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Acessibilidade Cultural Participativa: um modo de agir em desenvolvimento local participativo

Participatory Cultural Accessibility: a way of acting in participatory local development

Accesibilidad Cultural Participativa: una forma de actuar en el desarrollo local participativo

Resumo

A partir de uma pesquisa-ação em um território quilombola, apreendeu-se a Acessibilidade Cultural Participativa enquanto um modo de agir específico em desenvolvimento local, a fim de garantir a cidadania cultural de pessoas com deficiência em ambientes de produção cultural de base territorial-comunitária. A Acessibilidade Cultural Participativa considera a deficiência uma dimensão estética, que exige mudanças cognitivas sobre as leituras e intervenções nas realidades participativas do território.

Palavras-chave
acessibilidade cultural; comunidades; desenvolvimento local

Abstract

Through an action-research conducted in a quilombola territory, we learned about Participatory Cultural Accessibility as a specific way of acting in local development, in order to guarantee the cultural citizenship of people with disabilities in cultural-community-based environments of cultural production. Participatory Cultural Accessibility views disability as an aesthetic dimension, which requires cognitive changes in the readings and interventions in the participatory realities of the territory.

Keywords
cultural accessibility; communities; local development

Resumen

A partir de una investigación-acción en un territorio quilombola, se aprendió la Accesibilidad Cultural Participativa como una forma específica de actuar en el desarrollo local, con el fin de garantizar la ciudadanía cultural de las personas con discapacidad en entornos de producción cultural territorial-comunitaria. La Accesibilidad Cultural Participativa considera la discapacidad como una dimensión estética, que requiere cambios cognitivos en las lecturas e intervenciones en las realidades participativas del territorio.

Palabras clave
accesibilidad cultural; comunidades; desarrollo local

1 INTRODUÇÃO

Este artigo aborda a construção participativa de estratégias para a acessibilidade de pessoas com deficiência em contextos de arte e cultura de base comunitária e territorial. Para tanto, criou-se, em um Ponto de Cultura e Memória Quilombola, as condições para experimentar percursos e desvelar conhecimentos apreendidos, que sustentaram uma forma específica de agir, denominada por Correia (2019)CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. de “Acessibilidade Cultural Participativa”.

A denominação surge da problemática relacionada à insuficiência de modelos e instrumentos jurídico-institucionais que garantam as condições para coletivos culturais criarem e explorarem meios para a produção artístico-cultural, bem como democratizar a fruição e a real participação na vida social de pessoas com deficiência. Logo, o que se propõe como hipótese nesta pesquisa é que a Acessibilidade Cultural Participativa (CORREIA, 2019CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. ) pode ser uma mudança cognitiva para criar e implementar processos de construção estética da realidade no campo artístico-cultural comunitário e territorial alternativos aos instituídos pelo Estado.

Para Santini (2017)SANTINI, A. Cultura viva: políticas culturais no Brasil e na América Latina. 1. ed. Rio de Janeiro: ANF Produções, 2017., a produção artístico-cultural de base comunitária e territorial compreende os saberes e fazeres locais e populares, que expressam construções identitárias, memórias e tradições de um determinado povo. Por meio de oficinas, manifestações e eventos territoriais, tais práticas ampliam e fortalecem redes de conexão com a cidade, articulam e fomentam ativos locais, cooperam com a economia microterritorial, promovendo, assim, mudanças substanciais nas sociabilidades e no desenvolvimento local (BARBOSA; CALABRE, 2011BARBOSA, F.; CALABRE, L. Pontos de cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2011.).

Segundo Serpa (2007)SERPA, A. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007., o atual sistema neoliberalista, que transforma a vida social em relações baseadas em trocas econômicas, coopta o saber-fazer popular pela lógica da mercantilização da cultura. Isso expolia as singularidades estéticas por meio da desconexão pessoal do artista-fazedor cultural com a sua própria obra, servindo exclusivamente aos interesses do desenvolvimento economicista, especialmente no mercado cultural e turístico. Por isso, de acordo com Guelman, Amaral dos Santos e Gradella (2017)GUELMAN, L.; AMARAL DOS SANTOS, J.; GRADELLA, P. A. Prospecção e capacitação em territórios criativos: desenvolvimento de potenciais comunitários a partir das práticas culturais nos territórios Cariri (CE), Madureira, Quilombo Machadinha e Paraty (RJ). 1. ed. Niterói: CEART/Mundo das Ideias, 2017., as práticas artístico-culturais de base territorial-comunitária são tecidas por diferentes populações de maneira criativa e alternativa ao Estado e setor privado, a fim de não só preservar suas identidades, mas também acionar estratégias de resistência perante os processos de exclusão no mundo neoliberal.

