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Infância e cidade: os processos de socialização das crianças

Childhood and the city: the socialization processes of children

Infancia y ciudad: los procesos de socializatión de los niños

Resumo:

Apresentam-se os resultados parciais de uma pesquisa em desenvolvimento no Doutorado em Educação da Universidade Estadual de Londrina, cujo principal objetivo é conhecer como as crianças compreendem a cidade em que vivem. A metodologia utilizada é a pesquisa-ação. As pesquisadoras acompanham um grupo de 49 crianças de uma escola pública de Londrina durante os três primeiros anos do Ensino Fundamental. A análise se concentra nos espaços retratados pelas crianças nos desenhos solicitados e, apesar de preliminar, aponta os lugares de trânsito delas, como a moradia, os espaços de lazer e o centro da cidade. O referencial teórico é ancorado na Sociologia da Infância e no estudo da cidade.

Palavras-chave:
cidade; criança; escola; socialização

Abstract:

This article presents partial results of a research in development at the Doctorate in Education of the State University of Londrina, whose main objective is to know how children understand the city in which they live. The methodology used is action research. The researcher follows a group of 49 children from a public school in Londrina during the first three years of elementary school. The analysis focuses on the spaces portrayed by the children in the drawings and, although preliminary, point out places they pass by, such as houses, recreational areas, and downtown area. The theoretical framework is anchored in studies of Childhood Sociology and the study of the city.

Keywords:
city; child; school; socialization

Resumen:

Este artículo presenta los resultados parciales de una investigación em el desarrollo en el Doctorado en Educación de la Universidad Estatal de Londrina, cuyo objetivo principal es saber como los nihos entienden la ciudad en la que viven. La metodologia utilizada es la investigación de acción. Las investigadoras siguen a un grupo de 49 nihos de una escuela pública en Londrina durante los primeros tres anos de la escuela primaria. El análisis se centra en los espacios representados por los nihos en los dibujos solicitados y, aunque sea preliminar, indica sus lugares de tránsito, como la vivienda, los espacios de ocio y el centro de la ciudad. El marco teórico está anclado en la Sociología de la Infancia y el estudio de la ciudad.

Palabras clave:
ciudad; nino; escuela; socialización

1 INTRODUÇÃO

A cidade como a conhecemos é o conjunto de casas, prédios, avenidas, ruas estreitas, praças, jardins, entre poucas centenas de habitantes até povoada por dezenas de milhares de pessoas. Obra máxima do homem, o urbano é tema habitual na contemporaneidade. Estamos imersos na cidade e temos experiências específicas e diversas na urbe, o que a torna produtora de sentido da vida cotidiana, de narrativas diversas, formas de representar e de produzir identidade social ao longo de nossas vidas.

Lugar de compartilhamento, de socialização, de comunicação, a cidade promove o encontro dos sujeitos que nela habitam com o meio, e tal premissa é pertinente a todos – adultos e crianças. Mas as cidades foram criadas pelos adultos de forma que suas necessidades fossem atendidas, e ainda, por óbvio, adultos transitam de forma mais livre e autônoma pela cidade do que as crianças. Castro (2004)CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. ressalta que são os adultos que definem e dispõem sobre as formas geográficas e físicas, sociais e sentimentais do viver citadino. Também, as decisões relativas à cidade estão centradas nos adultos, que apresentam o espaço urbano para as crianças como resultado de ações planejadas e operacionalizadas por eles, um artefato pronto e que se mostra isento da participação infantil em sua constituição.

No presente artigo, que traz dados de uma pesquisa de Doutorado em Educação em andamento, lançamos luzes sobre dois temas: a infância e as cidades. Como foco de vários estudos, esses temas visam compreender as relações sociais que circundam o homem na contemporaneidade. Neste estudo, partimos do pressuposto geral que fundamenta a Sociologia da Infância, que é o de considerar a infância como categoria social, e as crianças como atores sociais e participantes ativos da vida em sociedade. Seres que desde a mais tenra idade sofrem os efeitos macro das ações das estruturas sociais nas quais estão inseridos, e os do nível micro, produzidos nas interações com seus pares e adultos, porém recriando as culturas de seu pertencimento. A pesquisa foi desenvolvida em uma escola municipal localizada na região central de Londrina, e os sujeitos são crianças de seis anos que, no ano de 2017, estavam no primeiro ano. A maioria das crianças pertence à classe média e mora no centro da cidade ou em bairros próximos.

A cidade de Londrina tem 575.377 habitantes e é polo metropolitano de uma região que agrega 16 municípios, atingindo uma população de um milhão de pessoas. A economia se destaca pelo setor de serviços e, em grande parte, é constituída pelo agronegócio, uma vez que a história da cidade está ancorada na cafeicultura, que foi predominante até meados dos anos 1970. Londrina tem uma ampla rede educacional, da Educação Infantil ao Ensino Superior. Centro universitário, a cidade aproxima muitos jovens, especialmente no Ensino Superior. Tem um grande comércio na área central e cinco shoppings centers, localizados em diferentes regiões da cidade.

