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Corporeidade e epistemologia da complexidade: por uma prática educativa vivencial

Resumo

Este estudo foi concebido com o objetivo de apresentar uma proposta didático-metodológica fundamentada em uma visão complexa do ser humano. A busca por tal concepção de ser humano, pressuposto filosófico de qualquer pedagogia, advém da necessidade de pensar uma prática educativa que assuma as várias dimensões humanas inerentes a esse processo, ultrapassando a perspectiva de uma educação fragmentadora. Para tanto, é apresentado o conceito de corporeidade fundamentado na obra O método, de Edgar Morin. Essa obra propõe uma epistemologia complexa que indica caminhos para a articulação das três grandes esferas do conhecimento, a saber: física, biologia e antropossociologia, a partir de três princípios epistêmicos: recursivo, dialógico e hologramático. Partindo dessa perspectiva epistemológica, fundamenta-se o conceito de corporeidade, o qual permite compreender o ser humano em quatro dimensões indissociáveis: físico-motora, afetiva-relacional, mental-cognitiva e sócio-histórico-cultural. Provido dessa concepção de ser humano, são expostos os fundamentos e princípios do método de aprendizagem vivencial, bem como um modelo estrutural para a elaboração de planos de aulas vivenciais. Por fim, o estudo busca evidenciar teoricamente que o método de ensino apresentado é uma proposição didático-metodológica que se coaduna com as propostas curriculares interdisciplinares e transdisciplinares. Além disso, possibilita uma prática educativa que tem como finalidades: ensinar a condição humana, ensinar a viver, ensinar a organizar e religar os saberes e refazer uma escola de cidadania.

Corporeidade; Prática educativa vivencial; Epistemologia da complexidade

Abstract

This study was devised in order to present a didactic-methodological proposal based on a complex vision of human beings. The search for this notion of a human being, the philosophical assumption of any pedagogy, stems from the need to think of an educational practice that takes on the various human dimensions inherent to this process and goes beyond the perspective of a fragmentary education. As such, the concept of corporeality, based on Edgar Morin’s work The Method, is introduced. This article offers a complex epistemology that points out ways for combining the three great spheres of knowledge, that being physics, biology and anthroposociology, from three epistemic principles: recursive, dialogic and hologramatic. The concept of corporeality is grounded based on this epistemological perspective. It allows for an understanding of the human being in four intrinsic dimensions: physical-motor, affective-relational, mental-cognitive and socio-historical-cultural. Provided with this conception of human being, the foundations and principles of the experiential learning method are revealed, along with a structural model for planning experiential classes. Lastly, the study seeks to theoretically demonstrate that this teaching method is a didactic-methodological approach that is consistent with the interdisciplinary and transdisciplinary curriculum proposals. It also facilitates an educational practice that intends to: teach the human condition, teach experiences, teach how to organize and reconnect knowledge and recreate a school of citizenship.

Corporeality; Experiential educational practice; Epistemology of complexity

Introdução

As discussões envolvendo a problemática da corporeidade, na área de conhecimento da Educação Física (EF), ensejam um conjunto de perspectivas teóricas (DAOLIO, 1995DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. 6. ed. Campinas: Papirus, 1995.; FREIRE, 1991FREIRE, João Batista. De corpo e alma: o discurso da motricidade. São Paulo: Summus, 1991.; GONÇALVES, 1994GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.; SANTIN, 1987SANTIN, Silvino. Educação física: uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: Unijuí, 1987.; SÉRGIO, 1989SÉRGIO, Manuel. Educação física ou ciência da motricidade humana? Campinas: Papirus, 1989.) que objetivam estabelecer uma visão que supere as dicotomias e as simplificações para a compreensão da relação entre corpo, mente e sociedade-cultura, bem como propor uma concepção de ser humano que, assumida como princípio pedagógico, permita desenvolver práticas corporais educativas. Ao transpor ao campo de conhecimento da pedagogia, e guardando as mesmas finalidades aqui referidas, a corporeidade apresenta-se como uma concepção de ser humano para a educação, a partir de uma perspectiva que reconhece a complexidade da condição humana e que se propõe a lidar com ela na prática educativa.

O conceito de corporeidade defendido neste trabalho está fundamentado na obra O método de Edgar Morin (1986, 1997, 1998, 1999, 2002). Essa obra estabelece uma base epistemológica e lança uma proposta teórica, especificamente no que concerne uma noção de corporeidade, que evidencia e alicerça pontes que possibilitam a comunicação entre as várias áreas do conhecimento e, ao mesmo tempo, entre as várias dimensões que constituem o ser humano. A peculiaridade da obra permite estabelecer uma visão complexa acerca do ser humano, reconhecendo a relação entre o todo e as partes que o constituem, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar o entendimento das partes e, consequentemente, do todo.

A delimitação do referido conceito de corporeidade a partir da obra de Edgar Morin, bem como seus impactos na prática pedagógica foram apresentados nos trabalhos de João (2003)JOÃO, Renato Bastos. Corporeidade e aprendizagem vivencial: uma perspectiva da complexidade humana para a educação. 2003. 163f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2003. e João e Brito (2004)JOÃO, Renato Bastos; BRITO, Marcelo de. Pensando a corporeidade na prática pedagógica em educação física à luz do pensamento complexo. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 213-301, 2004. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rbefe/ article/view /16567 /18280>. Acesso em: 25 out. 2017.
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. No presente trabalho, as reflexões teóricas que serão desenvolvidas apresentam uma proposta didático-metodológica delineada a partir do referido conceito de corporeidade. Intitulada de método de aprendizagem vivencial, essa proposta está imbuída do desejo de que, através dessa relação entre a concepção de ser humano que se assume e a coerência recíproca com princípios metodológicos de ensino, se estabeleça uma discussão que nos auxilie no desenvolvimento de reflexões e de práticas que nos conduzam à concretização de uma proposta de educação integral.

Dessa forma, o objetivo que orientou o presente trabalho foi o de apresentar reflexões teóricas para uma proposta didático-metodológica fundamentada em uma visão da corporeidade humana delineada a partir da epistemologia da complexidade.

Concepção de mundo, de ser humano e de sociedade: três pressupostos de uma filosofia da educação

A educação é uma prática humana que acompanha a história da espécie humana. Desde sempre os seres humanos educaram, no sentido de direcionar a existência humana em suas várias dimensões. Como destaca Anísio Teixeira (1969, p. 9 apud LUCKESI, 1991LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1991., p. 31):

[...] muito antes que as filosofias viessem expressamente a ser formuladas em sistemas, já a educação, como processo de perpetuação da cultura, nada mais era do que o meio de se transmitir a visão do mundo e do homem, que a respectiva sociedade honrasse e cultivasse.