Neste contexto, Correia (2019)CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. argumenta que pessoas com deficiência e/ou diversidade funcional, que compreendem, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (2012)INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA [IBGE]. Cartilha do Censo 2010: pessoas com deficiência. Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da pessoa com Deficiência (SNPD) / Coordenação-Geral do Sistema de Informações sobre Pessoas com Deficiência, 2012. Disponível em: https://inclusao.enap.gov.br/wp-content/uploads/2018/05/cartilha-censo-2010-pessoas-com-deficienciareduzido-original-eleitoral.pdf. Acesso em: 8 jan. 2023.
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, 23,9% da população brasileira, podem ser aquelas que mais vivenciam processos de exclusão e segregação socioterritorial nos processos de produção e fruição cultural. Isso porque, segundo o autor, a acessibilidade como direito e processo estético e cognitivo da realidade não é pauta presente nesse tipo de prática artístico-cultural.

A acessibilidade nas políticas culturais surge como pauta, segundo Dorneles e Salasar (2018)DORNELES, P. S.; SALASAR, D. N. Acessibilidade Cultural. Expressa Extensão, [s.l.], v. 23, n. 3, p. 5–16, 2018. , a partir da convergência dos efeitos do fortalecimento do movimento internacional das pessoas com deficiência e da ampliação das políticas culturais no Brasil, no começo de 2003. Antes e após este marco, outros instrumentos jurídico-institucionais foram criados e parcialmente implementados, instituindo um sistema de políticas públicas em acessibilidade no campo cultural brasileiro.

No ano de 2000, foi criada a Lei 10.098, que estabeleceu o cumprimento da acessibilidade em espaços públicos, mobiliário urbano, construções e edificações (BRASIL, 2000BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 25 set. 2020.
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). Em 2007, o Brasil se tornou signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, instituindo somente em 2009 o Decreto n. 6.949, que criou a emenda na Constituição Federal (CF). Esta emenda passou a garantir medidas para o planejamento e a implementação de ações visando à acessibilidade e aos demais direitos sociais das pessoas com deficiência (BRASIL, 2009).

No entanto, a expressão “Acessibilidade Cultural” foi proposta somente em 2008, durante a Oficina Nacional de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência − “Nada sobre Nós sem Nós”. Nesta oficina, foi apresentada aos gestores do Ministério da Cultura a possibilidade de transcender as relações assistencialistas de programas culturais para pessoas com deficiência, para além da ideia de gratuidade de ingressos e rampas em edifícios, e sim quanto à importância do protagonismo das políticas públicas de Estado para garantir a democratização da cultura. Assim, em 2010, foi criado o Plano Nacional de Cultura (PNC), Lei 12.343, que regulamentou o artigo 215 da CF sobre os direitos culturais e suas manifestações (BRASIL, 2010BRASIL. Lei n. 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura – PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm. Acesso em: 25 set. 2020.
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).

Em 2011, foi instituída a Portaria 123, do Ministério da Cultura, que estabelece a regulamentação de 53 metas do PNC. A meta 29 visa atender às demandas da Convenção Internacional, com o objetivo de atingir “100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência” (BRASIL, 2011, p. 17BRASIL. Ministério da Cultura. Portaria n. 123, de 13 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/33161568/dou-secao-1-14-12-2011-pg-12?ref=goto. Acessado em 25 set. 2020.
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). E, finalmente, em 2015, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência, n. 13.146, que visa garantir e assegurar os direitos sociais e fundamentais das pessoas com deficiência em diversos setores da vida social, conformando-se como uma política intersetorial (BRASIL, 2015BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 25 set. 2020.
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).

A noção de “Acessibilidade Cultural” também ganhou o interesse acadêmico. Em 2013, foi criado o primeiro curso de Especialização em Acessibilidade Cultural do país, ofertado pelo Departamento de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a liderança da terapeuta ocupacional e professora Dra. Patrícia Dorneles.

A especialização em Acessibilidade Cultural capacitou, até hoje, mais de 150 profissionais de diversos estados do país. Estes se tornaram multiplicadores em suas regiões e passaram a se envolver não somente na implementação de recursos e serviços de acessibilidade, mas também no debate de questões relativas aos seus fundamentos epistêmicos e das políticas culturais (DORNELES et al., 2018DORNELES, P. S.; CARVALHO, C. R. A.; SILVA, A. C. C.; MEFANO, V. Do direito cultural das pessoas com deficiência. Revista de Políticas Públicas, Pelotas, v. 22, n. 1, p. 137–54, 2018. ).

Ainda neste contexto, deve-se reconhecer que foi durante a gestão de Gilberto Gil, no Ministério da Cultura (2003-2008), que se estabeleceu uma política de valorização da arte e cultura de base territorial e comunitária, denominada Programa Cultura Viva. Este, ainda hoje, tem os Pontos e Pontões de Cultura como os seus principais equipamentos culturais, que valorizam a produção estética de coletivos em seus territórios (SANTINI, 2017SANTINI, A. Cultura viva: políticas culturais no Brasil e na América Latina. 1. ed. Rio de Janeiro: ANF Produções, 2017.). No entanto, as questões de acessibilidade neste programa estiveram mal definidas nos editais públicos e ainda superficialmente tratadas como “gratuidade de ingressos” (CORREIA, 2019CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. ).

