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Desafios e contradições de um projeto solidário: o caso de uma associação de catadores de materiais recicláveis

Challenges and contradictions of a solidarity project: the case of an association of collectors of recyclable materials

Défis et contradictions d’un projet de solidarité: le cas d’une association de collecteurs de matériaux recyclables

Desafíos y contradicciones de un proyecto solidario: el caso de una asociación de recolectores de materiales reciclables

Resumos

Resumo: O trabalho objetivou descrever e analisar o funcionamento de uma associação de catadores de materiais recicláveis. Foram entrevistados seis catadores e os dados foram analisados através da análise de conteúdo. Os resultados mostraram ausência da alternância de poder, falta de autonomia por parte dos associados e baixo retorno financeiro. Ressalta-se a necessidade de práticas mais dialógicas, do desenvolvimento da autonomia dos catadores e da busca por melhorias na qualidade de trabalho dos associados.

Palavras-chave:
associação de trabalhadores; catadores de materiais recicláveis; trabalho


Abstract: The aim of this work was to describe and analyze the functioning of an association of collectors of recyclable materials. Six scavengers were interviewed and data were analyzed through content analysis. The results showed absence of alternation of power, lack of autonomy on the part of the associates and low financial return. The need for more dialogic practices, the development of the autonomy of the collectors and the search for improvements in the quality of work of the associates is emphasized.

Keywords:
workers’ association; recyclable material collectors; work


Résumé: Le but de ce travail était de décrire et d’analyser le fonctionnement d’une association de collecteurs de matériaux recyclables. Six associés ont été interviewés et les données ont été analysées par analyse de contenu. Les résultats ont montré l’absence d’alternance de pouvoir, le manque d’autonomie de la part des associés et le faible rendement financier. Il est présenté le besoin de plus de pratiques dialogiques, le développement de l’autonomie des collecteurs et la recherche d’améliorations dans la qualité du travail des associés sont soulignés.

Mots-clés:
association des travailleurs; collecteurs de materiaux recyclables; travail


Resumen: El trabajo tuvo como objetivo describir y analizar el funcionamiento de una asociación de recolectores de materiales reciclables. Se entrevistaron seis recolectores y los datos fueron analizados a través del análisis de contenido. Los resultados mostraron ausencia de alternancia de poder, falta de autonomía por parte de los asociados y bajo retorno financiero. Se resalta la necesidad de prácticas más dialógicas, del desarrollo de la autonomía de los recolectores y de la búsqueda de mejoras en la calidad de trabajo de los asociados.

Palabras clave:
asociación de trabajadores; recolectores de materiales reciclables; trabajo


1 INTRODUÇÃO

Desde o século XIX, estratégias associativas e cooperativas buscam propor alternativas de organização social distintas da racionalidade capitalista. Nos países periféricos, como por exemplo o Brasil, práticas baseadas no trabalho e em laços de reciprocidade sempre subsistiram, guardando um sentido primordialmente social (GAIGER, 2013GAIGER, Luiz Inácio. A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, p. 212-27, jun. 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000200013>.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201300...
).

Durante a década de 1990, o movimento de economia solidária cresceu significativamente no Brasil, como uma reação frente aos problemas socioeconômicos vividos na época (VERONESE; SCHOLZ, 2013VERONESE, Marília Veríssimo; SCHOLZ, Robinson. A difícil construção da liderança solidária compartilhada. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 3, n. 2, p. 41-64, 2013.). A partir de experiências associativas, cooperativas e práticas de autogestão, o movimento passou a ganhar mais notoriedade. Com o tempo, a economia solidária expandiu-se e passou a abranger outras modalidades de organização, como sistemas locais de trocas, comunidades produtivas, associações, cooperativas dedicadas à prestação de serviços, comercialização, crédito etc. (GAIGER, 2013GAIGER, Luiz Inácio. A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, p. 212-27, jun. 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000200013>.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201300...
).

Nos dias atuais, em meio a tantas dificuldades de inserção e permanência no mercado de trabalho, os movimentos de economia solidária, em especial, as cooperativas e a organização de trabalhadores em associações, continuam a aparecer como uma alternativa na direção de uma sociedade mais igualitária, baseada na inclusão de trabalhadores que, seja pelas exigências do mercado, seja por um processo histórico de marginalização, encontram-se desempregados (LIMA, 2010LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
). O trabalho associativo configura-se como uma resposta viável para que esses trabalhadores encontrem uma oportunidade para atendimento de suas necessidades básicas (VERONESE; GUARESCHI, 2005VERONESE, Marília Veríssimo; GUARESCHI, Pedrinho. Possibilidades solidárias e emancipatórias do trabalho: Campo fértil para a prática da psicologia social crítica. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 58-69, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000200009>.
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).