Contudo, as primeiras formas de educação não eram acompanhadas de uma reflexão crítica e sistematizada, não constituíam um corpo de conhecimento organizado. No ocidente, apenas com o advento da filosofia na Grécia Antiga é que o conhecimento passou a ser fruto de uma reflexão crítica, sistemática e organizada, ganhando o status de ser um conhecimento racional. Desde então, os filósofos elaboraram sistemas filosóficos que incluíam reflexões acerca da educação, as quais se organizaram em concepções de educação, fundamentadas nas suas cosmovisões (visão de mundo).

Uma concepção filosófica da educação é o fundamento de uma pedagogia ou uma tendência pedagógica. A concepção filosófica da educação, de uma tendência pedagógica, está fundamentada na visão de mundo de um determinado sistema filosófico. Em outras palavras, um sistema filosófico apresenta reflexões que se constituem em um corpo de conhecimento que busca compreender o mundo e a existência, dando-lhe um sentido e um significado que direcionam a ação humana. É a partir dessa forma específica de compreender o mundo que se propõe uma concepção filosófica da educação, uma pedagogia (LUCKESI, 1991LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1991.).

Uma pedagogia é elaborada e determinada a partir de uma visão de mundo. A visão de mundo de um sistema filosófico traz consigo uma visão de ser humano, uma forma de compreendê-lo, uma definição que busca explicar o que ele é. Além disso, apresenta uma visão da sociedade, isto é, uma forma de conceber e estabelecer uma organização social.

Esses três aspectos de um sistema filosófico, visão de mundo, de ser humano e de sociedade, estão presentes como três pressupostos centrais da concepção filosófica da educação desse mesmo sistema filosófico. É a partir deles que se fundamenta uma pedagogia (uma concepção filosófica da educação) e, consequentemente, se direciona e realiza uma prática pedagógica.

Com os argumentos até aqui expostos, pode-se compreender a importância de se eleger e explicitar como tema de investigação a construção de uma concepção de ser humano, indissociada da sua visão de mundo e de sociedade, e a partir dela delinear uma proposta didático-metodológica para a prática educativa. A proposta que será delineada ao longo deste trabalho buscará expor uma concepção de ser humano que reconheça e envolva as várias dimensões que constituem a condição humana.

Por essa razão, a intenção deste trabalho é apresentar uma concepção de ser humano, fundamentada a partir de uma posição monista, ou seja, que reconheça a relação indissociável entre as várias dimensões que constituem o ser humano e, do mesmo modo, apontar para a necessidade de uma proposta didático-metodológica que possibilite lidar com essa indissociabilidade das dimensões humanas.

Por uma epistemologia da complexidade para pensar a corporeidade

Para se defender uma epistemologia da complexidade como matriz para se pensar e definir uma noção de corporeidade se faz necessário explicitar a especificidade de tal epistemologia, já que em um contexto mais amplo se encontram diferentes epistemologias, a partir das quais se propõem outras concepções acerca da corporeidade. Assim sendo, cabe destacar, de maneira breve e para os fins deste trabalho, a problemática da complexidade.

Antes, dá-se atenção a palavra complexidade. Conforme esclarece Morin (1990MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Dulce Matos. 2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990., p. 7), “a palavra complexidade não possui uma nobre herança filosófica, científica ou epistemológica”. Isto porque o conhecimento científico foi concebido a partir da missão de dissipar a aparente complexidade dos fenômenos, buscando revelar a ordem simples a que obedecem. Nesse sentido, considerando que a sua tendência à simplificação produziu a mutilação dos fenômenos investigados, impossibilitando a sua compreensão naquilo que se identificou inicialmente como aparente complexidade, é preciso se reconhecer a necessidade de encarar a complexidade dos fenômenos e das realidades de modo não simplificador.

Por essa razão, considerando que a palavra complexidade suporta uma pesada carga semântica, porque traz consigo o sentido de complicação, confusão, incerteza e desordem, é necessário explicitar que o que é complexo não pode ser resumido em uma palavra mestra, não pode ser reduzido a uma lei ou a uma ideia simples. Ou seja, o complexo não pode ser resumido na palavra complexidade, não pode ser reduzido a uma lei ou ideia de complexidade. Nesse sentido, Morin (1990MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Dulce Matos. 2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990., p. 8) afirma que a complexidade é uma palavra problema e não uma palavra solução.

Assim sendo, evidencia-se a necessidade de um pensamento complexo a ser construído progressivamente ao longo de um caminho, no sentido mesmo que a palavra método traz, mas de forma a reconhecer que é um caminho sem caminho, é um caminho que se constrói ao caminhar. Nele, reconhecem-se primeiramente os limites, as insuficiências e as carências do pensamento simplificador e, depois, os desafios da complexidade, que as condições fenomênicas nos impõem (MORIN, 1990MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Dulce Matos. 2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.).

Ao assumir propriamente a problemática da complexidade, Morin ([1980MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, [1980?].?], 2000) afirma que é surpreendente que ela não tenha emergido tanto na epistemologia quanto na filosofia das ciências. No que concerne ao importante e decisivo debate anglo-saxônico acerca da filosofia das ciências, com as contribuições de Popper, Kuhn, Feyerabend, Lakatos, entre outros, ainda assim, e mesmo nesse contexto, o problema da complexidade não foi colocado.

Entretanto, e apesar de não ser descoberto e compreendido no contexto da filosofia das ciências, conforme explicita Morin ([1980MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, [1980?].?], 1990), Gaston Bachelard foi um filósofo que falou profundamente da complexidade. Além de seus trabalhos, será a partir das questões suscitadas pelo segundo princípio da termodinâmica à cibernética e à teoria da informação que a necessidade de uma ciência da complexidade é anunciada, ainda que para os contextos dessas teorias a palavra complexidade tenha o sentido de ser uma teia emaranhada de ações, interações e retroações informacionais que nem a mente humana, tampouco um supercomputador poderiam tratar.

Ainda com relação à tradição filosófica, Morin ([1980MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, [1980?].?]) coloca que em diferentes momentos a problemática da complexidade emergiu na história da filosofia. De Heráclito a Hegel, todos aqueles que enfrentaram o problema da contradição foram pensadores da complexidade. Pascal, na explicitação da complexa relação entre o todo e a parte e a parte e o todo que constituem todos os fenômenos; Leibniz, com a sua monadologia; as contribuições de Marx e de marxistas contemporâneos, tal como Georges Lukács, ao dizer que o complexo deve ser concebido como elemento primário existente (MORIN, 1990MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Dulce Matos. 2. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.). E o último Wittgenstein, da linguística, que evidencia a dificuldade da palavra que quer agarrar o inconcebível e o silêncio.

