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Ação antidialógica no Sistema Único de Assistência Social (SUAS): reflexões a partir de Paulo Freire

Antidialogical action on Unified Social Assistance System (SUAS): reflections from Paulo Freire

Action antidialogical dans le Système Unique d'assistance Sociale (SUAS): réflexions depuis Paulo Freire

Acción antidialogica en Sistema Único de Asistencia Social (SUAS): reflexiones a partir de Paulo Freire

Resumo:

O presente trabalho visa discutir os impactos da adoção de uma postura antidialógica pelos profissionais que compõem a equipe interdisciplinar na realização do trabalho social, no âmbito da proteção básica, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Buscou-se apresentar como se constitui a proposta de interdisciplinaridade na política de Assistência Social e as dificuldades encontradas para sua efetivação, bem como discutir a relação entre uma ação profissional antidialógica e a questão do assistencialismo a partir das ideias de Paulo Freire.

Palavras-chave:
interdisciplinaridade; diálogo; SUAS; Paulo Freire

Abstract:

The present work aims to discuss the impacts of adopting an antidialogical posture by professionals who compose the interdisciplinary team in the realization of social work, within the scope of basic protection, in the Unified Social Assistance System (SUAS). Sought to introduce the proposal of interdisciplinarity in the Social Assistance policy and the difficulties encountered for its implementationas well as discussing the relationship between antidialogic professional action and the question of assistance from Paulo Freire ideias.

Keywords:
interdisciplinarity; dialogue; SUAS; Paulo Freire

Resumé:

Cet article traite de l'impact de l'adoption d'une posture antidialogical par des professionnels qui composent l'équipe interdisciplinaire dans la réalisation du travail social dans la protection de base, le Système D'assistance Sociale Unifiée (SUAS). Il est présenté comme si la proposition est interdisciplinaire dans la politique d'aide sociale et les difficultés rencontrées dans son exécution et pour discuter de la relation entre une action professionnelle antidialogical et la question de la protection à partir des idées de Paulo Freire.

Mots-clés:
interdiciplinaridade; dialogue; SUAS; Paulo Freire

Resumen:

El presente trabajo pretende discutir los impactos de la adopción de una postura antidialógica por los profesionales del equipo interdisciplinario en la realización del trabajo social, en el ámbito de la protección básica, del Sistema Único de Asistencia Social (SUAS) Se presenta como se constituye la propuesta de interdisciplinaridad en la política de Asistencia Social y las dificultades encontradas para su efectividad así como discutir la relación entre una acción profesional antidialógica y la cuestión del asistencialismo a partir de las ideas de Paulo Freire.

Palabras clave:
interdisciplinariedad; dialogue; SUAS; Paulo Freire

1 INTRODUÇÃO

A política de Assistência Social no Brasil, atualmente referenciada a partir do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), apresenta um novo olhar para com os direitos socioassistenciais. Dentro dessa perspectiva, com vistas a romper com concepções tradicionalmente estabelecidas, um desafio constante é direcionado aos profissionais inseridos nesse contexto: a superação da concepção assistencialista e clientelista do serviço para assim buscar a constituição de uma ação direcionada à transformação da realidade social.

Através de um trabalho contínuo e integrado ao contexto social em que se insere, a política de Assistência Social destina-se a constituir-se como espaço do acesso e garantia de direitos vinculados à seguridade social, possuindo como foco o desenvolvimento individual, familiar e coletivo do público atendido.

Dentro desse enfoque, a equipe técnica passa a ser composta por profissionais de diferentes áreas do conhecimento, orientados a se direcionarem para a construção de uma atuação interdisciplinar, com o objetivo de que esta possibilite abarcar, de maneira mais complexa, a realidade social na qual este trabalho se realiza, com vistas a superar antigas barreiras do serviço, bem como desenvolver ações que possibilitem alcançar os objetivos da política. A atuação profissional, a partir do trabalho em equipes interdisciplinares, junto com o contato com o usuário da política pública, promove o encontro de diferentes discursos onde o diálogo, nesse contexto, passa a se constituir como uma ferramenta fundamental para a realização de uma ação interdisciplinar.

Nessa direção, pretende-se realizar uma discussão acerca do impacto gerado pela adoção de uma postura antidialógica pelos profissionais que compõem a equipe interdisciplinar no que diz respeito à atuação no campo da garantia de direitos e do processo de formação humana junto aos usuários do serviço. Para tanto, será realizado um debate a partir das ideias de Paulo Freire de modo a problematizar o trabalho interdisciplinar partindo da proposta de trabalho social apresentada como estratégia de ação dentro do SUAS.