Em relação aos espaços públicos de lazer, a cidade conta com alguns locais, como os lagos Igapó e Cabrinha, áreas verdes como o Zerão e os parques Arthur Thomas e Jardim Botânico, espaços que ficam em diferentes regiões da cidade. Algumas praças são preparadas para o lazer da população, como a praça do Aeroporto, localizada na região leste, a praça do Monumento à Bíblia, na região sul, e outras em diferentes bairros. Consideramos que são poucos os espaços que foram concebidos pensando nas crianças, pois, além de serem limitados, não trazem equipamentos para o entretenimento infantil. Da mesma forma, são parcas as atividades culturais promovidas nesses espaços destinadas à população. O uso do espaço público parece ser exclusivo dos adultos, pois as políticas públicas não consideram as crianças como sujeitos sociais e culturais, tampouco compreendem a potencialidade da infância e o direito à cidade, que deve ser um direito de todos os habitantes.

Considerando a cidade como território marcado por suas relações de poder, local de manifestações e transformações sociais, expressão marcante do pensamento e da ação humana; considerando que em sua dimensão cultural a cidade produz, seleciona e ordena mensagens e significados, de forma que se alimentam os relatos e as narrativas, evidenciando, assim, o caráter dialógico da urbe, conforme Bonafé (2013)BONAFÉ, Jaume Martinez. A cidade no currículo e o currículo na cidade. In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 442-58., nosso intuito nesta reflexão é trazer a criança que habita a cidade e que, a partir de suas práticas sociais cotidianas, a sente e a interpreta.

Viver na cidade traz a complexidade de saber lidar com os desafios que se impõem todos os dias. Para as crianças, são comuns situações em que a cidade é pouco acolhedora e que se mostra na violência instalada, no trânsito perigoso, no desaparecimento de crianças, no impedimento de se aproximar e utilizar os bens culturais e naturais e tantas outras situações que enfrentam cotidianamente. Diante desse quadro, Castro (2004, p. 23)CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. assevera que “a criança não é mais vulnerável que outros simplesmente porque é criança, mas porque está diante de uma complexidade que ainda não domina, até porque essa complexidade não foi construída por e para ela”.

Esses apontamentos sinalizam a pertinência de investigações sobre os mundos sociais das crianças no espaço urbano, o que está em conformidade com o pensamento de Alan Prout, que considera que, para milhares de crianças, “os contornos de sua vida cotidiana e experiências são (em parte) moldados pelos ambientes da cidade” (PROUT, 2003, p. 15PROUT. Allan. Preface. In: CHRISTENSEN, Pia; O'BRIEN, Margaret. (Ed.). Children in the City: home, neighbourhood and community. London/New York: Routledge Falmer, 2003, p. 15-6.).

Isso posto, entendemos que a cidade como espaço não formal de educação possibilita aprendizagens diversas quando seus habitantes se relacionam com sua estrutura em um processo de interação e comunicação com outros. A cidade é um rico campo de pesquisa sobre a infância e suas diferentes práticas sociais no espaço urbano. E aqui pensamos nas diferentes infâncias imersas em diferentes contextos sociais e econômicos que compõem o cenário citadino.

Silvia Alderoqui (2012)ALDEROQUI, Silvia. Poseos urbanos: el arte de caminar como practica pedagógica. 1. ed. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2012. compreende a cidade como um território que educa; um grande observatório e laboratório de cidadania no qual qualquer estratégia urbana pode ser entendida como um projeto educativo que contém aspectos importantes para a formação cidadã: pedagogicamente, os estudos dos planos urbanos possibilitam aos alunos decifrarem os códigos urbanos; a criação e o desenvolvimento de ações que levem os sujeitos a conhecerem a cidade na qual vivem favorecem a compreensão dos problemas da cidade e, em decorrência, remetem ao entendimento da necessidade de políticas públicas locais que favoreçam a igualdade e o acesso à educação, cultura, segurança, ao lazer, de que são merecedores todos os habitantes da cidade. Como ensinar tudo isso para crianças pequenas recém-adentradas no ensino fundamental? Para responder a essa questão, o interesse da pesquisa que aqui se apresenta recaiu em analisar como as crianças compreendem a cidade em que vivem, com enfoque especial sobre os processos de aprendizagens desencadeados a partir de um trabalho sistematizado de passeios urbanos.

Para Alderoqui (2012)ALDEROQUI, Silvia. Poseos urbanos: el arte de caminar como practica pedagógica. 1. ed. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2012., os passeios urbanos são férteis para a construção do conhecimento. Esses passeios, quando são realizados intencionalmente para ações de transmissão, reflexão, conhecimento e aprendizagens educativas das novas gerações, são chamados de passeios pedagógicos. A autora concebe a ideia de caminhar pela cidade como um dispositivo criativo, uma arte.

Se trata de perderse pelas calles de la ciudad a la que se pertenece, no como elogio de la desorientación, sino con el sentido que tiene la palabra perderse para la infancia: perderse sin riesgos, perderse con seguridad, perderse con la imaginación, para poder percibir a través de la contemplación, la literatura, la poesia, los símbolos y los suenos. (ALDEROQUI, 2012, p. 16.ALDEROQUI, Silvia. Poseos urbanos: el arte de caminar como practica pedagógica. 1. ed. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2012.)