Brevemente situada a problemática da complexidade na filosofia, de um modo geral, e na filosofia da ciência anglo-saxônica, Morin ([1980MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, [1980?].?]) destaca a sua relação com dois fundamentos do conhecimento científico que, na ótica positivista, eram seguros e absolutos: a objetividade dos enunciados científicos estabelecida pelas verificações empíricas e a coerência lógica das teorias que se fundavam nesses dados objetivos.

No desenvolvimento das discussões epistemológicas ao longo do século XX, esses fundamentos foram criticados pela própria tradição anglo-saxônica, que partia inicialmente de uma posição positivista, repercutindo no contexto geral da filosofia da ciência. Assim como também pela tradição da Escola de Frankfurt, com suas diferentes críticas ao positivismo, e em específico aos fundamentos da neutralidade científica. A crise desses fundamentos, juntamente com outras evidências do caráter mutilador do conhecimento científico, conforme compreende Morin ([1980MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, [1980?].?], 1986-1996, 1990, 2000), indica a necessidade de uma epistemologia da complexidade.

No esforço de caminhar no sentido de enfrentar os obstáculos e limites de um pensamento simplificador, que unilateralmente estabelece a disjunção entre os entes fenomênicos, mantendo-os separados e fechados em si mesmos, reduzindo-os a um elemento simples e expulsando aquilo que não cabe em um esquema linear, é que Morin empreendeu O método. Trata-se da obra na qual estabelece os princípios epistemológicos de um conhecimento que reconhece a complexidade e desenvolve, inicialmente, as pontes entre as três esferas do conhecimento: física, biologia e antropossociologia, apontando para a multidimensionalidadade da realidade.

Em síntese, a epistemologia da complexidade propõe três princípios para a produção do conhecimento, conforme explicita Morin (1986-1996): o recursivo, que permite reconhecer os processos em que os produtos e os efeitos são necessários à sua produção e à sua causação; o dialógico, que permite reconhecer os fenômenos nos quais é preciso ligar termos antagônicos, ou mesmo contraditórios, para apreender a sua realidade; e o hologramático, que permite reconhecer, em tudo o que é complexo, que não só a parte está no todo, mas que o todo está na parte.

Epistemologia da complexidade: por um pensamento que reconheça a circularidade dos processos fenomênicos

Ao nível do paradigma2 2 - A definição de paradigma proposta por Morin considera que “um paradigma contém, para todos os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo em que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos e categorias” (MORIN, 1998, p. 268). Na perspectiva deste autor, podemos observar a existência de um grande paradigma do Ocidente formulado por Descartes e difundido ao longo do desenvolvimento Europeu desde o século XVII. Este paradigma vem determinando os conceitos soberanos e prescrevendo a relação lógica – a disjunção. , a epistemologia da complexidade propõe a junção de noções até então disjuntas, associa aquilo que era considerado antagônico, sem ignorar o antagonismo. Estabelece um circuito recorrente do conhecimento (recursividade), entendido a partir da noção de anel, trabalhando com o isolar e o ligar, com a análise e a síntese. Por isso, não rejeita a simplificação/disjunção, mas a torna princípio relativo. Da mesma forma, não repele a análise e o isolamento, mas obriga a incluí-los não só em um metassistema, mas, também, em um processo ativo e gerador de conhecimento (MORIN, 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997.).

Essa maneira de pensar que busca assumir o complexo foi suscitada pelo desafio de articular, no nível epistemológico, descobertas na física, ocorridas ao longo do processo que vai da segunda metade do século XIX até o fim do século XX. Dentre elas, por exemplo, Morin (1997)MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997. destaca a concepção de uma ordem absoluta no cosmo, referida à concepção newtoniana, e a ideia de desordem no seio dessa mesma aparente ordem mecânica, advinda dos novos desenvolvimentos da termodinâmica, a partir de Prigogine.

Ao partir dessas e de outras questões trazidas pela física e pela biologia ao longo do século XX, a epistemologia da complexidade indica um novo tipo de junção de noções chaves, denominada por Morin (1997)MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997. de anel3 3 - A ideia de anel é definida a partir das noções de retroação e recorrência. A primeira faz referência ao caráter retroativo do processo sobre si próprio, “do todo enquanto todo sobre os momentos e elementos particulares dos quais surgiu”. A segunda explicita que “o fim do processo alimenta o seu começo pelo retorno do estado final do circuito sobre e no estado inicial: o estado final torna-se, de certo modo, o estado inicial, embora permaneça final; e o estado inicial torna-se final, embora permaneça inicial” (MORIN, 1997, p. 173 e 175). tetralógico (figura 1):

Figura 1
– O Anel tetralógico

O anel tetralógico, extraído da cosmogênese, reúne as ideias de desordem, interações, ordem e organização até então separadas pela lógica da ciência clássica, em uma relação, simultaneamente, complementar, concorrente e antagônica, situando-se no coração da physis4 4 - A ideia de physis significa que o universo físico deve ser concebido como o próprio lugar da criação e da organização. A physis é comum ao universo físico, à vida, ao homem (MORIN, 1997, p. 31). . A importância do anel está, entre outras coisas, na necessidade de concebermos, desordem e ordem, uma na outra, coproduzindo-se.

Essas noções são relativas e relacionais entre si, o que introduz a complexidade lógica, isto é, “temos de pôr desordem na noção de ordem; temos de pôr ordem na noção de desordem” (MORIN 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 79). O que significa que:

[...] a ligação fundamental deve ser de natureza dialógica5 5 - Como explica Morin (2002a, p. 300), “distingue-se da dialética hegeliana. Em Hegel, as contradições encontram uma solução, superam-se e suprimem-se numa unidade superior. Na dialógica, os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos fenômenos complexos”. , [o que implica] numa unidade simbiótica de duas lógicas, que simultaneamente se alimentam uma à outra, se concorrenciam, se parasitam mutuamente, se opõem e se combatem mortalmente. (MORIN, 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 79).

Assim sendo, o pensamento complexo possibilita, em termos lógicos, a construção de um pensamento que compreende a relação entre aspectos que, até então, foram e ainda são considerados antinômicos e dissociados.