A estruturação da proteção social a partir do trabalho de equipes interdisciplinares fundamenta-se na importância da utilização de diversos campos de saberes para uma maior compreensão da realidade social a que se destina sua atuação, uma vez que essa se mostra multifacetada e irrestrita a uma área específica. Nesse contexto, buscar compreender e transpor as barreiras disciplinares para a efetivação dessa proposta é de grande importância social, devido ao caráter da política que busca intervir em um campo complexo constituído por múltiplos atravessamentos.

Dentro da proposta metodológica adotada neste artigo, a articulação entre Assistência Social e o referencial teórico-metodológico desenvolvido por Paulo Freire ainda se encontra pouco explorada. De modo geral, os trabalhos versam sobre a análise das condições de opressão, além de problematizar propostas metodológicas que possam potencializar saídas para tal condição.

Entre as publicações realizadas com essa perspectiva, podemos citar a tese de doutorado de Alves (2017)ALVES, Marilene. Estratégias de participação na política de assistência social na perspectiva de Paulo Freire. 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, 2017. na qual, a partir da perspectiva da pesquisa-ação e pesquisa participante e tomando Paulo Freire como fundamento teórico, a autora investiga as estratégias de participação popular adotadas na política de assistência, analisando em que medida estas contribuem para o entendimento da participação enquanto princípio para a constituição de uma pedagogia.

Guzzo e Lacerda Junior (2007)GUZZO, Raquel S. L.; LACERDA JUNIOR, Fernando. Fortalecimento em tempo de sofrimento: reflexões sobre o trabalho do psicólogo e a realidade brasileira. Revista Interamericana de Psicología, v. 41, n. 2, p. 231-40, 2007. Disponível em: <http://www.redalyc.org/pdf/284/28441214.pdf>.
http://www.redalyc.org/pdf/284/28441214....
partem da categoria "opressão" para analisar a realidade brasileira. Apresentam a descrição de um programa desenvolvido para profissionais de uma Secretaria Municipal de Assistência Social, sendo que a perspectiva freireana foi utilizada como um dos referencias para a condução da proposta, a qual buscou criar um horizonte libertador, de diálogo e reflexões sobre a realidade desses profissionais de modo que ela pudesse ser transformada.

Por fim, Souza e Bourguignon (2016)SOUZA, Cristiane G.; BOURGUIGNON, Jussara A. Ações socioeducativas: estratégias para o favorecimento do protagonismo no contexto do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Pleiade, Foz do Iguaçu, PR, v. 10, n. 20, p. 44-51, jul./dez. 2016. problematizam as ações socioeducativas, pensando seus limites e possibilidades. A partir do conceito de "protagonismo", as autoras analisam suas possibilidades de materialização pela política de Assistência Social, tendo o referencial freireano como uma alternativa metodológica para a construção de práticas que visem o enfrentamento das desigualdades sociais.

Entendendo que se trata de uma perspectiva teórico-metodológica apontada nos referenciais que norteiam a atuação profissional no SUAS, como um ferramenta capaz de constituir-se como suporte para o trabalho social (como indicado, por exemplo, no documento "Trabalho Social com Famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF [BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012.]), consideramos de grande importância o aprofundamento e a reflexão acerca das contribuições que a abordagem freireana pode trazer a política de Assistência Social.

Enquanto caminho adotado para a investigação, é apresentado como o trabalho interdisciplinar no âmbito do SUAS é importante para a efetividade dos fins da política. Em seguida, a partir do referencial freireano, pensar a relação entre o trabalho interdisciplinar e o conceito de antidiálogo de modo a problematizar os modos de relação e práticas que englobam os profissionais da Assistência Social, os usuários e o contexto em que estes vivem e atuam. Nesse sentido, ao realizar esse percurso, acreditamos que este estudo traz também implicações para a atuação profissional de diferentes especialidades como suporte para se pensar novas práticas e intervenções, agora conjuntas, no campo social.

2 SUAS E TRABALHO INTERDISCIPLINAR

A política de Assistência Social no Brasil, apoiada na Constituição Federal de 1988, ­articula-se através do Sistema Único de Assistência Social, tendo por finalidade a garantia de acesso a direitos e serviços de proteção social a todos que deles necessitem. A partir de marcos legais como a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS-1993), a Política Nacional de Assistência Social (PNAS-2004) e a Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB/SUAS, [BRASIL, 2005______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB\SUAS). Brasília: MDS\SNAS, 2005.]), regulamenta-se a estruturação em âmbito nacional dessa política, a partir de normas e diretrizes de implantação que referenciam a forma de atenção que se pretende oferecer.

