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Plantas medicinais em quintais periurbanos: espaços de valorização da biodiversidade em São Miguel do Guamá, Pará

Medicinal plants in periurban backyards: spaces for enhancing biodiversity in São Miguel do Guamá, Pará

Plantas medicinales en patios periurbanos: espacios para mejorar la biodiversidad en São Miguel do Guamá, Pará

Resumo

Mesmo com o avanço crescente nos estudos etnobotânicos, ainda é incipiente a quantidade de dados que inventariam os usos e saberes associados à biodiversidade das plantas medicinais existentes em quintais urbanos e periurbanos da região amazônica. No presente artigo, objetivou-se realizar estudo das plantas medicinais em quintais rurais no município de São Miguel do Guamá, Pará, valorizando os saberes tradicionais e contribuindo para o conhecimento da biodiversidade local. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 23 moradores, selecionados por amostragem não probabilística. Foram calculados o índice de importância (IVs) e a concordância quanto aos usos principais (CUP). Houve registro de 80 receitas medicinais, a partir do uso de 65 espécies. As famílias mais representativas foram Asteraceae, Euphorbiaceae e Lamiaceae. O índice de valor de importância foi atribuído a Melissa officinalis L. e à concordância de usos principais de Alternanthera sp., Melissa officinalis L., Plectranthus neochilus Schltr e Chenopodium ambrosioides L. Os maiores valores de concordância quanto aos usos principais corrigidos (CUPc) foram de Melissa officinalis L., Cymbopogon citratus (DC.) Stapf. e Alternanthera sp. Gripe, febre e diarreia foram os problemas de saúde mais prevalentes. A comunidade preserva costumes da medicina tradicional em atenção à saúde, e isso traduz-se no modo de vida dessas pessoas e na intensa circulação de plantas medicinais nos quintais.

Palavras-chave
Amazônia; comunidades; etnobotânica; saberes tradicionais

Abstract

Even with the growing advance in ethnobotanical studies, the amount of data that inventory the uses and knowledge associated with the biodiversity of medicinal plants existing in urban and periurban backyards in the Amazon region is still incipient. This article aimed to carry out a study of medicinal plants in rural backyards in the municipality of São Miguel do Guamá, Pará, valuing traditional knowledge and contributing to local biodiversity. Semi-structured interviews were carried out with 23 residents, selected by non-probabilistic sampling. The importance index (IVs) and the agreement on the main uses (CUP) were calculated. There were records of 80 medicinal recipes, from the use of 65 species. The most representative families were Asteraceae, Euphorbiaceae, and Lamiaceae. The importance value index was attributed to Melissa officinalis L. and to the agreement of main uses of Alternanthera sp., Melissa officinalis L., Plectranthus neochilus Schltr, and Chenopodium ambrosioides L. The highest values of agreement regarding corrected main uses (CUPc) were from Melissa officinalis L., Cymbopogon citratus (DC.) Stapf., and Alternanthera sp. Flu, fever, and diarrhea were the most prevalent health problems. The community preserves traditional medicine customs in health care and this translates into the way of life of these people and the intense circulation of medicinal plants in the backyards.

Keywords
Amazon; communities; ethnobotany; traditional knowledge

Resumen

Incluso con el creciente avance de los estudios etnobotánicos, la cantidad de datos que hacen un inventario de los usos y conocimientos asociados a la biodiversidad de las plantas medicinales existentes en los patios traseros urbanos y periurbanos de la región amazónica es aún incipiente. Este estudio tuvo como objetivo realizar un estudio de plantas medicinales en patios rurales en el municipio de São Miguel do Guamá, Pará, valorando los conocimientos tradicionales y contribuyendo a la biodiversidad local. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a 23 residentes, seleccionados mediante muestreo no probabilístico.

Palabras clave
Amazonia; comunidades; etnobotánica; conocimientos tradicionales

1 INTRODUÇÃO

Os quintais são espaços que compreendem a extensão da área da casa onde se cultivam variedades de espécies para autoconsumo e venda como produto alimentício, medicinal, místico, ornamental, dentre outros, que refletem o modo de vida das famílias e as tradições locais (RIBEIRO; GUARIM NETO, 2016RIBEIRO, Rafaela; GUARIM NETO, Germano. O universo das espécies vegetais da comunidade ribeirinha de passagem da conceição, várzea grande, MT, Brasil. Boletim do Grupo de Pesquisa da Flora, Vegetação e Etnobotânica, Várzea Grande, v. 1, n. 8, p.1–16, 2016.). Esses espaços são marcantes na relação ser humano x vegetal (GONÇALVES; LUCAS, 2017GONÇAVES, Janaína; LUCAS, Flávia Cristina. Agrobiodiversidade e etnoconhecimento em quintais de Abaetetuba, Pará, Brasil. Revista Brasileira de Biociências, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 119–34, 2017.) e destacam-se tanto em áreas urbanas como rurais, sendo sistemas adaptados à sociedade moderna, unificando coleta e acesso aos recursos vegetais, além de aproveitamento como alternativa terapêutica (MOURA et al., 2016MOURA, Patricia; LUCAS, Flávia Cristina; TAVARES-MARTINS, Ana Cláudia; LOBATO, Gerciene; GURGEL, Ely Simone. Etnobotânica de chás terapêuticos em Rio Urubueua de Fátima, Abaetetuba – Pará, Brasil. Biotemas, Santa Catarina, v. 29, n. 2, p. 77–88, 29 jul. 2016.).