A economia solidária fundamenta-se em uma economia popular baseada na cooperação solidária entre os trabalhadores e integrada à economia de mercado, porém funcionando a partir de outras lógicas além da mercantil (VERONESE; SCHOLZ, 2013VERONESE, Marília Veríssimo; SCHOLZ, Robinson. A difícil construção da liderança solidária compartilhada. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 3, n. 2, p. 41-64, 2013.). Em suas diversas formas de organização, sejam elas cooperativas, associações ou grupos informais, destina-se a empoderar as pessoas e as coletividades, permitindo que bens sejam produzidos e que riquezas sejam mais bem distribuídas, de modo a suprir as necessidades de seus associados e possibilitar um desenvolvimento genuinamente sustentável (VERONESE; GUARESCHI, 2005VERONESE, Marília Veríssimo; GUARESCHI, Pedrinho. Possibilidades solidárias e emancipatórias do trabalho: Campo fértil para a prática da psicologia social crítica. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 58-69, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000200009>.
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). Dentre os seus princípios, é possível destacar a prática da autogestão, com tomada de decisões democráticas, relações horizontais e de cooperação entre o grupo (COUTINHO et al., 2005COUTINHO, Maria Chalfin; BEIRAS, Adriano; PICININ, Dhiancarlos; LUCKMANN, Gabriel Luiz. Novos caminhos, cooperação e solidariedade: a psicologia em empreendimentos solidários. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 1, p. 17-28, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000100002>.
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).

A proposta é que, nesses empreendimentos, o trabalho heterônomo, característico do assalariamento, seja substituído por um trabalho enriquecido e autônomo, no qual o trabalhador é responsável pela produção. Nessa proposta, coletivista por excelência, os próprios trabalhadores são os responsáveis pela gestão de suas atividades, indo ao encontro da “ideia de ‘projeto’ emancipatório, não só na criação de uma alternativa ao desemprego e à precarização das relações de trabalho, mas também de uma ‘outra’ economia, na qual o trabalho teria precedência sobre o capital” (LIMA, 2010LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
, p. 161).

De maneira ideal, no trabalho organizado na forma de cooperativa e/ou associação, as relações devem ser igualitárias e com autoridades compartilhadas, com os trabalhadores desenvolvendo a prática da autogestão. Apesar de a literatura apresentar diferentes definições de autogestão, em comum pode ser destacada a ideia dos trabalhadores reunirem-se em torno de associações ou cooperativas sinalizando um rompimento com a estrutura assalariada, tornando-se donos do próprio negócio com direito de participar dos processos de tomada de decisão. Isto significa que, em tese, as empresas autogestionárias valorizam os trabalhadores, estimulando a autonomia e a democratização do ambiente de trabalho, apresentando-se como uma nova opção de trabalho e possibilitando o fim da relação de subordinação do trabalho assalariado (LIMA, 2010LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
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; PINHEIRO; PAULA, 2016PINHEIRO, Daniel Calbino; PAULA, Ana Paula Paz. Autogestão e práticas organizacionais transformadoras: contribuições a partir de um caso empírico. Desenvolvimento em Questão, Ijuí, v. 14, n. 33, p. 233-66, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.21527/2237-6453.2016.33.233-266>.
http://dx.doi.org/10.21527/2237-6453.201...
; VERONESE; GUARESCHI, 2005VERONESE, Marília Veríssimo; GUARESCHI, Pedrinho. Possibilidades solidárias e emancipatórias do trabalho: Campo fértil para a prática da psicologia social crítica. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 58-69, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000200009>.
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).

Entretanto, nos últimos anos, o movimento tem passado por diversas transformações, inclusive com práticas contraditórias. Sabe-se que, no Brasil, as experiências são bastante heterogêneas, com casos exitosos que propiciam a emancipação dos trabalhadores, mas também com casos em que os empreendimentos são utilizados como meio de burlar a legislação trabalhista, impulsionando a precarização.

Dentre os diversos grupos de trabalhadores que decidiram se organizar e recorrer a um empreendimento solidário, estão os catadores de materiais recicláveis. Os catadores compõem um grupo de trabalhadores informais marcado por uma exploração física e econômica, em condições precárias e com baixo reconhecimento social (BRAGA; LIMA; MACIEL, 2016BRAGA, Natalia Lopes; LIMA, Deyseane Maria Araújo; MACIEL, Regina Heloisa. Sobrevivendo só da misericórdia: a vivência de catadores de materiais recicláveis. Revista CES Psicologia, v. 9, n. 1, p. 122-34, 2016.).