Nesse sentido, a atenção social organiza-se através de níveis de proteção, nos quais é possível observar a proposta de trabalho social a ser realizada e cujo foco se encontra na ação em conjunto com as famílias atendidas pelo serviço e as comunidades em que estas vivem. No âmbito da proteção básica, de acordo com a "Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais" (BRASIL, 2009______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS. Brasília: MDS\SNAS, 2009a., p. 6), o trabalho social com famílias consiste em

[...] um conjunto de procedimentos implementados por profissionais, a partir de pressupostos éticos, conhecimento teórico-metodológico e técnico-operativo. Ele tem por objetivo contribuir na e para a convivência de um conjunto de pessoas unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade, a fim de proteger seus direitos, apoiá-las no desempenho da sua função de proteção e socialização de seus membros, bem como assegurar o convívio familiar e comunitário de maneira "preventiva, protetiva e proativa".

Segundo a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS), a realização desse trabalho deve acontecer a partir da atuação de equipes de referência, especialmente nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Essas equipes constituem-se por servidores responsáveis pela "organização e oferta de serviços, programas, projetos e benefícios, [...] levando-se em consideração o número de famílias e indivíduos referenciados, o tipo de atendimento e as aquisições que devem ser garantidas aos usuários" (BRASIL, 2006______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS). Brasília: MDS\SNAS, 2006., p. 15). Em sua composição, essa equipe é formada por técnicos com nível médio e superior (sendo este último descrito como um assistente social e outro profissional, preferencialmente psicólogo), que devem atuar de maneira interdisciplinar articulando suas práticas no exercício do trabalho social, entendendo que

O trabalho social com famílias depende de um investimento e uma predisposição de profissionais de diferentes áreas a trabalharem coletivamente, com objetivo comum de apoiar e contribuir para a superação das situações de vulnerabilidade e fortalecer as potencialidades das famílias usuárias dos serviços ofertados no CRAS. (BRASIL, 2009a______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS. Brasília: MDS\SNAS, 2009a., p.62).

É em consonância com essa forma de trabalho que o documento intitulado "Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS" (BRASIL, 2009a______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS. Brasília: MDS\SNAS, 2009a.) pontua a importância do trabalho em equipe e interdisciplinar, como ferramenta necessária para um trabalho que vise abarcar a complexidade da realidade social. Nesse sentido, a publicação aponta que

O enfoque interdisciplinar é adotado como processo de trabalho no âmbito do SUAS, a partir da compreensão de que o principal objeto de ação da política de assistência social - as vulnerabilidades e riscos sociais - não são fatos homogêneos e simples, mas complexos e multifacetados, que exigem respostas diversificadas alcançadas por meio de ações contextualizadas e para as quais concorrem contribuições construídas coletivamente e não apenas por intermédio do envolvimento individualizado de técnicos com diferentes formações (BRASIL, 2009a______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS. Brasília: MDS\SNAS, 2009a., p. 64).

Assim, espera-se que, através da interdisciplinaridade, os especialistas que compõem a equipe multiprofissional possam se dirigir para a superação do isolamento dos saberes, pondo fim a uma atuação tecnicista, de forma a contribuir para a articulação de conhecimentos distintos que trabalham em função das demandas trazidas pela realidade social.

A questão que se coloca aos profissionais que ingressam nesse serviço é como efetivar a postura interdisciplinar na prática cotidiana das equipes que compõem o serviço. A superação do distanciamento entre os profissionais esbarra em diversas barreiras que passam, por exemplo, pela própria constituição das disciplinas. Conforme afirma Gusdorf (1976, p. 16)GUSDOF, Georges. Prefácio In: JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976., "as disciplinas científicas especializaram-se e distanciaram da existência concreta, constituíram-se como linguagem hermética reservada aos iniciados, e perdidas da sua função primordial: a vinculação do homem com o mundo onde ele reside".

As disciplinas científicas passam, então, a delimitar a troca entre os saberes ao se colocarem, como aponta Foucault (1996, p. 30)FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996., como um princípio de limitação ao discurso uma vez que estas "permitem construir, mas conforme um jogo restrito". Assim fomentam a construção de novos conhecimentos cerceados em enquadres já definidos. Nesse processo, o autor afirma que "no interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber" (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996., p. 33) e, com isso, se mostra incapaz de reconhecer a veracidade do conhecimento produzido no exterior de suas fronteiras. Como resultado dessas delimitações, ao se colocarem em diálogo com outras áreas de conhecimento, cada campo já carrega consigo um discurso específico tido como verdadeiro, que se delineia no decorrer da formação do profissional e que, de certo modo, exclui o discurso do outro enquanto modo de compreensão dos fenômenos vivenciados.

