Cidade-balneário e os sujeitos da expansão e verticalização urbana: o protagonismo invisibilizado dos trabalhadores da construção civil de Matinhos, Paraná, entre os anos 1980 e 2000

Seaside resort and the subjects of the urban sprawl expansion and verticalization: the invisible protagonism of construction workers in Matinhos, Paraná, between 1980 and 2000

Ciudad balneario y los sujetos de la expansión y verticalización urbana: el protagonismo invisible de los trabajadores de la construcción civil de Matinhos, Paraná, entre los años 1980 y 2000

Resumo

O texto comunica resultados de uma pesquisa com trabalhadores da construção civil que migraram entre os anos 1980 e 2000 para o município de Matinhos, tradicional reduto balneário do Paraná. Esses sujeitos atuaram em canteiros de obras, estabeleceram-se em definitivo na região e reconstruíram suas vidas vinculadas à dinâmica da cidade e sua formação socioespacial. Os objetivos do estudo foram assim constituídos: i) identificar aspectos da origem e trajetória dos trabalhadores da construção civil em Matinhos; ii) analisar sua adaptação, inserção social, formas de lazer e relações no âmbito do trabalho; e iii) refletir acerca da dinâmica da identidade e dos aspectos culturais experimentados por esses trabalhadores. A metodologia utilizada foi uma abordagem qualitativa com delineamento de estudo de caso, utilizando-se, para a coleta de dados, entrevistas semiestruturadas. Os resultados permitiram conhecer aspectos do processo de migração vivenciado por dez jovens trabalhadores com origens em áreas rurais de diversas regiões do Paraná. Inicialmente inseridos em contextos de fragilidade socioeconômica, apostaram na migração para ascensão social, fixando-se no litoral do Paraná a partir de oportunidades no setor da construção civil, na época com ritmo acelerado, pois acompanhava a verticalização urbana, impulsionada por edificações de segunda residência de uso predominantemente balneário. A inserção laboral nos canteiros de obras se deu na condição popularmente denominada como “oreia seca”, base da hierarquia das funções, equivalente ao servente de obras. O ambiente do trabalho e as moradias, não raro alojamentos, assim como as redes sociais de apoio, constituíram importantes referências microterritoriais, bases iniciais para uma gradativa inserção local, pois oportunizavam acolhimento e apoio para recriação de laços e sociabilidades. Os entrevistados relataram ascensão social e profissional concomitante ao desenvolvimento balneário; constituíram-se com suas famílias no município, deixando transparecer orgulho e satisfação por essas escolhas.

Palavras-chave
cidades-balneário; trabalhadores da construção civil; turismo; migração; litoral do Paraná – Brasil

Abstract

This paper presents the results of a survey of construction workers who migrated between 1980 and 2000 to the municipality of Matinhos, a traditional seaside resort in Paraná. These individuals worked on construction sites, settled permanently in the region, and rebuilt their lives linked to the dynamics of the city and its socio-spatial formation. The study aims were: i) to identify aspects of the construction workers’ origin and trajectory in Matinhos; ii) to analyze their adaptation, social insertion, forms of leisure, and relationships in the scope of work; and iii) to reflect on the dynamics of identity and cultural aspects experienced by these workers. The methodology used was a qualitative approach with a case study design, using semi-structured interviews for data collection. The results show us aspects of the migration process experienced by ten young workers with origins in rural areas of several regions of Paraná. Initially inserted in contexts of socioeconomic fragility, they bet on migration for social ascension, settling on the coast of Paraná from opportunities in the construction sector that, at the time, enjoyed an accelerated rhythm due to urban verticalization, driven by buildings of the second residence of predominantly seaside use. The labor insertion in the construction sites occurred in the condition popularly called “ oreia seca ”, the base of the hierarchy of functions, equivalent to the hodman. The work environment and the dwellings, not rare lodgings, as well as the social support networks, were important micro-territorial references, initial bases for a gradual local insertion, as they provided welcome and support to recreate links and sociabilities. The interviewees reported social and professional ascension concomitant with the development of the seaside resort; they constituted themselves with their families in the municipality, showing pride and satisfaction with these choices.

Keywords
seaside resorts; construction workers; tourism; migration; Paraná coast – Brazil

Resumen

El texto presenta resultados de una investigación con trabajadores de la construcción civil que migraron entre los años 1980 y 2000 para el municipio de Matinhos, tradicional reducto balneario de Paraná. Esos sujetos actuaron en sitio de construcción, se establecieron en definitivo en la región y reconstruyeron sus vidas vinculadas a la dinámica de la ciudad y su formación socioespacial. Los objetivos del estudio fueron: i) identificar aspectos del origen y trayectoria de los trabajadores de la construcción civil en Matinhos; ii) analizar su adaptación, inserción social, formas de ocio y relaciones en el ámbito del trabajo; y iii) reflexionar la dinámica de la identidad y aspectos culturales experimentados por ellos. La metodología fue un abordaje cualitativo con delineamiento de estudio de caso, utilizándose, para la recogida de datos, entrevistas semiestructuradas. Los resultados permitieron conocer aspectos del proceso de migración de diez jóvenes trabajadores con orígenes en áreas rurales de distintas regiones de Paraná. Inicialmente inseridos en contextos de fragilidad socioeconómica, apostaron en la migración para ascensión social, fijándose en el litoral de Paraná a partir de oportunidades en el sector de la construcción civil, en época con ritmo acelerado, pues acompañaba la verticalización urbana, impulsada por edificaciones de segunda residencia de uso predominantemente balneario. La inserción laboral en los sitios de construcción ocurrió en la condición popularmente conocida como “ oreia seca ”, base de la jerarquía de la funciones, equivalente al sirviente de construcción. El ambiente de trabajo y las viviendas, no raro alojamientos, así como las redes sociales de apoyo, constituyeron importantes referencias microterritoriales, bases iniciales para una gradual inserción local, vez que permitían acogimiento y apoyo para recreación de lazos y sociabilidades. Los entrevistados relataron ascensión social y profesional concomitante al desarrollo del balneario; se constituyeron con sus familias en el municipio, dejando trasparecer orgullo y satisfacción por esas elecciones.