De todo modo, a Acessibilidade Cultural é compreendida como um conceito para designar a relação entre os “meios de acessibilidade”, cultura e produção cultural para garantir o direito cultural das pessoas com deficiência, beneficiando todas as demais (SARRAF, 2018SARRAF, V. P. Acessibilidade cultural para pessoas com deficiência: benefícios para todos. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 6, p. 23–43, 2018. ). Para Dorneles e Salasar (2018, p. 7)DORNELES, P. S.; SALASAR, D. N. Acessibilidade Cultural. Expressa Extensão, [s.l.], v. 23, n. 3, p. 5–16, 2018. , esta compreensão advém da ideia de “culturas acessíveis”, como produção e apreensão do mundo por meio das relações de sociabilidade e fruição cultural multissensoriais. Trata-se, portanto, de uma posição estética de mundo, equiparada à democratização da cultura.

Destarte, este artigo tem por objetivo analisar a criação e implementação de estratégias acessíveis em um Ponto de Cultura e Memória Tradicional Quilombola, a partir dos conhecimentos apreendidos ao longo do processo.

2 MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa-ação com abordagem em desenvolvimento local. Este desenho compreende uma dupla função político-científica – responder às demandas da vida local de grupos sociais e comunidades e produzir conhecimentos que possibilitem a mudança de paradigmas, tanto para as ciências como para as comunidades envolvidas no território (DIONNE, 2007DIONNE, H. A pesquisa-ação para o desenvolvimento local. Brasília: Liber Livro, 2007. ).

Para tanto, a pesquisa foi conduzida junto a fazedores/as culturais da Comunidade Tradicional Quilombo do Grotão, localizada na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, entre julho de 2017 e fevereiro de 2020. Trata-se de um território de tradições afro-brasileiras ocupado pela família Bomfim desde 1920 (MONTEIRO, 2013MONTEIRO, G. F. F. As múltiplas geo-grafias quilombolas: pluriversalidade, re-significações identitárias e estratégias de resistência – o lócus da comunidade negra do Grotão. In: SEMINÁRIO NACIONAL ESPAÇOS COSTEIROS, 2., 2013, Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Anais [...].Salvador: Grupos Costeiros, 2013. p. 17.).

O Quilombo do Grotão é um território que participa, desde 2015, do Programa de Extensão “Saberes e Ocupações Tradicionais” do Departamento de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da UFRJ (COSTA; CORREIA; FARIA, 2015COSTA, S. L.; CORREIA, R. L.; FARIA, R. S. Saberes e ocupações tradicionais no Quilombo do Grotão: estratégias em desenvolvimento local participativo, inclusão produtiva e fortalecimento das identidades tradicionais: Rio de Janeiro: [s.n.], 2015.). Em março de 2016, como uma das ações do Programa de Extensão, foi criado o Ponto de Cultura Tradicional do Quilombo do Grotão, a partir do seu registro no mapa Cultura Viva, do então Ministério da Cultura. Em 2017, o Ponto foi contemplado por um edital municipal com financiamento para desenvolver ações culturais, tendo como um dos requisitos obrigatórios garantir a acessibilidade ao público com deficiência. Assim, foi proposta uma oficina de acessibilidade, com seis encontros, a fim de agregar pessoas para debater o tema e experimentar recursos e estratégias de acessibilidade, como Tecnologia Assistiva, legislações e Desenho Universal, voltados para a produção estético-cultural da memória quilombola de base comunitária e territorial.

Durante a realização da oficina de Acessibilidade Cultural, fez-se uma importante parceria com o Museu de Arqueologia de Itaipu (MAI) e outras instituições. Surgiu, então, a proposta de criar um Ponto de Memória, sob a perspectiva de um museu de território, segundo Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura e o Instituto Brasileiro de Museus (OIE-IBRAM, 2016ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS IBERO-AMERICANOS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS [OEI-IBRAM]. Pontos de Memória: metodologia e práticas em Museologia Social. Brasília: Phábrica, 2016.), e metodologias em desenvolvimento local participativo, considerando-se as memórias tradicionais que formavam o espaço social do quilombo.

Assim, desenhou-se a pesquisa-ação, considerando-se a demanda central de criar um Ponto de Cultura e Memória Acessível para preservar e difundir as memórias de resistência da comunidade negra quilombola. Desta forma, operou-se sob duas grandes etapas da pesquisa-ação: 1) a intervenção: construção do Ponto de Cultura e Memória; e 2) o conhecimento: o que se apreendeu ao longo do processo.