A divergência entre os discursos expressos pelos profissionais a partir da linguagem de cada especialidade pode, portanto, encontrar-se articulada com as dificuldades enfrentadas pela equipe de trabalho ao se colocar como fator interferente ao diálogo. Como o que se espera na perspectiva interdisciplinar do SUAS é que se eleja "uma plataforma de trabalho conjunta, por meio da escolha de princípios e conceitos comuns" (2009b, p. 65), cabe então pensar quais os aspectos deste trabalho podem se apresentar como conectores ao diálogo entre os profissionais.

A construção de caminhos com o objetivo de responder a essas demandas passa necessariamente pela eleição de arcabouços teóricos que coadunem com a proposta de trabalho social a ser desenvolvida pela equipe. Damos então destaque à perspectiva teórica desenvolvida por Paulo Freire. Sugerida inicialmente como instrumental para a realização do trabalho social, no documento "Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II", acreditamos que esse referencial teórico-metodológico pode contribuir também para o estabelecimento de uma relação dialógica entre a equipe interdisciplinar. A proposta freireana pode trazer contribuições ao desenvolvimento de ações que resultem no cumprimento dos objetivos do trabalho social uma vez que apresenta em suas bases a busca pela transformação social, a visão de homem construído historicamente em sua relação com o mundo social e a crença no sujeito e na possibilidade da mudança, que vão de encontro com a proposta do SUAS.

Inicialmente é importante destacar que o documento acima citado afirma que a pedagogia freireana é um possível suporte para práticas realizadas no contexto do trabalho com famílias. Ao considerar os anseios e a leitura do mundo dos educandos (usuários da política), torna-se possível construir alternativas para as dificuldades daquilo que se está vivendo. Portanto, ao ultrapassar uma visão fatalista de mundo, tal perspectiva, ao ser empregada no âmbito da Assistência Social, poderia auxiliar no desenvolvimento da autonomia dos usuários.

Nessa direção, por exemplo, ao pensarmos a dinâmica da equipe técnica nos equipamentos da Assistência Social (em especial no CRAS), suscita-nos a inclusão de um novo elemento. Os saberes de cada um deles, isoladamente pode não ser capaz de garantir o processo formativo em direção à autonomia, visto que se trata de um processo eminentemente endógeno. A educação na proposta freireana é sempre relacional no mundo e com os outros (FREIRE, 1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.).

O desenvolvimento da autonomia acontece vinculado aos modos em que o processo formativo acontece. Por essa razão, a compreensão dos pressupostos das condições para uma educação na qual o homem torna-se sujeito, condição para o desenvolvimento de um saber crítico do mundo e da realidade em que se encontra. Nesse sentido, "a educação autêntica [...] não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 97), expresso na comunidade em que atuam através do público-alvo do trabalho. Partilhado pela equipe, esse universo de ação se apresenta como elemento comum à atuação na assistência social e pode potencialmente possuir um caráter mediador na relação interdisciplinar.


Entendemos que conceber o público-alvo (comunidade atendida pelo serviço) como mediador do encontro interdisciplinar propõe um elo entre os distintos conhecimentos expressos pelos profissionais. Essa conexão, por sua vez potencializa a comunicação entre os técnicos uma vez que o diálogo constitui-se no "encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo" (FREIRE 1980______. Conscientização: teoria e pratica da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980., p.82). Assim, construir uma relação da equipe mediada pelo território onde ela atua leva à estruturação de um campo de diálogo entre os saberes propício para a construção conjunta da ação a ser desenvolvida.

Essa forma de relação entre equipe, ao se mostrar vinculada com a comunidade de atuação, corrobora com o almejado pela política de assistência social no que diz respeito ao Trabalho Social com Famílias (TSF), tendo em vista que esta estabelece que

[...] o conhecimento das situações familiares constitui a pedra angular do TSF, à medida que é este conhecimento que vai ofertar insumos para a tomada de decisões em torno das ações a serem empreendidas pelos trabalhadores do SUAS. (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS\SNAS, 2016., p. 22).

Entendemos que, nesse encontro de saberes, mediado e conectado pelo público-alvo, cria-se a condição para a produção de novos conhecimentos, na medida em que "posto diante do mundo, o homem estabelece uma relação sujeito-objeto da qual nasce o conhecimento que ele expressa através de uma linguagem" (FREIRE, 1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 67).

Construir uma relação dialógica na equipe interdisciplinar mediatizada pela comunidade de atuação se coloca como alternativa que poderia se sobrepor aos entraves entre as especialidades de forma condizentes com o que orienta a política. Nesse caminho, outras demandas se colocam, sendo uma delas, a superação do assistencialismo.

