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PERSPECTIVAS CRÍTICAS E JUSTIÇAS EPISTÊMICAS NOS ESTUDOS INFORMACIONAIS: EDITORIAL

O principal modus operandi do poder identitário ocorre no nível do imaginário social coletivo. Consequentemente, pode controlar nossas ações, mesmo apesar de nossas crenças. (Fricker, 2017FRICKER, Miranda. Injusticia epistémica. Barcelona, CT: Herder, 2017.)

Quando falamos em injustiças epistêmicas é importante observar que não estamos nos referindo a questões relacionadas a diferenças exclusivas de categorias étnico-raciais ou de diversidades sexuais. Perspectivas em relação à idade, neurodiversidade, lugar geopolítico, entre outras, são fundamentais para refletirmos sobre as capacidades que temos de ser, estar e habitar o mundo. E claramente há uma herança histórica colonial herdada pelo conhecimento científico que necessita ser nomeada e refletida. No entanto, a Biblioteconomia e a Ciência da Informação ligadas a conceitos fundamentais como linguagem, memória, informação, conhecimento e saberes que indivíduos e comunidades disponibilizam têm desafios importantes na configuração de condições equitativas para o acesso pleno aos direitos humanos e culturais que nós, como cidadãos, temos.

Isso implica em pensarmos nos processos formativos, além de envolver quadros de análise diferencial, de cuidado e de articulação dos processos formativos dos futuros profissionais e de ampliação dos espaços de discussão, debate e fundamentação sobre as condições da diversidade como, as vivenciadas pelas comunidades surdas. Nesse diálogo, o artigo Formação acadêmica das/os bibliotecárias/os para a inclusão de surdas/os em unidades de informação, de Ana Caroline Alves Costa e Erinaldo Dias Valério, nos oferece uma oportunidade relevante de nos questionarmos sobre a inclusão, não apenas de uma população, mas de uma cultura na formação de profissionais da informação. Por meio de um estudo de caso na Universidade Federal de Goiás, as autorias nos permitem constatar que ainda são enormes os desafios disciplinares para se pensar uma Biblioteconomia com abordagens diferenciadas que garanta condições dignas no exercício cidadão em espaços como unidades de informação e comunidades diversas, como a surda. Os desafios em termos de Justiça epistêmica implicam que os programas universitários pensem na formação de profissionais com e de comunidades diferenciadas.

Complementando as discussões sobre os processos formativos, e agora destinando a discussão para os estudos de gênero, em seu texto Leitura reflexiva para igualdade de gênero: um relato de experiência, Andréa Doyle e Ana Cláudia Gigli de Moura relatam a vivência em projeto desenvolvido no departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). O referido projeto foi embasado nas teorias feministas, no conceito de bem-viver, na injustiça epistêmica e na proposta de bell hooks de prática educativa pautada no acolhimento, diálogo e afeto para alcançar uma formação libertadora. A partir da aplicação desse projeto foi possível promover avanços na formação de pessoas leitoras, no aumento da criticidade e autoestima, bem como (re)conhecimento de temas relacionados aos estudos de gênero.

No artigo Injustiça de género e sexualidade LGBTQIA+: a produção de conhecimento à margem na ciência da informação na região sul, André Iribure Rodrigues e Ana Elisa de Abreu Vargas, realizam um estudo bibliográfico seguindo uma abordagem dos estudos de gênero e sexualidade, considerando a perspectiva da injustiça epistêmica e suas abordagens estrutural e hermenêutica em contexto de relações de poder e desigualdades históricas de pessoas que fogem à hegemonia heterossexual. Com o recorte para o sul do Brasil, a pesquisa evidenciou que os estudos que abordam as temáticas LGBTQIA+ ainda estão sub-representados em linhas de pesquisa e na produção acadêmica. Dessa forma, é importante identificar as formas estruturais de manutenção de poder e os espaços de resistência e superação das desigualdades das representações e experiências que trazem sentido no contexto histórico e social.

Seguindo também as abordagens relacionadas aos estudos de gênero, sobretudo evocando as mulheres e violências sofridas por elas, Nathália Lima Romeiro e Fabrício José Nascimento da Silveira em O Ativismo digital como estratégia de enfrentamento à violência sexual, discutem, com base nos estudos decoloniais e nas teorias da mediação, o papel social da mulher no enfrentamento de diferentes formas de violência sexual por meio da popularização do movimento #primeiroassedio no Facebook. Por meio de um artigo como este, as autorias nomeiam a ação de denunciar e visibilizar as diversas formas de violência ganha força para gerar espaços de discussão que, por meio da mediação, contribuem para a transformação da realidade.

Assim o como os textos anteriores, o artigo Enunciações do feminismo decolonial a partir das categorias fundamentais ranganathianas, Marília Winkler de Morais e Luciana de Souza Gracioso, articulam os estudos decoloniais e estudos de gênero. Nessa perspectiva, identificam os conceitos presentes nas enunciações feministas decoloniais, visando melhor compreendê-las em seu contexto de produção, significado e ação na proposição de políticas e comportamentos sociais. Além disso, o estudo visa destacar como as enunciações e ações do feminismo decolonial ampliam as fronteiras e aprofundam questões fundamentais da decolonialidade. Por fim, as autoras propõem um quadro conceitual de feminismo decolonial visando reconhecer a complexidade e urgência do movimento, e que possa ser incorporado às agendas dos estudos informacionais, uma vez que as causas que o movimento defende estão diretamente relacionadas com a defesa dos direitos humanos.