Tão antigo quanto a própria espécie humana, o conhecimento do potencial curativo das plantas é resultado de uma acumulação de saberes inserido em um ambiente sociocultural (GOMES et al., 2017GOMES, Gustavo; MEDEIROS, Carlos Alberto; GOMES, João Carlos; BARBIERI, Rosa. A crise paradigmática nas ciências de identificação de plantas e a valorização da etnobotânica. Revista Agrogeoambiental, Pouso Alegre, v. 9, n. 1, mar. 2017.). Tais conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito do mundo vegetal, envolvendo a forma de classificar e usar as plantas e suas inter-relações, constitui a ciência Etnobotânica (ALBUQUERQUE; HANAZAKI, 2006ALBUQUERQUE, Ulysses; HANAZAKI, Natália. As pesquisas etnodirigidos na descoberta de novos fármacos de interesse médico e farmacêutico: fragilidades e perspectivas. Revista Brasileira de Farmacognosia, Curitiba, v. 16, p. 678–89, 2006.). Nesse sentido, os estudos etnobotânicos interdisciplinares são promissores na geração de ações e subsídios para o desenvolvimento local de comunidades tradicionais, bem como o incremento dos acervos que registram estas informações (ROCHA; BOSCOLO; FERNANDES, 2015ROCHA, Joyce; BOSCOLO, Odara; FERNANDES, Lúcia Regina. Etnobotânica: um instrumento para valorização e identificação de potenciais de proteção do conhecimento tradicional. Interações, Campo Grande, v. 16, n. 1, p. 67–74, 2015.).

As coleções de plantas medicinais contidas nos quintais são mantedoras de biodiversidade, que, somada à riqueza étnica das populações tradicionais indígenas, quilombolas, ribeirinhas e atores da agricultura familiar, ressalta suas potencialidades para o tratamento de diversas patologias (MAIA, 2017MAIA, Sebastião. Plantas medicinais encontradas nos quintais urbanos de Ponta Porã região de fronteira. Caderno Magsul de Ciências Biológicas, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, p. 24–7, 2017.). Na Amazônia paraense, uma série de estudos atestaram o valor socioeconômico e biocultural dos quintais (COELHO et al., 2016COELHO, Maria de Fatima; LEAL, Caio César; OLIVEIRA, Fabrícia; NOGUEIRA, Narjara Walessa; FREITAS, Rômulo Magno. Levantamento etnobotânico das espécies vegetais em quintais de bairro na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte. Revista Verde de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, Pombal, v. 11, n. 4, p. 154–62, 2016.; GOIS et al., 2016GOIS, Maria Antônia; LUCAS, Flávia Cristina; COSTA, Jéssica Caroline; MOURA, Patrícia; LOBATO, Gerciene. Etnobotânica de espécies vegetais medicinais no tratamento de transtornos do sistema gastrointestinal. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, Botucatu, v. 18, n. 2, p. 547–57, 2016.; SILVA; OLIVEIRA, 2017SILVA, Thiago Freitas; DE OLIVEIRA, Alaíde Braga. Plantas leishmanicidas da Amazônia Brasileira uma revisão. Revista Fitos Eletrônica, Jacarepaguá, v. 10, n. 3, p. 339–63, 2017.).

Embora o uso de fármacos seja a principal via para a cura de enfermidades, a Organização Mundial da Saúde (OMS) garante que 80% da população de países em desenvolvimento depende da medicina tradicional e 85% empregam plantas medicinais nos cuidados básicos à saúde, ressaltando sua importância para a humanidade. Nessas circunstâncias, os dados obtidos com espécimes vegetais, cujos princípios ativos já foram validados por povos tradicionais, agregam informações para aplicação em pesquisas farmacológicas (MOURA et al., 2016MOURA, Patricia; LUCAS, Flávia Cristina; TAVARES-MARTINS, Ana Cláudia; LOBATO, Gerciene; GURGEL, Ely Simone. Etnobotânica de chás terapêuticos em Rio Urubueua de Fátima, Abaetetuba – Pará, Brasil. Biotemas, Santa Catarina, v. 29, n. 2, p. 77–88, 29 jul. 2016.). Casos como o da aspirina, que alivia febres e dores de cabeça, têm em seu princípio ativo o ácido salicílico, encontrado na casca do salgueiro (Salix alba L.) (MAIA, 2017MAIA, Sebastião. Plantas medicinais encontradas nos quintais urbanos de Ponta Porã região de fronteira. Caderno Magsul de Ciências Biológicas, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, p. 24–7, 2017.); e a arruda (Ruta graveolens L.), erva bastante conhecida na medicina natural, seja por comprovações científicas, seja por saber popular, atua no controle da queda de cabelo e dos problemas com asma brônquica (CARMO et al., 2015CARMO, Taiane; LUCAS, Flávia Cristina; LOBATO, Gerciene; GURGEL, Ely Simone. Plantas medicinais e ritualísticas comercializadas na feira da 25 de setembro, Belém, Pará. Enciclopédia Biosfera, Goiânia, v. 11 n. 21, p. 3440–60, 2015.).