Palabras clave
ciudades balneario; trabajadores de la construcción civil; turismo; migración; litoral de Paraná – Brasil

1 INTRODUÇÃO

A proliferação de balneários é uma das expressões mais visíveis e reveladoras do século XX, por isso figura entre as realizações urbanas notáveis e intrigantes da sociedade contemporânea. Urry (2001) descreveu o esplendor e as contradições de origem desses ambientes terapêuticos, sensuais e construídos para o prazer, no horizonte da sociedade inglesa na transição dos séculos XVIII e XIX. É reconhecido que o desenvolvimento desses assentamentos sugere processos de urbanização singulares, que repercutem na forma, em funções, no uso dos recursos naturais, ocupação do solo, símbolos, processos de gestão, entre outras relações territoriais (URRY, 2001; PEARCE, 2003; KRIPPENDORF, 2009).

O turismo condiciona e induz espacialidades, as práticas e atividades que o caracterizam estimulam frentes de mobilização de agentes de produção espacial, cuja ação coletiva, não necessariamente mediante alianças e interesses comuns, exerce inequívoca força de transformação territorial (SANTANA; SILVA; GUIDICE, 2020). A inflexão do turismo sobre o território também é observada por Pontes, García-Marín e Moreno-Muñoz (2020, p. 140):

[...] la enorme expansión de la actividad turística potenció y dirigió la producción inmobiliaria destinada a las segundas residencias, particularmente em áreas costeras. Como resultado, existe una urbanización rectilínea a lo largo de las áreas turísticas litorales y prelitorales.

A generosa exposição midiática tende a gerar uma ideia equivocada que atribui às cidades balneárias status frugal. Naturalmente, esses ambientes excedem o caráter mais evidente com que são projetados na geografia ocidental e seus imaginários: orlas bem desenhadas, vigorosos conjuntos edilícios beira-mar, trama de ruas e avenidas com alta densidade de equipamentos e serviços; usuários e grupos sociais com suas práticas de relaxamento, lazer e descanso beiramar. A perspectiva desta pesquisa relativiza essa condição romantizada das cidades balneárias e entende que seu conhecimento ultrapassa os elementos mais nítidos de sua representação. Mais fundamental, no entanto, é que, diferentemente de aspectos morfológicos, econômicos e funcionais, a história e constituição de suas populações é um traço importante e com menor destaque na produção científica.

Nesse sentido, esta investigação foi desenvolvida no Litoral do Paraná, região em que Pierri et al. (2006) classificaram quatro tipos de usos do solo predominantes: pesqueiro, portuário, agrícola e o balneário. O município de Matinhos, tradicional balneário com população estimada de 34.720 pessoas (IBGE, 2019), nasceu de um pequeno povoado originado na década de 1920 e expressa inúmeros fenômenos típicos a esses territórios: crescimento acelerado da população; problemas ambientais; segregação e acentuada desigualdade social; verticalização do quadro urbano; economia concentrada e dependente do setor de serviços.

O recorte temporal se deu entre os anos de 1980 e 2000, período em que é possível constatar a interação entre dois fenômenos de mobilidade social na configuração socioespacial desta cidade balneária. O primeiro fenômeno de mobilidade está vinculado ao avanço crescente do turismo, impulsionado pelo segmento sol e praia e facilidades de transporte e acesso entre demais centros urbanos e a costa do estado (BIGARELLA, 2009; FILIPPIM; BAHL, 2016). Entre os efeitos mais conhecidos, estão a visitação massiva sazonal na casa de centenas de milhares de pessoas em temporadas de verão, verticalização, densidade e expansão do quadro urbano (SAMPAIO, 2006; PIERRI et al., 2006; CHEMIN; ABRAHÃO, 2014; ABRAHÃO; TOMAZZONI, 2017).

Note-se que Matinhos é o município de maior projeção turística na costa oceânica paranaense, especialmente em razão do Balneário de Caiobá, reconhecido como o de melhor infraestrutura e por um certo glamour associado a particularidades de sua história (RIBEIRO, 2008). Em Matinhos, encontra-se a maior concentração de segundas residências da região e também do Paraná. No contexto estadual, o IBGE (2010) indica que os três municípios paranaenses com maior número de Domicílios de Uso Ocasional, na condição de não ocupados, são justamente seus três balneários marítimos, respectivamente, Matinhos, Pontal do Paraná e Guaratuba. Em Matinhos, os 21.411 domicílios não ocupados correspondem a 64,6% do total de domicílios recenseados. Em Pontal do Paraná, são 17.695 domicílios não ocupados, que correspondem a 64,7% do total, ao passo que em Guaratuba são 12.178 domicílios não ocupados, 50,6% dos domicílios recenseados. Matinhos destaca-se também no ranking brasileiro, ocupando a 15ª posição nacional.

O outro fenômeno de mobilidade está atrelado à migração intraestadual (KLEINKE; DESCHAMPS; MOURA, 1999; DESCHAMPS; KLEINKE, 2000), que implicou elevado crescimento populacional de Matinhos, mas também dos demais balneários da região, assim como de Paranaguá, cidade polo regional. Em boa medida, o fenômeno foi estimulado por oportunidades laborais na construção civil e pelo avanço de uma rede de serviços que acompanhou a consolidação do balneário, com crescente demanda de trabalho associada à dinâmica do turismo, setor em que postos de trabalho não costumam exigir qualificações elevadas e técnicas complexas nos postos iniciais. Segundo Deschamps e Kleinke (2000), a migração para este município teve origem no próprio estado (78,31%), sendo 46,12% da região metropolitana de Curitiba e 32,19% dos demais municípios do estado. Santa Catarina correspondia a 9,72%, e as demais UFs, 8,93%. Nos períodos 1986/91 e 1991/96, Matinhos apresentou um crescimento de 3.310 para 5.811 migrantes.