Nos últimos anos no Brasil, muitas associações de catadores foram criadas, e estima-se que 10% deles trabalhem em associações e/ou cooperativas, enquanto os outros 90% são avulsos, trabalhando para negócios de sucata (IPEA, 2010INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA [IPEA]. Pesquisa sobre pagamento por serviços ambientais urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: IPEA, 2010.). Apesar disso, a formação de cooperativas e associações entre os catadores tem sido incentivada como uma forma de proteção e desprecarização do trabalho de pelo menos uma parte desses trabalhadores (MACIEL et al., 2010MACIEL, Regina Heloisa; SANTOS, João Bosco; MATOS, Tereza Gláucia Rocha; MEIRELES, Gustavo Fernandes; VIEIRA, Maria Eulaidia; FONTENELLE, Marselle. Work, health and organization of street scavengers in Fortaleza, Brazil. Policy and Practice in Health and Safety, v. 8, n. 2, p. 95-112, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/14774003.2010.11667750>.
http://dx.doi.org/10.1080/14774003.2010....
).

Diante disso, uma vez que muitas associações e cooperativas funcionam com o apoio e investimento de políticas públicas, doações de empresas e de residentes da cidade, mostra-se relevante conhecer o funcionamento desses empreendimentos para saber se eles têm conseguido aproximar-se dos ideais da economia solidária, possibilitando melhorias nas condições de trabalho e qualidade de vida para os seus associados.

Como objetivo, esta pesquisa buscou descrever e analisar o funcionamento de uma associação de catadores de materiais recicláveis, atentando para: possibilidades de desenvolvimento da autonomia de seus associados, prática e exercício da autogestão, e processo de divisão dos lucros.

2 MÉTODO

2.1 Participantes e lócus

A pesquisa foi realizada em uma associação de catadores de materiais recicláveis da cidade de Fortaleza, CE, e contou com a participação de seis catadores. A escolha do número de participantes aconteceu por critério de saturação. Dentre os participantes, um foi a presidente da associação, e os outros cinco eram associados. A Tabela 1 mostra suas principais características.

Tabela 1
Características dos participantes da pesquisa

2.2 Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o intuito de conhecer o funcionamento da associação, considerando, principalmente, os aspectos relacionados às possibilidades de desenvolvimento da autonomia de seus associados, a prática e exercício da autogestão e o processo de divisão dos lucros.

Em um primeiro momento, foi feito contato com a presidente da associação que, desde o início, mostrou-se disponível para a pesquisa, prontificando-se a conceder uma entrevista. Apesar de a associação contar com cerca de vinte associados, o encontro com esses sujeitos mostrou-se um desafio, uma vez que sempre estavam na associação apenas dois ou três catadores, quase sempre os mesmos.

A primeira entrevista realizou-se com a presidente da associação. Depois de algumas dificuldades para marcar um encontro, outras três entrevistas puderam ser realizadas no dia da eleição para a presidência da associação. Além da presidente, esses três entrevistados eram os únicos associados presentes na ocasião. Como estratégia para contatar outros associados, a pesquisadora foi à associação em um dia de Assembleia Geral, e outras duas entrevistas foram realizadas.

Todas as entrevistas foram feitas de modo individual, com duração variando de quinze minutos à uma hora e trinta minutos. As entrevistas foram gravadas com o auxílio de um gravador e posteriormente transcritas.

2.3 Análise dos dados

Para a análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Em um primeiro momento, foi realizada uma pré-análise com uma leitura flutuante do material obtido através das entrevistas. Em seguida, durante o processo de exploração do material, foram destacadas falas relativas aos temas indicados nos objetivos da pesquisa, além de outros aspectos emergentes nos discursos dos participantes. As falas que diziam respeito a um mesmo tema foram recortadas e agregadas em razão de suas características em comum. Por fim, buscou-se interpretar e dar significado ao conjunto das falas, relacionando os dados obtidos à literatura científica.

2.4 Aspectos éticos

Obedecendo aos padrões éticos, esta pesquisa foi executada somente após sua devida aprovação pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Antes do início da coleta de dados, os catadores participantes do estudo foram esclarecidos sobre os objetivos e as condições de realização do trabalho e, uma vez tendo aceitado participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O nome da associação foi mantido em sigilo, bem como o dos participantes, com o intuito de preservar o anonimato. A associação pesquisada será aqui chamada de Associação.

3 RESULTADOS

3.1 A Associação

A Associação foi fundada por sua atual presidente (denominada aqui de Presidente) no início dos anos 2000, quando esta se reuniu com outros quatro catadores com os quais já trabalhava e formalizou sua fundação.

Atualmente possui cerca de vinte associados cadastrados formalmente e mantém-se unicamente através de doações de materiais recicláveis de diversas empresas, indústrias, instituições e residentes da cidade de Fortaleza. Por falta de verba, a Associação não costuma comprar o material coletado na rua por catadores.

A Associação funciona em um imóvel próprio, comprado com a verba de uma doação governamental. O espaço é também o local de moradia da Presidente, onde ela reside com marido e filhos. O empreendimento recebe apoio e orientação da Cáritas de Fortaleza (organização da Igreja Católica) e integra a Rede de Catadores(as) de Resíduos Sólidos Recicláveis do Estado do Ceará, cujo objetivo é desenvolver ações entre associações, cooperativas e grupos de catadores.

