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Fatores condicionantes da estrutura da governança: teoria e prática no programa Pará Rural

Conditioning factors of the governance structure: theory and practice in the Pará Rural Program

Condicionantes de la estructura de gobernanza: teoría y práctica en el Programa Para Rural

Resumo

Esta pesquisa aborda a temática da governança em projetos de redução da pobreza rural, em especial o programa Pará Rural, oriundo de um empréstimo do Banco Mundial para o Governo do Estado do Pará. O estudo teve como objetivo verificar os aspectos epistemológicos envolvidos na concepção da estrutura de governança para compreender quais fatores a condicionam e como identificá-los. Para tal, foi realizada uma revisão teórica na área de governança e, em seguida, foi feita uma aplicação prática no Programa de Redução da Pobreza e Gestão dos Recursos Naturais do Pará (Pará Rural). É uma pesquisa de natureza aplicada, com objetivos exploratórios e abordagem qualitativa, em que os procedimentos técnicos utilizados para a coleta de dados foram a pesquisa documental e o levantamento de campo. Concluiu-se que a estrutura de governança identificada na pesquisa é resultado da sua forma, com base nos elementos que a compõem, sendo fruto da interação com o meio e as instituições e de sua adaptação às especificidades locais. A pesquisa mostrou que é fundamental uma compressão epistemológica multiplicidade de atores e, consequentemente, de interesses diversos. No Pará Rural, foram identificadas, como condicionantes da estrutura da governança, a ação coletiva e a estratégia adotada pela comunidade.

Palavras-chave
estrutura de governança; governança; Pará; Rural

Abstract

This research addresses the issue of governance in rural poverty reduction projects, especially the Pará Rural program, arising from a loan from the World Bank to the Government of the State of Pará. The study aimed to verify the epistemological aspects involved in the design of the governance structure to understand which factors condition it and how to identify them. To this end, a theoretical review was carried out in the area of governance and, then, a practical application of the Pará Poverty Reduction and Natural Resources Management Program (Pará Rural) was made. It is an applied research, with exploratory objectives and a qualitative approach, where the technical procedures used for data collection were documental research and field survey. It was concluded that the governance structure identified in the research is the result of its form, based on the elements that compose it, being the result of interaction with the environment and institutions and of its adaptation to local specificities. The research showed that an epistemological understanding of governance is essential, emphasizing the way in which knowledge is constructed, in view of its multiplicity of actors and, consequently, of diverse interests. In Pará Rural, collective action and the strategy adopted by the community were identified as determinants of the governance structure.

Keywords
governance structure; governance; Pará; Rural

Resumen

Esta investigación aborda el tema de la gobernanza en los proyectos de reducción de la pobreza rural, especialmente el programa Pará Rural, que surge de un préstamo del Banco Mundial al Gobierno del Estado de Pará. El estudio tuvo como objetivo verificar los aspectos epistemológicos involucrados en el diseño de la estructura de gobernanza para comprender qué factores la condicionan y cómo identificarlos. Para ello, se realizó una revisión teórica en el área de gobernanza y, luego, se realizó una aplicación práctica del Programa de Reducción de la Pobreza y Gestión de Recursos Naturales del Pará (Pará Rural). Se trata de una investigación aplicada, con objetivos exploratorios y enfoque cualitativo, donde los procedimientos técnicos utilizados para la recolección de datos fueron la investigación documental y la encuesta de campo. Se concluyó que la estructura de gobernanza identificada en la investigación es el resultado de su forma, a partir de los elementos que la componen, siendo resultado de la interacción con el entorno y las instituciones y de su adaptación a las especificidades locales. La investigación mostró que una comprensión epistemológica de la gobernanza es esencial, enfatizando la forma en que se construye el conocimiento, en vista de su multiplicidad de actores y, en consecuencia, de diversos intereses. En Pará Rural, la acción colectiva y la estrategia adoptada por la comunidade fueron identificadas como determinantes de la estrutura de gobernanza.

Palabras clave:
estructura de gobernanza; gobernanza; Pará; Rural

INTRODUÇÃO

A palavra “governança” tem sido utilizada de múltiplas formas e em múltiplos sentidos. Ao longo do tempo, diversos significados foram atribuídos ao termo, dando a ele um caráter diversificado, porém sem perder de vista que ele engloba relacionamentos e acordos estabelecidos dentro do sistema econômico. Estes relacionamentos e interações vão além de mecanismos tradicionais de articulação e envolvem, também, redes sociais informais e associações de diversos tipos.

Sobre o caráter interdisciplinar da governança, Zumbansen (2012)ZUMBANSEN, Peer. Governance: an interdisciplinary perspective. In: LEVI-FAUR, David (Ed.). The Oxford handbook of governance. [S.l.]: Oxford University Press, 2012. afirma que seu significado deve operar dentro de uma contestação de limites entre disciplinas, e que a chave para entender está em aceitar sua interdisciplinaridade e transformação. Governança se relaciona com práticas contingentes, as quais emergem das ações e crenças concorrentes de pessoas diferentes que respondem a vários dilemas no contexto de conflitos e tradições. Logo, não se refere a qualquer conjunto de características, mas sim à história que as pessoas usam para construir, transmitir e explicar tradições, dilemas, crenças e práticas, sendo, assim, encontrada em muitas e novas formas (Rhodes, 2016RHODES, Roderick. ‘Understanding Governance: 20 Years On’, trans translator). National Governance Review, Wuhan, v. 5, p. 5-17, 2016.).