E é nessa ordem de ideias que, por meio de abordagens diferenciadas e da reivindicação de direitos humanos e culturais, as unidades de informação contribuem para a construção da cidadania, como afirma a Dra. Elizabeth Huisa Viera em seu artigo Construindo a Cidadania. O papel democratizador das bibliotecas no Peru, neste caso através de uma abordagem das bibliotecas do Peru e suas funções sociais. Esta proposta nos remete para o poder existente na biblioteca enquanto dispositivo cultural que cumpre funções de natureza política e/ou cidadã. Além disso, nos leva a refletirmos sobre uma das principais características da biblioteca, a qual é uma das instituições que se considera como garantidora de direitos e como agente democratizador. Vemos, então, que o potencial que as unidades de informação possuem pode estar vinculado à redução de injustiças em relação ao acesso, à possibilidade de formação e à configuração de novas cidadanias.

Pensando nessa configuração e na articulação necessária para a mudança de estruturas opressoras e o papel de profissionais da informação na promoção da justiça epistêmica, entendemos que o texto de Pedro Ivo Silveira Andretta e João Paulo Borges da Silveira colabora para entendimento dos enfrentamentos e os desafios desses profissionais na luta contra a censura e outras formas de apartheid epistêmico e injustiças epistêmicas. Nessa perspectiva, os autores abordam os movimentos de censura aos livros que têm ocorrido nos últimos anos e as ações de resistência que têm surgido em resposta em países como Brasil, Estados Unidos e Kuwait.

Em seu artigo Justiça informacional em ciência, tecnologia e inovação no Brasil: reflexões e ações necessárias em ciência da informação, Priscila Sena refletiu sobre a representatividade de pessoas na ciência, tecnologia e inovação no Brasil e identificou ações em Ciência da Informação que possam promover a diversidade dos sujeitos e a justiça informacional. Em seus resultados, a autora aponta que a Competência Crítica em Informação, Letramento Digital, Letramento Estatístico, acervos diversos, eventos técnicos-científicos e criação de redes de colaboração entre pessoas pesquisadoras de grupos colocados às margens são ações possíveis para promover a justiça informacional em ciência, tecnologia e inovação no Brasil.

A justiça informacional vinculada à realidade de pessoas com espectro autista e o debate sobre a invisibilização desse público e enfoque nos estudos informacionais são discutidos no artigo Transtorno do espectro autista e tautismo: Uma questão de prefixo? Epistemicídio e capacitismo na análise crítica à infocomunicação, de Fernanda do Valle Galvão Debetto e Gustavo Silva Saldanha. Nesse artigo, as autorias apresentam uma reflexão crítica sobre o conceito de tautismo, criado por Lucien Sfez, e seus efeitos éticos e ontoepistemológicos na Teoria da Informação e Comunicação. O texto discute a apropriação do termo autismo para construção de metáforas e analisa a comunicação confusional como crítica à desinformação.

Ainda nesta toada, o combate à desinformação é um dos compromissos desse século, e o texto Combate à desinformação e o protagonismo social do sujeito: Inter-relação entre os estudos culturais de Stuart Hall e a Competência em Informação e em Mídia, escrito por Camila Araújo dos Santos realiza a combinação entre os princípios dos Estudos Culturais de Stuart Hall com a Competência em Informação e em Mídia, a fim de promover a reflexão crítica sobre a autenticidade de informações e conteúdos midiáticos, onde o sujeito é central como protagonista no processo de reflexão crítica no combate à desinformação.

Assim, trabalhar a redução das injustiças epistêmicas atreladas às desigualdades sociais, embora seja uma tarefa que envolve a prática, necessariamente fica aquém do fundamento. Por isso, os desafios que as Ciências da Informação implicam, além de refletir sobre o trabalho prático, geram uma proposta epistemológica orgânica encarregada de romper e enfatizar formas, saberes e modelos tradicionais. E é em torno disso que Guilherme Fellipin dos Santos e Marco Antônio de Almeida nos convidam a pensar os novos desafios epistêmicos e sociais da ciência da informação, por meio de uma abordagem praxiológica, destacando uma das principais características da ciência da informação, sua interdisciplinaridade. Isso nos permite gerar conhecimento com base no princípio da justiça social e da dignidade, retomando as epistemologias do Sul Global, que não são as de Boaventura de Sousa Santos, mas, sim, as que nos antecedem: indígenas, negras, feministas, caribenhas, camponesas, ciganas.