3.2 Remuneração e trabalho precário

Sobre o processo de divisão dos lucros, identificou-se que os associados, algumas vezes, recebem uma diária de 30 reais pelo dia de trabalho. Quando uma doação necessita ser coletada ou quando o material reciclável precisa ser separado de acordo com sua composição (papel, plástico, metal...), a Presidente chama um associado para ajudar na coleta e na separação do material doado e paga uma diária:

Quando é pra ir buscar um material ‘bora aculá gente, bora aculá pegar um material, pago a diária de vocês’. Esse que vem separar aqui dentro, eu também pago a diária pra separar material aqui dentro. Então mesmo assim eu não to deixando ele na mão. (Presidente)

Diferente do que é proposto pela literatura sobre empreendimentos solidários com a organização de trabalhadores, na associação pesquisada os lucros não são repartidos de maneira igualitária entre os sócios, sendo a Presidente que decide quem e quanto cada um vai receber. Nesse sentido, as relações entre os associados e a Presidente se assemelham às relações heterônomas, tradicionais no mundo do trabalho, onde há um empregador, que determina as regras, e os subordinados, que as cumprem.

O pagamento de diárias para os associados destaca as relações de poder que se reproduzem no espaço da Associação, indicando a debilidade da autogestão. Complementando essa ideia, a Associada 2, durante a entrevista, comparou a Presidente com outros patrões com os quais já havia trabalhado:

Trabalhei pra muita gente já, mas nenhum patrão, nenhuma patroa minha chega aos pés da minha comadre [Presidente] (Associada 2).

Transparece, nas falas dos entrevistados, o desconhecimento a respeito da estruturação do trabalho dentro de um empreendimento solidário. O funcionamento da Associação mostra-se informal, com a ausência de regras para sua organização. Os direitos e deveres, a importância de uma divisão mais igualitária dos lucros, a participação democrática, a ausência de “patrões”, entre outros, não parecem ser de conhecimento dos associados.

Dentre os entrevistados, a Presidente e o Associado 1 afirmaram que se sustentam apenas com a renda advinda da Associação, enquanto os outros realizam trabalhos paralelos, como a catação de materiais recicláveis nas ruas (e a venda do material para depósitos de sucata) e o serviço de diarista em casas de família. Isso permite inferir a incapacidade da Associação de prover meios que garantam a saída dos catadores da precariedade do trabalho na rua, como também da não acumulação de várias jornadas laborais, visto que, para a maioria deles, o trabalho na Associação aparece como uma atividade paralela àquela que realmente provê os recursos financeiros que garantem o seu sustento.

O fato de uma associação de trabalhadores pagar um valor fixo por dia de trabalho, sem oferecer nenhuma garantia de renda mínima, ficando a decisão de quem e quando vai trabalhar (e consequentemente receber) nas mãos da Presidente, já aponta indícios de precarização, entretanto a precarização parece ser ainda mais evidente quando o pagamento é substituído por um “agrado”. Isto é, alguns associados afirmaram não receber o pagamento de diárias pelo trabalho realizado:

Esse que ta dirigindo esse carrinho é uma pessoa muito importante, porque se eu não tivesse ele me ajudando… porque eu não to nem pagando porque não tem como, to só agradando. (Presidente) Às vezes, quando ela recebe uma doação, ela se lembra de mim, uma doação de cesta básica, ela repassa pra mim e ela ajuda também com alimentação. (Associado 3). Meu dia de trabalho eu tô me sentindo bem a vontade aqui, ela me dá café, me dá almoço. (Associado 1). O que eu precisar dela, ela me ajuda, ela é muito boa pra mim. (Associada 5).

Aparentemente, a relação que se estabelece é que a Presidente oferece ajuda material, como alimentação, apoio nos momentos de dificuldade e, em troca, os associados oferecem sua força de trabalho, demonstrando o caráter assistencialista da relação. Apesar dos benefícios que os associados demonstraram receber em suas relações com a Presidente, vale ressaltar o caráter desigual dessas relações, em que os associados aparecem em uma situação de dependência, de quem é ajudado por ela. Nessa linha, a Associada 2 afirma: “É aquele ditado: uns ajudando os outros. Eu ajudo ela porque ela já me ajudou muito.”

Para os entrevistados, o trabalho realizado na Associação assemelha-se mais a uma “ajuda” oferecida à Presidente do que um trabalho como fonte de renda:

Nas minhas horas vagas, quando eu to sem fazer nada, eu venho aqui ajudar ela. Dar uma força a ela aí. (Associado 3). Eu não ganho nada, eu não ganho nenhum tostão, eu ajudo ela. Eu to em casa ela me pergunta: ‘tu ta fazendo o que?’, ‘to fazendo nada não’, ‘vamo pra reunião mais eu, vamo me ajudar ali’. Eu ajudo ela, mesmo se ela viesse me dar dinheiro, eu não recebia, porque ela já ganha pouco. Aqui ela paga água, luz, compra comida, as coisinhas dela, aí mal dá pra pagar as pessoas. (Associada 5).