Ao tratar sobre a forma de gerenciamento da governança, Fawcett e Daughbjert (2012) afirmam que não é possível ter um kit de ferramentas. Os autores utilizam o conceito de comunidade política para explicar um número de atores interdependentes que compartilham agendas políticas e tomam decisões comuns. Nesses grupos, a forma como o poder é exercido se dá por meio de exclusões e práticas que se tornam institucionalizadas, derivadas de visões compartilhadas e uma variedade de opções estruturais.

A estrutura, como fator determinante para a governança, é definida, portanto, por um conjunto de elementos específicos a cada realidade, não comportando modelos e padrões fixos. É possível, pela observação do conjunto das particularidades da rede composta pelos atores, identificar os fatores condicionantes à estrutura da governança. Trata-se de um aspecto epistemológico, em que a própria complexidade e a multiplicidade de abordagens do termo evidenciam a necessidade de renúncia a uma epistemologia geral, entendendo o conhecimento acerca de governança como algo em meio a um processo construtivo, logo, não sendo recomendáveis modelos prontos ou generalizações.

Em se tratando de governança no sentido de interações e acordos, existem diversas pesquisas desenvolvidas que apontam para a sua multiplicidade de significados. Há trabalhos sobre governança democrática (Bevir, 2004BEVIR, Mark. Democratic Governance. UC Berkeley: Institute of Governmental Studies, 2004. Disponível em: http://escholarship.org/uc/item/304704f2. Acesso em: 20 fev. 2020
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), redes de interações e multiplicidades de abordagens (Ezzamel e Reed, 2008EZZAMEL, Mahmoud; REED, Mike. Governance: a code of multiple colours. Human Relations, Londres, v. 61, n. 5, p. 597-615, 2008. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0018726708092316. Acesso em: 07.08.2020
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; Hufty, 2011aHUFTY, Marc. Governance: Exploring four approaches and their relevance to research. Research for sustainable development: foundations, experiences, and perspectives, p. 165-83, 2011a. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/216756437_Governance_Exploring_four_approaches_and_their_relevance_to_research. Acesso em: 16 nov. 2020.
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; Rhodes, 2016RHODES, Roderick. ‘Understanding Governance: 20 Years On’, trans translator). National Governance Review, Wuhan, v. 5, p. 5-17, 2016.; Zumbansen, 2012ZUMBANSEN, Peer. Governance: an interdisciplinary perspective. In: LEVI-FAUR, David (Ed.). The Oxford handbook of governance. [S.l.]: Oxford University Press, 2012.), estrutura de governança (Kooiman et al., 2008KOOIMAN, Jan; BAVINCK, Maarten; CHUENPAGDEE, Ratana; MAHON, Robin; PULLIN, Roger. Interactive governance and governability: an introduction. The Journal of Transdisciplinary Environmental Studies, Nova York, v. 7, n. 1, p. 1-11, 2008. Disponível em: https://dare.uva.nl/search?identifier=ced27a4a-5fa1-41c9-b34a-63576058307e. Acesso em: 28.07.2020
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), epistemologia e governança de redes (Fawcett e Daugbjerg, 2012FAWCETT, Paul; DAUGBJERG, Carsten. Explaining governance outcomes: Epistemology, network governance and policy network analysis. Political Studies Review, Londres, v. 10, n. 2, p. 195-207, 2012. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1478-9302.2012.00257. Acesso em: 08.06.2020
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), governança participativa (Fung; Wright, 2001FUNG, Archon; WRIGHT, Erik Olin. Deepening democracy: innovations in empowered participatory governance. Politics and society, Londres, v. 29, n. 1, p. 5-42, 2001.) e governança dos recursos comuns (Ostrom, 1990OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. Disponível em: https://www.actu-environnement.com/media/pdf/ostrom_1990.pdf. Acesso em: 20.08.2019
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). No entanto, ainda se faz necessária uma maior quantidade de pesquisas que analisem os aspectos epistemológicos ligados aos fatores que condicionam as estruturas de governança como algo flexível e ajustado às características únicas de cada situação analisada.

Este artigo busca evidenciar as interferências das características locais na estrutura de governança, tendo em vista as condições sistêmicas (sociais, econômicas, culturais, históricas e participativas) que impactam o desenvolvimento e o resultado dos projetos. O objetivo deste estudo é analisar os aspectos epistemológicos envolvidos na concepção da estrutura de governança e demonstrar como as características locais interferem nela. Para tal, foi feita uma aplicação prática, no formato de pesquisa qualitativa, a partir da análise do Programa de Redução da Pobreza e Gestão dos Recursos Naturais do Pará (Pará Rural), um programa Governo do Estado do Pará cofinanciado pelo Banco Mundial, com o uso de pesquisa documental e levantamento de campo.