Nessas duas décadas, Matinhos figurou destino tanto para turistas que buscavam desfrutar dos prazeres e amenidades de um território costeiro como para um conjunto de sujeitos em trajetória migratória, muitos dos quais atraídos pelos pujantes canteiros de obras da construção civil estabelecidos para a edificação de casas, sobrados e edifícios que atendiam o fascínio da classe média e alta por moradias de descanso e férias de verão. Trata-se, portanto, de uma fase de reconhecida importância para a formação socioespacial deste trecho de costa do Paraná, que demarcou a transformação do quadro urbano e da paisagem, de vilarejos com edificações com até três pavimentos, residências unifamiliares e comércios de pequeno porte a balneários urbanizados, repletos de edifícios e condomínios voltados ao lazer, como demonstrou estudo conduzido por Abrahão et al. (2019), que anotou a presença de 528 condomínios somente em Caiobá.

É neste contexto que a pesquisa traçou como objetivos: i) identificar aspectos da origem e trajetória dos trabalhadores da construção civil em Matinhos que atuaram neste ramo entre os anos de 1980 e 2000; ii) analisar sua adaptação, inserção social, formas de lazer e relações no âmbito do trabalho; e iii) refletir acerca da dinâmica da identidade e aspectos culturais experimentados por esses trabalhadores. A investigação apresentou abordagem qualitativa, delineamento de estudo de caso e coletou dados a partir de entrevistas semiestruturadas, complementadas por caderno de campo.

Foram dez os sujeitos de pesquisa, que exerceram atividade profissional na construção civil local entre os anos de 1980 e 2000, selecionados a partir da técnica bola de neve. Os depoimentos permitiram conhecer aspectos interessantes da trajetória desses trabalhadores, sobretudo porque revelaram o interior e algumas especificidades da experiência da migração para o litoral paranaense. Vivências individuais foram também percebidas como coletivas no conjunto desses dez sujeitos e demonstraram-se interconectadas à dinâmica socioespacial do balneário, notadamente a partir do ambiente do trabalho e dos locais de moradia, que atuavam como microcosmos iniciais de acolhimento e base de apoio para recriação de laços e sociabilidades.

A migração é um tema que representa, ao longo da história, um fenômeno social complexo, com determinações diversas, bastante ativo em processos de formação de sociedades, territórios e padrões de desenvolvimento regionais, sendo possível verificá-lo como muito próximo, senão imbricado à urbanização (GOLGHER, 2004; SANTOS, 2004; PEREIRA, 2011; MATOS, 2012; SALIM, 1992). Para Matos (2012, p. 8), um aspecto geral dos grandes fluxos migratórios corresponde justamente ao fator de atração exercido por cidades que demandaram mão de obra, razão pela qual apresenta como um paradoxo o fato de não haver reconhecimento mais amplo da “decisiva contribuição dessa força de trabalho para o desenvolvimento físico-material requerido pelo crescimento urbano”.

Segundo Brito (2000), é sempre necessário compreender que a complexa dinâmica da economia e da sociedade brasileiras estimulou uma multiplicidade de tipos e modalidades de fluxos migratórios, com significados particulares, motivo pelo qual é um grande desafio averiguar particularidades e suas dimensões. Salim (1992) igualmente reconhece a diversidade em processos de migração, na medida que estão circunscritos a pluralidades e contextos sociais, razão pela qual tendem a assumir feições próprias e implicações distintas para indivíduos e grupos.

Diante desse quadro, a pesquisa enfatizou o aspecto da migração e adaptação no destino com expectativa de reconhecer nos testemunhos a dialética entre indivíduos e seus meios, memória e identidade associadas ao lugar (THOMSON, 2002). Nesse sentido, as entrevistas possibilitaram acessar detalhes da experiência dos sujeitos, oportunizando também conhecer uma dimensão existencial, nos termos defendidos por Marandola Júnior e Dal Gallo (2010).

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A consecução dos resultados foi alcançada a partir de uma abordagem qualitativa com delineamento de estudo de caso, que é definido por Yin (2001, p. 32) como uma pesquisa de natureza empírica que “[...] investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos [...]”. No que tange às técnicas para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, complementadas por caderno de campo. Foram colhidos depoimentos de 10 (dez) trabalhadores da construção civil, os quais exerceram atividade profissional na construção civil entre as décadas de 1980 e 2000, selecionados a partir da técnica bola de neve, que, segundo Vinuto (2014, p. 203), trata-se de: “uma forma de amostra não probabilística, que utiliza cadeias de referência”. Assim, cada entrevistado indicou outros sujeitos de pesquisa, em um processo contínuo que foi interrompido no momento em que se alcançou o ponto de saturação, ou seja, considerou-se que as informações já contemplavam os objetivos propostos na investigação.

Para a identificação dos respondentes no texto, utilizou-se a expressão “Informante” ou “INF.”, seguida de um número individual atribuído a cada um deles, sendo que todos firmaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que autorizava a publicação, no todo ou em parte, das entrevistas colhidas.

O desenvolvimento da pesquisa contou com a construção de um roteiro de entrevistas semiestruturadas que contemplou os seguintes tópicos: como se caracterizava o cotidiano dos sujeitos da pesquisa nas obras em que trabalharam; e como se desenvolviam as relações com a cidade de origem, a adaptação no município, as formas de lazer e as relações com os colegas de trabalho. Esses tópicos estruturantes foram derivados em aproximadamente 40 (quarenta) perguntas, posteriormente depuradas pela aplicação de pré-teste. Além disso, algumas questões foram suprimidas, assim como outras acrescentadas no momento da recolha, considerando as especificidades da interlocução e a narrativa de cada entrevistado. Os 10 (dez) depoimentos, colhidos com auxílio de gravadores de áudio, entre os meses de março e julho de 2017, tiveram duração média de 60 (sessenta) minutos. Na sequência, realizaram-se a transcrição dos áudios e a análise dos resultados, seguidas da elaboração do relatório de pesquisa do qual este artigo consiste em um subproduto.