3 EQUIPE INTERDISCIPLINAR E A POSIÇÃO ANTIDIALÓGICA

Um dos principais desafios que incidem sobre o trabalho da equipe interdisciplinar no âmbito do SUAS consiste na desvinculação do Trabalho Social com Famílias de uma prática assistencialista e com enfoque de caridade. Reafirma-se, portanto, a política como um direito social e dever estatal. Destaca-se a necessidade de uma ação contextualizada na realidade social, histórica e econômica em que se insere e guiada para o desenvolvimento individual, familiar e coletivo em um trabalho contínuo e de caráter transformador.

Assim, objetiva-se que a ação dos profissionais esteja pautada nos conhecimentos teóricos e metodológicos de sua formação a partir da especialidade de cada técnico e que estes, sendo compartilhados entre a equipe interdisciplinar, assegurem a finalidade do trabalho como proposta de emancipação. Desvinculado do assistencialismo, o Trabalho Social consistiria então em um

[...] trabalho especializado, realizado por técnicos de nível superior, com formação profissional, fundamentado em conhecimentos teórico-metodológicos, técnico-operativos e em pressupostos éticos, projetos ético-políticos, dentre outros. (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 11).

Nesse sentido, no âmbito do SUAS, o Trabalho Social com Famílias deve se constituir como uma nova forma de ação social que se contraponha à antiga ação assistencialista e tutelar que se desenvolveu no pais antes do reconhecimento da assistência social como política pública, a partir da Constituição Federal de 1988, em que ação social tradicionalmente caracterizava-se pela concepção de doação, caridade, favor, bondade e ajuda, compreendendo os usuários "pessoas dependentes, frágeis, vitimizadas, tuteladas por entidades e organizações que lhes "assistiam" e se pronunciavam em seu nome" (BRASIL, 2004______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Brasília: MDS\SNAS, 2004., p. 53).

A partir da nova concepção de Assistência Social, como política pública, dever do Estado e direito de cidadania, que vem sendo construída no Brasil desde a publicação da PNAS em 2004, esta passa a se configurar como

[...] política que se propõe a superar a tradição histórica assistencialista, clientelista, segmentada, de modo a ultrapassar a lógica dos "favores ou afilhados" para alcançar o entendimento da prestação de serviços públicos no campo dos direitos socioassistenciais. Ao contrário, garante direitos aos cidadãos. Política que além de enfrentar riscos sociais, propõe-se a prevenir as situações de vulnerabilidade social. (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 5).

Dentro desse processo de constante embate com um histórico assistencialista que fundamentava a área, os documentos nacionais que normatizam e regulamentam a política de Assistência Social chamam atenção para aspectos importantes da formação do profissional que implicam seu posicionamento dentro da política pública. O que se destaca é que ainda pode se mostrar presente um posicionamento no qual o técnico ocupa o lugar de detentor do saber, em virtude de sua formação acadêmica e profissional, negligenciando o saber popular representado no público-alvo do serviço. Nesse sentido, se reconhece que um dos maiores desafios do Trabalho Social com Famílias é "superar o predomínio do agir tutelar no atendimento das famílias; a extrema valorização da racionalidade técnico-instrumental, e não da razão comunicativa; e a ênfase no controle, e não na emancipação" (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 93).

Nesta postura, considerada como não comunicativa e pautada por estratégias de controle da comunidade e dos indivíduos atendidos, temos o que Paulo Freire aponta como "o grande perigo do assistencialismo". O perigo ao qual o autor chama a atenção consiste na violência do antidiálogo contido no assistencialismo, que como produto, "impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a "abertura" de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica" (FREIRE, 1967______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 63).

O que Freire observa é que, especialmente pelo tipo de colonização que se vivenciou no país, houve a predominância da não-participação dos sujeitos na solução dos problemas comuns onde, oscilando entre o poder do senhor das terras e o poder do governador, o poder do capitão-mor, faltou-nos essencialmente a vivência comunitária. Por isso afirma que, "em todo o nosso background cultural, inexistiam condições de experiência, de vivência da participação popular na coisa pública. Não havia povo" (FREIRE, 1967______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 78, grifo do autor). Desse processo, caracterizado pela dominação, surge a postura antidialógica marcada pela passividade.