Este estudo está estruturado em sete seções, incluindo esta introdução. A seguir, será apresentada uma revisão teórica de governança, com o intuito de evidenciar seus múltiplos sentidos e conceitos, além dos aspectos de interação da sua estrutura. A seção 3 apresenta aspectos conceituais de estrutura de governança, explicitando as interações e os formatos. A seção 4 compreende a metodologia, enquanto a 5 demonstra os resultados obtidos no estudo do Programa Pará Rural, enfatizando as características da sua governança. A seção 6 destaca os fatores que condicionaram a estrutura de governança neste caso analisado. Por fim, a seção 7 apresenta as conclusões obtidas nesta pesquisa.

2 OS MÚLTIPLOS CONCEITOS DE GOVERNANÇA

A governança surgiu com um foco importante no debate em curso sobre as formas organizacionais e práticas, por meio das quais vivemos e “ordenamos” nossas vidas no século XXI. Desta forma, configura-se como uma arena complexa que levanta questões morais, políticas e científicas fundamentais sobre os rumos que a sociedade tem seguido neste século. Há, portanto, significados diferentes para pesquisadores localizados dentro de cada uma das comunidades Epistêmicas (Ezzamel; Reed, 2008EZZAMEL, Mahmoud; REED, Mike. Governance: a code of multiple colours. Human Relations, Londres, v. 61, n. 5, p. 597-615, 2008. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0018726708092316. Acesso em: 07.08.2020
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).

Zumbansen (2012)ZUMBANSEN, Peer. Governance: an interdisciplinary perspective. In: LEVI-FAUR, David (Ed.). The Oxford handbook of governance. [S.l.]: Oxford University Press, 2012. considera que governança representa mais um espaço vazio a ser definido, para esclarecimento conceitual, do que uma construção política claramente identificável. Portanto, não pode haver um uso ou uma crítica de governança limitada ao arcabouço analítico e teórico de uma única disciplina. Segundo o autor, a governança também está associada (e explicada), por referência, aos processos de globalização.

[...] governança tem surgido em resposta a mudanças percebidas e dramáticas, no conjunto de ferramentas analíticas e conceituais, com as quais uma disciplina vem teorizando a ideia de “ordem”. Tais mudanças têm sido associadas à transformação da regulação baseada no Estado dentro do Estado-nação, bem como à transformação da soberania baseada no Estado e na criação de regras em áreas que, por sua própria natureza, atravessam diferentes fronteiras nacionais (Zumbansen, 2012ZUMBANSEN, Peer. Governance: an interdisciplinary perspective. In: LEVI-FAUR, David (Ed.). The Oxford handbook of governance. [S.l.]: Oxford University Press, 2012., p. 92, tradução nossa)2 2 “[...] Governance has been arising in response to perceived, dramatic changes in the analytical and conceptual toolkit with which a discipline has been theorizing the idea of “order.” As was further seen, such changes have been associated with the transformation of state-based regulation within the nation-state as well as with the transformation of state-based sovereignty and rule-making in areas that by their very nature cut across diferente national boundaries”. .

Nos debates políticos, “governança” tornou-se uma das palavras mais usadas. O termo já está em toda parte há algum tempo: nas publicações de organizações internacionais e bilaterais, nas de ajuda ao desenvolvimento, e no discurso de tomadores de decisão. Foi usado em todos os domínios: na história, no direito, nos cuidados à saúde, na política, entre outros. Por volta de 1970, um dos domínios em que o conceito foi mais utilizado foi na reforma do sistema educacional e, especialmente, das universidades. Assim, o conceito evoluiu de sinônimo de governo, ou o ato de governar, para algo mais amplo, mais complexo e mais confuso - uma confusão que persiste até hoje (Hufty, 2011aHUFTY, Marc. Governance: Exploring four approaches and their relevance to research. Research for sustainable development: foundations, experiences, and perspectives, p. 165-83, 2011a. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/216756437_Governance_Exploring_four_approaches_and_their_relevance_to_research. Acesso em: 16 nov. 2020.
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).

Nos Estados Unidos da América, a palavra adquire novos significados sob a influência da disciplina de estudos organizacionais, especialmente na análise de dois tipos de organização: empresas privadas e universidades. Esta renovação, somada aos trabalhos de economia institucional e ao conceito de custos de transações, caracteriza a governança como meio eficiente para reduzir estes custos. O desenvolvimento de estudos organizacionais facilitou a descoberta de mecanismos de coordenação que não a hierarquia vertical, favorecida pela teoria da gestão científica, especialmente os mecanismos de coordenação horizontal dentro das organizações, além de fatores informais, como as normas sociais (Hufty, 2011aHUFTY, Marc. Governance: Exploring four approaches and their relevance to research. Research for sustainable development: foundations, experiences, and perspectives, p. 165-83, 2011a. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/216756437_Governance_Exploring_four_approaches_and_their_relevance_to_research. Acesso em: 16 nov. 2020.
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).