Assim, nosso ponto de partida foi caminhar pela cidade à qual as crianças pertencem, com leveza e profundidade, para perceber os cenários urbanos onde a vida acontece. Nesta pesquisa, durante três anos, as pesquisadoras acompanharam os alunos em passeios por uma determinada região da cidade, previamente selecionada para a realização da investigação, provocando o desvio do olhar aos aspectos considerados importantes para a construção de uma aprendizagem sobre a cidade que refletisse o âmbito histórico, cultural, político e econômico. A cada volta para a sala de aula, o vivenciado na rua foi analisado por meio de rodas de conversa e registrado na forma de desenhos e escritas. Todo o material produzido pelos alunos foi compreendido na pesquisa como fonte documental, a partir da qual se intenta responder à questão central da investigação: como as crianças compreendem a cidade?

Assim, nosso ponto de partida foi caminhar pela cidade à qual as crianças pertencem, com leveza e profundidade, para perceber os cenários urbanos onde a vida acontece. Nesta pesquisa, durante três anos, as pesquisadoras acompanharam os alunos em passeios por uma determinada região da cidade, previamente selecionada para a realização da investigação, provocando o desvio do olhar aos aspectos considerados importantes para a construção de uma aprendizagem sobre a cidade que refletisse o âmbito histórico, cultural, político e econômico. A cada volta para a sala de aula, o vivenciado na rua foi analisado por meio de rodas de conversa e registrado na forma de desenhos e escritas. Todo o material produzido pelos alunos foi compreendido na pesquisa como fonte documental, a partir da qual se intenta responder à questão central da investigação: como as crianças compreendem a cidade?

Neste texto, apresentamos a análise referente a três pontos: o que as crianças conhecem da cidade? Quais são os lugares que mais frequentam? Com quem frequentam esses lugares? Trata-se de questões sobre as quais nos debruçamos na fase inicial de nossa pesquisa e que foram fundamentais para o planejamento das estratégias pedagógicas colocadas em curso após essa primeira fase.

Organizamos o texto em três seções. A primeira traz reflexões acerca da criança na cidade e toma como base o campo da sociologia da infância, por essa questionar a sociedade numa perspectiva que toma as crianças como objeto de investigação sociológica, somando conhecimento não somente da infância, mas considerando todo o conjunto da sociedade (SARMENTO, 2005SARMENTO, M. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 361-78, maio/ago. 2005.). A segunda seção traz os encaminhamentos metodológicos utilizados para geração de dados e discute-os. A terceira e última seção apresenta breves conclusões entrelaçadas com a potencialidade apresentada quando as crianças são convidadas a pensar a cidade a partir de suas lógicas sobre ela.

2 A CRIANÇA: UM ATOR SOCIAL NA CIDADE

A ideia de criança como ser incapaz, passivo, incompleto e que, portanto, ainda não está apto a participar plenamente do espaço público é potencializada quando pensamos na condição da infância na cidade. Isso porque o entendimento da infância enquanto geração sobre a qual os adultos realizam a transmissão cultural e a socialização esteve implicitamente circunscrito ao sentido clássico da sociologia, à teoria da socialização de Émile Durkheim, posto que as crianças eram vistas essencialmente pela análise das instituições que as representavam, como a família, a escola, a justiça, sobretudo pela função socializadora dessas instituições (SIROTA, 2001SIROTA, Regine. Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 7-31, mar./2001.; SARMENTO, 2008SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina S. Apresentação – olhares sobre a infância e a criança. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina S. Estudos da infância: educação e práticas sociais. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 7-13.).

Essa noção, historicamente consolidada da criança protegida pelo adulto enquanto se prepara para a vida futura, coloca-a na perspectiva de vir a ser, e suas ações ficam reduzidas à esfera privada da casa e da escola. Pode-se notar que as definições de socialização numa perspectiva durkheimiana parecem ainda ecoar em nossos dias.

Para Corsaro (2011)CORSARO, William. Sociologia da infância. Tradução de Lia Gabriele Regius Reis. Porto Alegre: Artmed, 2011., é comum que os adultos vejam as crianças de forma prospectiva, isto é, em perspectiva de que se tornarão, um dia, futuros adultos, com um espaço na ordem social e as contribuições que poderão dar. Raramente as crianças são entendidas de um modo que contemplem o que são – crianças cujas vidas estão em andamento, com desejos e necessidades.

Atualmente, muitas vezes, essas necessidades e esses desejos são considerados como motivos de preocupação por adultos, como problemas sociais ameaçadores que precisam ser resolvidos. Tal situação resulta na ação dos responsáveis de impelir as crianças para as margens da estrutura social, e, assim, o lugar da criança no arranjo do espaço urbano é restrito, e sua experiência, limitada. Para Sarmento (2018, p. 235)SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância e cidade: restrições e possibilidades. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 232-40, maio/ago. 2018., a consequência desse afastamento espacial “é também um afastamento da possibilidade de produção pela criança de uma autoconsciência como ser da cidade e como interveniente na vida em comum”. A pretexto de uma cidadania futura, a criança é afastada da condição cidadã porque ela ainda o será, um dia, quando estiver preparada.