Os índios Tupis foram os primeiros grupos étnicos a habitar a área que hoje consiste no município de São Miguel do Guamá. Com a chegada dos portugueses, por meio das grandes navegações ao longo do rio Guamá, no século XVIII, a região passou a receber frequentes visitas eclesiásticas, dando início a um processo de miscigenação, por intermédio de inter-relações de povos de origem indígena, quilombola, portuguesa e judaica (INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL E DA BIODIVERSIDADE [IDEFLOR-BIO], 2018INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL E DA BIODIVERSIDADE [IDEFLOR-BIO]. Gestão Ambiental e Territorial da Terra Indígena Alto Rio Guamá: diagnóstico etnoambiental e etnozoneamento. Belém: Ideflor-Bio, 2018.). Essas trocas culturais deram origem a uma diversidade de povos possuidores de um extenso entendimento etnofarmacológico, evidente até os dias atuais. Nessa perspectiva, os Remanescentes do Quilombo do Canta Galo, situado na zona rural de São Miguel do Guamá, PA, representam uma das mais antigas comunidades que colonizaram o norte do Brasil (SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2016SÃO MIGUEL DO GUAMÁ (Cidade). Secretaria de Agricultura. Relatório do diagnóstico da realidade do município de São Miguel do Guamá/PA. São Miguel do Guamá, 2016. Disponível em: http://www.saomigueldoguama.pa.gov.br/cidade/. Acesso em: 24 set. 2017.
http://www.saomigueldoguama.pa.gov.br/ci...
).

Em face da relevância do tema, surge a necessidade de registrar plantas medicinais que são frequentemente empregadas nas terapias tradicionais da Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo. Portanto, esta pesquisa teve como objetivo realizar um estudo etnobotânico das plantas medicinais de quintais rurais no município de São Miguel do Guamá, Pará, valorizando os saberes tradicionais e contribuindo para o conhecimento da biodiversidade local. As perguntas norteadoras do trabalho foram: quais são as plantas medicinais mais importantes nos quintais dessa comunidade? Quais são as receitas que atendem as enfermidades mais frequentes e como são preparadas?

2 MATERIAL E MÉTODOS

2.1 Seleção e caracterização da área de estudo

O município de São Miguel do Guamá, PA, está posicionado na mesorregião do nordeste paraense, à margem direita do Rio Guamá, cortado pela Rodovia BR-010 Belém – Brasília (S 01º37’18” e W 47º 28’45’’), com uma distância de 150 km da capital do estado, Belém, e com uma população estimada em 57.364 habitantes. Destes, 19.683 vivem em área rural (SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2016SÃO MIGUEL DO GUAMÁ (Cidade). Secretaria de Agricultura. Relatório do diagnóstico da realidade do município de São Miguel do Guamá/PA. São Miguel do Guamá, 2016. Disponível em: http://www.saomigueldoguama.pa.gov.br/cidade/. Acesso em: 24 set. 2017.
http://www.saomigueldoguama.pa.gov.br/ci...
; IBGE, 2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pará São Miguel do Guamá. Portal do IBGE, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://cod.ibge.gov.br/4AO. Acesso em: 24 set. 2017.
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), onde estão incluídos os moradores da Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo. A Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo (S 01°34,575’ W 047° 52,780’) foi fundada em 1872 e representa uma das mais antigas regiões de colonização em todo o norte do Brasil (DINIZ, 2013DINIZ, Raimundo. Relatório histórico antropológico da comunidade quilombola de produtores rurais ribeirinhos do canta galo. São Miguel do Guamá: [s.n.], 2013.). Ela legitimada por meio do Instituto de Terras do Pará (ITERPA).

Figura 1
Localização da comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo, no município de São Miguel do Guamá, no estado do Pará

A comunidade foi selecionada por meio de uma visita-piloto ao município, a qual trouxe informações do histórico de uso e conservação da biodiversidade. Há proximidade com vegetação, como a presença de floresta secundária, que ainda abriga indivíduos arbóreos originais, desde que a comunidade se instalou na região, há mais de 100 anos. Esses critérios foram condicionantes para essa escolha do local e possibilitaram o início da coleta de dados nos quintais que circundam as casas.