Foi unânime nas falas dos associados a intenção de “ajudar a Presidente” em suas horas vagas. Não esteve presente nas falas a iniciativa de realizar uma atividade em prol do grupo ou para o benefício geral da Associação (mesmo que de certa forma este possa ser também um resultado alcançado ao ajudar a Presidente). O que os entrevistados demonstraram claramente é que, no seu dia a dia na Associação, desempenham tarefas para ajudar a Presidente, muitas vezes realizando a vontade e/ou um pedido dela.

3.3 Autogestão e autonomia

A Associação conta com um estatuto formal que estabelece suas diretrizes, por isso mantém reuniões mensais com os associados e, a cada dois anos, realiza uma eleição para que seja escolhido o presidente da associação. Entretanto, nunca houve alternância de poder, e a atual presidente está no cargo há cerca de 15 anos. Segundo suas palavras:

A gente vai tirar a data pra fazer a eleição, mas eu continuo me candidatando de novo viu. Eu não vou… uma coisa que eu corri, briguei, fiz confusão, conquistei, vou dar aos outro não, de jeito nenhum, de jeito nenhum. [...] Porque se eu pegar isso aqui e entregar a outro, o que que acontece? Hoje, do jeito que nós tamo, que nós vivemo no mundo, chega aqui vai ser presidente, vai dizer: “não, isso agora é meu!”, vai se achar dono, “agora é meu, eu posso fazer o que eu quiser, posso mandar, eu posso vender”. (Presidente).

Chama atenção o receio da Presidente de que outra pessoa, se eleita presidente, possa sentir-se dona da Associação. Entretanto transparece em seu discurso um sentimento de posse, onde ela já se caracteriza como dona do local, uma vez que, segundo suas palavras, o empreendimento foi uma conquista sua. O fato de a Associação ser também seu local de moradia, reforça sua percepção como dona.

No dia da eleição para presidente, um dos participantes da pesquisa, quando indagado do motivo de estarem reunidos naquele dia, respondeu:

Acho que é sobre… nem perguntei sobre o que era [a reunião]. Acho que é sobre reciclagem aí, que os pessoal querem saber como é, se é bom, como é o ganho… (Associado 3).

Percebe-se que, embora os associados participem do processo de votação para eleger o presidente, não há nenhum tipo de esclarecimento, diálogo ou debate sobre a importância da eleição, o que dificulta a possibilidade de alternância de poder. Apesar de a Associação seguir o seu estatuto e realizar bienalmente uma eleição, tal processo parece ser mais o cumprimento de uma burocracia exigida por seu estatuto do que um momento de exercício de democracia.

A autogestão, enquanto participação nos processos de tomada de decisão e desenvolvimento de autonomia, não apareceu nas falas dos entrevistados. Segundo os associados, as atividades na Associação são realizadas de acordo com o indicado pela Presidente.

Nas palavras da Presidente,

quem ajuda aqui são os próprios catador, porque tem deles que não tão aqui porque não adianta eu botar eles pra trabalhar se eu não to aqui. Quando eu to aqui, eu chamo: bora negada, bora trabalhar.

Percebe-se a dependência do empreendimento em torno de uma única pessoa, sem a qual a Associação não funciona. É a Presidente quem determina os afazeres de cada um, quem decide qual associado chamar no caso de recebimento de doações, quem administra o dinheiro, entre outros.

Foi possível constatar a concentração de atividades e de responsabilidades nas mãos dela, principal responsável (senão a única) pelas atividades de gestão desenvolvidas na Associação. Durante a pesquisa, seus esforços para a manutenção e crescimento da Associação se fizeram claros em diversos momentos. A participação constante em reuniões, assembleias, grupos de discussões, sempre na busca por recursos e materiais recicláveis para a Associação, foram demonstrados e reconhecidos por todos os participantes.

Mas onde chama eu to correndo, mas a gente tem que correr, porque se a gente não correr atrás do material ninguém vai deixar na mão não, Deus abre as portas, dá oportunidade, mas eu tenho que me esforçar né. Mas foi assim que nós comecemo a trabalhar e até hoje tamo na peleja (Presidente).

É preciso reconhecer que a Associação recebe doações de várias empresas de pequeno e grande porte, além de instituições públicas e convênios com projetos diversos, graças aos esforços da Presidente que dedica sua vida à Associação, diferentemente dos demais associados que possuem outras atividades e outras fontes de renda. Nesse sentido, percebe-se que a relação que a Presidente mantém com a Associação é diferente da dos associados. Enquanto ela se dedica integralmente e luta constantemente por melhorias, os outros têm a Associação em segundo plano, como um local para ir no tempo livre.