Enquanto objeto de cuidados dos adultos, a criança tem a organização dos espaços e tempos circunscrita a instituições que lhe são peculiares. Entre as instituições para crianças, evidentemente, a escola ocupa o primeiro lugar, apesar de outros dispositivos institucionais serem implementados em tempos e espaços diferenciados. Mollo-Bouvier (2005)MOLLO-BOUVIER, Suzanne. Transformação dos modos de socialização das crianças: uma abordagem sociológica. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 392-403, maio/ago. 2005. destaca que a precocidade da inserção no modo e no tempo escolar é consequência das estruturas sociais configuradas em seu entorno, como a divisão do trabalho entre homem e mulher, o papel feminino e sua posição na esfera de produção, novas formas de configuração familiar, além das pressões econômicas que pesam sobre as famílias.

Trata-se da organização dos tempos e espaços domésticos voltados para o rol de comportamentos operantes no processo escolar, pois “agimos com as crianças em função de preocupações muito concretas: orçamentos, horários, trabalho, lazeres, escolarização, mas também segundo referências que definem as normas e os valores atribuídos à infância” (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 397MOLLO-BOUVIER, Suzanne. Transformação dos modos de socialização das crianças: uma abordagem sociológica. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 392-403, maio/ago. 2005.). Isso significa que as crianças afetam e são afetadas pelas transformações sociais mais amplas, e a família e a escola são instituições que refletem essas mudanças nos processos de socialização e educação das crianças.

A colocação das crianças sob o amparo das instituições sociais faz com que elas transitem entre espaços limitados, fragmentando a experiência na cidade. Para Sarmento (2018)SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância e cidade: restrições e possibilidades. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 232-40, maio/ago. 2018., na cidade contemporânea, as crianças navegam entre ilhas no oceano urbano e, desse modo, pouco conhecem a vida citadina e suas possibilidades. Ainda, Castro (2004)CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. destaca que o deslocamento da criança pela cidade é restrito, porque a cidade, como obra dos adultos, retrata a divisão social do trabalho, em que a casa e a escola são os lugares onde a criança deve estar, ao passo que as ruas, ou a cidade de um modo geral, são os lugares onde só adultos têm livre fluxo. A invisibilidade das crianças na cidade é legitimada pela sua institucionalização nesses espaços, “reforçando a visão enraizada de que ainda não estão aptos a participar mais amplamente de outras atividades” (CASTRO, 2004, p. 74CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.).

Apartadas do espaço público, enquanto são enclausuradas em outros, as crianças não têm oportunidades de encontro com os diferentes grupos sociais que circulam pela urbe e, consequentemente, não convivem com as diferenças, sejam elas sociais, culturais, étnicas, sexuais, até para não serem tocadas por elas. Assim, vão percebendo que na cidade há uma segregação espacial.

O deslocamento pela cidade impulsiona as crianças na iniciação aos processos coletivos da vida social, à revelação dos vínculos de poder aparente no aspecto imóvel do espaço e ao indivisível entrelaçamento entre espaço e ação humana. Mobilizar-se na cidade reconhece características diversas, quer pelo âmbito de ação que alcança, quer pelos recursos que possui. Várias crianças ficam restritas ao local de moradia e dificilmente saem dali, uma vez que não conseguem imaginar que na redondeza possa ter coisas fascinantes para elas. Outras não têm recursos para o transporte e conservam-se guetificadas em suas comunidades. Portanto, mover-se e transitar pela cidade forma parte de um capital cultural mediante o qual as crianças e os jovens acessam os recursos simbólicos e materiais que se apresentam na cidade, como educação, lazer e cultura, por exemplo (CASTRO, 2004CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.).

Em paralelo às possibilidades de mobilidade está a guetificação, processo que se dá quando as pessoas ficam restritas a espaços que limitam suas chances de ver, conhecer e ocupar a cidade. Assim, as condições de mobilidade urbana revelam relações de poder, posto que as crianças pobres ficam confinadas aos seus locais de moradia, e o acesso aos equipamentos de lazer e cultura da cidade se torna inacessível, pois esses espaços comumente estão reunidos nas regiões eleitas como nobres da cidade.

Segregação espacial, guetificação, insularização dos mais novos. Com uma experiência setorizada da cidade, as crianças aprendem logo que a insegurança caracteriza a vida urbana, a rua lhe é estranha, apresenta muitos perigos, e logo traz as ações por ele propagadas. Esse sentimento de medo é reforçado pela mídia, que dá grande destaque a notícias que mostram as agruras da cidade. E os medos nos incitam a adotar uma ação defensiva, ação essa que, segundo Bauman (2007 p. 15)BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., “confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo a palavra”. Com o medo estabelecido, a criança vai vivenciando essa faceta da cidade em sua rotina diária.

As narrativas de um tempo em que a rua era o lugar privilegiado para as brincadeiras, para andar de bicicleta, subir em árvores e ter sociabilidade com a vizinhança, deslocando-se sem muitas restrições, de forma mais espontânea, marcam as lembranças de outras gerações. Mas, atualmente, os espaços que as crianças parecem estar credenciadas a transitar um pouco mais livremente e a usar para brincadeiras e outras atividades lúdicas são os parques infantis, espaços para festas de aniversários, praças de lazer, essas últimas, muitas vezes, localizadas nos shoppings centers. A organização desses espaços é pensada e executada pelos adultos, logo, por eles controlados. Em nome da segurança, restringe-se à autonomia infantil, uma vez que os comportamentos são regulados obedecendo a um conjunto de regras e, assim, limitam a atividade criativa, a fruição.