Para discutir e esclarecer os objetivos da pesquisa, foi realizada uma reunião prévia com a presidente da Associação Quilombola dos Produtores Rurais e Ribeirinhos do Canta Galo, juntamente às famílias residentes no local, para apresentar o projeto aos moradores. Os participantes desse estudo foram escolhidos por amostragem não probabilística (ALBUQUERQUE; LUCENA; CUNHA, 2010ALBUQUERQUE, Ulysses; LUCENA, Reinaldo; CUNHA, Luiz (Org.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010.), fazendo parte somente aqueles que são especialistas no uso de plantas medicinais. Posteriormente, houve o consentimento de todos para o início do estudo, que culminou com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), elaborado de acordo com a Resolução 466/2012 (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2012CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS). Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Trata de pesquisas em seres humanos e atualiza a resolução 196. Brasília, DF, 2012. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html. Acesso em: 4 jan. 2021.
http://www.conselho.saude.gov.br/web_com...
).

2.2 Coleta de dados

A pesquisa de campo ocorreu no período de setembro de 2017 a outubro de 2017, com visitas semanais. Os entrevistados foram escolhidos intencionalmente pela técnica “bola de neve” (ALBUQUERQUE; LUCENA; CUNHA, 2010ALBUQUERQUE, Ulysses; LUCENA, Reinaldo; CUNHA, Luiz (Org.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010.), em que, a partir de um informante, são indicados outros com o mesmo perfil (especialista no uso de plantas medicinais). A unidade familiar foi considerada como informante da pesquisa, sendo o entrevistado uma pessoa titulada como representante da família, que estivesse presente no momento e com disponibilidade no primeiro contato estabelecido pelo entrevistador, atendendo as informações prestadas por outros indivíduos da família, caso julgassem necessário se pronunciar no momento do diálogo (SIVIERO et al., 2011SIVIERO, Amauri; DELUNARDO, Thiago Andrés; HAVERROTH, Moacir; OLIVEIRA, Luis Cláudio; MENDONÇA, Ângela Maria Silva. Cultivo de espécies alimentares em quintais urbanos de Rio Branco, Acre, Brasil. Acta Botanica Brasilica, Feira de Santana, v. 25, n. 3, p. 549–56, 2011.).

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, com perguntas feitas sobre a identificação do morador, caracterização socioambiental, demográfica, etnobotânica e etnofarmacológica. As visitas aos quintais foram acompanhadas pelo entrevistado, por meio de turnê guiada, em que se estabeleceu um diálogo sobre a composição de plantas medicinais no quintal e suas indicações, seguido por anotações em um diário de campo (ALBUQUERQUE; LUCENA; CUNHA, 2010ALBUQUERQUE, Ulysses; LUCENA, Reinaldo; CUNHA, Luiz (Org.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010.).

Devido à impossibilidade de coletar amostras botânicas, foi feito o registro fotográfico das espécies em campo seguido da indicação do nome popular (etnoespécie). A identificação botânica foi feita por comparação com outras bases de dados virtuais: Lista de Espécies da Flora do Brasil (2016)THE BRAZIL FLORA GROUP [BFG]. Reflora – plantas do Brasil: resgate histórico e herbário virtual para o conhecimento e conservação da flora brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2021. [Coleção Flora do Brasil 2020]. Disponível em: http://floradobrasil.jbrj.gov.br/. Acesso em: 14 dez. 2020.
http://floradobrasil.jbrj.gov.br/....
(http://www.floradobrasil.jbrj.gov.br), Missouri Botanical Garden (MOBOT) (http://www.tropicos.org), The Plant ListTHE PLANT LIST. A working list of all plant species, 2013. Disponível em: http://www.theplantlist.org/. Acesso em: 14 dez. 2017.
http://www.theplantlist.org/....
(http://www.theplantlist.org), New York Botanical GardenNEW YORK BOTANICAL GARDEN [NYBG]. Nova Iorque, 1891. Disponível em: https://www.nybg.org. Acesso em: 14 dez. 2017.
https://www.nybg.org....
(http://www.nybg.org) e SpeciesLink (http://www.splink.cria.org.br); e por especialistas do Herbário Profa. Dra. Marlene Freitas da Silva, da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