A concepção de corporeidade na perspectiva do pensamento complexo

Para apresentação da concepção de corporeidade a partir da epistemologia da complexidade, faz-se necessário explicitar a importante noção de sistema enquanto unidade complexa organizacional. Segundo Morin (1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 102), um sistema é um conjunto de partes diferentes, unidas e organizadas e apresenta-se como unitas multiplex, isto é, paradoxo que permite compreender que “sob o ângulo do todo, é uno e homogêneo, considerado sob o ângulo dos constituintes, é diverso e heterogêneo” (MORIN 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 102). O que indica a necessidade de considerar o sistema enquanto unidade complexa, isto é, nem o todo pode ser reduzido às partes, assim como as partes não podem ser reduzidas ao todo, nem o uno ao múltiplo nem o múltiplo ao uno. As noções de todo e partes e de uno e múltiplo devem ser concebidas em conjunto, de modo simultaneamente complementar e antagônico.

A noção de sistema enquanto unidade complexa organizacional permite entendermos a corporeidade humana em sua multidimensionalidade, constituída a partir dos processos emergenciais6 6 - A emergência é uma qualidade nova em relação aos constituintes do sistema. Tem virtude de acontecimento, porque surge de modo descontínuo, uma vez constituído o sistema; tem caráter de irredutibilidade; é uma qualidade que não deixa decompor e que não podemos deduzir dos elementos anteriores. Para maior compreensão do conceito de emergência, ver em Morin (1997, p. 103-108). ocorridos ao longo de toda a evolução que conduziu, como esclarecem João e Brito (2004JOÃO, Renato Bastos; BRITO, Marcelo de. Pensando a corporeidade na prática pedagógica em educação física à luz do pensamento complexo. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 213-301, 2004. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rbefe/ article/view /16567 /18280>. Acesso em: 25 out. 2017.
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, p. 266):

[...] a physis, o bios e a esfera antropossocial a sucessivos aumentos no grau de complexidade dos sistemas/organizações, a começar com a formação dos átomos, chegando, em nosso planeta, onde se dá a evolução das espécies, à emergência da espécie humana.

Nesse sentido, a corporeidade guarda a herança de todo esse processo evolutivo, configurada enquanto unidade multidimensional, na qual podemos identificar diferentes dimensões que são subsistemas (partes-todo) de um sistema (todo-partes) que caracteriza a subjetividade humana que, por sua vez, faz parte de sistemas maiores constituídos nas sociedades-culturas humanas.

À luz do pensamento complexo, ser humano pode ser definido como “ser físico/corporal e complexo, estando todas as qualidades e dimensões pertencentes ao humano enraizadas em seu corpo” (JOÃO, 2018JOÃO, Renato Bastos. Contribuições à ciência da motricidade humana: por uma concepção de corporeidade à luz do pensamento complexo. In: FERES NETO, Alfredo (Org.) Motricidade humana: novos olhares e outras práticas: à luz da transdisciplinaridade e das ciências emergentes. Curitiba: Appris, 2018., p. 46). É através do corpo que podemos identificar o ser, a existência e a condição de indivíduo-sujeito, os quais remetem à unidade complexa organizacional sistêmica (corporeidade).

Assim, a corporeidade constitui-se das dimensões: físico-motora (infraestrutura orgânica-biofísica-motora organizadora de todas as dimensões da individualidade), afetiva-relacional (instinto-pulsão-afeto), mental-cognitiva (atenção, memória, raciocínio, resolução de problemas, consciência reflexiva) e a sócio-histórico-cultural (valores, hábitos, costumes, sentidos, significados, simbolismos). Todas essas dimensões estão indissociadas na multidimensionalidade do ser humano, constituindo sua corporeidade. É nesse sentido que buscamos a compreensão da complexidade humana, tanto em nível individual quanto em nível social.

Como indicado acima, a corporeidade humana é o resultado de um longo processo de evolução que conduziu a physis, o bios e o antropossocial a sucessivos aumentos no grau de complexidade dos sistemas/organizações. Essa relação entre as quatro dimensões da corporeidade e essas três grandes dimensões da realidade fenomênica foi objeto de análise nos trabalhos de João e Brito (2004)JOÃO, Renato Bastos; BRITO, Marcelo de. Pensando a corporeidade na prática pedagógica em educação física à luz do pensamento complexo. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 213-301, 2004. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rbefe/ article/view /16567 /18280>. Acesso em: 25 out. 2017.
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e João (2018)JOÃO, Renato Bastos. Contribuições à ciência da motricidade humana: por uma concepção de corporeidade à luz do pensamento complexo. In: FERES NETO, Alfredo (Org.) Motricidade humana: novos olhares e outras práticas: à luz da transdisciplinaridade e das ciências emergentes. Curitiba: Appris, 2018..

Apresentada a concepção de corporeidade, pode-se passar a discussão principal deste trabalho: considerar a corporeidade como um princípio da prática pedagógica, a partir do qual se estrutura uma proposta didático-metodológica que possa envolver as quatro dimensões que constituem o ser humano. O objetivo é contribuir para uma prática educativa que assuma a complexidade humana na sala de aula.

Método de aprendizagem vivencial: perspectiva para uma educação integral que assuma a complexidade humana na prática pedagógica

A introdução do conceito de corporeidade, como referencial teórico para o processo educacional, traz quatro consequências fundamentais: 1) apresenta uma concepção de ser humano monista que possibilita superar uma longa tradição educacional que privilegia o desenvolvimento cognitivo em detrimento das demais dimensões humanas; 2) permite o reconhecimento da nossa condição humana, ou seja, de indivíduo/espécie/sociedade humana, e a complexidade que a envolve; 3) possibilita aludirmos à complexidade enquanto forma de abordar o real e, consequentemente, da prática pedagógica; e 4) conduz necessariamente a repensar os métodos de ensino.

No intuito de se apresentar uma proposta didático-metodológica que busque envolver as quatro dimensões da corporeidade humana e desenvolver as finalidades educacionais sugeridas por Morin (2002b) – 1) ensinar a condição humana; 2) ensinar a viver, 3) ensinar a organizar e religar os saberes (ensinar a pensar para a unidade do conhecimento), e 4) refazer uma escola de cidadania, serão propostos os fundamentos e os princípios de um método de aprendizagem vivencial.