O antidiálogo, característico e entranhado em nossa formação histórico-cultural, consiste, segundo Freire (1967, p. 114-6)______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., em uma relação vertical de A sobre B, sendo este último acrítico e incapaz de gerar criticidade. Esta tem as mesmas bases das soluções paternalistas e da postura muda e áfona do brasileiro uma vez que "as sociedades a que se nega o diálogo - comunicação - e, em seu lugar, se lhes oferecem "comunicados", resultantes de compulsão ou "doação", se fazem preponderantemente "mudas". O mutismo não é propriamente inexistência de resposta. É resposta a que falta teor marcadamente crítico" (FREIRE, 1967______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 75).

A adoção dessa postura dentro do trabalho no SUAS, negando-se à comunicação, entre os técnicos ou entre técnicos e público-alvo, e substituindo-a por comunicados ou falas propositivo-impositivas, nega a voz aos outros atores da política. Sem a superação do antidiálogo, os conhecimentos teóricos e metodológicos que baseiam atuação dos profissionais não sustentem por si só a superação do assistencialismo.

Isso porque, quando esse saber técnico não se expressa como comunicação - e sim como comunicados -, se configura na forma de uma "doação" a aquele que lhe recebe e não lhe possibilita a oportunidade de decisão uma vez que esta já vem e expressa nos comunicados. Perpetua-se assim uma pratica assistencialista que, marcada pela antidialogia, substitui a comunicação pela doação de informações tendo como efeito uma formação humana atravessada hegemonicamente pela posição de passividade, submissão e domesticação do homem, uma vez que, conforme destaca Freire (1967, p. 57)______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.:

No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que revelam passividade e "domesticação" do homem. Gestos e atitudes. É esta falta de oportunidade para a decisão e para a responsabilidade participante do homem, característica do assistencialismo, que leva suas soluções a contradizer a vocação da pessoa em ser sujeito.

Ampliando essa questão, Freire (1983)______. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. explica que o conteúdo da comunicação não pode ser apenas um comunicado ao outro, visto que, nessa condição, não seria possível ao objeto servir de mediador significante para o sujeito. Como consequência, aquele que recebe serve de depósito, escapando à dinâmica da mediação. Diferentemente disso, a comunicação "[...] implica numa reciprocidade que não pode ser rompida" (FREIRE, 1983______. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983., p. 45). Assim, ao pensar a atuação junto ao campesinato, o autor afirma que:

[...] o diálogo problematizador, entre as vários razões que o fazem indispensável, tenha mais esta: a de diminuir a distância entre a expressão significativa do técnico e a percepção dos camponeses em torno do significado. Deste modo, o significado passa a ter a mesma significação para ambos. E isto se dá na comunicação e intercomunicação dos sujeitos pensantes a propósito do pensado, e nunca através da extensão do pensado de um sujeito até o outro. (FREIRE, 1983______. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983., p. 46, grifo do autor).

Nega-se a tais sujeitos a possibilidade de existir humanamente, pois, entendida a partir de Freire (2005, p. 38)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., a existência humana não pode ser muda, silenciosa, mas nutrir-se de palavras através das quais os homens transformam o mundo. Para Freire, as soluções assistencialistas "[...] contradiziam a vocação natural da pessoa ‒ a de ser sujeito e não objeto, e o assistencialismo faz de quem recebem assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do processo de sua própria recuperação" (FREIRE, 1967______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 63).

Tendo como pressuposto a compreensão da historicidade dos homens, Freire (2005, p. 36)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. "os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada". Os homens por serem históricos e conscientes de sua inconclusão inserem-se em um constante movimento de busca, de humanização, dirigindo-se se em um movimento de Ser Mais. Nesse movimento, ao ver-se inserido em uma realidade também histórica, vislumbra-se a possibilidade de agir sobre esta, transformá-la.

É a palavra, fenômeno humano e elemento constitutivo do diálogo, que se nega ao outro na prática antidialógica. Esse elemento constitui-se para Freire de duas dimensões, sendo elas ação e reflexão, a partir das quais, se unidas, a palavra se torna em práxis. Nessa direção, a palavra se estabelece como elemento importante na inserção ao homem e seu movimento de busca e transformação.

Em suas dimensões, a palavra constitui-se então como reflexão acerca do mundo, das condições concretas de existência e da realidade vivenciada. É esse processo de reflexão que conduz à prática estando intimamente relacionado à ação humana no mundo. Nessa relação entre ação-reflexão, cabe destacar que "assim, como não há homem sem mundo, nem mundo sem homem, não pode haver reflexão e ação fora da relação homem - realidade" (FREIRE, 1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 8), dessa forma, é através de sua experiência nessa relação que o homem pode ter desenvolvido ou atrofiado seu ato de agir e refletir, assim "conforme se estabelecem estas relações, o homem pode ou não ter condições objetivas para o pleno exercício da maneira humana de existir" (FREIRE,1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 8).