2.3 Procedimento de análise

A fim de avaliar o potencial terapêutico das plantas medicinais inventariadas, bem como mapear a origem dos saberes a elas associados, os usos mencionados para as espécies foram classificados em duas categorias: uso ético, quando apreendidos com pessoas de outros locais ou em outras fontes; e êmico, se denominados pela cultura local (BYG; BALSLEV, 2001BYG, Anja; BALSLEV, Henrik. Traditional knowledge of Dypsis fibrosa (Arecaceae) in eastern Madagascar. Economic Botany, California, v. 55, n. 2, p. 263–275, 2001.). Essa classificação auxilia no mapeamento do fluxo de conhecimento. Posteriormente, foi calculado o Valor de Importância (IVs), que analisou a proporção de informantes que citaram uma única espécie como a mais importante (SILVA; ALBUQUERQUE; NASCIMENTO, 2010SILVA, Atanazio; ALBUQUERQUE, Ulisses; NASCIMENTO, Viviane. Técnicas para análise de dados etnobiológicos. In: ALBUQUERQUE, Ulisses; LUCENA, Reinaldo; CUNHA, Luiz (Org.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010. p. 187–206.), sendo utilizada a seguinte fórmula:

IVs = nis n

Em que:

nis = número de informantes que consideram a espécies mais importante;

n = total de informantes.

Dessa maneira, pode-se aferir a preferência dos moradores por uma dada variedade e associá-la à indicação terapêutica e ao tratamento para uma determinada enfermidade, bem como há a possibilidade de esse valor estar intimamente associado a uma preferência simbólica e cultural. A fim de avaliar o potencial etnofarmacológico das espécies, calculou-se a porcentagem de concordância quanto aos usos principais (CUP) (AMOROZO; GÉLY, 1988AMOROZO, Maria Christina; GÉLY, Anne. Uso de plantas medicinais por caboclos do Baixo Amazonas. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, v. 4, n. 1, p. 47–131, 1988.), em que:

CUP = n . de informantes que citaram usos principais × 100 n . de informantes que referiram uso da espécie

O valor de CUP encontrado foi multiplicado por um fator de correção (FC), que corresponde ao número de informantes que mencionaram a espécie, dividido pelo número de informantes que mencionaram a espécie mais citada, em que:

FC = n . de informantes que citaram a espécie n . de informantes que referiram a espécie mais citada
CUPc = CUP × FC

Quanto maior o valor de CUPc, maior o grau de confiabilidade para uso medicinal de uma espécie para o tratamento de doença indicada, ou seja, indicam-se quais as espécies devem ter prioridade em estudos farmacológicos. Para analisar os sistemas corporais (doenças ou sintomas) com maior importância relativa dentro da comunidade, utilizou-se o Fator de Consenso do Informante (FCI) (TROTTER; LOGAN, 1986TROTTER, Robert; LOGAN, Michael. Informant consensus: a new approach for identifying potentially effective medicinal plants. In: ETKIN, Nina L. (Edit.). Plants in indigenous medicine and diet: biobehavioral approachs. New York: Redgrave Publishing C, 1986. p. 91–112.), com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (OMS, 2008ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE [OMS]. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10). 8. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 243 p.). Obteve-se o FCI por meio da fórmula:

FCI = nur nt nur 1

Em que:

FCI = fator de consenso do informante;

nur = número de citações de uso em cada sintoma ou doença;

nt = número de espécies usadas nessa categoria.

Os dados obtidos a partir das entrevistas semiestruturadas foram tabelados e submetidos a uma análise qualiquantitativa para a interpretação dos dados.

3 RESULTADOS

A comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo tem 105 famílias residentes em áreas de campesinato, das quais 52 são nativas da região, remanescentes de escravos que nasceram e cresceram no local e estão distribuídas de forma aleatória e independentes entre si. A amostra populacional deste trabalho foi de 23 participantes, do gênero masculino (17,39%), feminino (82,60%), com idade entre 30 e 86 anos. A faixa etária predominante foi de 30 a 40 anos, e o maior número de citações de espécies foi entre os interlocutores de 70 a 86 anos.

Do total de plantas inventariadas, foram listadas 65 espécies, para 34 famílias botânicas (Tabela 1). Lamiaceae Martinov. exibiu o maior número de espécies citadas (18,46%). A forma de vida herbácea predominou, com 33,85%; arbustiva, 27,69%; e arbórea, 29,23%, sendo cultivadas em baldes, latas ou diretamente no solo. Foram relatadas 80 receitas elaboradas para os medicamentos, citadas por 63,75% das pessoas. As receitas são preparadas de maneira simples, ou seja, empregando apenas uma espécie, e 36,25% são compostas com mais de uma espécie.

Tabela 1
Plantas medicinais citadas pelos moradores da Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo

As formas de preparo variaram entre banho, maceração, chá e garrafada. A folha é a parte mais empregada, que corresponde a 75,96%, seguida da casca, com 9,29% (Figura 2). Favão (Ocimum gratissimum) teve 12 citações (planta mais citada) para gripe, de um total de 183, correspondendo a 6,56%; outras indicações foram de arruda (Ruta graveolens), capim-santo (Cymbopogon citratus), cidreira (Melissa officinalis) e noni (Morinda citrifolia).

Figura 2
Porcentagem das partes das plantas medicinais mais utilizadas segundo o número de citações na Comunidade Ribeirinha do Canta Galo, município de São Miguel do Guamá, PA, Brasil.

