista, propõe Barbosa um ensino que considere aspectos como a realidade, a intuição, o exercício dos sentidos, a observação. Barbosa recorre a F. Buissom para explicitar da melhor forma o método ao qual está associado como algo a ser utilizado em todas as práticas de ensino no Brasil naquela época:

  1. O ensino objectivo ha de adaptar-se ao caracter especial de meio de educar os sentidos. Essa educação consistirá em exercicios de observação, que desenvolvam a energia latente de cada sentido com particularidade a da vista.

  2. O fim principal do ensino intuitivo será desenvolver os modos de observar as condições de applicação às leis do pensamento. A estes denominaremos exercicios de reflexão.

  3. Outro instituto essencial seu é o desenvolvimento da linguagem, consistindo todas as lições desta ordem em exercicios de fallar, e escrever. Tudo está em summa (e nisto reside a intenção geral deste methodo) em reunir·o cultivo dos sentidos, o da razão, o da palavra, e encaminha-los todos ao mesmo passo. Na base primordial de tudo avulta a cultura dos sentidos, à qual cumpre recorremos, como o principal instrumento de todo o ensino (BARBOSA, 1886BARBOSA, Rui. Preâmbulo do tradutor. In: CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas. Tradução de Rui Barbosa. 40. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886., p. XII).

As regras do discurso da filosofia do espírito, das leis da evolução, do ensino objetivo, das características da infância e do desenvolvimento infantil nos enunciados das Lições de coisas de Calkins estão interpenetradas com o discurso religioso cristão, tal como vemos nesta passagem:

Se tomassemos por norma, no educar, essas leis que Deus prescreveu […] havíamos de dar início estudando os objectos, passar delles às palavras, […] como Deus quiz que fosse à acquisição do saber. (CALKINES, 1886, p. 7-8).

Essa interpenetração se traduz nos elementos ritualísticos tal como indicados nas seções que seguem.

Posições dos indivíduos no ritual da lição

A estrutura da ratio studiorum com seu conjunto de regras explícitas tem na prática do ritual da lição um dos procedimentos de imposição dessas regras aos professores a quem elas se dirigem como sujeitos ativos e aos alunos como sujeitos que recebem sua ação. O manual pedagógico Primeiras lições de coisas, de Calkins, tem nas orientações, nos conselhos aos pais e professores, as regras da educação e nelas a função dos sujeitos na relação educativa de acordo com as circunstâncias, ou seja, esse aspecto remete ao que pode ser dito e o que não pode em cada circunstância e ainda por quem de direito privilegiado (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.).

Papéis convenientes são produzidos em um jogo de verdade experimentado por relações assimétricas para as quais os rituais são elementos-chave (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1984., p. 66). Essas relações baseadas em um jogo de verdade são tecidas pela função enunciativa de diferentes formas de discursos que “veiculam, numa espécie de ir e vir incessante, formas de sujeição e esquemas de conhecimento” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1984., p. 101). Nas salas de aula, por exemplo, os sujeitos da educação, interpelados por professores a produzirem gestos específicos, repetitivos, cerimoniosos exercitam o ritual da lição.

Nas diferentes práticas educativas, o ritual da lição opera como a regra da relação de assimetria, de autoridade na definição dos papéis. Aquele que orienta a ação e aquele que obedece. Antes da aula, o sinal da cruz e a recitação da oração, composta para este fim, e que deve ser escutada pelo professor e por todos os alunos, atentamente, de cabeça descoberta (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 102). Para algumas disciplinas, a regra da recapitulação:

Durante meia hora, os alunos farão entre si uma recapitulação daquilo que acabaram de ouvir em grupos de cerca de dez. Um dos condiscípulos, se possível, jesuíta, presidirá a cada uma das decúrias” (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 140).

Nessas relações, no momento do ritual da lição ordinária, existem as práticas do silêncio pelo aluno no momento adequado ao escutar a lição, saber a hora de falar, de perguntar, de se aproximar do professor e de interrogá-lo no momento adequado. Para outras, há dias em que, em um determinado momento, quando terminada a lição, o professor permanece na sala, ou perto dela, ao menos durante um quarto de hora, para que os alunos possam se aproximar e interrogá-lo e para que, por vezes, ele próprio possa também interrogá-los sobre a lição e fazer com que a repitam (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 104).