4 DISCUSSÃO

De acordo com a literatura, o trabalho organizado em uma associação apresenta-se como uma alternativa mais justa e igualitária frente às formas mais tradicionais de trabalho assalariado, uma vez que os trabalhadores autogerem suas atividades, as relações são mais democráticas e os trabalhadores têm mais autonomia (COUTINHO et al., 2005COUTINHO, Maria Chalfin; BEIRAS, Adriano; PICININ, Dhiancarlos; LUCKMANN, Gabriel Luiz. Novos caminhos, cooperação e solidariedade: a psicologia em empreendimentos solidários. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 1, p. 17-28, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000100002>.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005...
; LIMA, 2010LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
; VERONESE; GUARESCHI, 2005VERONESE, Marília Veríssimo; GUARESCHI, Pedrinho. Possibilidades solidárias e emancipatórias do trabalho: Campo fértil para a prática da psicologia social crítica. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 58-69, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000200009>.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005...
). Porém a prática identificada na Associação difere da noção idealizada que se poderia ter desse tipo de empreendimento.

A permanência de uma mesma liderança por vários anos, com a justificativa da falta de comprometimento dos associados, além da desconfiança na capacidade dos demais sócios de gerir democraticamente a associação, sugere uma contradição: a Presidente adota atitudes antidemocráticas por receio de que outro associado o faça. Pires e Lima (2017)PIRES, Aline Suelen; LIMA, Jacob Carlos. Fábricas recuperadas pelos trabalhadores: os dilemas da gestão coletiva do trabalho. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 69-87, 2017. também identificaram situações semelhantes em uma pesquisa com cooperativas, com lideranças seguindo no cargo por vários anos, com a justificativa da incapacidade de gestão por parte dos demais sócios.

A ausência da alternância de poder e a falta de envolvimento dos associados nos processos de tomada de decisão, junto com a carência de autonomia, apontam para a debilidade do exercício da autogestão, tão característico a empreendimentos solidários. O mesmo foi observado por Tavares (2013)TAVARES, Augusto de Oliveira. O trabalho dos catadores da associação Engenho do Lixo: entre a necessidade econômica e o discurso da consciência ambiental. Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-33, 2013., em uma pesquisa em uma associação de catadores em Juazeiro do Norte, CE, em que se verificou que a estrutura interna de poder não oferecia aos associados espaço para que se manifestassem novas lideranças. A identificação da presidente da associação como dona do local e a dependência do empreendimento por parte de seu líder, também foram destacadas em outras pesquisas em projetos solidários (FARIAS FILHO, 2012FARIAS FILHO, Milton Cordeiro. Rede de catadores de materiais recicláveis: perspectivas para a organização da autogestão. Administração Pública e Gestão Social, Viçosa, v. 4, n. 3, p. 341-64, 2012.; MAGNI; GÜNTHER, 2014MAGNI, Ana Amélia Calaça; GÜNTHER, Wanda Maria Risso. Cooperativas de catadores de materiais recicláveis como alternativa à exclusão social e sua relação com a população de rua. Saúde e Sociedade, v. 23, n. 1, p. 146-56, 2014.Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000100011>.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
; TAVARES, 2013TAVARES, Augusto de Oliveira. O trabalho dos catadores da associação Engenho do Lixo: entre a necessidade econômica e o discurso da consciência ambiental. Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-33, 2013.). Percebe-se que uma gestão democrática e participativa apresenta-se como um grande desafio, sobretudo quando refletido à luz de toda uma história de subordinação à qual muitos trabalhadores foram submetidos em suas experiências de trabalho anteriores (VERONESE; SCHOLZ, 2013VERONESE, Marília Veríssimo; SCHOLZ, Robinson. A difícil construção da liderança solidária compartilhada. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 3, n. 2, p. 41-64, 2013.).

A cultura de subserviência contribui para a reprodução das relações heterônomas no interior da Associação. O fato de os associados não se implicarem no processo de gestão, ficando este concentrado nas mãos da Presidente, resulta em novas relações de poder. Como sugerido por Lima (2010)LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
, a autogestão dos trabalhadores muitas vezes se apresenta mais como um objetivo do que uma realidade efetiva. Nesse sentido, mostra-se importante pensar as possibilidades e limites desses empreendimentos em nossa sociedade capitalista e, mais especificamente, em um contexto de pobreza e baixa escolaridade.