Ao considerar o âmbito epistemológico da didática, o método está inserido em uma abordagem interdisciplinar e transdisciplinar (FRIAÇA et al., 2005FRIAÇA, Amâncio et al. (Org.). Educação e transdisciplinaridade III. São Paulo: Triom, 2005.; TAUCHEN; FÁVERO; ALVARENGA, 2017), de forma que a concepção de corporeidade aqui defendida é adotada como princípio do planejamento de ensino de matrizes curriculares da Educação Básica ou do Ensino Superior que partem das referidas abordagens. Sua finalidade última não está no ensino dos conteúdos disciplinares, que não deixam de ser considerados, mas sim no desenvolvimento da unidade do conhecimento, através da sua articulação com outras propostas, tais como, a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, com os temas geradores, e a metodologia transversal de ensino proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, com os temas transversais, não deixando de considerar as diferenças epistemológicas, teóricas e metodológicas de tais propostas.

Dessa forma, serão apresentados os princípios que constituem o método de aprendizagem vivencial, apresentando-o como uma possibilidade didático-metodológica que envolva as quatro dimensões da corporeidade humana. Esses princípios e fundamentos não esgotam as possibilidades do processo ensino/aprendizagem, pelo contrário, representam apenas reflexões básicas para se gerar uma prática pedagógica que vislumbre a complexidade humana e educacional.

A noção de aprendizagem

A noção de aprendizagem pertencente ao método de aprendizagem vivencial foi elaborada, principalmente, a partir da contribuição da proposta formulada por Leite e Ferreira (2002)LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49. denominada de Sistema de Aprendizagem Vivencial e de reflexões entre a noção de corporeidade anteriormente indicada e as ideias desses autores. A aprendizagem é concebida como um processo integral e contínuo, voltado à ampliação do repertório existencial e à sensibilização para o contato de cada pessoa consigo e em suas múltiplas interações com o meio natural e social. Essas interações ocorrem no contato direto entre os educandos, os meios citados e os conteúdos curriculares de cada disciplina.

A aprendizagem é ainda considerada no âmbito de uma permanente assimilação de novas informações, mas de modo indissociável à sua constante ressignificação e reapropriação subjetiva, resultando na construção e atualização da identidade pessoal de cada educando, na percepção de sua inserção nas comunidades, instituições e, de modo mais amplo, de sua inclusão social (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.).

A assimilação permanente de novas informações conduz o educando a constantes mudanças, ou seja, podemos considerar a mudança como um processo de aprendizagem, ou melhor, de reaprendizado, em que novas possibilidades de respostas são criadas para as solicitações cotidianas.

A aprendizagem não é um processo meramente cognitivo e de uma interação apenas racional. Para que as relações humanas, pessoais ou profissionais ganhem efetividade em um processo de mudanças, devem ser objeto de reflexões e de uma aprendizagem integrada, na qual a integração se dá na complexidade do ser humano, em todos os seus aspectos: cognitivo, afetivo e motor, envolvendo também suas múltiplas dimensões: pessoais, profissionais e institucionais (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.).

O caráter de práxis da aprendizagem vivencial, segundo Leite e Ferreira (2002)LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49., está na interligação e interdependência de seus aspectos teóricos e práticos, que se mantêm em um modo de pensar o mundo e de uma ação concreta e coerente com aquilo que teoriza.

Levando-se em consideração que a vida humana é um constante processo de aprendizagem, que leva à atualização e desenvolvimento dos potenciais humanos, o método de aprendizagem vivencial busca abarcar, através da aprendizagem vivencial, esse âmbito da aprendizagem no instante da aula. Ao admitir que o processo de aprendizagem vivencial ocorre na interação do homem com o meio natural e social, percorrendo um curso probabilístico de evolução (LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.), e que o momento da aula guarda essas multidimensionalidades, a sala de aula se evidencia como um instante desse constante processo de aprendizagem, como é a vida.

Princípios e fundamentos

De modo geral, o primeiro princípio, do método de aprendizagem vivencial, indica a necessidade de, através de uma prática pedagógica vivencial, transmitir o conhecimento por meio da vivência7 7 - O caráter vivencial não determina, necessariamente, o envolvimento corporal ativo no processo de ensino-aprendizagem, mas aponta o envolvimento e o tratamento das quatro dimensões no momento desse processo. com a corporeidade, utilizando-se de práticas corporais diversas, de diferentes tipos de jogos, de dinâmicas de grupos, atividades cênicas etc., contextualizadas no conteúdo das várias disciplinas curriculares.

Segundo Leite (1999)LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., a principal barreira conceitual e operacional, relacionada à educação tradicional, está vinculada à dissociação entre as concepções existentes de trabalho corporal e trabalho intelectual, pois a aprendizagem vivencial está inserida em um contexto que supera essa dicotomia corpo-mente. O fundamento desse primeiro princípio está em considerar a aprendizagem como a unidade entre processos vitais e cognitivos, como aponta Assmann (1998)ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998., configurados no que esse mesmo autor denomina de corporeidade aprendente e que se articula com a concepção de corporeidade aqui explicitada.

Em sequência à apresentação dos pressupostos, o segundo princípio é ter como fins da educação: ensinar a condição humana, ensinar a viver e, por seguinte, ensinar a organizar e religar os saberes (ensinar a pensar) e refazer uma escola de cidadania (MORIN, 2002b). Esses fins permitem conduzirmos o processo de aprendizagem para o desenvolvimento simultâneo das quatro dimensões humanas, ou seja, da corporeidade humana.

O terceiro princípio se faz pelo desenvolvimento da auto-observação, da autorregulação e da autoanálise,8 8 - A fundamentação teórica desses conceitos está desenvolvida em João (2003). determinantes para a realização do processo de aprendizagem. Através dessas ferramentas, o educando poderá perceber-se no meio desse processo, tomando consciência dos aspectos que constituem sua condição e buscando uma forma de conduta que integre tais aspectos na relação consigo, com o outro e com o meio social.

Ao reconhecer a complexidade e a multidimensionalidade do ser humano, o método de aprendizagem vivencial tem como quarto princípio da sua prática a preocupação em possibilitar o acesso do indivíduo à construção e vivência de sua identidade. Na relação de encontro com o mundo/meio e de diferenciação com esse, o indivíduo experimenta toda sua complexidade organizacional e sente-se em sua integridade existencial única (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.).

As condições para a realização do processo de aprendizagem vivencial decorrem da constituição da integridade (o indivíduo deve estar presente em sua totalidade) e da integração (o indivíduo deve estar aberto para interagir com o meio), as quais constituem o quinto princípio do método aqui exposto.