Nesse sentido, entende-se que palavra verdadeira é transformação do mundo, uma vez que, através da ação-reflexão, se configura como práxis. Isto é, a palavra constitui-se como a reflexão sobre a realidade em que se está inserido e ação sobre essa realidade, para modificá-la, resultando transformação social.

Por constituir-se pelas dimensões de ação e reflexão, inteiramente ligadas uma a outra, ao separar tais esferas, a palavra torna-se vazia e impedida de ser práxis. Essa separação, que marca o antidiálogo, mostra-se como caminho contrário ao da humanização, uma vez que

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 38).

Conforme aponta Freire, é "no momento em que os indivíduos, atuando e refletindo, são capazes de perceber o condicionamento de sua percepção pela estrutura que se encontram, sua percepção muda", como consequência dessa mudança, a realidade que antes era vista como algo imutável passa a ser percebida como "uma realidade histórico-cultural, humana, criada pelos homens e que pode ser transformada por eles" (FREIRE, 1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 27).

Assim, é no pronunciar da palavra que o homem se tornaria capaz de perceber-se enquanto presença criadora e potencialmente transformadora da realidade. Ao contrário, se não existir ao homem a possibilidade de reflexão sobre si e sobre sua relação como o mundo, indissoluvelmente associada à sua ação sobre o mundo, seu estar no mundo seria então reduzido "a um não transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo" (FREIRE, 1982______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., p. 7).

Por isso, entendendo que é através da palavra verdadeira que o homem atua sobre seu mundo, ao negar ao outro o direito à fala, nega-se também a este a possibilidade agir sobre o mundo e atuar sobre sua realidade, portanto

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. Ë preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue .(FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 38).

Entendendo que, para o autor, "existir humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo" (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 38), negar a palavra é negar também aos homens sua caminhada de humanização, colocando-os em seu contrário, em um processo de desumanização, no impedimento de seu movimento de Ser Mais. Por esse motivo Freire (2005, p. 37)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. afirma que

Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres históricos e necessariamente inseridos num movimento de busca, com outros homens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento. Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta. Não importam os meios usados para esta proibição. Fazê-los objetos é aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.

Não reconhecido em seu saber e excluído da possibilidade da fala, características de um posicionamento antidialógico, os usuários da política são submetidos a uma forma de trabalho pautada pela tutela, uma vez que não se reconhece neles a capacidade de exercer autonomamente suas escolhas e decisões que são direcionadas ao saber do técnico. Tal pensamento tutelar é entendido dentro da política de Assistência Social como aquele que

[...] subestima as capacidades dos desiguais, capacidades estas que se referem a pensar, transitar com autonomia e exercer sua liberdade. A tutela é filha direta do assistencialismo, do apadrinhamento, do clientelismo. Caracteriza-se ainda por ser autoritária e compensatória, pois além de não emancipar, submete. Assim sendo, a opção do trabalho social precisa ser a da emancipação. (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 93).

Assim, a ação de tutela se apresenta como proposição de uma postura vertical do técnico para com o usuário. Esta, por sua vez, mostra-se na direção contrária aos objetivos do trabalho social por ser incapaz de promover autonomia e emancipação. A afirmação acima pontua marcadamente a necessidade de excluir da política a forma de agir tutelar, indo de encontro com as reflexões desenvolvidas por Freire da relação antidiálogo-assistencialismo. Para o autor,

[...] é preciso que creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo também. Se esta crença nos falha, abandonamos a ideia, ou não a temos, do diálogo, da reflexão, da comunicação e caímos nos slogans, nos comunicados, nos depósitos, no dirigismo. (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., p. 25).

Entendendo os impactos de uma ação antidialógica e seus efeitos de dominação, através da imposição da passividade e da mudez, torna-se clara sua ligação com o pensamento tutelar e assistencialista que pode se configurar, por exemplo, através de uma postura diretiva por parte dos técnicos sobre as decisões a serem tomadas pelos usuários, no não reconhecimento de sua fala ou na esquiva de proporcionar espaços de diálogo acerca da construção do trabalho a ser realizado. Assim, superar o assistencialismo dentro do trabalho no SUAS consiste também em superar a adoção de uma postura antidialógica pelos profissionais da política de Assistência Social.

Esta se mostra uma perspectiva que vai de encontro com o desafio proposto à equipe interdisciplinar pela política de "concretizar o trabalho social com família do PAIF de forma eficiente, humanizada e capaz de contemplar o universo familiar como um todo, suplantando quaisquer tipos de preconceitos e estigmas" entendendo que para tal "o trabalho social com famílias deve atentar para que estas sejam reconhecidas como sujeitos de sua transformação e atores do seu processo de desenvolvimento" (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 74).