O mercado de produtos e serviços dedicados à infância encontra na cidade foco privilegiado para aumentar sua lucratividade e, para tanto, busca conhecer o comportamento das crianças para atender às necessidades e criar desejos. Com efeito, a infância é o alvo de grandes corporações na formulação de estratégias mercadológicas, inserindo as crianças numa lógica de consumo, própria da organização econômica e social capitalista.

Capturadas pela malha do consumo, as crianças inseridas em diferentes realidades e em contextos diversos desde cedo apropriam-se das dinâmicas do mercado e passam a desejar o que consumir e onde fazê-lo, integradas por valores da sociedade vigente. Nesse sentido, a produção das identidades infantis, das culturas, está entrelaçada pela materialização do consumo, orientando comportamentos e práticas, portanto, subjetivando valores e estilos de vida. Costa (2009)COSTA, Marisa Vorraber. O consumismo na sociedade de consumidores. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). A educação na cultura da mídia e do consumo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 33-7. assevera que

[...] somos constantemente ensinados, seguindo os moldes da melhor pedagogia do exercício e do exemplo, a formatar nossas ações rigorosamente dentro de preceitos e táticas que fomentam a realização dos desígnios dessa sociedade. As crianças de hoje nascem dentro da cultura consumista e crescem modelando-se segundo seus padrões e suas normas. (COSTA, 2009, p. 35COSTA, Marisa Vorraber. O consumismo na sociedade de consumidores. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). A educação na cultura da mídia e do consumo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 33-7.).

E ainda bem pequenas, as crianças, principalmente nas grandes cidades, começam a ler o mundo pelas lentes do consumo. Com esse olhar estreito, refuta-se a possibilidade de descobrir, de aprender com a cidade. A reflexão dessa condição do olhar infantil na contemporaneidade vai ao encontro do pensamento de Paulo Freire, ao lembrar que o primeiro livro de leitura é o mundo. Para Freire (1989)FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Cortez, 1989., a leitura de mundo sempre precede a leitura da palavra e implica uma relação dinâmica com a realidade na criação de sentidos. E aprender a ler e escrever palavras e textos só ganha sentido se for para entender melhor o mundo. Essa concepção de leitura implica compreender o contexto de vida, a cidade, o bairro, as pessoas, o lugar.

Em meio à complexidade da vida urbana, a criança dificilmente transita pela cidade tendo a experiência das ruas, a exemplo da figura do flâneur de Baudelaire, bastante investigado por Walter Benjamim. As possibilidades de experiências que as ruas da cidade suscitam é potencializadora do pensar. Ao andar pelas ruas sem pressa, de forma natural, é possível observar as pessoas no vai e vem cotidiano, porque a rua é o lugar do coletivo, lugar onde se acessam as relações humanas, e por isso a heterogênea trama social e cultural lhe é própria, lugar em que a experiência humana se desenrola cotidianamente nos diferentes espaços em que o sujeito histórico não apenas transita, mas no qual é ator da tessitura social. E, por meio do caminhar despretensioso, despertar um olhar sensível, um olhar que ultrapassa o visível “pela própria inserção corpórea na cidade a responsável pela leitura da cidade-texto, que de visível, se torna sensível” (SIMAN, 2013, p. 52SIMAN, Lana Mara de C. Cidade: um texto a ser lido, experienciado e recriado, entre flores e ervas daninhas. In: MIRANDA, Sonia Regina; SIMAN, Lana Mara de C. (Org.). Cidade, memória e educação. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 41-58.).

Para Castro (2004)CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004., circular pela cidade impõe-se como condição do viver urbano, dado que as atividades cotidianas requerem um embrenhar-se por ruas, avenidas, becos, e a disposição para realizar tais percursos parece subjetiva, necessária para a capacidade de habitar a cidade, assenhorando-se dos cantos e lugares, fazendo-os próprios, conhecidos e imediatos.

É através da circulação pela cidade que crianças e jovens podem tornar sua a cidade que convida seus habitantes, todos eles, à experimentação do movimento e da deambulação. Pelo desvio das rotas comumente conhecidas se pode “se perder na cidade” para obter deste acontecimento a experiência do achar, do (re)descobrir, enfim, daquilo que gera novas percepções e conhecimentos. (CASTRO, 2004, p. 77CASTRO, Lucia Rabello de. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.).

Ao caminhar pela cidade, o observador, e aqui pensamos na criança exposta a essa oportunidade, pode atingir “a potência de um olhar contraditoriamente distraído e arguto, contraditoriamente ocioso e ocupado, contraditoriamente incerto e imbuído de intencionalidades (SIMAN, 2013, p. 50SIMAN, Lana Mara de C. Cidade: um texto a ser lido, experienciado e recriado, entre flores e ervas daninhas. In: MIRANDA, Sonia Regina; SIMAN, Lana Mara de C. (Org.). Cidade, memória e educação. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 41-58.), como o flâneur. Esse personagem tem como característica principal a vontade de passear, de experimentar a cidade em suas minuciosidades, demorando-se nela de forma sensitiva.