Segundo Leite e Ferreira (2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49., p. 27-28), a atuação da aprendizagem vivencial procura articular as necessidades humanas com “os princípios ecológicos da vida”, que consideram as “emergências” e “imposições” que advêm da contextualização do ser humano em interrelação com o meio social e ecossistêmico. Desse modo, o ser humano está submetido a uma regulação interna e externa, delimitada social e ecologicamente (pela cultura e pela natureza), que define tanto suas possibilidades quanto seus limites, seus carecimentos e seus projetos. Dessa relação, emerge a necessidade de atualização e desenvolvimento dos potenciais humanos, dentro da complexidade organizacional da vida, constituindo, assim, o sexto princípio9 9 - O desenvolvimento e atualização dos potenciais humanos passam pontualmente por: 1. considerar as imposições dos limites ecossistêmicos e submeter o desenvolvimento humano aos princípios ecológicos da vida; 2. possibilitar o acesso à complexidade organizacional da vida; 3. facilitar a interação do ser humano: a) com o meio natural – através do respeito aos padrões ecológicos na relação com o meio ambiente; b) com o meio social – baseado com relações construídas a partir da comunicação e do contato grupal e social includente; c) com o meio cósmico – desenvolvendo uma cosmovisão baseada na percepção unitária e ao mesmo diversa entre o mundo físico, biológico e o humano. (LEITE, 1999). adotado pelo método de aprendizagem vivencial.

A relação estreita e recorrente entre os aspectos terapêuticos, pedagógicos e profiláticos constitui o sétimo princípio metodológico da proposta de aprendizagem vivencial aqui apresentada. O caráter terapêutico facilita a superação dos mecanismos inibidores do processo de aprendizagem vivencial. O aspecto pedagógico:

[...] trata do desenvolvimento da capacidade da pessoa aprender com seu próprio processo evolutivo, organizando suas vivências em formas cada vez mais complexas e compartilhando estas aprendizagens com os outros. (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., p. 15).

A função profilática evidencia-se na possibilidade de:

[...] desenvolver no indivíduo a capacidade de identificar processos de dissonância e de tomar consciência de seus carecimentos; procedendo, assim, a uma reorganização e redirecionamento de seu caminho, aumentando sua ressonância com a vida. (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., p. 15).

Os sete princípios delineados até aqui constituem os fundamentos do método de aprendizagem vivencial. A aplicação desses princípios passa pelo planejamento das etapas de uma aula, que estão configuradas em um modelo estrutural, o qual caracteriza a proposta de um plano de aula para o método em questão. No entanto, esse modelo estrutural não determina rigidamente a organização sequencial das etapas de cada aula, as quais podem ser configuradas de maneira diferenciada, conforme o conteúdo a ser ministrado.

Modelo estrutural para o planejamento das aulas vivenciais

O modelo estrutural para um plano de aula configura-se, em um âmbito geral, da seguinte forma: a) dinâmica inicial; b) vivência central; c) avaliação da experiência. No intuito de explicitar os objetivos de cada etapa da aula, será iniciada uma explanação pontual de cada uma delas.

A dinâmica inicial tem o objetivo de desenvolver a capacidade dos educandos de estarem mentalmente, com sua atenção, no momento presente da aula. Através de técnicas de desenvolvimento da atenção, busca-se conduzir os educandos a focar a atenção no próprio corpo, em seus segmentos e na respiração. Essa experiência permite que exercitem o desenvolvimento da capacidade cognitiva de construir um metaponto de vista, ou seja, exercitarem a observação do fluxo de imagens visuais e acústicas que constituem os diferentes estados subjetivos que vão se configurando na experiência subjetiva do educando, isto é, serem capazes de observar a si mesmos com algum distanciamento.

A vivência central corresponde à etapa principal da transmissão do conteúdo por meio de uma experiência vivencial (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.). Na perspectiva aqui proposta, o conteúdo teórico-conceitual referido a um tema transversal ou tema gerador e/ou a uma ou mais disciplinas curriculares, que será abordada em uma determinada aula, é transformado em uma experiência vivencial, a partir da interação entre os educandos, de forma que os mesmos possam vivenciar na prática, e no momento da aula, o sentido desse mesmo conteúdo.

De modo geral, essa etapa está subdividida em três momentos: aquecimento, experimento e processamento. O aquecimento tem como objetivo preparar as pessoas e o grupo para o contato consigo mesmo e com os outros, estando dividido em aquecimento temático, corporal e interativo, cada um desses guardando um objetivo mais específico (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.).

Leite (1998 apud PIEREZAN, 2002PIEREZAN, Cinara Porto. As necessidades da criança hospitalizada e seu acompanhante: possibilidades e limites para o se atendimento no desenvolvimento do processo de trabalho em saúde. 2002. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002., p. 47) coloca que “o desafio do aquecimento é despertar nas pessoas a receptividade para esse contato, sensível consigo mesmo e com os outros, já que a receptividade não está sempre presente”. Nas relações humanas do cotidiano, as pessoas mantêm um contato entre si de maneira objetiva e, em muitos casos, com alguma desconfiança, o que não permite uma postura receptiva e o intercâmbio dos aspectos subjetivos de cada um.

O experimento é a aplicação da dinâmica vivencial propriamente dita, a qual traduz o conteúdo teórico-conceitual em uma experiência vivencial; é o lugar dos acontecimentos nucleares da abordagem vivencial. O caráter experimental da situação possibilita a ação, a reflexão e a aprendizagem, em condições mais favorecidas. A realização dos experimentos visa a ampliar a capacidade de arriscar, de colocar em prática e de tomar consciência (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.).

O experimento está fundamentado, principalmente, pelo primeiro princípio do método de aprendizagem vivencial que, por sua vez, se alicerça na noção de corporeidade aprendente. O instante do experimento faz emergir a complexidade da corporeidade dos educandos a partir das suas interações e interrelações. Essa complexidade traz consigo a simultaneidade das quatro dimensões (físico-motora, afetivo-relacional, mental-cognitiva, sócio-histórico-cultural), atuando na construção do experimento. A experiência subjetiva de cada educando e do grupo está vinculada com a experiência objetiva de lidar diretamente com o outro, com um tema (conteúdo teórico-conceitual) e à própria subjetividade, ou seja, a experiência subjetiva e objetiva são simultâneas, recorrentes e retroativas, constituindo um todo (a corporeidade), ao mesmo tempo em que são partes desse todo.

Nesse sentido, considerando o caráter retroativo da experiência, a corporeidade enquanto o todo retroage sobre si na experiência objetiva e subjetiva, as quais, enquanto partes, retroagem, reforçando a corporeidade, o todo. Em relação ao aspecto recorrente, pode-se compreender que os resultados finais da experiência objetiva e subjetiva da corporeidade produzem os estados iniciais e causas iniciais de uma nova experiência dos educandos.