De acordo com Ezzamel e Reed (2008)EZZAMEL, Mahmoud; REED, Mike. Governance: a code of multiple colours. Human Relations, Londres, v. 61, n. 5, p. 597-615, 2008. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0018726708092316. Acesso em: 07.08.2020
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, existem três principais perspectivas teóricas no estudo das estruturas e práticas de governança. Do ponto de vista da Teoria de Custos de Transação, a governança implica literalmente ações e organizações, ou seja, episódios de troca econômica e mecanismos formais, por meio dos quais as interaçõessão mediadas e reguladas. Sob uma perspectiva de governamentalidade (conceito desenvolvido pelo filósofo francês Foucalt), a governança é definida por programas e tecnologias fracamente acoplados, em que os esforços para regular e controlar populações em rápida expansão são cada vez mais concentrados nos centros urbanos.

Já a perspectiva institucionalista da governança se preocupa principalmente com os aspectos regulatórios e mecanismos, por meio dos quais as rotinas comportamentais padronizadas sustentam as relações institucionalizadas, para que sejam mantidas e aplicadas (Ezzamel; Reed, 2008EZZAMEL, Mahmoud; REED, Mike. Governance: a code of multiple colours. Human Relations, Londres, v. 61, n. 5, p. 597-615, 2008. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0018726708092316. Acesso em: 07.08.2020
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).

De acordo com Hufty (2011b)HUFTY, Marc. Investigating policy processes: the governance analytical framework (GAF). Research for sustainable development: foundations, experiences, and perspectives, p. 403-24, 2011b. Disponível em: https://www.nccr-north-south.unibe.ch/Upload/20_Hufty_GAF.pdf. Acesso em: 13.09.2019
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, governança refere-se a uma categoria de fatos sociais, a saber, os processos de interação e a tomada de decisões entre os atores envolvidos, em um problema que leva à criação, ao reforço ou à reprodução de normas e instituições. Cada sociedade desenvolve seus próprios modos de tomar decisões e resolver conflitos. É disso que se trata a governança. Assim sendo, como um fato social, a governança não é normativa nem prescritiva, referindo-se a um fenômeno observável. Ela também não é limitada a qualquer momento ou espaço, já que é observável em qualquer sociedade humana.

As normas orientam o pensamento e podem ser modificadas. Elas são baseadas em valores ou crenças e estão diretamente ligadas às instituições sociais, definidas como sistema recorrente de normas, que sancionam as ações dos indivíduos e grupos. A situação de pluralismo normativo pode constituir uma fonte de conflito, sendo este o objetivo central dos atores envolvidos em um processo de afirmação das normas que estão em jogo. Assim, as normas são vistas como elementos essenciais em si mesmas, pois são a principal fonte de competição e jogos de poder entre os atores (Hufty, 2011aHUFTY, Marc. Governance: Exploring four approaches and their relevance to research. Research for sustainable development: foundations, experiences, and perspectives, p. 165-83, 2011a. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/216756437_Governance_Exploring_four_approaches_and_their_relevance_to_research. Acesso em: 16 nov. 2020.
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).

As diferenças conceituais do termo "governança" giram, também, em torno do papel percebido do Estado, de forma normativa e em sentido analítico. Nas abordagens mais normativas, como as oferecidas pelo Banco Mundial, os Estados geralmente são vistos como incapazes, sendo mostrados, em muitas análises, como fracos, instáveis, colapsos ou Estados com falhas. Onde o Estado não consegue governar, outros atores do mercado e da sociedade civil se moverão em posições de governo, e um caso é feito para diminuir o papel de governo do Estado. Isto é expresso na frase “mais governança e menos governo” (Kooiman et al., 2008KOOIMAN, Jan; BAVINCK, Maarten; CHUENPAGDEE, Ratana; MAHON, Robin; PULLIN, Roger. Interactive governance and governability: an introduction. The Journal of Transdisciplinary Environmental Studies, Nova York, v. 7, n. 1, p. 1-11, 2008. Disponível em: https://dare.uva.nl/search?identifier=ced27a4a-5fa1-41c9-b34a-63576058307e. Acesso em: 28.07.2020
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).

3 ESTRUTURA DA GOVERNANÇA

A perspectiva interativa preconiza que as sociedades sejam constituídas por grande número de atores, que são restritos, ou habilitados em suas ações, por estruturas. A estrutura refere-se aos quadros dentro dos quais esses atores operam, e estes quadros limitam ou ampliam seus potenciais de ação e o que os atores devem levar em conta. Esses quadros incluem cultura, leis, acordos, materiais e possibilidades técnicas. De acordo com o raciocínio sociológico, os atores estão continuamente fazendo mudanças nessas estruturas, enquanto, ao mesmo tempo, estão sujeitos à sua influência (Kooiman et al., 2008KOOIMAN, Jan; BAVINCK, Maarten; CHUENPAGDEE, Ratana; MAHON, Robin; PULLIN, Roger. Interactive governance and governability: an introduction. The Journal of Transdisciplinary Environmental Studies, Nova York, v. 7, n. 1, p. 1-11, 2008. Disponível em: https://dare.uva.nl/search?identifier=ced27a4a-5fa1-41c9-b34a-63576058307e. Acesso em: 28.07.2020
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).