Assim, o espaço urbano se torna lugar porque é fundado na própria existência humana, por meio de uma experiência alargada do mundo repleta de significados. Para Tuan (1983, p. 6)TUAN, Yu Fu. O espaço, lugar e a criança. In: THIOLLENT, Michel. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983. p. 22-38., o espaço “transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”, um espaço que é apropriado. O lugar pressupõe a criação de vínculos e se torna realidade a partir das relações e laços que ali são construídos. O autor diferencia espaço e lugar ao afirmar que o primeiro diz respeito a ambiente de passagem, neutro. Já o lugar é o espaço transformado pela experiência, algo que o modifique, e entende que a experiência é “um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. [...] Assim, a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência” (TUAN, p. 9-10).

A experiência é um termo-chave para Tuan (1983, p. 10)TUAN, Yu Fu. O espaço, lugar e a criança. In: THIOLLENT, Michel. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983. p. 22-38., uma vez que ela “está voltada para o mundo exterior. Ver e pensar vão além do eu”. Nesse sentido, o autor afirma que o foco da criança está voltado mais para a ação vivenciada do que em símbolos e categorias fechadas.

As crianças perenemente carregam de emoção e significado os espaços que vivem, convertendo-os em lugares, pois lhes dão um valor próprio, cheio de memórias, sentimentos e significações íntimas. As vivências da criança na cidade se integram à sua identidade pessoal e estão dispostas em sua constituição como pessoa. Assim, Sarmento (2018)SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância e cidade: restrições e possibilidades. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 232-40, maio/ago. 2018. destaca que “na medida em que está territorializada e incluída num espaço urbano específico, essa identidade é transindividual e constitui a criança como sujeito enraizado no lugar” (SARMENTO, 2018, p. 237SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância e cidade: restrições e possibilidades. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 232-40, maio/ago. 2018.).

No campo da sociologia da infância, a ideia de que as crianças são competentes, inventam, transformam e participam da cultura com seus pares e com os adultos está amplamente anunciada. O entendimento da infância como categoria socialmente produzida é ponto essencial deste trabalho e, ao encontro desse pressuposto, buscamos os sentidos atribuídos pelas crianças à cidade, o que fomentou o traçado teórico-metodológico desta pesquisa.

Nos percursos que realizam pela cidade, as crianças evidenciam locais que lhes apresentam significado, e isso fica claro nos desenhos que fazem. Embasados na ideia de que conhecer uma cidade vai além da apropriação geográfica e tem a ver com as relações sociais e afetivas construídas pelas pessoas nos diferentes espaços e lugares, buscamos a cidade vivida, experienciada e percebida pelas crianças. Feitas essas considerações, passemos ao caminhar metodológico realizado nessa parte da pesquisa que trata da sociabilidade das crianças na cidade. A descrição dos dados está exposta a seguir, e é com essa parte dos dados que nos propomos a dialogar.

3 PROCESSO DA GERAÇÃO DE DADOS

Na busca de compreender o já anunciado, a metodologia utilizada foi a pesquisa-ação, que é um tipo de pesquisa social que privilegia a base empírica. Segundo Thiollent (1986, p. 9)THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1986., é “voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou a ação orientada em função da resolução de problemas efetivamente detectados nas coletividades consideradas”. Assim, pesquisador e participantes representativos da situação estão incluídos de modo participativo, condição necessária a esse tipo de pesquisa. Considerando que o pesquisador pode desempenhar um papel ativo na própria realidade dos fatos observados, a escolha por essa metodologia se deu porque uma das pesquisadoras é professora na unidade onde a pesquisa foi realizada.

Os dados foram levantados no mês de junho de 2017, em uma escola da rede municipal de Londrina, Paraná, localizada na região central da cidade. Os sujeitos da pesquisa são 49 crianças do primeiro ano do Ensino Fundamental, que àquela época estavam com seis anos de idade. As crianças são oriundas da classe média e, em sua maioria, residentes no centro ou em bairros próximos. A coleta de dados envolveu diário de campo, gravação em áudio e desenhos das crianças.

Como procedimentos iniciais, realizamos uma sondagem a fim de percebermos o que as crianças conhecem da cidade. Em uma roda de conversa, elas foram convidadas a falar sobre o que conhecem do lugar onde vivem, e as indagações feitas se deram no sentido de buscar entender os conhecimentos e as vivências da criança no espaço urbano. Para tanto, perguntamos se sabiam o nome da cidade onde vivem, o que conhecem da cidade, quais lugares costumam frequentar e com quem costumam ir. Essa conversa foi gravada e transcrita no diário de campo.