A importância da elucidação desses aspectos do processo de experimento está na compreensão da complexidade de tal experiência e na compreensão dos princípios do processo de aprendizagem. Retroação e recorrência são princípios subjacentes no processo de aprendizagem vivencial.

A última função da vivência central é o processamento (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.; LEITE; FERREIRA, 2002LEITE, Edimar; FERREIRA, Luis Carlos. Referenciais teóricos e metodológicos do programa “Vivendo e Trabalhando Melhor”: uma proposta do sistema de aprendizagem vivencial para aplicação institucional. In: CAPELLA, Beatriz Bedushi; GELBCKE, Francine; MONTICELLI, Marisa (Org.). Para viver e trabalhar melhor: a multidimensionalidade do sujeito trabalhador. Florianópolis: UFSC/CCS, 2002. p. 17-49.). Esse instante tem a função de organizar e ligar os depoimentos dos educandos com a explanação mais aprofundada do conteúdo teórico-conceitual, por meio de uma discussão aberta que gere a articulação dessas experiências com a vida dos educandos, possibilitando, assim, a aprendizagem e a construção do conhecimento.

E, ainda, de modo geral, como propõe Leite (1999)LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., o processamento refere-se ao conjunto de atividades realizadas para proporcionar a organização da experiência vivida. É importante esclarecer que esse processamento não se limita à elaboração cognitiva, mas que integra também os níveis psicoemocionais e motores da experiência. Assim, tanto são valorizadas a criação de mapas cognitivos quanto a expressão emocional e experiência corporal, considerados como diferentes formas de processamento.

Conforme Leite (1999)LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., alguns recursos são utilizados para a realização dessa etapa. Esses recursos são denominados de:

[...] decodificação, em que se amplificam as significações dos fenômenos ocorridos, através do recurso a outras formas de linguagem; comentários espontâneos, durante ou após os encontros (feedbacks dos membros do grupo e dos facilitadores); e as devolutivas dos facilitadores [leia-se educadores] (com a organização das experiências). (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., p. 24).

Na configuração do processamento, encontramos a aplicabilidade do terceiro princípio. Nesse momento, a auto-observação, a autoanálise e a autorregulação apresentam-se como ferramentas para a realização do processamento, ao mesmo tempo em que estarão presentes na avaliação, última etapa da estrutura das aulas vivenciais.

A avaliação é a última etapa da aula vivencial. Essa etapa está destinada a uma avaliação de todo o processo ocorrido durante o encontro. A partir da retrospectiva da aula e de perguntas norteadoras, os educandos realizam a avaliação. Esse processo de avaliação permite, como esclarece Leite (1999)LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.:

[...] a organização da experiência vivida e sua transformação em aprendizagem (o que aprendi com a experiência), obedecendo a um ciclo que, partindo da percepção (o que aconteceu), facilita a reflexão (como aconteceu e em que resultou) e propõe atividades de formalização (como isso fica para mim) e de expressão (o que isso me causou). (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999., p. 24).

Os demais princípios postulados pelo método de aprendizagem vivencial, que não estão explicitamente vinculados a nenhuma das etapas das aulas vivenciais, perpassam a configuração das mesmas e também a sua aplicabilidade na prática educativa.

A utilização na prática pedagógica dos sete princípios aqui apresentados, a partir da concepção de ser humano fundamentada no conceito de corporeidade apresentado, permite a realização de uma abordagem educacional integral, tendo em vista a complexidade humana.

Considerações finais

Orientado pelo objetivo enunciado na introdução do presente trabalho, foi apresentada a proposta do método de aprendizagem vivencial como uma possibilidade didático-metodológica que auxilie o professor na realização de uma prática educativa que abarque as diferentes dimensões que compõem a condição humana e que estão presentes na sala de aula. Esta proposta foi delineada tendo como fundamento filosófico o conceito de corporeidade, que se apresenta como uma concepção de ser humano cunhada a partir da epistemologia da complexidade.

Conforme o que foi desenvolvido ao longo deste artigo, pode-se compreender que toda prática educativa é orientada por um método de ensino que, por sua vez, é orientado por uma concepção de didática de uma pedagogia, a qual está relacionada à visão de mundo, de sociedade e de ser humano de um sistema filosófico. Nesse sentido, a epistemologia da complexidade é aqui adotada como fundamento de um pensamento que propõe a articulação das ciências e da filosofia, indicando uma visão de mundo que reconheça as várias dimensões e a trama complexa de fatores que constituem a realidade: a partir do seu substrato material, universo físico (a physis), como o próprio lugar da criação e da organização; do universo da vida (o bios), no qual emerge o autos10 10 - A noção de autos representa um esforço de mobilização, associação e articulação de múltiplos conceitos relacionados à vida, ao bios, mas tendo seu enraizamento na physis e seus desdobramentos específicos a esfera antropossocial. Esse esforço é a própria elaboração de uma epistemologia da complexidade, tendo sido materializado ao longo da segunda parte do tomo II da obra O método, de Edgar Morin. É um macroconceito multidimensional guardando as dimensões organizacional [auto-(geno-feno-ego)-eco-re-organização computacional/informacional/comunicacional], práxica, lógica (autorreferência, autoegocentrismo), ontológica (o ser vivo indivíduo/sujeito) e existencial: a vida... (MORIN, 1999, p. 240). Em uma palavra, fundamenta a ideia de indivíduo-sujeito pata todo ser vivo. que marca o caráter ontológico de indivíduo-sujeito para todo ser vivo, alcançando sua maior complexificação no ser humano; e da condição antropossociológica, própria ao ser humano, a partir da qual emerge a noosfera, o mundo das ideias, dimensão abstrato e imaterial de importância fundamental e capital para o desenvolvimento humano (MORIN, 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., 1998MORIN, Edgar. O método 4 – as idéias: habitat, vida, organização. Porto Alegre: Sulina, 1998., 1999MORIN, Edgar. O método 2 – a vida da vida. Lisboa. Europa-América, 1999.). Nessa visão de mundo, a concepção de ser humano integra em sua corporeidade quatro dimensões (física-motora, afetiva-relacional, mental-cognitiva e sócio-histórico-cultural) que guardam indissociavelmente os elementos e as qualidades do mundo físico, biológico e antropossociológico.