O pressuposto de que a interação dos indivíduos com o seu mundo social modela sua percepção da realidade orientou o desenvolvimento da investigação, na qual se buscou compreender o significado que os sujeitos da pesquisa atribuem à experiência que têm no mundo. Assim, adotou-se a análise direta dos depoimentos como estratégia de interpretação desses significados, nos moldes do que Merriam (2002) chama de “estudo qualitativo básico ou genérico”, ao se referir a pesquisas que buscam compreender determinado fenômeno, processo ou visão de mundo das pessoas envolvidas, por meio da análise de entrevistas.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 Migração, trabalho na construção civil e o ingresso na condição de “oreia seca”

A análise dos depoimentos colhidos e a literatura consultada permitiram compreender proximidades e conexões entre os fenômenos de migração experienciada pelos sujeitos e relativa ao crescimento urbano no município de Matinhos, entre as décadas de 1980 e 2000, acompanhado do aumento de edifícios de quatro pavimentos ou mais que evidencia o fortalecimento dos interesses imobiliários nessa época (ABRAHÃO; TOMAZZONI, 2017). Esse crescimento estimulou o deslocamento de trabalhadores de outras regiões do estado para atuarem na construção civil no município, como é possível observar nos relatos:

[...] no período que eu cheguei aqui [...] eu presenciei, pelo menos, de 93 a 98 por aí, foi assim aquele ‘boom’, muitas obras. (INF. 5, 2017);

[...] de 1982 a 1998 deu aquele ‘boom’, depois deu uma caída feia, as firmas foram tudo embora [...]. (INF. 6, 2017);

[...] é por causa da estrada que tinham feito, e o pessoal vinha tudo pra Caiobá, na época aqui, na década de 90/95 por aí, o metro quadrado mais caro do Brasil era aqui. (INF. 9, 2017).

Ainda que a pesquisa não tenha encontrado meios para confirmar a informação de que se tratava do maior preço de área construída no país, o fragmento demonstra de forma inequívoca o vigor econômico do setor imobiliário, assim como o clima de euforia em relação à atividade construtiva naquele período. De forma análoga, os depoimentos também sugerem que os trabalhadores, oriundos de áreas economicamente frágeis, atribuíam uma aura de glamour ao lugar e viam ali possibilidades de ascensão social. A predominância da origem rural entre os trabalhadores encontra ressonância no padrão de deslocamento observado por Almeida (2020, p. 229): “Mesmo que outros movimentos possam ser notados, é o movimento do campo para as cidades, em decorrência da expulsão camponesa, que marcou [...] a memória e o trabalho na construção civil habitacional”.

Com o intuito de reduzir os impactos provocados pela especulação imobiliária e pelo crescimento urbano acelerado, a Lei Estadual 7.389/80 estabeleceu as Áreas e Locais de Interesse Turístico no estado do Paraná e o Decreto 2.722/84 regulamentou as áreas protegidas no litoral, com restrições de uso e ocupação do solo (SAMPAIO, 2006; ABRAHÃO; TOMAZZONI, 2017). O Informante 2 comenta: “[...] teve uns tempos que eles não estavam querendo deixar fazer prédio muito alto na beira [...] porque prejudicava a praia!” . O fragmento sugere a forte vinculação da atividade turística com a arquitetura da cidade, ou seja, ainda que os ganhos do setor imobiliário fossem muito expressivos, começava a surgir a preocupação de evitar o sombreamento precoce da orla e prejuízos na fruição de lazer dos turistas e veranistas.

Os trabalhadores que se transferiram para o município de Matinhos chegaram predominantemente jovens e auxiliaram na urbanização e verticalização do município, de forma mais expressiva do balneário de Caiobá até o centro da cidade, atuando primeiramente na função de servente, não raro sem treinamentos prévios para a atuação no canteiro de obras. Alguns depoimentos ilustram esse momento de migração para o município, como destaca o Informante 4: “[...] eu só tinha 25 anos, recém-casado, minha esposa ficou lá, então eu vim pra cá mesmo porque não tinha muita opção lá [...]”. Nesse mesmo sentido, o Informante 6 relata que foi convidado por pessoas que já estavam no município: “[...] cê não quer vir pra Matinhos? Tem bastante serviço. Aí eu vim [...] aluguei uma casa e fui tocar minha vida” . Em relação aos treinamentos prévios que não eram realizados com os novatos, o Informante 9 relata: “[...] o cara chegava de manhã cedo e o cara falava: ‘vai trabalhar lá. Vai trabalhar com fulano e aprendendo [...]”.

Os fragmentos transcritos demonstram que a inserção dos trabalhadores frequentemente acontecia a partir de redes de relacionamento, sendo abundantes as alusões a indicações de amigos e parentes que haviam migrado em período anterior para a cidade e já trabalhavam no setor, o que facilitava o acolhimento dos novos migrantes e seu acesso às oportunidades de emprego no local, prática que se aproxima do conceito de “capital social”, cunhado por Bordieu (1980, p. 2) para caracterizar o “[...] conjunto de relações e redes de ajuda mútua que podem ser mobilizadas efetivamente para beneficiar o indivíduo ou sua classe social”.

Não raro, esses precursores também ensinavam aos novatos as atividades no próprio momento em que essas eram executadas, sem um programa ou política de treinamento prévio. Confirmam-se, assim, semelhanças entre a experiência desses sujeitos e outros fenômenos de migração estudados, que demonstram a relevância das redes sociais (THOMSON, 2002; MARANDOLA JUNIOR; DAL GALLO, 2010), ao possibilitar identificação dos sujeitos no meio, recriação de laços de pertencimento e sociabilidade mediante relações que não só amortecem como aliviam fases iniciais de adaptação após a ruptura com a origem e o caminho migratório realizado.