Para a primeira etapa, empregou-se a abordagem de terapia ocupacional de ensinagem em desenvolvimento local participativo (TO/EDLP) (CORREIA, 2018CORREIA, R. L. O alcance da terapia ocupacional no desenvolvimento local. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 26, n. 2, p. 443–62, 2018. ), que tem como objetivo o envolvimento de agentes de diversos segmentos sociais em projetos de vida coletiva para o enfrentamento das questões de vida local. Foram utilizados quatro procedimentos que a abordagem propõe: 1) deriva e imersão local: que compreendeu o envolvimento e conhecimento da comunidade e de demais agentes locais envolvidos na pesquisa-ação; 2) mapeamento das ocupações e redes sociais de suporte: que compreendeu o registro em mapas/cartografias dos elementos que constituíam a estrutura e a dinâmica de suportes, materiais, simbólicos e afetivos, das sociabilidades locais; 3) construção de projetos de vida coletiva: tratou-se de definir os objetivos e metas do projeto de acessibilidade enquanto projetos de vida coletiva para o desenvolvimento local; e 4) pactuações e operacionalização dos projetos: que compreendeu a implementação das estratégias, da definição de papéis e apreciação e avaliação dos efeitos e produtos gerados em desenvolvimento local participativo.

Para a segunda etapa da pesquisa-ação, empregou-se a garimpagem documental (PIMENTEL, 2001PIMENTEL, A. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 114, p. 179–95, 2001. ), que compreendeu os registros do processo, a fim de identificar conteúdos de significação do conhecimento apreendido. Estes foram sistematicamente debatidos em rodas de conversa com a comunidade e as demais pessoas participantes da pesquisa-ação, e posteriormente transformados em dimensões teóricas, que serviram para sustentar a noção-conceito “Acessibilidade Cultural Participativa” como um conhecimento apreendido ao longo do processo. Este conhecimento esteve diretamente relacionado com a deficiência como paradigma estético no território, a participação como o sentimento comunitário a partir do envolvimento em projetos de intenção coletiva e a produção da rede social de suporte.

O protocolo da pesquisa-ação foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ, sob o parecer n. 3.433.588/2019, e seguiu todos os procedimentos éticos, com os devidos registros de consentimentos assinados pelos participantes da pesquisa.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A oficina de Acessibilidade Cultural (Figura 1) foi a primeira estratégia da abordagem de TO/EDLP, e houve a participação média de 23 pessoas, entre moradores locais, representantes do poder público vinculados a museus, Secretaria de Cultura, Educação, Saúde, Coordenadoria de Acessibilidade, docentes da universidade e vizinhança.

Figura 1
Oficinas de Acessibilidade Cultural do Ponto de Cultura Tradicional

As participantes foram mapeadas e envolvidas em canais de comunicação para fortalecer o debate da pauta da Acessibilidade Cultural no território do quilombo. Com isso, passaram a frequentar outras atividades do Ponto de Cultura, envolvendo-se com a comunidade local no debate e na ação sobre a acessibilidade dos conteúdos relativos às memórias de povos e comunidades tradicionais.

Diante da inexistência de pessoas com deficiência participando da oficina, foram realizados contatos diretos e agendamentos com instituições voltadas às questões das pessoas com deficiência, como centros de reabilitação, desportivos, associações e movimentos de direitos e órgãos da prefeitura da cidade, como a Coordenadoria de Acessibilidade de Niterói. Algumas pessoas dessas instituições foram convidadas a atuarem também como consultoras do projeto em estratégias de acessibilidade.

A oficina de Acessibilidade Cultural teve como objetivo sensibilizar as pessoas envolvidas para a pauta da deficiência como paradigma estético e considerar as pessoas com deficiência como sujeitos de direito à cultura.

De acordo com Kastrup e Vergara (2005)KASTRUP, V.; VERGARA, L. G. A potência do experimental nos programas de acessibilidade: Encontros Multissensoriais no MAM Rio. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, v. 14, p. 62–77, 2005., a produção e a compreensão da realidade são feitas por meio de códigos hegemônicos que exigem habilidades dominantes, como a verbal e a visual. Assim, é posto que, em um museu, por exemplo, a habilidade visual seja constantemente convocada para apreciar obras de arte. A exigência e a hegemonia de padrões artísticos e culturais centrados nesta habilidade também guardam, em sua natureza social, uma estrutura cognitiva limitada e excludente, pois desconsideram outras habilidades das quais os seres humanos são capazes de utilizar para conceber o mundo.

As autoras reafirmam a visão positiva da deficiência como um sistema cultural que rompe com as normas estruturais das habilidades e capacidades humanas, sobretudo aquelas cognitivamente impostas nas instituições e nos instrumentos políticos do Estado que regulam a vida social. Trata-se, portanto, segundo as autoras, de oportunizar, em espaços de convivência da vida social, as condições hápticas de apreensão do mundo, ou seja, multissensoriais, como cheirar, tocar, movimentar, sentir etc.