Se entendermos o processo de construção de relações entre os atores, enfatizando os relacionamentos e os acordos estabelecidos, fica visível o jogo de poder ao observar a quem cabe a definição das normas. A forma como as regras do jogo são definidas influenciará a forma como o conhecimento se estabelece na estrutura, podendo beneficiar alguns atores especificamente. As diferentes instituições, ou “regras do jogo”, constituídas por restrições formais e informais, dão origem a uma variedade de estruturas e mecanismos de governança.

Ao tratar da participação no processo democrático, Bevir (2004)BEVIR, Mark. Democratic Governance. UC Berkeley: Institute of Governmental Studies, 2004. Disponível em: http://escholarship.org/uc/item/304704f2. Acesso em: 20 fev. 2020
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afirma que o objetivo de maior participação acompanha uma ampla mudança na natureza e no papel do comando e controle das instituições governamentais, devendo o modelo linear de políticas elaboradas “de cima” ser substituído por outro modelo, este com base em feedback, redes e envolvimento de criação de políticas para implementação em todos os níveis. A preocupação é com a forma de tornar as políticas públicas mais eficazes e mais legítimas aos olhos do público.

O termo “governança de sistemas” é utilizado por Bevir (2004)BEVIR, Mark. Democratic Governance. UC Berkeley: Institute of Governmental Studies, 2004. Disponível em: http://escholarship.org/uc/item/304704f2. Acesso em: 20 fev. 2020
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para designar a governança que fornece caminhos alternativos para garantir a legitimidade de ações democráticas, e parte da ideia de que a eficácia das instituições depende da incorporação de processos decisórios, para assegurar um consenso social sobre valores, políticas e sobre a legitimidade das próprias instituições.

A democracia participativa trata de amplas vias de participação, a fim de incorporar as partes interessadas no processo político, de modo a fomentar o consenso associado ao desenvolvimento social e à ordem política; no entanto destaca que a visão de governança do sistema deriva, principalmente, das crenças de que as redes são mais eficientes do que as hierarquias, e que o diálogo e o consenso podem construir legitimidade política (Bevir, 2004BEVIR, Mark. Democratic Governance. UC Berkeley: Institute of Governmental Studies, 2004. Disponível em: http://escholarship.org/uc/item/304704f2. Acesso em: 20 fev. 2020
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).

É importante compreender a forma como a participação dos diferentes atores acontecerá em determinada estrutura de governança, pois os resultados serão diretamente influenciados pela maneira como os atores interagem e constroem o conjunto de normas e instituições que regularão e coordenarão as relações. Neste aspecto, a participação da sociedade civil deve ser efetivada como um diálogo ativo na construção e promoção de ações que ampliem a participação dos cidadãos nos processos decisórios ligados a políticas públicas.

Ao tratar do que chamaram de “Três Princípios do Fortalecimento da Democracia Deliberativa”, Fung e Wright (2001)FUNG, Archon; WRIGHT, Erik Olin. Deepening democracy: innovations in empowered participatory governance. Politics and society, Londres, v. 29, n. 1, p. 5-42, 2001. afirmam que a primeira característica distintiva das experiências práticas analisadas no artigo é que todos os atores desenvolvem estruturas de governança orientadas para preocupações muito concretas. Estas experiências, embora muitas vezes ligadas a movimentos sociais e a partidos políticos, diferem na medida em que se concentram em problemas práticos, tais como o fornecimento de segurança pública, a formação de trabalhadores, os cuidados com os ecossistemas ou a construção de orçamentos municipais.

De acordo com Fawcett e Daughbjert (2012), a governança é construída de forma contingente e contínua; logo, não é possível ter um “kit de ferramentas” para gerenciá-la. Os autores discutem o conceito de comunidade política, que é formado quando um número limitado de atores compartilha uma agenda política, tem recursos, mas depende de outros para alcançar seus objetivos. Nesses grupos, o poder é exercido por meio de uma clara exclusão de atores da rede, havendo maneiras específicas de lidar com problemas políticos, por meio de práticas que se tornam institucionalizadas.

Cada comunidade política desenvolve sua própria abordagem para os problemas, em que rotinas de contato são estabelecidas, percepções e valores são compartilhados e estoques de conhecimento e políticas são trazidas para lidar com novos problemas. Estes elementos são derivados de uma visão compartilhada entre membros da rede, nos seus objetivos sociais, políticos e econômicos mais amplos, os quais devem ser seguidos, resultando em atores dentro de localizações estruturais, que fazem escolhas de acordo com uma gama de opções determinadas estruturalmente (Fawcett; Daugbjerg, 2012FAWCETT, Paul; DAUGBJERG, Carsten. Explaining governance outcomes: Epistemology, network governance and policy network analysis. Political Studies Review, Londres, v. 10, n. 2, p. 195-207, 2012. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1478-9302.2012.00257. Acesso em: 08.06.2020
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).