Nos canteiros de obra da construção civil, as diferenças profissionais são bem definidas nas relações de trabalho, como é o caso dos serventes de obra, geralmente uma das primeiras funções exercidas e uma das menos qualificadas, porém a que realiza o serviço que demanda intenso esforço fsico, considerado o serviço “bruto” ou “pesado” que presta suporte às etapas seguintes realizadas por outros profissionais do canteiro (FONTES, 2003). Existem diversas denominações acerca dessa função inicial, uma delas, relatada pelos informantes, é o termo “oreia seca”.

A origem dessa denominação é controversa, não apresenta uma referência unívoca, mas uma das versões está relacionada ao modo de transportar uma das matérias-primas utilizadas nos serviços da construção civil, o cimento. Os serventes transportam o cimento em baldes carregados sobre os ombros e, ao se deslocarem pela obra com o balde molhado, o material respinga e encosta na orelha. Ao longo do dia de trabalho, o cimento seca, e as orelhas ficam acinzentadas com uma casca fina e seca. Assim, cria-se um personagem típico do universo da construção civil, o “oreia seca”, termo que passa a conotar não apenas o trabalhador dos estratos inferiores da hierarquia laboral, mas que ultrapassa os limites do canteiro de obras e assume para a própria sociedade ampliada o estatuto ou sinônimo de peão, servente ou trabalhador braçal.

Sobre os serviços realizados pelo “oreia seca”, os Informantes 4 e 9 comentam:

Seria hoje o auxiliar de serviços gerais, oreia seca é um serviço [...]. O serviço dele era só servir [...] o encanador, o carpinteiro, o que menos ganhava e o que mais sofria. (INF. 9, 2017).

[...] o servente é o que traz o material ali para você fazer, o oficial vai esticar a linha ali, colocar o prumo, levantar a parede, aí todo material que vem o serviço mais pesado é o servente que faz, trazer todo aquele material para cá, bater a massa, tudo, o oficial só pega o material ali prontinho para fazer, então aí, além do coitado fazer o serviço pesado, ainda tinha que aguentar ser chamado de oreia seca. (INF. 4, 2017).

Como o ingresso da maioria dos trabalhadores ouvidos pela pesquisa se deu na condição de “oreia seca”, os relatos confirmam características tratadas por Thomson (2002) sobre o perfil comovente e impregnado de emoção, alívio e orgulho presente em narrativas de migrantes. Os depoimentos colhidos carregam certa carga emocional e memória afetiva, aludem à própria experiência vivida e à expectativa de ascender aos cargos mais reconhecidos no organograma funcional, como o de “oficial” (termo usado para designar os responsáveis por desempenhar ou comandar funções específicas, como pintores, carpinteiros, encanadores, eletricistas), ou mesmo de mestre de obras.

Notoriamente, emergem identidades culturais que, distantes de serem fixas, estão suspensas, transitando entre diferentes posições; retirando de distintas tradições culturais seus recursos. São os produtos das misturas culturais cada vez mais comuns em um mundo globalizado. Nesta perspectiva, podemos ser tentados a pensar na identidade inserida na era da globalização como destinada à dicotomia, resultando em um lugar ou em outro: ou retornando às próprias “raízes” ou dissolvendo-se por meio da assimilação e da homogeneização, dicotomia esta que é passível de contestação (HALL, 2006).

O corpus das entrevistas colhidas sugere que a construção da identidade dos sujeitos da pesquisa efetivamente corresponde a um amálgama de suas trajetórias, no qual persistem elementos das raízes interioranas, ligadas à ambiência rural, em composição com a vida no balneário litorâneo, cuja edificação foi consolidada pelo trabalho dos respondentes. Esse processo aproxima-se, assim, do constructo teórico cunhado por Canclini (1997) e denominado como “hibridismo cultural”.

3.2 Um novo lugar: adaptação e estereótipos

A adaptação à nova cidade causou mudanças significativas no modo de vida desses trabalhadores, pois migraram para o município sozinhos, sem a companhia da família, longe de suas culturas e rotinas. Alguns trabalhadores consideraram a adaptação difícil, como o Informante 5 relata :

Depende de como você vai se adaptar nela, tem pessoas que tem uma dificuldade danada de novos amigos, de conviver com novas pessoas, o ambiente não vai agradar, enfim, às vezes a pessoa tem uma rotina danada, chega tarde, tem que ser assim, assim, assado, daí você entra no alojamento tem que entender que vai conviver com várias e várias pessoas diferentes, muita coisa vai mudar, você não vai ter um quarto só seu e por aí vai, quem já teve trabalhando fora e parando em alojamento sabe muito bem que não é fácil, e aí que tá o negócio, às vezes a pessoa até gostaria de vir, mas falta coragem.

Por conta dessa adaptação abrupta, muitos trabalhadores desistiam da obra e voltavam para suas cidades de origem, como relata o Informante 1: “[...] daí tinha aquela coisa de ir embora, porque na época eu me sentia assim, que lá o pessoal era mais acolhedor, daí aqui eu observei que até mesmo na igreja [...] se chegasse um estranho [...] era como se ‘ah não conheço, é perigoso” .

A rotatividade dos empregados mantinha as construtoras de grande porte sempre contratando, aumentando o fluxo de novos trabalhadores e moradores no município, que residiam inicialmente em casa de parentes ou nos alojamentos da empresa.