Sobre estas considerações, destaca-se, na fala de uma liderança da comunidade do quilombo, o sentimento de constrangimento ao refletir sobre as limitações impostas pelo espaço do Ponto de Cultura para a convivência com pessoas com deficiência. A liderança passa a identificar as mudanças estruturais e metodológicas do espaço como uma oportunidade de configurar novas estéticas de experimentação do mundo.

Um dia destes um cara chegou pra mim e disse que a prima dele, que é “cadeirante”, foi embora antes do samba porque queria ir ao banheiro. Eu estou pensando aqui agora que não é possível que aqui no quilombo alguém não vá participar do samba porque não pode ir ao banheiro. Temos que mudar este banheiro! (Liderança comunitária quilombola, 2018).

Em seguida, foram inventariados – identificados e registrados, junto à comunidade do Quilombo do Grotão e demais participantes – os elementos cotidianos que expressavam seus saberes e fazeres de memória. O inventário foi mediado por um extensionista do Programa de Extensão, que garimpou imagens e fotografias. Quando na impossibilidade dessas, fotografou, captando objetos, como utensílios de cozinha, obras artísticas e religiosas, arquitetura, natureza etc., arquivando as imagens, posteriormente, no Microsoft Word®.

Foi discriminada a tipificação com uma breve descrição e os significados relacionados à memória do objeto na cultura local. Junto a isso, foi realizado um levantamento da história do quilombo, a partir da construção de narrativas e por meio do resgate de registros em fontes identificadas pela comunidade do quilombo, assim como dos produtos gerados pelo programa de extensão e de outros sujeitos que produziram materiais sobre o quilombo, como pesquisadores/as e jornalistas.

Os elementos de memória inventariados compreendem, para além de um catálogo de objetos, uma rede densa de histórias que expressam e produzem as identidades e as formas de engajamento local (NORA, 1993NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo, n. 10, [s.p.], 1993.). Assim, nesta etapa do processo, compreendeu-se que os elementos de memória também expressavam os vínculos sociais construídos historicamente entre moradores/as do quilombo e distintos agentes sociais. A conformação desta rede social de suporte também é fruto da memória de vivência de um passado, interpretado no presente como um importante dispositivo de enfrentamento para as questões de vida local.

Em tela, a construção de uma rede social de suporte permite o envolvimento de agentes para criar e explorar estratégias a partir do contexto local, a fim de fomentar projetos de vida coletiva (CORREIA, 2022CORREIA, R. L. Terapia Ocupacional de Ensinagem em Desenvolvimento Local Participativo: uma abordagem para a prática territorial-comunitária. In: CORDEIRO, L.; ALMEIDA, D. E. R. G. (Org.). A extensão universitária em Terapia Ocupacional: participação, transformação social e integração com ensino e pesquisa. 1. ed. Curitiba: CRV, 2022.; MORAIS; CALLOU, 2017MORAIS, J. A.; CALLOU, A. B. F. Metodologias participativas e desenvolvimento local: a experiência do Projeto Dom Hélder Câmara no assentamento Moacir Lucena. Interações, Campo Grande, v. 18, n. 1, p. 165–77, 2017. ). Isso compreende dizer que a acessibilidade é um nó da rede, que significa a sua coesão, a intencionalidade e a força que aciona o debate e a comunicação, bem como o sentimento de comunidade entre agentes locais e externos.

A partir disso, foram definidos os objetivos, as metas e as ações para um projeto de vida coletiva enquanto Ponto de Cultura e Memória Acessível. Para tanto, foi conduzido, com o apoio de uma museóloga do MAI, um roteiro para orientar a definição da narrativa expográfica, considerando-se linhas temáticas (locais e globais), espaços expositivos (dentro e fora do quilombo), objetos/imagens/documentos de referência (pertencentes ou não à família do quilombo) e recursos expográficos (materiais e equipamentos).

Desta forma, as pessoas envolvidas compreenderam a necessidade de instrumentalização do processo. Então, foi organizada uma oficina de dois dias, denominada “Expografia com Museus Comunitários”, aberta à comunidade, com especialistas da área e demais pessoas interessadas.

O principal objetivo da oficina foi inspirar a comunidade a criar, conceber esteticamente, planejar e montar as suas exposições, a partir da compreensão de que as memórias são vivas e territorialmente presentificadas. Isso colaborou com a desmistificação de organizar uma “coleção de objetos antigos” e materializar os conteúdos que majoritariamente, nos saberes tradicionais, são transmitidos pela oralidade. Ao se considerar a apreensão multissensorial do mundo, outras formas de mediação se tornam possíveis, como na fala de uma das quilombolas participantes da pesquisa:

Acho que temos muitas histórias que são contadas e às vezes nem as crianças aqui do quilombo sabem delas, mas elas brincam com brincadeiras que vovó ensinou. Então acho que tem outras formas de “pegar” essas memórias, como jogos, sei lá. (Quilombola, 2018).