O aluno faz a repetição da lição da véspera e a repetição da lição do próprio dia sempre do mesmo modo; o professor escuta, analisa, valora. Cada lição é feita por um só aluno na sua totalidade, ou por pares distribuídos a vários alunos, mas com uma ordenação valorativa:

[…] primeiro os melhores, e depois também os outros repetirão os pontos mais importantes e os mais úteis, em resposta contínua ou interrompendo a cada pergunta do professor. (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 186).

Nas lições diárias, nas da academia e, principalmente, nas públicas, de disputa e de teatro, observam-se, com a reserva de lugares distintos, separados dos externos para os jesuítas e outros religiosos, os papéis de cada um no processo educativo (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 244).

É na ação ritualística e quase cerimoniosa que, de forma ritmada, diária, com uma postura de observador e registrador, professores e decuriões vão operando a diferenciação na relação pedagógica. O professor observa

[…] aqueles que parecerem mais aptos para cada matéria, mais doutos, mais diligentes e assíduos, e mais capazes de garantir o progresso dos estudantes. (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 58).

Os decuriões nomeados pelo professor da disciplina assumem um papel singular de intermediários entre os colegas e o professor, pois têm como tarefa ouvir os seus companheiros recitar de cor as lições, entregar depois as respectivas composições ao professor e anotar por escrito todos os casos em que cada um cometeu uma falta de memória, não fez o trabalho escrito, ou não trouxe o segundo exemplar, assim como observar tudo aquilo que o professor lhes prescrever (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 192). Essas ações indicam as relações assimétricas que estão explicitadas no conjunto de técnicas de poder, a exemplo de outras ações que vem complementar: disciplina de costumes, ensino da doutrina cristã, prêmios, disputas (debates, defesa de uma tese ou questão), fiscalização dos apontamentos dos alunos, lição de casa diária no caso da ratio studiorum.

O aspecto dogmático do verdadeiro se dá pelo status de quem define a ordem, no ritual da lição:

[…] depois de ler o título, o professor indicará brevemente a conclusão de São Tomás ou então dirá ‘São Tomás reponde negando ou afirmando’ […] diga a conclusão principal de São Tomás e por fim também as outras. A cada conclusão acrescente alguma das razões do mesmo [autor], e explique de modo que os discípulos entendam que as distinções e argumentos de São Tomás têm mais força do que à primeira vista pode parecer. (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 126).

Sobre o ritual e ordem, Peirano (2002)PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40., inspirada em Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna: Il Mulino, 1995., indica como o ritual pode ser identificado, inclusive por “uma ordenação que o estrutura”, aspecto muito presente nas Primeiras lições de coisas. Nessa abordagem da lição, existe a relação ritualista da lição e a ordem. Aprende-se na lição não apenas um conteúdo de ensino, mas também o que significa a sua vez de falar, perguntar, dirigir-se ao mestre (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 227), a ordem da proposição, o modo de enunciar do mestre, a resposta instantânea da criança (tempo e espaço). Orienta-se na lição:

Dirigi-vos às creanças uma a uma. Estas, ao appelIo do mestre, ergam-se instantaneamente, e pronunciem o nome de algum dos objectos visiveis no recinto da escola. […] Adestrem-se os alumnos, de modo que nenhum intervalie medeie entre o sentar-se um, delIes, e levantar-se […] Preparae-o; de sorte que cada qual responda apenas se levante, sente-se logo após, e succeda-lhe o immediato. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 43).

O ritual da lição comporta uma ordem em um tempo, nesse sentido, a proposição é observar e seguir “na ordem natural mostrando assim a oportunidade propria de cada lição” (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 56). Apresentam-se os passos a seguir nos exercícios para compreensão das figuras, e ainda alerta Calkins:

Em caso nenhum se altere a ordem, na qual se acham graduados os passos de cada assumpto, não se encetem exercicios do segundo, ou terceiro passo, enquanto os alumnos não tiverem familiarizado com o primeiro passo do assumpto. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 56).