O êxodo rural, no Brasil, retirou do campo um contingente de 6 milhões de habitantes entre as décadas de 1970 e 1990, este feito, somado à evolução das técnicas informacionais e de automação, tanto nas atividades agropecuárias como nas de serviços, conotou políticas trabalhistas e tipos de contratação que favorecem a precarização das relações de emprego e aumento do desemprego. Paralelamente, a localização das empresas depende da lógica internacional das regras de competitividade e busca posições que melhor lhes convêm, passíveis de mudanças sem hesitação, à medida que a localidade deixe de oferecer vantagens para seu próprio êxito de competitividade (SANTOS; SILVEIRA, 2006). Tal fenômeno parece ter se manifestado na região contemplada na pesquisa, como se depreende no fragmento:

[...] a maioria era de Curitiba [...] a pessoa perdia o emprego lá e não estava conseguindo arrumar alguma coisa, conseguia uma vaga aqui embaixo, aí de repente lá em Curitiba apareceu uma vaga, automaticamente eu pedia as contas aqui e ia pra lá, então tinha muito disso [...] por isso o pessoal que trabalha em obra igual peão de obra, se você pegar a carteira de um peão de obra, assim mais de idade, que trabalhou muito, você vai ver os registros aí, vai ser registro de dois, três meses, poucos vai ter registro de um ano, quatro anos, cinco, [...] muitas vezes, a obra por si só já é uma obra grande, 6 meses, dependendo da construtora vai chegar no fim e ela vai dispensar todo mundo [...]. (INF. 5, 2017).

As dificuldades de adaptação referidas explicam a alta rotatividade dos trabalhadores nas obras, o que presumivelmente implicava custos trabalhistas mais elevados para as construtoras, considerando as despesas com contratação, eventuais treinamentos e dispensa desses funcionários. Em que pesem tais condições, o corpus das entrevistas permite a inferência de que havia uma marcada predileção das empresas pela contratação de pessoas de fora da região litorânea.

[...] vinham quase todos de fora porque eles [referindo-se aos empregadores] criticavam muito o pessoal daqui e que os nativos mesmo eram complicados, inclusive até nos dias atuais eu observo que é meio complicadinho mesmo lidar com as pessoas [...]. (INF. 1, 2017).

[...] dos nativos daqui eles falavam muito, tipo assim, o cara combinou começa a trabalhar e daqui a pouco não quer nada com nada, porque parece que eles preferem ir ali nas pedras arrancar [...] siri, mexilhão algo assim... que eles preferem fazer mais esse negócio assim que tem um dinheiro mais fácil, por exemplo o principal deles é o negócio de vender coco, essas coisas, [...] inclusive um dos rapazes que eu morei na casa dele e eu trabalhava para ele, então ele saía tipo 9 horas da manhã para a praia vender coco, lá pelas 3h, 4h da tarde já estava retornando, então ele conseguia dinheiro para comprar o material, pagar eu para o trabalho, eu começava 7h da manhã, 1h de almoço e ia até 6h, 7h da noite, então ele com esse período curto, então as pessoas focavam muito nisso, nesse dinheiro fácil. Agora, uma coisa que eu achava neste caso, deste rapaz aí é que tem gente que ganha dinheiro fácil, mas se não souber controlar o dinheiro, saber onde investe, as coisas que vai fazer, o dinheiro some assim. (INF. 1, 2017).

A preferência era por pessoas de fora, porque na época o pessoal daqui não tinha tradição de trabalhar assim, cumprir o horário, porque aqui eram mais pescadores assim, então esse pessoal não tinha o hábito de cumprir horário, aquele rigor, né, de cumprir horário. Então eles evitavam contratar o pessoal daqui, por isso, porque o pessoal não gostava de cumprir o horário, não tinha assim aquela disciplina, né, que exige numa construtora, então eles davam preferência pro pessoal de fora pra fazer o serviço. O pessoal daqui mesmo era pouquíssimo que trabalhavam. (INF. 4, 2017).

Tinha bastante gente de fora, contando na [menciona a empreiteira] éramos em 425, quase tudo de fora [...] eles falavam que gostavam de contratar gente de fora, do interior, que diz, que pessoa de fora era trabalhador, gostavam de contratar gente de fora, quando chegava era mais fácil para pegar serviço, davam bastante serviço, era muito bom, agora que deu uma parada. (INF. 2, 2017).

Os fragmentos revelam certo grau de preconceito nas políticas (ainda que tácitas) de contratação de mão de obra em relação aos trabalhadores locais. Em certa medida, os informantes da pesquisa reproduzem a narrativa de justificação dessas práticas ao associar características do modus vivendi e do universo cultural dos nativos do litoral com as dificuldades de resiliência às distintas condições de trabalho no setor da construção civil. Em outros termos, na perspectiva das empreiteiras, o morador do litoral estaria mais familiarizado aos ciclos naturais da atividade de pesca, pequena agricultura e extrativismo e, assim, seria mais refratário ao cumprimento de horários e submissão à hierarquia funcional.

Por outro lado, os depoimentos também revelam que a população nativa parece ter aproveitado algumas das oportunidades de ocupação advindas do uso turístico de seu território, notadamente aquelas ligadas ao comércio sazonal de produtos na orla. Ainda assim, os sujeitos da pesquisa acentuam, como traço de distintividade em relação aos locais, uma pretensa maior disposição para o trabalho e disciplina financeira.

3.3 Atrás do tapume: ambiente de trabalho, invisibilidade e segregação

As duras condições de trabalho e a própria adaptação a um novo ambiente e estilo de vida a que foram submetidos os trabalhadores, em especial o “oreia seca”, impeliam-lhes a desenvolver estratégias para facilitar o convívio e tornar a extenuante rotina mais palatável. Na relação de trabalho no canteiro de obras, apelidos e rituais de iniciação eram usuais e utilizados como forma de entrosamento das equipes e descontração do ambiente de trabalho, animando o cotidiano e aproximando os colegas. Os Informantes 9, 1 e 8 exemplificam alguns desses rituais:

[...] os novatos é que nem na faculdade, não tem o trote lá?! É mais ou menos igual [...] principalmente para as pessoas que vinha do síto, que não entendiam de nada, faziam as pessoas ir buscar ferramentas que não existe, tipo assim, o cara está quebrando uma viga, o cara mandava buscar um ponteiro de borracha [...]. (INF. 9, 2017).