Em uma roda de conversa posterior à oficina de expografia, foi elaborado um esquema representando a intersecção de ideias e desejos sobre uma exposição permanente do quilombo, que seria, em sentido mais amplo, o tipo de narrativa que caracterizaria o Ponto de Cultura e Memória.

Assim, a narrativa central foi a intersecção denominada “Resistência Negra”, que compôs a história local e particular da família Bomfim. Essa narrativa compreende a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros na construção do território nacional e a narrativa global sobre a história e cultura dos diversos povos negros como fundamento da civilização. A partir disso, colocaram-se em debate os formatos, objetos, atividades, entre outros elementos, para compor a narrativa expográfica, considerando-se uma estética acessível, assim como a “adaptação” de elementos já existentes.

Em seguida, foi aplicado o checklist “Grelha de Observação: acessibilidade a partir das dimensões definidas por Sassaki” (NEGREIROS, 2017NEGREIROS, D. A. Potenciar a acessibilidade cultural em ambientes culturais: um estudo exploratório em museus. 2017. Dissertação (Mestrado em Comunicação Acessível) – Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, Leiria, 2017.). A grelha (em português europeu) compreende um roteiro para identificar no ambiente as barreiras e os elementos que precisam ser acessibilizados. Para tanto, foram realizados percursos pelo território do quilombo e identificados os elementos que precisavam de adequações e/ou construções, sumarizados no checklist.

Para Sassaki (2009)SASSAKI, R. K. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), São Paulo, Ano XII, p. 10–6, 2009., são compreendidas seis dimensões da acessibilidade: arquitetônica (sem barreiras físicas), comunicacional (sem barreiras na comunicação interpessoal), metodológica (sem barreiras nos métodos que orientam atividades cotidianas e institucionais), instrumental (sem barreiras no uso de ferramentas, utensílios etc.), programática (sem barreiras em instrumentos jurídico-institucionais) e atitudinal (sem preconceitos, estigmas e comportamentos que funcionam como barreiras de participação e convivência). Estas, ao longo da imersão no território do quilombo, contribuíram para que as participantes tomassem percepção sobre outros elementos da vida social, além dos “visualmente presentes”, como os arquitetônicos. Assim, produziu-se um conjunto de informações discutido junto aos moradores e demais participantes, a fim de eleger as prioridades e possibilidades de implementação.

Eu nunca pensei que estas dimensões estão uma relacionada na outra. Nunca pensei que existem metodologias para sair de casa, pegar um ônibus, chegar aqui. Há todo um modo de funcionamento que não permite a participação de todas as pessoas. (Liderança comunitária quilombola, 2018).

Após a identificação dos itens a serem acessibilizados, foram organizadas oficinas semanais para construir a primeira exposição, considerando-se a assessoria e o apoio de pessoas com deficiência.

Entre maio de 2018 e fevereiro de 2020, foram feitos, adaptados e criados alguns produtos culturais (Figura 2), que atualmente compõem o cenário expográfico do Ponto de Cultura e Memória Acessível do Quilombo do Grotão, como livro multimodal, legendas de objetos e imagens com audiodescrição e em braile, legendas técnicas para os elementos expositivos em contrastes de cores sobrepostas por escrita em braile, orientações técnicas para rampas e banheiro para todes, cardápios e pranchas de comunicação e outros que ainda estão em desenvolvimento para o uso do espaço comunitário de alimentação do Ponto de Cultura e Memória do Quilombo do Grotão.

Figura 2
Produtos e elementos que compõem a narrativa expositiva do Ponto de Cultura e Memória Acessível do Quilombo

É importante destacar que, até aqui, os percursos de criação e exploração de estratégias baseadas em uma estética acessível ampliaram a visão de acessibilidade do edital cultural do qual se originou o projeto do Ponto de Cultura e Memória Acessível.

Eu nunca “ouvi” falar sobre um quilombo acessível! Acho que essa experiência “podia” ser compartilhada com outras comunidades, isso é muito importante. Eu mesmo mudei a minha forma de pensar. Agora fico mais atento em como as pessoas chegam aqui e como elas estão participando. Eu fico feliz quando vejo uma pessoa de cadeira de “roda” se divertindo no samba e que pode usar o banheiro que todo mundo usa, e não um só pra ela, entende. (Liderança comunitária quilombola, 2019).

O significado da participação apreendido pela liderança comunitária do quilombo é importante, pois considera o direito de sujeitos com deficiência fazerem parte de um evento coletivo. Isso compreende o compartilhar dos significados humanos e, portanto, estar inserido na vida social.