A estrutura de governança refere-se, portanto, à forma que a governança adquire a partir dos elementos que a compõem, resultado de sua interação com o meio e com as instituições e de sua adequação à realidade local, de tal forma a garantir que seus objetivos sejam cumpridos.

Um aspecto fundamental para analisar condicionantes de estrutura de governança envolve a escolha adequada da metodologia. Vale destacar que a metodologia é a lógica dos procedimentos científicos, em sua gênese e em seu desenvolvimento. As ciências devem ser abordadas sob o ângulo do seu produto como resultado, em forma de conhecimento científico, mas também como processo, gênese desse próprio conhecimento (Bruyne; Herman; Schoutheete, 1977BRUYNE, Paul.; HERMAN, Jacques; SCHOUTHEETE, Marc. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais: os pólos da prática metodológica. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1977).

A interligação dos diferentes saberes envolvidos na rede de governança pressupõe um olhar interdisciplinar, na busca de estabelecer conexões entre os diferentes atores. Assim, será dado um passo para desvendar as “máscaras sociais” dessas tentativas de vasos comunicantes, ocorrendo em contextos unidisciplinares, em sua maioria, portanto, não comunicantes. Tratar o assunto em foco leva à busca dos significados e das consequências de sua aplicação, feita pela utilização de dados primários e secundários. Para tal, é interessante a utilização da história oral ou etnográfica (Sá, 1987SÁ, Samuel. “Interdisciplinaridade: sim e não a vasos comunicantes em educação pós-graduada”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 272-79, 1987.).

A noção de fatores condicionantes da estrutura de governança pressupõe o uso de uma metodologia capaz de observar detalhadamente o objeto estudado e, especialmente, uma metodologia flexível, imersiva e apta a traduzir os diferentes saberes. Cabe um olhar crítico à complexidade do contexto envolvendo a linguagem, a cultura e a história de cada local, rompendo barreiras e abrindo a possibilidade de gerar novos conhecimentos e conexões.

4 METODOLOGIA

Esta pesquisa buscou analisar a base teórica da estrutura de governança, tendo promovido, para tal propósito, um debate conceitual sobre o que é governança, buscando suas origens epistêmicas para propor uma análise dos fatores que condicionam essa estrutura. Com essa finalidade, foi feita uma pesquisa de natureza aplicada, com objetivos exploratórios, abordagem qualitativa, tendo, como procedimento técnico utilizado para a coleta de dados, o levantamento de campo. Trata-se de uma pesquisa aplicada por objetivar a geração de conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à solução de problemas específicos, além de envolver verdades e interesses locais. A investigação pura e aplicada estuda um problema relativo ao conhecimento científico ou à sua aplicabilidade (Silva; Menezes, 2000SILVA, Edna; MENEZES, Estera. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. Laboratório de Ensino a Distância da UFSC, 2000 . Disponível em: http://200.17.83.38/portal/upload/com_arquivo/metodologia_da_pesquisa_e_elaboracao. Acesso em: 15 jan. 2021.
http://200.17.83.38/portal/upload/com_ar...
; Marconi; Lakatos, 2010MARCONI, Marina; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010.).

As pesquisas exploratórias têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores. Dentre todos os tipos de pesquisa, este é o que apresenta menos rigidez no planejamento. Habitualmente, envolve levantamento bibliográfico e documental, entrevistas não padronizadas e estudos de caso (Gil, 1999GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.; Raupp; Beuren, 2003RAUPP, Fabiano; BEUREN, Ilse Maria. Metodologia da pesquisa aplicável às ciências sociais. In: BEUREN, Ilse Maria (Org.). Como elaborar trabalhos monográficos em contabilidade: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2003.).

Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa foi documental, já que os projetos de apoio à agricultura familiar têm suas normas, objetivos e diretrizes registrados em Manuais Operacionais, Documentos de Avaliação do Projeto - Appraisal (PAD) e ajudas-memória de reuniões feitas com o Banco Mundial. Também foi feito um levantamento de dados primários com comunidades beneficiadas, sendo entrevistados presidentes das associações, bem como associados que atuam na gestão do empreendimento. Também foram entrevistados funcionários do Programa Pará Rural e membros da Prefeitura Municipal, órgão do poder público mais próximo à representação local da comunidade.

Para a escolha das comunidades a serem estudadas nesta pesquisa, foram adotados os seguintes critérios: localização geográfica, projetos em fase de finalização, atividades produtivas, valores dos projetos e número de famílias. Com base nestes critérios, foram selecionadas a Comunidade Menino Jesus, no município de Acará, Pará, e a Associação dos Criadores Orgânicos de Abelha de Tracuateua (APITRA), no município de Tracuateua, Pará.