O valor de importância (IVs) das plantas medicinais foi calculado com base nas plantas citadas como mais importantes, que totalizaram 14 espécies, das quais se encontrou o valor de 0,36 para cidreira, indicada principalmente como calmante, e 0,14 para amapá (Parahancornia amapa (H.) Ducke), procurada para sinusite, dor no estômago e asma. O maior índice de concordância de usos principais (CUP) foi atribuído a anador (Alternanthera sp.), cidreira, boldinho (Plectranthus neochilus) e mastruz (Chenopodium ambrosioides). Os maiores valores para a CUPc foram o de cidreira (41,66), capim-santo (16,66) e anador (16,65). O alto valor de CUP aponta alto grau de eficácia para o tratamento de uma doença, enquanto os valores baixos norteiam as possíveis potencialidades para o tratamento de doenças (t2).

Tabela 2 Porcentagem de concordância quanto ao uso principal e fator de consenso
Etnoespécie N. de citação Indicação Usos principais / N. de informantes CUP FC CUPc (%)
Amapá 2 Sinusite, dor no estômago, asma 2 100 0,16 16,66
Ameixeira 4 Diarreia 1 25 0,33 8,33
Anador 3 Dor no corpo, dor de cabeça 2 66,66 0,25 16,65
Babosa 2 Gastrite, anti-inflamatório, queda de cabelo, queimadura 1 50 0,16 8,33
Boldinho 3 Dor no ouvido, dor no estômago, cólica 1 33,33 0,25 8,33
Boldo 1 Dor de estômago 1 100 0,08 8,33
Capim-santo/Capim-marinho 9 Gripe, calmante 2 22,22 0,75 16,66
Cidreira 9 Calmante 5 55,55 0,75 41,66
Favacão 12 Gripe 1 8,33 1 8,33
Hortelã 2 Tosse 1 50 0,16 8,33
Hortelanzinho 6 Dor de barriga, dor de cabeça 1 16,66 0,5 8,33
Mastruz 3 Hematoma, verme, tosse, anemia 1 33,33 0,25 8,33
Pirarucu 5 Dor de estômago, anti-inflamatório 1 20 0,41 8,33
Pucá 1 Derrame 1 100 0,08 8,33
Concordância de usos principais (CUP), fator de consenso (FC), concordância de usos principais corrigidos (CUPc).
  • Fonte: : Elaborado pelo autor.
  • Do total de 38 sistemas corporais (sintomas ou doenças) listados na comunidade, 7,89% tiveram o maior número de citação, tendo como destaque: gripe, febre e diarreia (Figura 3).

    Figura 3
    Número de citação dos sistemas corporais mais frequentes nas famílias da Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo, município de São Miguel do Guamá, PA, Brasil.

    O fator de consenso do informante (FCI) indicou os maiores valores de concordância para a terapêutica dos sistemas corporais das seguintes enfermidades/espécies: dor de cabeça, arruda e mentinha (Mentha spicata L.), 11 citações; derrame, arruda e aguardente (Solidago chilensis Meyen), oito; e tosse, andiroba (Carapa guianensis Aublet) e mastruz, sete. Verifica-se que quanto maior a disparidade dos sistemas corporais em relação ao uso das espécies, maior será o valor de (FCI) (Tabela 3).

    Tabela 3
    Fator de consenso dos informantes entre os sintomas mais frequentes da comunidade e o número de espécies relacionadas

    Quando questionado aos moradores sobre o uso associado de medicamentos alopáticos e plantas medicinais, 82,61% afirmaram não realizar essa prática, e 17,39% afirmaram fazer uso frequente de plantas e medicamentos alopáticos. Na Tabela 4, estão descritas essas associações, podendo ter mais de uma planta relacionada a um tipo de medicamento para um determinado sintoma. Estes resultados evidenciaram baixo emprego de interações com medicamentos alopáticos.

    Tabela 4
    Interação de plantas medicinais com medicamentos alopáticos no tratamento de doenças na comunidade

    4 DISCUSSÃO

    O modo de vida dos moradores da comunidade está fortemente atrelado ao uso de plantas medicinais como primeiro recurso de tratamento para as doenças mais frequentes, e isso se deve ao vasto conhecimento etnobotânico, confirmado pelas 65 espécies que estão presentes na vida e memória de cura dos moradores. Este comportamento voltado para o cuidado da saúde em sistemas médicos tradicionais é influenciado por fatores culturais e pelas dificuldades socioeconômicas dos moradores, que têm seu acesso limitado a posto de saúde e hospital.