Foi solicitada também às crianças uma representação gráfica dos lugares que cada uma havia falado, como modo de refletirem sobre o assunto por meio dos desenhos, e ainda por tal procedimento ser capaz de controlar os significados do discurso verbal, facilitando, ao mesmo tempo, a imaginação e o sentimento. Como forma expressiva, os desenhos das crianças são aqui tomados como importante fonte documental para percebermos o que a criança conhece da cidade, não sendo retratos fiéis da realidade, mas suporte de representações sociais. A proposta do desenho foi de que esse deveria ser tão livre quanto possível, os materiais disponibilizados foram folhas no tamanho A4, lápis grafite e de cor. As crianças poderiam colorir ou não, complementar com escrita se desejassem, e muitas assim fizeram, escrevendo a partir de suas hipóteses da língua escrita, já que estão em fase de alfabetização. Ao final dessa proposta, as crianças puderam falar de seus desenhos e mostrá-los aos colegas.

Para análise das informações obtidas durante a roda de conversa e dos desenhos das crianças, realizamos uma categorização, pois permite a exploração dos possíveis significados das narrativas dos sujeitos e demanda um esforço por parte das pesquisadoras em realizar a interpretação dos conteúdos de forma mais próxima da realidade comunicada. Assim, a estratégia utilizada foi conjugar desenho e oralidade, pois essas formas de expressão se complementam e podem revelar detalhes das relações da criança com o entorno social e cultural a que estão expostas. E, ainda, por meio dos desenhos, nós nos aproximamos do ponto de vista das crianças em suas diferentes infâncias, o que pensam e elaboram sobre a cidade em que vivem, o que implica percebermos as tramas que os relacionam ao contexto histórico de sua criação. Ao associar narrativas e os desenhos produzidos, podemos chegar à chave de compreensão do que a criança elegeu registrar.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

As narrativas e os desenhos das crianças foram categorizados em moradia, lazer e centro da cidade. Percebemos que a leitura que a criança faz está ligada a tudo aquilo que compõe o ambiente urbano mais imediatamente ligado à vida cotidiana e que, para quase todas as crianças, está em função da casa onde moram e com quem moram. A casa marca as relações afetivas, hierárquicas e particularidades. Nesse sentido, a casa é caracterizada como espaço da família e, portanto, como lugar em que se dá a socialização primária das crianças.

Ao falar de suas casas, as crianças citam também a rua em que moram, referindo-se não à materialidade, mas àquilo que está no entorno e que é o local em que as questões práticas do dia a dia são resolvidas, como a padaria, a farmácia, a lanchonete, a lojinha. Esse dado demonstra ser a rua um local privilegiado das práticas locais para as crianças. Nos desenhos realizados, observamos que a maioria traz ações das crianças realizadas nos espaços que foram relatados durante a conversa. A relação da moradia e das atividades realizadas com o grupo familiar aparece em vários desenhos, fundindo as duas representações.

Figura 1
Representação: a criança com sua família em casa

Os espaços de lazer mencionados e representados pelas crianças são os parques, clubes, cinemas, e elas mencionam, com grande frequência, hipermercados, cadeias de fast-food e shoppings centers, sendo esses últimos lugares de consumo e que sempre são frequentados com suas famílias.

Eu vou no shopping e aí eu vou com a minha família inteira. Não sei o nome do shopping, só sei gue tem “vez” gue eu chupo sorvete de massa e compro uns bringuedos. (Marcelo2 2 Por uma questão ética, os nomes utilizados para identificar as crianças são fictícios. )

Eu vou com minha mãe no Condor e no shopping. A gente vai no Boulevard e a gente vai para comprar roupas e vamos no cinema e também fazemos um monte de coisas lá. (Isana)

As crianças referem-se aos vários shoppings da cidade, mas com maior frequência aos shoppings Royal e Boulevard, provavelmente pelo fato de a maioria delas morarem na região central e esses shoppings possibilitarem fácil acesso, pois o primeiro está localizado no centro e o outro próximo a essa região. Os cinemas aparecem também como espaço frequentado pelas crianças e suas famílias, e, em Londrina, todos estão situados nos shoppings centers. Nos desenhos, é recorrente a menção a uma poderosa rede de supermercados e que parece deter o controle na distribuição e venda de produtos alimentícios na cidade. O maior uso dos espaços comerciais citados e de espaços privados de lazer, como shoppings e cinemas, parece demonstrar que as famílias procuram compensar a ausência do cotidiano ou que se dirigem com as crianças para lugares fechados por serem supostamente mais seguros, prática que também as inicia enquanto consumidoras.

Figura 2
Representação: criança no shopping com a família

O lago Igapó aparece também como lugar frequentado pelas crianças com suas famílias; nesse espaço, aos finais de semana, tem um trecho de uma das vias que o circunda bloqueado para carros, o que convida também ao uso dessa área verde da cidade. As crianças podem andar mais tranquilamente de bicicleta e com outros dispositivos de duas rodas. A utilização do lago como espaço de lazer para as crianças faz supor que esse espaço é bastante frequentado por ser um espaço ao ar livre, estar preservado e ocasionalmente ser palco de atividades físicas e culturais, como corridas pedestres, passeios ciclísticos e shows. A localização do lago favorece também seu uso para as pessoas que moram na região central, já que ele se encontra não muito distante do centro.