[...] a gente sempre gostava de estar filando o cafezinho um do outro [...] e às vezes chegava na mochila [...] para filar um cafezinho [...] e tinha chá, e certa vez eu comecei a falar que chá não era lá muito bom que não sei o que, que broxava [risos] e daí ele ficou muito loco né, “claro que não, porque não sei o quê”, daí eu peguei e falei “mas rapaz eu estou falando isso para você porque aconteceu comigo [risos]) [...] fiz bastante chá tomei e daí gostei [...] não deu outra [...] daí eu observei que no dia seguinte deu certo, cheguei na garrafinha que nunca se achava café na garrafa, era sempre chá, e no dia seguinte fui lá tomar um cafezinho e para minha surpresa tinha café [...]. (INF. 1, 2017).

[...] você tem que começar devagar para ir pegando o jeito da pessoa, tem umas que não dá para você brincar, agora aquele que entra na brincadeira, aí é gostoso, daí você trabalha dando risada o dia inteiro, trabalhar não é muito bom e trabalhar com a cara fechada é pior ainda. (INF. 8, 2017).

As relações entre os colegas de obras eram sadias, na perspectiva dos entrevistados, e com o tempo criaram fraternos laços de amizade e solidariedade, como pode ser observado no depoimento do Informante 3 a respeito da ajuda que recebeu dos amigos quando sofreu um acidente de trabalho: “Amigos mesmo de tirar a camisa mesmo, na época que eu me acidentei, né, fiquei um período encostado, esses amigos posso dizer que tiraram a camisa para mim” . Nesse mesmo sentido, o Informante 5 complementa:

[...] o que um colega de obra puder fazer pelo outro, não vou dizer tudo, não vou dizer 100%, mas faz, ajuda, sim, com certeza [...] tem que ser amigo mesmo, ué, e na época então que nós estamos falando, tem que ser mais ainda [...] foi uma coisa que deixou marcado, uma coisa que não esqueço até hoje [...] todos que estavam no alojamento já eram amigos [...] então aí ficou uma lição que não é porque é peão que não liga um para o outro, ah liga, sim, liga. (INF. 5, 2017).

A solidariedade referida pelos informantes encontra paralelo no acolhimento descrito pelo intelectual argelino radicado na França, Abdelmalek Sayad (1998), que descreve o contexto da recepção de imigrantes oriundos da Cabília (região montanhosa situada no Norte da Argélia), que se fixam nos arredores de Paris e geralmente são acolhidos por parentes e amigos conterrâneos que já haviam migrado em momento anterior e criam uma espécie de rede de proteção mútua.

Algumas dessas amizades perduraram até o período de realização das entrevistas, como salienta o Informante 1: “[...] até recente encontrei o fiscal nosso da época e na hora que ele me viu não sei, é aquela amizade bem gostosa, né, então [...] você acaba fechando amizade boa assim [...]”.

Além das atividades de descontração realizadas no canteiro de obras, os trabalhadores se divertiam de diversas formas fora do expediente de trabalho, tanto nos alojamentos quanto na praia e em outros lugares da cidade, algumas delas ilustradas pelo Informante 5:

[...] lá no alojamento jogava carteado, primeiro a gente jogava bola na areia saindo daqui 5h30 da tarde era sagrado. [...] por incrível que pareça, na época tinha um cineminha aqui em Matinhos, quem gostava dos bailões, existia os bailões também, né […].

Percebe-se então que o ambiente de trabalho e o local de moradia afirmavam-se como microcosmos e microterritórios, nos termos apresentados por Thomson (2002), ambos conformavam núcleo de pertencimento inicial, base para a ampliação gradativa de territorialidades e estabelecimento na cidade e região.

Sobre as relações desses trabalhadores com o turismo no município, alguns aspectos foram ponderados. As férias coletivas eram de 22 de dezembro a 15 de janeiro, coincidindo com a alta temporada turística no município:

O cara já desce de Curitiba para ficar sossegado, quer descer para descansar, tem um apartamento aqui, ele não quer barulho, então já é uma norma que eles criaram, e eu acho muito válido isso daí, eu também, se tivesse num canto para mim descansar, eu não ia ficar contente com alguém batendo com marreta ou com martelete do lado. (INF. 8, 2017).

[...] perto de Natal e Ano Novo, geralmente dava aquela semana ali, tinha gente que já tinha férias, direito a férias e outra, raramente ninguém ia ficar no alojamento [...]. (INF. 5, 2017).

Como é possível depreender a partir dos fragmentos transcritos, há uma estreita conexão entre a atividade da construção civil e o turismo, que não se reflete apenas na geração de riqueza decorrente da comercialização dos imóveis edificados, mas também é observável nos fluxos e nas rotinas dos canteiros de obras, os quais, tanto quanto possível, estabeleciam uma sazonalidade invertida em relação à chamada alta temporada turística, com o objetivo de garantir o sossego e confortável fruição da estada na praia pelos visitantes.

Mesmo nas ocasiões em que a presença de turistas e trabalhadores da construção civil era simultânea, os contatos entre eles eram raros, sendo que estes, de certa forma, estavam invisibilizados no cenário da cidade, como sugere o Informante 5: “[...] tinha um baita tapume que separava a cambada dos peões [...] o que acontecia de temporada era do tapume pra fora, dentro do canteiro ali não mudava nada” . Nesse sentido, o Informante 3 complementa: “[...] cada um se colocava em seu lugar, não se misturava assim [...]”.

A escassez das interações aparentemente não se explica apenas pela barreira física do tapume referido pelos entrevistados, mas parece se somar a um obstáculo de natureza psicológica, decorrente da organização da sociedade, que os trabalhadores reconheciam no tecido social e impunham a si próprios ao aceitar um lugar ou estatuto distinto daquele reservado ao turista.

Essas características podem ser exemplificadas por meio da análise de Goffman (1985) sobre as regiões de “fachada” e de “fundo”, aquelas divididas por barreiras à percepção que provocam distâncias sociais nos territórios. No caso pesquisado, a região de “fachada” seria o calçadão, espaço destinado à circulação e convivência dos turistas – onde ocorre a representação – e a região de “fundo”, o canteiro de obras – onde ocorre o trabalho, a produção para a manutenção da fachada.