    As plantas foram encontradas próximas às casas dos moradores, nos quintais peridomiciliares. As mulheres constituem liderança de grande expressividade na comunidade, sendo habilidosas para o trabalho nos plantios, roçados, medicamentos tradicionais, além de rezadeiras, parteiras e curandeiras. Executam as tarefas dos plantios e roçados ao lado dos homens, conforme aprenderam com seus pais e avós. Os homens possuem informações mais direcionadas às espécies medicinais de caráter florestal, pois, no seu modo de vida, desenvolvem atividades voltadas para o extrativismo do açaí (Euterpe oleracea Mart.). A diferença de faixa etária e sexo entre os interlocutores concentra experiências particulares com as plantas que curam, uso da terra, extrativismo etc., demonstrando a importância de valorizá-las em suas especificidades (AMOROZO; GÉLY,1988AMOROZO, Maria Christina; GÉLY, Anne. Uso de plantas medicinais por caboclos do Baixo Amazonas. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, v. 4, n. 1, p. 47–131, 1988.).

    Asteraceae, Euphorbiaceae e Lamiaceae destacaram-se na pesquisa, bem como nos estudos de Silva, Oliveira e Abreu (2017)SILVA, Paulo Henrique; OLIVEIRA, Ykaro Richard; DE ABREU, Maria Carolina. Uma abordagem etnobotânica acerca das plantas úteis cultivadas em quintais em uma comunidade rural do semiárido piauiense, Nordeste do Brasil. Journal of Environmental Analysis and Progress, Recife, v. 2, n. 2, p. 144–59, 2017., em comunidade ribeirinha do Amazonas e quintais rurais do Piauí. A semelhança nos resultados se justifica por conta de as famílias apresentarem compostos bioativos que tendem a ser bem mais comuns nas farmacopeias populares.

    Dentre as Lamiaceae, o Boldo (Plectranthus barbatus Andrews) possui atividades farmacológicas como: anti-hipertensivos, inibição da agregação plaquetária, espasmolítica, cardiotônica, por meio do componente forskolina. A hortelã (Mentha arvensis L.) tem como principal componente o óleo essencial, rico em mentol, mentona e acetato de mentila, pulegona. É constituído por compostos fenólicos, tais como flavonoides, e tem um bom nível de evidências clínicas da ação de cápsulas entéricas de óleo de menta que aliviam os sintomas da síndrome do intestino irritável. As interações mais importantes referem-se ao óleo essencial, que pode ter propriedade ligante com proteínas, influenciando na ocorrência da resistência aos fármacos utilizados no tratamento do câncer (SALES JARDIM, 2016SALES JARDIM, Paloma Michelle (Org.). Plantas Medicinais e Fitoterápicos: guia rápido para a utilização de algumas espécies vegetais. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2016.).

    A concordância de uso das plantas com fins semelhantes compreende uma informação etnodirigida de suma importância em pesquisas farmacológicas, uma vez que muitas plantas utilizadas por diferentes comunidades tiveram seu princípio ativo comprovado (AMOROZO; GÉLY, 1988AMOROZO, Maria Christina; GÉLY, Anne. Uso de plantas medicinais por caboclos do Baixo Amazonas. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, v. 4, n. 1, p. 47–131, 1988.). Como o CUPc é um índice de fidelidade quanto ao uso principal, pode indicar quais as espécies devem ter prioridade e são mais promissoras para a realização de estudos relativos aos usos indicados pelos interlocutores. Além disso, aponta as utilizações mais populares e aceitas para uma espécie, garantindo a segurança e validade das indicações. Quanto mais elevados os valores do índice de CUPc for, mais significância é dada ao potencial fitoterápico, que funciona como uma triagem dentro de pesquisas farmacológicas (SILVA; PROENÇA, 2008SILVA, Cristiane; PROENÇA, Carolyn. Uso e disponibilidade de recursos medicinais no município de Ouro Verde de Goiás, GO, Brasil. Acta Botanica Brasilica, Feira de Santana, v. 22, n. 2, p. 481–492, 2008.).

    O chá de favacão (Ocimum gratissimum L.) foi um dos mais citados, sucedido por noni e arruda. Dessas espécies, arruda obteve maior valor de IVs e CUPc, destacando a importância desta espécie para a comunidade e demonstrando os efeitos de seus constituintes químicos com as respectivas atividades farmacológicas comprovadas cientificamente. De acordo com a farmacopeia brasileira (2010), tem indicações terapêuticas, como antiespasmódico, ansiolítico e sedativo leve, promovendo tais efeitos por meio dos componentes ricos em geranial, neral, citronelal, citral e glicosídeo de eugenila. Outro fator imprescindível na pesquisa é que as espécies mais citadas pelos moradores indicam o tratamento dos sintomas mais comuns e frequentes relatados, como a gripe (Ocimum gratissimum L.) e derrame (Ruta graveolens L.).