Nessa ordem, eis o mestre que aponta, mostra, pergunta, faz ler, faz escrever, chama a atenção; o aluno que responde, lê, escreve, obedece. Identificam-se quem pergunta e quem responde e de forma adequada na relação de poder assimétrica. Quem escolhe o conteúdo, a forma, quem diz se está correto ou errado:

O mestre (empunhando perante a aula um canivete): Que vem a ser isto? Os alumnos: Um canivete. Mestre: Que posso fazer com ele? Alumnos: Cortar; aparar; talhar varias coisas. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 37).

Outro aspecto é o hábito e a ação de recapitular já consolidada no ritual da lição no contexto da Ratio studiorum.

Familiarizados os meninos com a maior parte das formas que vimos, de expor nas lições precedentes, revela habitual ao applicarem praticamente as noções adquiridas, descrevendo fórmas de objectos. Esses exercicios servirão de recapitular as lições de fórma, e torná-las mais prestadias aos alumnos para depois que deixarem a escola e se forem entregar às lidas ordinarias da vida. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 158).

A repetição é tida como uma prática do ritual da lição operando no modo de aprender. Nesse sentido, surge a orientação:

Repita-se tres ou quatro vezes a lição acerca de cada grupo de cores, de maneira que o menino seja levado a ampliar as suas observações, e habilitem-se a fornecer de objectos de cada côr listas mais extensas […]. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 206).

No ritual da lição, o rememorar, recapitular é um modo de ensinar: “Seja este ensino variado e completo como nos outros numeros, recapitulando-se cuidadosamente por meio de perguntas concernentes a numeros concretos” (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 266).

Recapitulação das combinações – Bem ensina as combinações, pela maneira que ahi se deixa expendida importa recapitulá-las em ordem diversa. Constitue essa recapitulação tarefa apropriada a classe immediatamente superior àquella, em que primeiro se leccionaram essas combinações. As taboas seguintes indicam um plano conveniente para a recapitulação a que ora se allude. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 282-283).

Há também a recapitulação e variação como uma forma de capturar o aluno para o aprendizado, ou seja, como uma técnica de poder:

[…] as recapitulações não hao de ser simples repetições da taboada, sob a mesma fórma em que se ensinou. Sem variedade não se capta a attenção das creanças […]. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 320).

O ritual da lição exige um ritmo. Nesse sentido, recomenda-se como verdadeiro que “Haja a maior cautela em não atropelar, ou precipitar o ensino, nestes primeiros passos [no caso a lição de somar]” (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 270).

Quem conhecer a compleição do espirito infantil e os processos por que adquire o saber, não cuidará em obter das creanças que vençam muito terreno de uma vez. Tal systema privaria o ensino do seu poder educativo da sua efficacia como cultura do entendimento do menino. A regra, nos primeiros passos de toda a instrucção primaria, ha-de ser sempre; apresentar as idéas, os factos, as difticuldades cada um de per si, de modo que cada embaraço naturalmente se resolva por sua vez. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 270).

Esse aspecto ritualístico da ordem diz da disposição do saber a ser ensinado como campo de conhecimento, mas diz também da disposição dos sujeitos desses saberes em relação ao conhecimento. Essa é a questão que desenvolvemos na seção que segue.

Gestos, comportamento e performatividade

Sontag (1987)SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. observa o modo como o ritual opera, próximo do que se entende como jogo. Nesse sentido, o ritual pode ser concebido como um conjunto de normas, sendo que o jogo obedece ao esquema dessas normas, tal como a linguagem, entendendo que todo comportamento “é uma linguagem, um vocabulário e uma gramática da ordem” (SONTAG, 1987SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987., p. 97). Nesse jogo, a lição é percebida como uma ferramenta do discurso pedagógico na normalização de saberes e de sujeitos. Essa normalização ocorre pela ação performativa da linguagem, que, por sua vez, se dá pelo funcionamento da linguagem não em termos denotativos, mas performativos, conforme Peirano (2002)PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40.. Nesse aspecto, o ritual é visto como um sistema construído culturalmente, como um sistema comunicativo em contextos específicos; dito de outro modo, o ritual pode ser entendido como um complexo de palavras e ações em interconexão.