Pinheiro (2015)PINHEIRO, Daniel Calbino. Em busca de referenciais para a gestão nos empreendimentos solidários. Revista Interdisciplinar Científica Aplicada, Blumenau, v. 9, n. 4, p. 61-82, 2015. ressalta, entre outras coisas, a importância de se estar atento às dimensões da administração da produção, contabilidade, gestão de pessoas e processos de comunicação para o bom funcionamento de um empreendimento solidário. No entanto viabilizar empiricamente essas questões dentro do contexto de uma associação de catadores de materiais recicláveis persiste como um desafio. Como observado no perfil dos participantes da Associação, os catadores constituem um grupo de sujeitos com uma escolaridade baixa, o que pode ser apontado como uma limitação e uma dificuldade a mais na organização de um empreendimento solidário. Assim, além da falta de cultura da autogestão, a baixa escolaridade dos catadores torna o processo de administração do empreendimento ainda mais difícil. Além disso, pode-se supor que a Presidente não foi capacitada para trabalhar de modo solidário e gerir democraticamente um negócio. Ela conduz a Associação como sabe, longe de teorias, formalidades e/ou princípios idealizados. Nesse sentido, ressalta-se a importância de uma contínua educação e formação para os associados, para que possam de fato desenvolver de maneira eficaz os empreendimentos (COUTINHO et al., 2005COUTINHO, Maria Chalfin; BEIRAS, Adriano; PICININ, Dhiancarlos; LUCKMANN, Gabriel Luiz. Novos caminhos, cooperação e solidariedade: a psicologia em empreendimentos solidários. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 1, p. 17-28, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000100002>.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005...
).

Foi possível constatar que os associados não se percebem implicados no processo de organização do trabalho da Associação, realizando sempre aquilo que lhes é determinado. Para Lima (2010)LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
, grande parte dos trabalhadores associados não se reconhece participante na resolução de questões ligadas à organização do trabalho, pois muitos deles estão acostumados com uma cultura do trabalho que tem como marca o assalariamento e que não estimula a participação democrática dos sujeitos. A divisão social do trabalho, que separa aqueles que mandam daqueles que executam, aparece como um obstáculo para os projetos solidários, pois acaba por excluir muitos associados dos processos de tomada de decisão (GAIGER, 2013GAIGER, Luiz Inácio. A economia solidária e a revitalização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, p. 212-27, jun. 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000200013>.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201300...
).

A divisão dos lucros realizada através do pagamento de diárias ou de agrados aponta a falta de conhecimento dos associados quanto aos seus direitos e aos princípios de um empreendimento solidário. O fato de a Associação ser incapaz de prover uma renda para os catadores impulsiona os associados a acumularem trabalhos paralelos na busca de uma renda satisfatória. Em concordância, outras cooperativas também mostraram-se incapazes de garantir uma estabilidade financeira, fazendo com que os seus cooperados buscassem outras ocupações autônomas que viessem a aparecer (LIMA, 2009LIMA, Jacob Carlos. Paradoxos do trabalho associado. Tempo social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 113-32, 2009.).

A percepção dos associados sobre o trabalho realizado na associação, identificado como uma “ajuda” cujo pagamento é recebido através de um “agrado”, aponta para a precarização do trabalho. Outras pesquisas (GIONGO; MONTEIRO, 2015GIONGO, Carmen Regina; MONTEIRO, Janine Kieling. Trabalho cooperado na suinocultura: emancipação ou precarização? Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 35, n. 4, p. 1206-22, 2015.; OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, Fábio. Os sentidos do cooperativismo de trabalho: as cooperativas de mão-de-obra à luz da vivência dos trabalhadores. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 19, n. especial, p. 75-83, 2007. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000400011>.
https://doi.org/10.1590/S0102-7182200700...
; PICCININI, 2004PICCININI, Valmiria Carolina. Cooperativas de trabalho de Porto Alegre e flexibilização do trabalho. Sociologias, porto alegre, v. 6, n. 12, p. 68-105, 2004. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1517-45222004000200004>.
https://doi.org/10.1590/S1517-4522200400...
; TAVARES, 2013TAVARES, Augusto de Oliveira. O trabalho dos catadores da associação Engenho do Lixo: entre a necessidade econômica e o discurso da consciência ambiental. Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-33, 2013.), realizadas em cooperativas e associações de trabalhadores, também identificaram o processo de intensificação da precarização do trabalho no interior dos empreendimentos, indo na contramão de suas propostas iniciais.

Aparentemente, o trabalho só é compreendido enquanto trabalho quando com carteira assinada. Percebe-se que a Associação não é tida pelos associados como uma oportunidade de emancipação, mas sim como um espaço que propicia uma renda extra e outros tipos de auxílios oferecidos pela Presidente. Tal fato corrobora os anseios de muitos trabalhadores que, embora façam parte de associações e cooperativas, almejam encontrar um trabalho com carteira assinada (PIRES, 2010PIRES, Aline Suelen. Autogestão, economia solidária e gênero: as trabalhadoras de cooperativas incubadas na cidade de São Carlos. 2010. 106f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2010.).

O reconhecimento dos agrados realizados pela Presidente e a gratidão dos participantes frente às ajudas que já receberam dela, demonstra um sistema de trocas implícito e sutilmente imperativo, no qual a troca não é caracterizada apenas por bens econômicos, incluindo também trocas de ordem afetiva, favores, auxílios cotidianos, bens alimentícios etc. O espírito da dádiva (MAUSS, 2003MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2003. p. 183-314.) mostra-se presente nessas prestações de conta que aparecem “de uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam, no fundo, rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública” (p. 191).