    Segundo Carniello et al. (2010)CARNIELLO, Maria Antonia; SILVA, Roberta; CRUZ, Maria Aparecida; GUARIM NETO, Germano. Quintais urbanos de Mirassol D’Oeste-MT, Brasil: uma abordagem etnobotânica. Acta Amazonica, Petrópolis, v. 40, n. 3. p. 451–70, 2010., a quantidade de espécies cultivadas depende do tamanho da planta e da área disponível para cultivo. O maior uso de ervas (herbáceas) em relação às demais plantas é evidenciado por estudos de Carmo et al. (2015)CARMO, Taiane; LUCAS, Flávia Cristina; LOBATO, Gerciene; GURGEL, Ely Simone. Plantas medicinais e ritualísticas comercializadas na feira da 25 de setembro, Belém, Pará. Enciclopédia Biosfera, Goiânia, v. 11 n. 21, p. 3440–60, 2015., sendo altamente conhecidas nos sistemas de cura populares. Sua predominância pode estar relacionada ao fato de serem facilmente cultivadas em quintais e por apresentarem metabólitos secundários de alta atividade biológica. Entretanto, a aplicação das ervas foi relativamente proporcional a outras variedades de espécies cultivadas (árvores e arbusto) na comunidade. Isso se dá ao fato de os moradores possuírem um ambiente propício para produção e a coleta de materiais.

    Os sistemas corporais mais amparados pelas espécies referem-se a transtornos do sistema digestório, seguido de cefaleia e acidentes vasculares, o que também foi percebido nos trabalhos de Gois et al. (2016)GOIS, Maria Antônia; LUCAS, Flávia Cristina; COSTA, Jéssica Caroline; MOURA, Patrícia; LOBATO, Gerciene. Etnobotânica de espécies vegetais medicinais no tratamento de transtornos do sistema gastrointestinal. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, Botucatu, v. 18, n. 2, p. 547–57, 2016. e Maia (2017)MAIA, Sebastião. Plantas medicinais encontradas nos quintais urbanos de Ponta Porã região de fronteira. Caderno Magsul de Ciências Biológicas, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, p. 24–7, 2017.. Esses sintomas manifestam-se e são uma realidade de quadros agudos e crônicos, em decorrência da inexistência de serviços de saneamento básico e saúde na comunidade, o que resulta no uso de plantas em primeira instância.

    Quanto às interações medicamentosas, é possível observar que, para os principais sintomas listados, estão as espécies medicinais e os alopáticos. Atitudes como automedicação e uso indevido de plantas medicinais, juntamente a remédios alopáticos sem orientação médica, podem elevar a incidência de efeitos adversos, apresentando riscos à saúde da população (VEIGA JUNIOR, 2008VEIGA JUNIOR, Valdir. Estudo do consumo de plantas medicinais na Região Centro-Norte do Estado do Rio de Janeiro: aceitação pelos profissionais de saúde e modo de uso pela população. Revista Brasileira de Farmacognosia, Manaus, v. 18, n. 2, p. 308–13, 2008.). Sales Jardim (2016)SALES JARDIM, Paloma Michelle (Org.). Plantas Medicinais e Fitoterápicos: guia rápido para a utilização de algumas espécies vegetais. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2016. ressalta que o uso de capim-santo, que, neste trabalho, foi indicado para dor de estômago, infecção urinária e verme, deve ser evitado junto a medicamentos que tenham efeito sedativo, visto que a presença do analgésico mirceno pode potencializar esse efeito.

    Determinados medicamentos alopáticos usados pelos moradores são mal administrados, como o paracetamol e diclofenaco sódicos, respectivamente relacionados pelos moradores aos transtornos do sistema digestivo e excretor (vômito e diarreia); além disso, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2018)AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA [ANVISA]. Medicamentos. Portal da Anvisa, Brasília, 2018. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/. Acesso em: 15 jan. 2018.
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    , esses não possuem tal efeito farmacológico. Em contraste, a maior parte dos fármacos citados tem seu uso correspondente com a etnoindicação, o que certifica comprovação da medicina tradicional para que se iniciem novas investigações farmacológicas da planta relacionada.

    5 CONCLUSÃO

    Os moradores da Comunidade Quilombola Ribeirinha do Canta Galo têm vasto conhecimento acerca das potencialidades curativas dos vegetais nativos e cultivados na região. O uso da farmacopeia popular no seio da comunidade é um reflexo da herança cultural, conservada por meio dos costumes e das tradições repassadas pela vivência e, na maioria das vezes, oralmente, além de enriquecida pelo intercâmbio cultural entre povos de origem quilombola, indígena e portuguesa, que viveram e ainda vivem às margens do rio Guamá. A pesquisa evidenciou grande número de táxons usados para o tratamento de doenças e sintomas que mais acometem a população. Estes relatos validaram as espécies empregadas ratificando o sucesso dos tratamentos, contudo, fazem-se necessários estudos etnofarmacológicos que complementem os resultados já existentes.

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2023
    • Data do Fascículo
      Apr-Jun 2023

    Histórico

    • Recebido
      27 Ago 2021
    • Aceito
      15 Mar 2023
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