A eficácia do ritual, diz Peirano (2002)PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40., deriva do caráter performativo do rito em três sentidos: no sentido de que dizer é fazer como ato convencional; no sentido de uma performance com uso de diversos meios de comunicação por meio dos quais os participantes experimentam intensamente o evento e no sentido de remeter a valores que são vinculados ou inferidos pelos atores durante a performance (PEIRANO, 2002PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (Org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2002. p. 17-40., p. 27).

No ritual da lição, o gesto é importante, é um saber que deve ser aprendido. O gesto deve se tornar, pelo hábito, pela repetição e pela aprovação, familiar e regular e poder ser incorporado no seu cotidiano. Os gestos, tal como analisa Foucault (1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 1984., p. 74), fazem parte da economia de poder que se instalou entre os séculos XVIII e XIX no contexto de grandes transformações como uma mecânica de poder que “em sua forma capilar de existir […] atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana”.

No ritual da lição, o aspecto da performatividade no contexto da Ratio studiorum está na teatralização e simbolização das lições públicas com o louvor, as recompensas, os castigos, os prêmios, as insígnias de honra, no estímulo das relações de liderança e de rivalidade.

É nas lições públicas que a prática ritualística da lição toma força e visibilidade. Ao gesto do sinal da cruz antes de iniciar a lição ordinária, acrescenta-se o modo eloquente e elegante na lição pública. Em uma das orientações de regras da Ratio studiorum, afirma-se a orientação: “de tempos em tempos, em vez da lição ordinária, designe-se um dos alunos para expor de forma elegante e desenvolvida, algum passo mais conhecido da Sagrada Escritura” (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 116). “A eloquência tem em vista não apenas a utilidade do discurso mas também a sua elegância” (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 198). Essas lições apresentam princípios regulares da ação ritualística: a teatralização, a simbolização, a performatividade.

As lições públicas eram mensais ou bimensais. Nessas lições, o ritual exigia elegância e eloquência para solução pública de um problema de matemática ou a declamação de um poema sempre na presença de um público alargado de filósofos e de teólogos. Depois da apresentação, submete-se à arguição. (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 146). Nesses dias de lições públicas com maiores solenidades, emblemas e poemas são afixados em lugares públicos e lidos previamente por duas pessoas designadas pelo reitor, as quais fazem a seleção das melhores (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 148). Nessas ocasiões, em que há a cena do espetáculo, que comporta o cuidado com as vestes, recomenda-se a elegância, aprimora-se o tom de voz. São realçados os atributos de quem apresenta, de quem julga, de quem é visto, de quem é olhado. Os espectadores julgam, observam a cena e a encenação, no jogo da encenação. Uma semântica apropriada dá a ordem das relações. Esse modo de lições públicas, muitas vezes em teatros, desempenhou um importante papel nos colégios e universidades dos séculos XVI e XVII, mas de modo particular na história da educação da Companhia de Jesus. Essas lições públicas exprimem mais do que a verdadeira paixão que as representações dramáticas despertavam, nos colégios e na sociedade (MIRANDA, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Lisboa: Esfera do Caos, 2009., p. 84), a nosso ver exprimem os aspectos ritualísticos da lição. Por exemplo, as lições públicas de estudantes de retórica, com a presença não apenas dos retóricos e dos humanistas, mas também dos estudantes das classes superiores (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 162). Nessas lições, todos tinham uma função na estratégia pedagógica principal: punição e recompensa. Os erros cometidos contra as regras são indicados de modo que possam ser emendados e são corrigidos por pares de adversários publicamente. Enquanto essa correção se faz publicamente, “cada aluno irá lendo e emendando individualmente a primeira cópia do seu trabalho (que deverá sempre existir, além daquela que se entrega ao professor)” (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 184). Aos que tiverem bons trabalhos, a recompensa. Aqui, a simbolização dos valores nas provas, a retirada da lição ordinária para um recinto público, a avaliação pública suportada em silêncio e a correção dos erros em público rememoram o supliciamento pelos erros, a emulação e o desejo de ser o Outro. A espera pela insígnia, emblemas recebidos de público, o elogio, a recompensa. O enfrentamento do momento com dignidade. Nessas lições, o ritual dos alunos sob a orientação do professor se dá não apenas em relação ao trabalho que será apresentado em público, mas que “os alunos treinem também a voz, o gesto e toda a sua actuação com a maior dignidade” (CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS, 2009CÓDIGO PEDAGÓGICO DOS JESUÍTAS. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Lisboa: Esfera do Caos, 2009. Introdução, versão portuguesa e notas de Margarida Miranda., p. 190).