Nesse sentido, conforme aponta o documento "Trabalho Social com Famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF Vol. 2" a adoção da perspectiva da Pedagogia Problematizadora, desenvolvida por Paulo Freire, para o desenvolvimento do trabalho social com famílias

[...] exige o exercício, nem sempre fácil, de reconhecimento das famílias usuárias do PAIF como portadoras de saberes anteriormente adquiridos e como protagonistas de sua própria história. Exige também que se reconheça que todos os seres humanos têm caminhada histórica, sendo sujeitos de historicidade e fazendo parte de uma história social mais ampla. Possuem assim diferentes formas de ver o mundo e de enfrentar situações - são, portanto, seres culturais com práticas de significação do mundo, de si próprios e dos outros. (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012., p. 91).

O documento pontua ainda que assumir certas proposições de Paulo Freire (como a compreensão do ser humano enquanto um caminho aberto de possibilidades - ou seja, "ser mais" -, bem como estabelecimento de uma relação horizontal/dialógica entre profissionais e usuários do Serviço tendo como base respeito e a concepção de igualdade entre os saberes de técnicos usuários, dentre outros pontos), favorecem o desenvolvimento de uma abordagem metodológica que contribui para o cumprimento dos objetivos do Trabalho Social com Famílias no serviço de Proteção e Atendimento integral à Família (PAIF) (BRASIL, 2012______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF - volume II. Brasília: MDS\SNAS, 2012.).

Caminhar nessa direção apresenta aos agentes dessa política um trabalho constante e necessário, que nos diz da grande dificuldade e do alto senso de responsabilidade que se exige nessa atuação, que não diz respeito a dificuldades técnicas ou conhecimentos obtidos, mas que "a dificuldade está na criação mesma de uma nova atitude - e ao mesmo tempo tão velha - a do diálogo, que, no entanto, nos faltou no tipo de formação que tivemos" (FREIRE, 1967______. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 121).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho a ser desenvolvido na política de Assistência Social a partir da perspectiva em que se apresenta atualmente constitui-se como um campo novo de inserção de muitos profissionais. Nesse cenário, diversos entraves se colocam diante da atuação que se pretende desenvolver advindos de novas demandas que se apresentam na estruturação da política pública. A organização de um trabalho conjunto entre áreas distintas através das equipes interdisciplinares e a busca constante pelo abandono ao assistencialismo configuram-se como parte dessas demandas que se colocam ao trabalho. Ambas culminam na possibilidade de construção de uma formação humana pautada pela dialogia e participação popular.

Nesse sentido, refletindo sobre essas demandas a partir do referencial de Paulo Freire, destacamos, em um primeiro momento, que a construção de uma relação dialógica entre técnicos que compõem a equipe interdisciplinar através da mediação da comunidade de atuação se coloca como alternativa que se sobreporia às divergências e diferenças entre as especialidades, configurando-se como base para a construção conjunta do trabalho social.

Em seguida, destaca-se também a necessidade de se discutir os impactos de uma ação antidialógica, entendendo, a partir de Freire, que esta se mostra, por exemplo, na forma de passividade e da mudez, resultando em um processo de dominação intrinsecamente ligado ao pensamento tutelar e assistencialista. A compreensão dessa ligação entre uma posição antidialógica e o desenvolvimento de ação tutelar e assistencialista aponta, portanto, para a necessidade de superação desse posicionamento dentro da política de Assistência Social como forma de atender seus objetivos enquanto política pública.

Caminhando nesta direção e ao pensar estes entraves baseados nas proposições ­freireanas, temos representadas duas posições distintas e marcadas pela contrariedade, sendo estas, a do diálogo e a do antidiálogo. Assim, ambas as posições discutidas mostram-se, ainda que antagônicas, ligadas uma a outra.

Cabe destacar que ambos os apontamentos, de implementação de uma atuação dialógica entre equipe interdisciplinar e de abandono de uma postura antidialógica pelos profissionais frente ao público atendido, exigem desses profissionais um posicionamento diferente daquele por ele vivenciado, tanto em termos da formação histórica e cultural do país como no que diz respeito ao processo de divisão dos conhecimentos científicos. Nesse sentido, abrem-se caminhos para novos delineamentos de pesquisas futuras entendendo que este ainda é um referencial pouco explorado e que traria contribuições ao trabalho na política de Assistência já que parece corroborar com suas finalidades.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Revisado
    05 Set 2017
  • Aceito
    13 Set 2017
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