Chama-se atenção, ainda, para a leitura estética do banheiro que a liderança comunitária faz, ao considerá-lo, em outras palavras, como um ambiente social que não deve ser diferenciado para pessoas com e sem deficiência, e sim um “banheiro que todo mundo usa”. Esta compreensão coaduna com Sarraf (2018)SARRAF, V. P. Acessibilidade cultural para pessoas com deficiência: benefícios para todos. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 6, p. 23–43, 2018. , que considera a acessibilidade do ambiente como um benefício para todas as pessoas, e não somente as com deficiência. No entanto, as com deficiência são colocadas como centrais para a mudança estética e dimensões multissensoriais da participação, mudando, portanto, a compreensão cognitiva da construção da realidade e dos modos de participação do território.

Assim, a participação é um elemento fundamental nos processos de Acessibilidade Cultural, pois ultrapassa a ideia de “aderir a algo” ou simplesmente acessá-lo conforme fazem as pessoas sem deficiência. A Acessibilidade Cultural Participativa, conforme demonstram os processos desta pesquisa-ação, refere-se, por sua vez, a um agir específico de compartilhar os significados da vida humana no espaço social, a partir das formas hápticas de construir e apreender a realidade.

A estética da deficiência materializada e operada por estratégias em acessibilidade oportunizou mudanças cognitivas importantes na paisagem do quilombo e na criação de eventos, oficinas e atividades culturais. Esta mudança cognitiva permitiu também que os moradores do quilombo, principalmente, apoiados pelos parceiros da rede, que estiveram envolvidos em todo o período do projeto, aproximassem-se e tensionassem as políticas públicas de cultura local.

No final de 2019, as lideranças e oficineiras participaram de um encontro que reuniu todos os demais Pontos e Pontão de Cultura da cidade de Niterói, denominado Teia Cultural. Neste encontro, houve uma mesa de trabalho para debater políticas públicas para os coletivos de arte-cultura de base comunitária e territorial, e a liderança do quilombo levantou a pauta da acessibilidade, passando a fazer parte de um Grupo de Trabalho (GT) para aprofundar e estruturar a proposta para os demais editais de cultura da cidade e aproximar as pessoas com deficiência do debate. No mesmo período, acadêmicos e políticos participaram de diversos eventos, para falar e difundir as experiências.

As estratégias e os conhecimentos apreendidos no percurso do Ponto de Cultura e Memória do Quilombo do Grotão evidenciam um deslocamento da estética hegemônica do tecido social, que referencia o mundo a partir da exigência do uso de habilidades dominantes. Estas oportunizam formas e espaços limitados de convivência entre as pessoas, assim como os processos de identificação, produção e compartilhamento de significados culturais e o pertencimento no espaço social.

Não é necessário esperar que pessoas com deficiência “apareçam no ambiente cultural” para que os agenciamentos acessíveis se estabeleçam. Deve-se superar a visão funcional do corpo deficiente, incorporando uma estética da deficiência, acionando, assim, outras e novas estruturas cognitivas para uma compreensão sensorial do mundo, possíveis, como já posto por Sarraf (2018)SARRAF, V. P. Acessibilidade cultural para pessoas com deficiência: benefícios para todos. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo, n. 6, p. 23–43, 2018. , para todas as pessoas.

As barreiras que as pessoas com deficiência vivenciam para participar da vida social expressam não somente a contínua exclusão, marginalização e segregação da vida cotidiana compartilhada, mas também fazem emergir questões mais complexas e profundas a respeito da formação estética que temos sobre a estruturação e dinâmica do tecido social territorial.

Esta visão, baseada na pesquisa-ação aqui conduzida, incorpora o paradigma da deficiência ao desenvolvimento local participativo, ao considerar os processos estético-cognitivos de leitura e construção da realidade, a fim de proporcionar ações comunitárias, de base territorial, de inclusão e efetiva participação social.

Neste sentido, a deficiência é uma dimensão estética da vida, e não um atributo centrado no indivíduo, majoritariamente relacionado à lesão como um paradigma biomédico. Esta dimensão se mostra completamente necessária a projetos e políticas de desenvolvimento local em diferentes setores da sociedade, como é caso do setor cultural.

Um paradigma estético da deficiência proporciona, como demonstrado nesta pesquisa-ação, um modo de agir específico em projetos culturais de base territorial e comunitários. E é específico, porque se leva em conta a abordagem de terapia ocupacional de ensinagem em desenvolvimento local participativo (TO/EDLP) como um roteiro de pistas para facilitar o envolvimento ocupacional coletivo da comunidade e demais participantes.

Este agir específico compreende, sobretudo, o deslocamento de ações e pressupostos técnicos sobre a acessibilidade cultural para territórios de produção cultural-comunitária, ou em territórios de cultura popular e tradicional, em mútua relação entre saber técnico e popular.