Quando abordamos as injustiças epistêmicas, estamos falando também da universidade como um espaço de exclusão de certos sujeitos, como, por exemplo, pessoas negras, indígenas e outros grupos sociais e étnico-raciais. O ingresso desses grupos por intermédio de ações afirmativas (para pessoas em vulnerabilidade social, pessoas de origem africana, oriundas de povos indígenas, pessoas com deficiências, pessoas trans, entre outros grupos - só para mencionarmos alguns tipos de ações afirmativas) permitiu a reparação histórica e, de certa forma, a busca por justiça epistêmica de conhecimentos anteriormente excluídos desses espaços de construção de conhecimento científico. A literatura produzida no campo biblioteconômico-informacional sobre as ações afirmativas raciais é o enfoque do texto de Kariane Regina Laurindo e Rubens Alves da Silva.

As mesmas filosofias que nos levam a questionar a Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação - BDCI - e conceitos tradicionais como a biblioteca, que é um dispositivo democrático, mas, a depender do quadro de análise e ações, para várias comunidades e sujeitos, a biblioteca também pode ser um dispositivo colonial. Nesse entendimento, Vinicios Souza Menezes nos contempla com o artigo Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação: Redes Coloniais de Desencantamento, no qual analisa as áreas da BDCI sob a perspectiva da colonialidade histórica da metafísica moderna. O texto busca identificar as redes coloniais que institucionalizaram os domínios da BDCI como lugares de racionalização instrumental da vida e desencantamento do mundo.

Se a epistemologia nos permitiu recolocar ideias como a de biblioteca em torno dos saberes indígenas, como propõe Vinicios Souza Menezes em seu artigo Biblioteca Indígena: tramas encantadas para Terra Viva, existem enormes possibilidades em torno de um olhar anticolonial sobre a ciência, de desobediência epistêmica que nos permite criar outras formas de se relacionar com o conhecimento.

Ainda numa perspectiva interconectada com a decolonialidade, Ana Cristina de Albuquerque, em seu texto Por um reflexão sobre a organização e representação de conceitos decoloniais na américa latina: o pensamento de Aníbal Quijano à luz da Análise de Domínio, evoca a proposta epistemológica do sociólogo peruano Aníbal Quijano, que trata da decolonização das sociedades latino-americanas, a qual teve como base a interpretação dos aspectos históricos e das estruturas sociais da região. A partir da obra desse autor, Albuquerque criou uma pesquisa bibliográfica exploratória utilizando a Análise de Domínio como abordagem e método, e identificou a coerência dos conceitos de Quijano e sua importância para a compreensão da perspectiva decolonial. Estes conceitos, que formam uma rede conceitual, podem ser utilizados como direcionadores em estudos decoloniais, particularmente para reflexões sobre vertentes como indígenas, mulheres e pessoas negras.

Dentro dos estudos críticos e decoloniais, mas agora vinculado à Arquivística, o texto Outros horizontes críticos e decoloniais nos estudos arquivísticos: em construção um mapeamento do domínio editorial internacional, de Maíra Fernandes Alencar, Natália Bolfarini Tognoli e Brígida Maria Nogueira Cervantes, advém de um mapeamento no domínio editorial internacional da Arquivística, no qual buscou por números especiais/temáticos e livros vinculados à dimensão epistêmica crítica e decolonial. Tal mapeamento aponta para a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e abrangente na produção e divulgação do conhecimento na área de Arquivística, considerando a dimensão crítica e decolonial como uma perspectiva necessária para uma produção de conhecimento mais justa e igualitária.

E é desta mesma forma crítica que Michele Marques Baptista se questiona sobre a colonialidade no campo da Biblioteconomia, especificamente na biblioteca universitária através do seu artigo Uma decolonialidade no campo da biblioteconomia: uma interseção com a biblioteca universitária, onde surgem evidências no desenvolvimento das dinâmicas e relações coloniais, também é exaltado o trabalho da pessoa bibliotecária como agente social de transformação e com grande responsabilidade na configuração das ordens sociais.

É assim que ao caminhar e transitar no exercício de redução das injustiças epistêmicas, como propõe Aldo Campo González, e ao observar a pluridiversidade, as diferenças e os territórios do sul global, que sem dúvida você pode contribuir para processos de descolonização da linguagem, os quais são fundamentais para sermos capazes de consolidar os exercícios, reflexões e debates propostos neste Dossiê.

Assim, devemos começar do nó ontológico de nomearmos tais injustiças e utilizarmos a comunicação para descolonizarmos. Dessa maneira, o artigo desenvolvido pelo Ocampo intitulado Descolonização da linguagem e linguística no sul global: ontologias relacionais, pluriversalidade e territórios de diferença será uma possibilidade de conformar e organizar os contextos em relação aos seus habitantes, bem como um exercício de natureza política em relação a nomear e enunciar.

Encerramos esse Editorial desejando que esses 18 artigos aqui apresentados possam servir de incentivo à luta contra as injustiças epistêmicos nos diversos espaços de informação e produção de conhecimento. Desejamos que as pessoas profissionais da informação se comprometam com as pluriepistemologias e com a pluridiversidade de pessoas e grupos historicamente apartados dos espaços formais de produção de conhecimento científico em Biblioteconomia e Ciência da Informação.

Boa leitura!

Referências

  • FRICKER, Miranda. Injusticia epistémica. Barcelona, CT: Herder, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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