Nas lições ordinárias, o ritual funciona para induzir a aprendizagem e o controle da personalidade humana pela doutrinação. O método celebrava o ritual da memorização, palavra por palavra, do material a ser assimilado. Confirma-se o lema repetitio mater studiorum (o ritual da repetição é a mãe da aprendizagem). Eis, então, o ritual da lição e as relações entre instrutores e alunos marcadas pela submissão aos instrutores, num jogo de sentimento de dever, amor aos pais, desejo de louvor, temor da desgraça, recompensas e castigos, comportamento respeitoso, silêncio e compostura. Esses comportamentos e gestos fazem parte do ritual da lição do cotidiano ou ordinária.

Nas Primeiras lições de coisas, o comportamento é suscitado nas práticas ritualísticas. A lição e o modo de olhar e a justificativa “os olhos são a janela da alma” (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 161). É possível identificar a memória discursiva desses enunciados: a civilidade de Erasmo de Rotterdam ao incluir o modo de olhar uma de suas lições sobre atitudes corretas e incorretas lembrando com os antigos que “a alma tem sua sede nos olhos” (ROTTERDAM, 2008ROTTERDAM, Erasmo. De pueris e a civilidade pueril. 2. ed. São Paulo: Escala, 2008., p. 125).

O modo de ser para leitura, no ritual da lição, que diz o lugar do corpo, a movimentação do corpo, os gestos, a interação com o outro, dá-se tal como o conselho ao mestre:

Ensinar a creança a pegar no livro; a passal-o a outrem; a segural-o, na attitude da leitura; a achar paginas a descobrir, destacadamente, no texto, palavras conhecidas; […]; a acertar com o logar da lição. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 449).

Há uma proposição do modo de ler a lição, não apenas o conteúdo, mas o jeito de ler, o modo de se comportar com espontaneidade e independência:

Prosegui nestes mesmos exercicios, para ensinar a maneira de ler a lição. Não comeceis jamais a lição, lendo-a aos discipulos, uso que habitua os meninos a esperarem do mestre o pensamento expreso nas palavras e a arte de lel-as. Releva ensinar a ler de modo que o alumno adquira o habito de espontaneidade e independencia, a disposição de contar comsigo mesmo, que não tardará em se desenvolver, resolvendo-se na aptidão de ler à primeira vista novas lições, urdidas, em sua maior parte, de vocabulos já estudados. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 451).

Não são apenas maneiras de fazer a lição, mas proposições também sobre o modo de ser e de estar no mundo, já que indicam lições como: “[…] Cuidadoso. Devo ser cuidadoso com os meus livros. Obediente. Sou obediente, quando faço o que manda minha mãe. Attento. Procuro ser attento às minhas lições” (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 453). Trata-se do ritual da lição e o discurso de performatividade do ator, o professor, mestre pelo dom, com o dom da sedução e da prática do entusiasmo.

No ritual da lição, há o ritual da palavra do aluno, da narrativa sobre si para dizer de seus sentidos, sua experiência: falar sobre o que comem, o que cheiram, o que apalpam, o que fazem, aonde vão, como vão, o que trajam, e também sobre o que não lhes agrada ver, o que não gostam de ouvir, o que não querem saborear, o que não desejam cheirar o que não estimam palpar, o que não lhes apraz fazer, aonde lhes agrada ir, etc. (CALKINS, 1886CALKINS, Norman Allisson. Primeiras lições de coisas: manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da 40. ed. e adaptado às condições do nosso idioma e países que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa., p. 45). Há algo mais forte no processo de subjetivação do que o narrar a si mesmo, refletir sobre si? Foucault, em seus estudos sobre a escrita de si, observa que tais práticas, importantes na autonomia nas civilizações greco-romanas, foram assumidas “nas sociedades disciplinares pelas instituições religiosas, pedagógicas ou médica e psiquiátrica” (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: MOTA, Manuel B. da (Org.). Michel Foucault, ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 144-162., p. 265). Ou seja, não com a mesma função enunciativa da prática grega, e sim com uma função disciplinar.