As políticas públicas sobre acessibilidade, de forma geral, compreendem exclusivamente os aspectos arquitetônicos, ou seja, a edificação e ambientação de espaços formais, majoritariamente públicos, de acesso e uso coletivo. Com isso, desconsidera-se a importância de ampliar o debate sobre inclusão e participação social de pessoas com deficiência nos demais espaços da vida cotidiana das cidades, como os territórios de povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, de terreiro, nos blocos e nas escolas de samba, em associações de moradores, museus comunitários, entre outros.

As políticas culturais fomentam uma parcela significativa da produção econômica do país, 2,5% do PIB brasileiro (DURAND, 2013DURAND, J. C. Política cultural e economia da cultura. 1. ed. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013.), criando e acionando ativos locais nas regiões onde equipamentos culturais, como museus, teatros, salas de cinema, bibliotecas etc., são implantados. Ainda, segundo o autor, os equipamentos culturais, os profissionais da arte e cultura e todo o conjunto de programas, projetos e ações desenvolvidos colaboram na coesão do tecido social, sobretudo em territórios de vulnerabilidades socioeconômicas e todo tipo de assimetria e desigualdades socioterritoriais. Logo, a relação entre políticas, produção cultural e desenvolvimento local é indissociável e significativa, porque diz respeito ao potencial de transformação cultural, econômica, política e social dos territórios e comunidades.

Mesmo considerando, segundo Santini (2017)SANTINI, A. Cultura viva: políticas culturais no Brasil e na América Latina. 1. ed. Rio de Janeiro: ANF Produções, 2017., que o fortalecimento de identidades de grupos populares em projetos culturais de base territorial e comunitária é um importante objetivo para ações em desenvolvimento local, ainda assim, pouco se debate o recorte sobre a inclusão de pessoas com deficiência, seja como fazedores artístico-culturais, seja como público de fruição.

Com isso, ignora-se o direito à cidadania para pessoas com deficiência no acesso e na participação dos espaços da cidade, sejam eles em ambientes micro ou macrossociais, como prevê a Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 25 set. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

A cidadania compreende um escopo importante, mas limitado, de direitos sociais para grupos que disputam os seus interesses sobre as suas próprias existências, bem como dos usos que fazem do espaço social das cidades. Os grupos minoritários, como os de pessoas com deficiência e comunidades tradicionais, são aqueles, ainda hoje, de menor poder e contratualidade na arena de disputas políticas, materiais e simbólicas. Por isso, agenciam, ou devem ter o direito para agenciar, modos alternativos de produzir e terem reconhecidas as suas existências.

Neste sentido, o direito à cultura e cidadania cultural das pessoas com deficiência, como defendem Dorneles e Salasar (2018)DORNELES, P. S.; SALASAR, D. N. Acessibilidade Cultural. Expressa Extensão, [s.l.], v. 23, n. 3, p. 5–16, 2018. , é um processo em construção. E, para Correia (2019)CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. , este processo se amplifica especialmente quando se trata da acessibilidade cultural de base territorial e comunitária nos territórios populares e tradicionais.

A ausência de políticas públicas, bem como de literatura e pesquisas sobre Acessibilidade Cultural de base territorial e comunitária, como demonstra Correia (2019)CORREIA, R. L. Processos de acessibilidade cultural participativa no ponto de cultura tradicional do Quilombo do Grotão. 2019, 119 f. Monografia (Especialização em Acessibilidade Cultural) – Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. , engendra uma trama complexa e precária que dificulta o alcance deste debate nos espaços não formais de produção cultural. Contudo, a Acessibilidade Cultural Participativa pode ser um modo de agir específico em projetos de desenvolvimento local que se proponham a alargar cognitiva e esteticamente as leituras e ações culturais de base territorial e comunitárias, a fim de garantir a efetividade da cidadania cultural acessível.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa-ação, aqui apresentada, elaborou e apreendeu uma proposta denominada Acessibilidade Cultural Participativa, como uma noção-conceito, para designar um modo de agir específico nos contextos de produção artístico-cultural de base territorial e comunitária, alternativo àqueles previstos nos instrumentos jurídico-institucionais do Estado.

Este agir específico levou em conta o contexto não “oficial” do fazer cultura e esteve sustentado na criação e implementação de estratégias relacionadas aos saberes locais e técnico-científicos em desenvolvimento local participativo.

Assim, a convergência dos elementos deste processo oportuniza a apreensão de saberes, os quais, até aqui, permitem dizer que se trata de bases teórico-cognitivas para suportar a noção de Acessibilidade Cultural Participativa orientada pela lógica do desenvolvimento local participativo, sendo elas: a deficiência como um paradigma estético, a construção das redes sociais de suporte e a participação como intenção coletiva.

Contudo, o estudo tem limitações, em especial pelos métodos empregados e pela insuficiência de dados para uma análise mais ampla e robusta. Assim, desdobramentos são previstos, assim como a abertura para pesquisas futuras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2021
  • Revisado
    14 Dez 2021
  • Aceito
    28 Jan 2023
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