5 O PROGRAMA PARÁ RURAL E OS FATORES CONDICIONANTES DA ESTRUTURA DA GOVERNANÇA

O Programa de Redução da Pobreza e Gestão dos Recursos Naturais do Pará (Pará Rural) foi desenhado pelo Governo do Estado do Pará, com o foco em duas áreas críticas, consideradas prioritárias: a redução da pobreza rural e o melhoramento da gestão dos recursos naturais. Um dos seus componentes englobou o financiamento de empreendimentos rurais coletivos para famílias, em sua maioria, que estão abaixo da linha de pobreza. As atividades foram iniciadas em 2007, e a primeira etapa foi finalizada no ano de 2016 (Pará Rural, 2014PROGRAMA DE REDUÇÃO DA POBREZA E GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS DO PARÁ [PARÁ RURAL]. Concepção e implementação do programa. Pará Rural, jan. 2014. (V. 1.).).

O componente Investimento Produtivo, denominado também de componente A, objeto de análise desta pesquisa, visava ao financiamento coletivo (destinado a associações e cooperativas) a famílias produtoras rurais de bens e de serviços, das quais, pelo menos, 70% têm renda média familiar igual ou inferior à linha da pobreza. Ele teve como meta o financiamento de, aproximadamente, 40 Projetos de Investimento Produtivo (PIPs), que comportavam os investimentos necessários ao fortalecimento das cadeias e/ou dos arranjos produtivos locais e o apoio à geração de renda (Pará Rural, 2014PROGRAMA DE REDUÇÃO DA POBREZA E GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS DO PARÁ [PARÁ RURAL]. Concepção e implementação do programa. Pará Rural, jan. 2014. (V. 1.).).

5.1 Comunidades estudadas

A seguir, serão apresentados os estudos realizados nas comunidades Menino Jesus, no município de Acará, Pará, e a Associação dos Criadores Orgânicos de Abelha de Tracuateua (APITRA), localizada no município de Tracuateua, Pará.

5.1.1 Comunidade Menino Jesus - Acará

A Comunidade Menino Jesus recebeu financiamento do Programa Pará Rural para a construção de uma casa de farinha mecanizada e uma unidade de beneficiamento de frutas para a venda de polpas congeladas.

O projeto objetivou fortalecer o processo produtivo de mandioca e a fruticultura, sendo financiadas assistência técnica, capacitação, a instalação de uma unidade de processamento de mandioca, a construção civil, a aquisição e instalação de máquinas e equipamentos, o replantio de mandioca, a instalação de uma unidade de processamento de fruta, o material de consumo, a aquisição de mudas e equipamentos para o manejo de açaí, o adubo, o preparo de terra e a aquisição de caminhão.

O projeto englobava, incialmente, 204 famílias quilombolas, sendo que, durante as visitas de campo, a comunidade informou que, atualmente, 69 famílias participam do projeto, das quais apenas cinco se envolvem ativamente na gestão do empreendimento. Analisando a trajetória da Comunidade, verificou-se que a maior parte das famílias que iniciaram o projeto desistiram ao longo do tempo, mostrando fragilidade na Ação Coletiva. Foi evidenciada, ainda, a presença dos “caroneiros”, ratificando a fragilidade da associação. De acordo com Olson (1999)OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: Edusp, 1999., caroneiro é aquele que desfruta do bem coletivo sem ter pago nenhum custo para sua obtenção.

No que tange à estratégia, é válido ressaltar que, antes do projeto, os membros da comunidade tinham fornos artesanais individuais para o preparo da farinha de mandioca. Após o projeto, passaram a ter uma agroindústria com capacidade para o beneficiamento de 3 mil quilos de mandioca. A gestão do empreendimento é feita ainda de maneira rudimentar, com base nos esquemas interpretativos construídos pela comunidade, em consonância com uma realidade anterior de negócios, muito mais caseira e artesanal. Nota-se a dificuldade de se estabelecer uma visão estratégica alinhada com a realidade atual da comunidade, o que põe em risco a sobrevivência do negócio.

No que se refere à administração, há uma equipe de associados responsáveis que, além de cuidar da gestão do empreendimento, cuidam de suas atividades pessoais, não se dedicando exclusivamente ao projeto. Em razão da dificuldade na compra da matéria-prima, o empreendimento não funciona com regularidade (diariamente, em horário comercial), o que compromete a receita mensal. Quando questionados a respeito de qual estratégia pretendem adotar quanto à produção, foram descritas como opções: barateamento do custo, aumento do prazo de pagamento da matéria-prima e investimento na preparação de áreas dos cooperados, para que possam fornecer a mandioca. Não foi detalhada a forma com que esses objetivos estratégicos serão alcançados.

5.1.2 Associação dos Criadores Orgânicos de Abelha de Tracuateua (APITRA) - Tracuateua

O projeto tinha como principal objetivo fortalecer a apicultura, viabilizando o aperfeiçoamento da atividade em Tracuateua, apoiar a produção local de mel, além de construir um viveiro de mudas, para trabalhar com brotos de fruteiras e de essências florestais, auxiliando a polinização e também a venda de mudas e sementes. A associação iniciou suas atividades com 157 membros, contando, atualmente, com 57 associados que, em sua maioria, têm vínculos familiares. A caracterização da APITRA como um grupo familiar, composto, em sua maioria, por membros com ligação de parentesco ou laços de amizade, favoreceu a existência da Ação Coletiva entre os membros.