Uma das formas para romper esse isolamento e estabelecer contato mencionadas pelos sujeitos da pesquisa, todavia, não se revelou estratégia eficaz, pois acontecia de maneira pouco amistosa quando os trabalhadores interpelavam as mulheres que passavam em frente às construções, revelando características do machismo presente nos canteiros de obras, como de resto em toda a sociedade, externalizadas por meio de assédios morais e psicológicos, como comenta o Informante 1: “[...] a peãozada não perdoa mesmo, passando uma menina bonita lá eles fazem ‘fiu-fiu’”. Os Informantes 4 e 5 complementam:

[...] peão de obra sabe como é né, passou mulher bonita na rua [...] agora imagina mulher de biquíni em pleno verão, passava as meninas de biquíni aqui, os caras começavam a assoviar [...] teve denúncia na delegacia, a polícia veio aqui, reuniu todo mundo e a polícia falou com o pessoal responsável [...].

[...] hoje continua a mesma coisa, o peão de 30 anos atrás e o de hoje não mudou muita coisa, mexe, mexe, sim, principalmente na temporada.

A natureza dos fragmentos transcritos sugere que, a um só tempo, os sujeitos de pesquisa são invisibilizados e até segregados do convívio social, mas reproduzem práticas culturais também entendidas como socialmente reprováveis, no que tange à questão de gênero.

3.4 Permanência, novas posições sociais e a emergência do lugar

Apesar das adversidades, os entrevistados afirmaram satisfação com suas escolhas e transpareceram um certo orgulho em terem participado efetivamente da formação socioespacial do município, como destaca o Informante 1: “[...] na obra, minha vida mudou, aprendi muita coisa que não sabia [...] melhorei chegando aqui no litoral [...] a pessoa que chegar aqui hoje e tiver o pensamento que quer vencer na vida, aqui é o lugar [...] tudo aqui é favorável [...]”. O Informante 7 acrescenta: “Ah eu me sinto parte da cidade, tanto que eu brigo pelos direitos dessa cidade [...]”. O Informante 5 complementa: “[...] eu digo assim, que eu não sei se eu sou daqui da cidade, ou se a cidade é minha, nós nos fundimos um ao outro”.

O conceito de lugar envolve a experiência, a percepção e os valores, não podendo ser entendido sem que haja vivência, pois “morar” carrega maior espessura de significado que simplesmente “habitar” em um determinado espaço, pois se criam centros dos valores e sentidos no processo de adaptação ao ritmo da natureza circundante. Esses espaços tornam-se familiares e configuram-se como lugares a partir do momento que as experiências agregam valores e significados pessoais.

A relação de pertencimento adquirida por uma pessoa a uma localidade não surge de encontros furtivos e casuais, formam-se no cotidiano dos indivíduos que compartilham de costumes semelhantes e entendem e percebem o espaço de forma similar. Esse elo afetivo entre os indivíduos e o ambiente físico instaurado no decorrer das experiências de coexistência dá origem ao conceito de “topofilia” (TUAN, 1983).

Os sujeitos da pesquisa permaneceram no município após o término de seus contratos de trabalho e ascenderam profissionalmente atuando na construção civil como proprietários de empreiteiras e prestadoras de serviços de manutenção predial. Outros atuam na condição de zeladores em edifícios de segundas residências, em que o tapume social que existia na época de oreia seca foi transposto, e o contato com turistas tornou-se mais amistoso, devido às relações do ofício, em que os zeladores são normalmente os primeiros contactados na recepção, bem como nas demais demandas relacionadas ao condomínio.

Suas vinculações aos condomínios que auxiliaram a construir são convenientes e favorecem ao mister da manutenção desses, pois agregaram um conhecimento histórico e estrutural da construção civil, e, nesse acumulado de vivências, o apreço e o orgulho do trabalho realizado restaram evidentes na consecução desta investigação, especialmente em momentos em que os sujeitos da pesquisa demonstravam grande familiaridade com as características construtivas, denominações e outros aspectos de diferentes edifícios da cidade-balneário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que os processos de urbanização e globalização entrelacem os lugares homogeneizando os aspectos espaciais, as explicações tornam-se reducionistas quando ignoram as formas identitárias, mantidas nos interstícios das relações humanas que envolvem o território.

A interação entre pessoas, empresas, culturas, fluxos de informações e capitais vêm permeando o tecido social e os lugares, dando liga ao que chamamos hoje de mundo globalizado, que estende em suas dinâmicas imposições físicas e materiais como também cognitivas e sociais.

Ainda que a consecução da pesquisa tenha encontrado alguns limites, tais como a escassez de literatura e registros formais acerca do objeto de estudo no recorte espacial contemplado, entende-se que os objetivos foram alcançados, especialmente pela espessura de significado que se depreende no corpus dos depoimentos colhidos.

Nesse sentido, os trabalhadores entrevistados verbalizam de forma marcante a ruptura paradigmática e transformação em suas vidas a partir da migração para a cidade balneária e sua iniciação na construção civil, relacionando o desenvolvimento da cidade com suas próprias ascensões profissionais e sociais, como fenômenos concomitantes e imbricados.

A adaptação ao novo contexto revelou-se penosa, mas foi mediada por estratégias de ajuda mútua e solidariedade social, assim como por práticas de interação que proporcionaram um ambiente amistoso entre os trabalhadores, expressas em rituais de iniciação, atividades de lazer e convívio no cotidiano.

Assim, o universo de vida dos sujeitos de pesquisa ultrapassa os limites da obra e das rotinas laborais e compõe um contributo à dinâmica da cultura e identidade da cidade-balneário, de cujo desenvolvimento foram protagonistas, ainda que paradoxalmente invisibilizados.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  29 Ago 2022
• Data do Fascículo
  Apr-Jun 2022

Histórico

• Recebido
  20 Mar 2020
• Revisado
  26 Fev 2021
• Aceito
  20 Mar 2021