O que se percebe nos novos arranjos do mundo do trabalho, estando aqui incluso o trabalho na Associação, é que “o individual se sobrepõe ao coletivo, mesmo quando o discurso é do coletivo” (LIMA, 2010LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158-98, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010000300007>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222010...
, p. 189). Desse modo, por mais que o discurso da importância do trabalho coletivo pareça estar presente na associação, na prática, o que se percebe são indivíduos trabalhando ora em conjunto, ora sozinhos, mas com o claro objetivo de adquirir benefícios para si. Isto aponta para o fato que as pessoas não vão para a Associação em busca de um ideário de igualdade, pois não parece existir um sentimento de grupo que una trabalhadores em torno da Associação, não existe um “nós” nas falas.

A própria aparente ausência de conflitos, o não questionamento sobre a falta de alternância de poder e a obediência servil, presente nas falas dos entrevistados, demonstram certa apatia no contexto político da organização da associação. Os conflitos são expressões de uma atividade política pulsante no interior de um grupo, e sua existência corrobora a cooperação, entendida através do fazer juntos e resolver eventuais problemas coletivamente (SATO et al., 2011SATO, Leny; ANDRADA, Cris Fernández; ÉVORA, Iolanda Maria Aalves; NEVES, Tatiana Freitas Strokler; OLIVEIRA, Fábio. As tramas psicossociais da cooperação e da competição em diferentes contextos de trabalho. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 63, p. 2-14, 2011.).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação de empreendimentos solidários se justifica enquanto possibilidade de geração de trabalho e renda, entretanto percebe-se, diante do exposto, que esse papel nem sempre é efetivado. A análise do funcionamento da associação de catadores permitiu apontar contradições, bem como os desafios que se apresentam para a constituição de um espaço que ofereça melhores condições de trabalho. Na prática, o que se identificou com a pesquisa foi bastante controverso, com uma associação que não funciona.

Em concordância com Tavares (2013)TAVARES, Augusto de Oliveira. O trabalho dos catadores da associação Engenho do Lixo: entre a necessidade econômica e o discurso da consciência ambiental. Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 4, n. 1, p. 117-33, 2013., é necessário refletir se a organização dos catadores em torno de associações, bem como a assessoria recebida de organizações não governamentais, o apoio de políticas públicas e de outros projetos diverso, têm favorecido o desenvolvimento da autonomia para os catadores ou se têm servido para a reprodução de práticas heterônomas. A reunião de trabalhadores em torno de associações e/ou cooperativas não garante, por si só, a diminuição da precariedade e maior equidade nas relações de poder. Um trabalho que envolva autonomia e democracia demanda um processo educativo e de conscientização constante por parte de seus integrantes.

Percebe-se, diante dos resultados, que a Associação pesquisada recebe apoio de políticas públicas, incentivos de grandes empresas, doações de instituições diversas e é alvo de auxílios governamentais, mas não distribui igualitariamente os benefícios que recebe. A Presidente demonstra atitudes de cunho assistencialista, trazendo para a Associação a hierarquia de poder existente em outros ambientes de trabalho. Diante disso, ressalta-se a necessidade de práticas mais dialógicas, do desenvolvimento da autonomia e da busca por melhorias na qualidade do trabalho dos associados.

Veronese e Scholz (2013)VERONESE, Marília Veríssimo; SCHOLZ, Robinson. A difícil construção da liderança solidária compartilhada. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v. 3, n. 2, p. 41-64, 2013. afirmam que é preciso compreender que os empreendimentos “reais” sempre vão se distanciar de alguma forma do que seria um empreendimento ideal e, por isso, os princípios de um projeto solidário podem se desenvolver em graus muito distintos, onde há experiências modelares e outras experiências que se distanciam das características e princípios subentendidos nesse tipo de projeto. Apesar disso, é necessário tomar precauções no sentido de evitar a reprodução de relações de poder típicas de diversos ambientes de trabalho, mas que, sobretudo, não combinam com o ideal de uma associação, de modo a evitar a concentração de poder nas mãos de poucas pessoas em detrimento dos demais associados. Nesse sentido, percebe-se como a criação desses empreendimentos pode ser um auxílio frente à dificuldade de inserção no mundo formal do trabalho, mas como também pode funcionar como uma forma disfarçada de precarização.

Espera-se que esta pesquisa contribua com a difusão da problemática do trabalho dos catadores de materiais recicláveis, bem como com a necessidade de acompanhamento e orientação de empreendimentos para que estes, de fato, cumpram sua função social de melhorar a qualidade de trabalho das pessoas, buscando combater a precarização. Para estudos futuros, sugere-se a investigação dos conhecimentos dos associados sobre os seus direitos e deveres, além dos princípios que devem gerir uma associação.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2017
  • Revisado
    20 Dez 2017
  • Aceito
    26 Jan 2018
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