A busca por uma concepção de ser humano, que explicite claramente seu fundamento filosófico e científico, deve-se pela intenção de desenvolver instrumentos didáticos para um planejamento de ensino que assuma essa mesma concepção de ser humano. Nesse sentido, os princípios pedagógicos do método de aprendizagem vivencial devem orientar o fazer pedagógico do professor de modo a auxiliá-lo na condução e mediação de um processo de ensino interdisciplinar e transdisciplinar. Esse, por sua vez, deve ter como finalidade indicar o caminho para que o educando possa, em sua trajetória pessoal, através da constante elaboração reflexiva sobre os diferentes saberes, realizar a unidade do conhecimento em uma síntese pessoal. Todo esse processo só pode acontecer mediante a compreensão de que essa trajetória do educando é o próprio processo de autoconhecimento.

A noção de aprendizagem e os princípios pedagógicos do método de aprendizagem vivencial, como aqui foram elucidados, permitem a construção de uma prática educativa que assuma as finalidades educacionais (ensinar a condição humana, ensinar a viver, ensinar a organizar e religar os saberes e refazer uma escola de cidadania) sugeridas por Morin (2002b). Nesse sentido, a prática educativa balizada por essas ideias pode contribuir efetivamente para uma educação integral. Isto é, permite o desenvolvimento das diferentes dimensões que formam o ser humano enquanto indivíduo-sujeito, oportuniza que esse desenvolvimento se dê a partir da sua condição sociocultural, a qual o constitui e que também ele a constitui, em uma relação recursiva. E, ainda, possibilita a tomada de consciência de que faz parte e é formado não só de um meio social, mas também, e primeiramente, se considerarmos a ordem cronológico dos processos de formação de nosso planeta, de um meio natural, lugar da physis e do bios, nossa casa comum a todos os seres humanos.

A aplicação desta proposta a partir de uma pesquisa empírica (JOÃO, 2003JOÃO, Renato Bastos. Corporeidade e aprendizagem vivencial: uma perspectiva da complexidade humana para a educação. 2003. 163f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2003.) evidenciou contribuições significativas para a realização de uma prática educativa que possibilita o desenvolvimento sensório-motor, psicoafetivo, relacional, cognitivo e a conscientização do indivíduo-sujeito da sua condição sócio-histórico-cultural, ou seja, o desenvolvimento integral da pessoa humana. A escolha por não apresentar os dados empíricos da referida pesquisa deu-se pela importância de expor os fundamentos epistemológicos, teóricos e metodológicos da proposta aqui apresentada. Essa escolha implica a necessidade da elaboração de futuros trabalhos que possam apresentar as referidas contribuições e as reflexões geradas pelo diálogo com o empírico.

Referências

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    - A definição de paradigma proposta por Morin considera que “um paradigma contém, para todos os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo em que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos e categorias” (MORIN, 1998, p. 268). Na perspectiva deste autor, podemos observar a existência de um grande paradigma do Ocidente formulado por Descartes e difundido ao longo do desenvolvimento Europeu desde o século XVII. Este paradigma vem determinando os conceitos soberanos e prescrevendo a relação lógica – a disjunção.
  • 3
    - A ideia de anel é definida a partir das noções de retroação e recorrência. A primeira faz referência ao caráter retroativo do processo sobre si próprio, “do todo enquanto todo sobre os momentos e elementos particulares dos quais surgiu”. A segunda explicita que “o fim do processo alimenta o seu começo pelo retorno do estado final do circuito sobre e no estado inicial: o estado final torna-se, de certo modo, o estado inicial, embora permaneça final; e o estado inicial torna-se final, embora permaneça inicial” (MORIN, 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 173 e 175).
  • 4
    - A ideia de physis significa que o universo físico deve ser concebido como o próprio lugar da criação e da organização. A physis é comum ao universo físico, à vida, ao homem (MORIN, 1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 31).
  • 5
    - Como explica Morin (2002a, p. 300), “distingue-se da dialética hegeliana. Em Hegel, as contradições encontram uma solução, superam-se e suprimem-se numa unidade superior. Na dialógica, os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos fenômenos complexos”.
  • 6
    - A emergência é uma qualidade nova em relação aos constituintes do sistema. Tem virtude de acontecimento, porque surge de modo descontínuo, uma vez constituído o sistema; tem caráter de irredutibilidade; é uma qualidade que não deixa decompor e que não podemos deduzir dos elementos anteriores. Para maior compreensão do conceito de emergência, ver em Morin (1997MORIN, Edgar. O método 1 – a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1997., p. 103-108).
  • 7
    - O caráter vivencial não determina, necessariamente, o envolvimento corporal ativo no processo de ensino-aprendizagem, mas aponta o envolvimento e o tratamento das quatro dimensões no momento desse processo.
  • 8
    - A fundamentação teórica desses conceitos está desenvolvida em João (2003)JOÃO, Renato Bastos. Corporeidade e aprendizagem vivencial: uma perspectiva da complexidade humana para a educação. 2003. 163f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2003..
  • 9
    - O desenvolvimento e atualização dos potenciais humanos passam pontualmente por: 1. considerar as imposições dos limites ecossistêmicos e submeter o desenvolvimento humano aos princípios ecológicos da vida; 2. possibilitar o acesso à complexidade organizacional da vida; 3. facilitar a interação do ser humano: a) com o meio natural – através do respeito aos padrões ecológicos na relação com o meio ambiente; b) com o meio social – baseado com relações construídas a partir da comunicação e do contato grupal e social includente; c) com o meio cósmico – desenvolvendo uma cosmovisão baseada na percepção unitária e ao mesmo diversa entre o mundo físico, biológico e o humano. (LEITE, 1999LEITE, Edimar. Método de dinamização de grupos para o desenvolvimento interpessoal e de equipe: vivendo e trabalhando melhor. Brasília, DF: Núcleo de Apoio Permanente. Centro de Aprendizagem Vivencial, 1999.).
  • 10
    - A noção de autos representa um esforço de mobilização, associação e articulação de múltiplos conceitos relacionados à vida, ao bios, mas tendo seu enraizamento na physis e seus desdobramentos específicos a esfera antropossocial. Esse esforço é a própria elaboração de uma epistemologia da complexidade, tendo sido materializado ao longo da segunda parte do tomo II da obra O método, de Edgar Morin. É um macroconceito multidimensional guardando as dimensões organizacional [auto-(geno-feno-ego)-eco-re-organização computacional/informacional/comunicacional], práxica, lógica (autorreferência, autoegocentrismo), ontológica (o ser vivo indivíduo/sujeito) e existencial: a vida... (MORIN, 1999, p. 240). Em uma palavra, fundamenta a ideia de indivíduo-sujeito pata todo ser vivo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2018
  • Aceito
    08 Ago 2018
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