Comentários finais

Pretendeu-se que esta análise possibilitasse um olhar sobre os aspectos ritualísticos da lição e sua relação com os processos educativos dos sujeitos da educação. Tendo como referentes o modo de problematizar os rituais de Foucault, Peirano e Sontag em seus aspectos mais amplos e o modo de analisar os rituais da escola de Rivière, dialogamos ao mesmo tempo com o debate sobre as pedagogias jesuítica e moderna, trilhamos um caminho na busca de chamar a atenção para a prática discursiva da lição tão cara e naturalizada no campo pedagógico. Para essa finalidade, fizemos a análise de duas discursividades importantes no campo pedagógico, a pedagogia jesuítica e a pedagogia moderna em seus textos de referência: a Ratio studiorum e uma das versões de Primeiras lições de coisas.

A lição não é apenas uma ferramenta pedagógica na transmissão de conteúdos. Como uma prática discursiva no campo educacional, ela tem função ritualística, seja no sentido de ordem, de atividade ou performatividade ao operar na formação dos indivíduos. Com isso, não se quer estabelecer uma relação de causa e efeito e nem dizer que as experiências da lição nos processos de escolarização têm uma continuidade, uma semelhança. O que é possível dizer é que, nas discursividades analisadas, pode-se observar uma regularidade que se mantém no que se refere aos enunciados reitores desses aspectos ritualísticos, um dos primeiros aspectos sagrados oriundos do discurso religioso cristão. Há, no ritual da lição, elementos das práticas ritualísticas religiosas, a exemplo do sinal da cruz, do silêncio, das práticas de preparação, do gesto de abaixar a cabeça, da punição, da recompensa, das insígnias. Outro aspecto nessas discursividades é a função ritualística da lição na produção do discurso da verdade. A verdade é aqui entendida como “um exército móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, de uma palavra, uma soma de relações humanas que foram […] transpostas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, canónicas e vinculatórias…” (NIETZSCHE, 1997NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: obras escolhidas. Lisboa: Relógio D’Água, 1997., p. 221). Observamos também rituais transformados, atualizados, a exemplo das repetições, recapitulações resultantes de outros modos de pensar o conhecimento, outros modos de operar no processo educativo, outras articulações discursivas.

As práticas de performatividade, por exemplo, são diferentes nas discursividades analisadas: uma se move com mais foco no jogo da punição e recompensa e nos jogos de emulação, e a outra com as práticas de falar de si de forma repetitiva. Vale dizer que o ritual da lição, com seus jogos e regras, se mantém nos textos didáticos na cena enunciativa das tarefas, nas quais se propõem as narrativas de si a partir de modelos. Nos tempos recentes, esses rituais têm sido aprimorados nos processos de escolarização por meio de dispositivos curriculares como as histórias de vida, as cartas aos amigos, histórias pessoais, seja mediante histórias que falem de costumes, artes de ser e de viver de antepassados ou histórias de personagens. Para além das narrativas de vida, há uma gramática voltada para as situações de recuperação de autoestima, autoimagem, autonomia e de relação direta com a construção de subjetividades. Os modos de fazer a lição, mesmo mudando da mesa para o computador, exigem um ritual singular que vai operar no modo de organizar o tempo do sujeito escolarizado e, ao mesmo tempo, situá-lo no ritual do verdadeiro na lição.

Faz-se notar, contudo, que não se trata de valorarmos essas práticas e muito menos dizer que são ruins para a prática pedagógica. Trata-se mais de mostrar os rituais escolares como operadores de diferenciação, identidade e subjetividade, o que significa que o que está apresentado neste artigo deve ser entendido como um dos movimentos para análises futuras sobre a lição em seus diferentes aspectos.

  • I
    Este trabalho foi apoiado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPE - Propesq/UFPE e pela Fundação de Amparo à Ciência e a Tecnologia de Pernambuco (Facepe) por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no período de 2011-2014.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2015
  • Aceito
    16 Fev 2016
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