Figura 3
Representação: Criança com sua família no lago Igapó

Com uma frequência menor, aparecem as praças da cidade, e aqui supomos que isso se deve ao fato da má conservação de muitos desses espaços, pela inexistência de equipamentos para brincar e formas de ação social voltadas às praças localizadas na região central. Em compensação, uma criança retratou uma praça em que participou de uma passeata popular junto de sua mãe. Trata-se da Praça 1º de Maio, que abriga o monumento da concha acústica e que tradicionalmente é palco de atrações culturais e manifestações políticas da cidade. “Eu vou na concha acústica com minha mãe, às vezes com meu pai e minha mãe. Nós fomos na passeata”. (Luís).

O menino refere-se a uma profusão de movimentos sociais que ocuparam as ruas da maioria das grandes cidades do país, nos anos de 2016 e 2017, a favor da democracia. Ao representar essa vivência em espaço público, Luís revela o contexto histórico dessa produção e descortina uma atividade política nessa participação em manifestação coletiva. Experiência que o permitiu testemunhar a luta em meio a uma história recente de polarizações e conflitos pelo espaço da cidade. Chama atenção tanto a narrativa como o desenho do menino, que, pertencendo geograficamente à região central da cidade e frequentando uma escola ali localizada, marca o centro como lugar de encontro e expressão da opinião pública.

Figura 4
Representação: criança em manifestação popular na Concha Acústica

Algumas crianças mencionaram e retrataram o centro da cidade, referindo-se ao calçadão com suas lojas, bancos, restaurantes, feiras livres e os altos edifícios. O que parece chamar atenção das crianças são os prédios do calçadão, os bancos e as lojas.

Figura 5
Representação do calçadão de Londrina

A percepção do centro depende do que as crianças vão fazer nessa área da cidade, se vão fazer compras, se moram nessa região, se irão ao médico, almoçar em um restaurante ou visitar uma feira livre, remetendo a uma experiência fragmentada do espaço urbano. Percebemos que os caminhos são fundamentais para a representação que a criança faz da cidade e dependem da rede de lugares em que ela está inserida e de suas ações ali vivenciadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a relação entre as crianças e a cidade em que habitam, compreende-se que essa pode constituir-se em forte elemento que, no processo de socialização das crianças, combinado com as culturas próprias da infância e de aspectos sociais, econômicos e territoriais, alcança maneiras de habitar, ser, ver e agir que organizam suas visões de mundo, práticas e trajetórias. Nesse sentido, concordamos com Bonafé (2013)BONAFÉ, Jaume Martinez. A cidade no currículo e o currículo na cidade. In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 442-58. quando assevera que a cidade educa, uma vez que para “ser cidadão” circulam nas ruas da cidade comportamentos, valores cívicos e morais, estilos e modos de vida, práticas culturais elaboradas em relação às quais construímos o sentido de ser cidadão.

Neste texto, apresentamos a análise referente a três pontos: o que as crianças conhecem da cidade? Quais são os lugares que mais frequentam? Com quem frequentam esses lugares? Essas questões marcaram o ponto de partida de nossa pesquisa e foram fundamentais para planejarmos as estratégias pedagógicas nas etapas seguintes. Nessa breve conclusão, buscamos entrelaçar a vivência do espaço urbano que a criança tem com a potencialidade que apresenta quando os alunos são convidados a pensar a cidade a partir de suas lógicas sobre ela.

Pelo que pudemos observar, se, por um lado, as crianças transitam rotineiramente pelos diferentes shoppings da cidade, acompanhadas de suas famílias, consequentemente aprendendo a ser consumidoras e vendo o mundo sob essa ótica, por outro lado, observamos as praças da cidade, geralmente, descuidadas, sem equipamentos de interesse infantil e, portanto, pouco frequentadas pelas crianças.

Esse movimento em direção a espaços privados da cidade resulta em uma vida privada da convivência com outros em espaços públicos e ricas oportunidades de convívio social mais amplo, em que as diferenças se mostram, são intencionalmente afastadas. De outro modo, ao ocupar o espaço público, a criança tem a possibilidade de conviver com a diversidade de pessoas que habitam a cidade, pessoas de diferentes faixas etárias, condição social e cultural. O entendimento de que a criança é um ator social e participante ativo da sociedade nos faz pensar que elas precisam estar inseridas nessa relação entre as pessoas e o espaço urbano, sentir-se pertencente à cidade, e que a cidade pertence a elas também.

Para tanto, é urgente fomentar uma cidade acolhedora e mais humanizada para todos os seus habitantes e, em especial, para a infância. Uma cidade mais lúdica que integre melhor as pessoas nos espaços públicos, para que assim possam ressignificá-los como locais de convívio e oxalá se produza, entre as novas gerações, um olhar mais sensível para o mundo.

Refletir sobre a cidade a partir das lógicas infantis nos possibilita outros modos de transver a realidade e reafirmar, baseados nos estudos contemporâneos, o reconhecimento da criança e sua participação na cidade, mesmo essa não se mostrando acolhedora. Ainda que com limitadas vivências pela urbe, a criança encontra sentido nas experiências que tem e nos dá sinal para que possamos problematizar a cidade e correr o olhar para outras formas de convivialidade possíveis.

  • 2
    Por uma questão ética, os nomes utilizados para identificar as crianças são fictícios.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2020
  • Revisado
    26 Abr 2021
  • Aceito
    12 Maio 2021
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