O Pará Rural financiou, para a APITRA, a construção do entreposto de mel, a aquisição de máquinas, equipamentos e utensílios (Equipamentos de Proteção Individual [EPIs] e melgueiras, em torno de 700; aquisição de enxames, aproximadamente 1.500; aquisição de um caminhão e um veículo do tipo furgão, além da aquisição de mudas, capacitação e assistência técnica.

No ano de 2010, a associação deu entrada no Pará Rural, com projeto de financiamento para a atividade apícola, tendo ele sido aprovado no ano de 2011. Quanto à estratégia, foi destacada a mão de obra qualificada como principal diferencial, o que se reflete na trajetória histórica da Associação, marcada por cursos e intercâmbios de experiências (especialmente com o Piauí) e no perfil do seu dirigente, preocupado em construir o que ele chamou de “núcleo de conhecimento da associação”, por meio do constante incentivo à qualificação dos seus membros.

Quando questionados sobre a estratégia de produção, foi mencionada a intenção de pagar melhores preços para a aquisição de matéria-prima para os próprios associados, além da pesquisa na busca de novas alternativas. O presidente da associação ressaltou que a iniciativa privada é fundamental para a sustentabilidade com o mercado, sendo os empresários um grande “termômetro de qualidade”, pois suas ações se refletirão no status do produto e da gestão da associação.

Apesar de o projeto ainda não ter sido integralmente concluído (pendente a finalização da obra), já foram estabelecidas regras de uso para alguns bens já entregues, como o caminhão e o veículo utilitário, as quais foram consolidadas em um regime interno; no entanto não foram previstas sanções no caso do descumprimento.

6 FATORES CONDICIONANTES DA ESTRUTURA DA GOVERNANÇA

Há diversos fatores a serem observados para a construção de uma governança que facilite o alcance de melhores resultados e se apresente, de forma positiva, ao desenvolvimento do projeto. As alianças devem ser construídas de forma a estabelecer uma rede caracterizada pela soma de esforços, em que cada agente, atuando em sua ação específica, contribui para um objetivo comum a todos. Esta nova forma de governo a que se propõe a governança refere-se a esta multissetorialidade e à capacidade de os atores estabelecerem uma sinergia capaz de transformar a realidade vigente.

Desta forma, o primeiro fator condicionante para a estrutura da governança identificado foi a ação coletiva, pois, para essa coesão entre os agentes, é fundamental que a comunidade se apresente de uma maneira conexa. A união e a harmonia internalizadas na comunidade são determinantes na busca por alianças externas; daí a importância dos resultados ligados à ação coletiva, ou seja, a maneira como determinado grupo trabalha a questão da coletividade.

A ação coletiva refere-se a elementos como a coordenação, as regras e sanções, a comunicação e os custos do benefício coletivo (Olson, 1999OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: Edusp, 1999.; Ostrom, 1990OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. Disponível em: https://www.actu-environnement.com/media/pdf/ostrom_1990.pdf. Acesso em: 20.08.2019
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). Ela pressupõe decisões que ocorrem de forma participativa, com as ações oriundas delas apoiadas por todos; a existência de regras e sanções para a gestão dos recursos, definidas coletivamente e amplamente divulgadas; comunicação periódica das ações do projeto para o grupo e, especialmente, clareza no custo coletivo necessário para a obtenção do benefício coletivo, o que, na prática, ocorre pela divulgação extensa do que é o projeto e de como deve ser a participação de todos, evitando, assim, a existência de possíveis “caroneiros”.

Outro fator condicionante da estrutura da governança identificado foi a ação estratégica, que favorece a construção de um rumo a ser trilhado e dá um direcionamento, apresentando àquela comunidade o caminho que leva aonde se pretende chegar. Deve-se observar a adequação do projeto às normas e leis vigentes e, especialmente, se seus objetivos estão alinhados aos valores e às crenças dos membros da comunidade, bem como a seu conjunto de especificidades locais. A gestão deve ser alinhada ao porte do empreendimento, planejando despesas e receitas em consonância com a realidade.

As parcerias devem estar de acordo com os objetivos estabelecidos. Para isso, os resultados esperados de cada parceiro devem ser claramente definidos, e a execução da parceria deve ser acompanhada e controlada, de forma a garantir que o resultado obtido esteja de acordo com aquele esperado. Desta forma, a governança, constituída de elos fortes, capazes de alavancar as iniciativas das comunidades, será um conjunto de esforços positivos que contribuem de fato para o desenvolvimento da comunidade.

A Figura 1 mostra os elementos-chave decisivos na construção de uma governança favorável ao desenvolvimento dos projetos, ou seja, os seus fatores condicionantes. Estes elementos constituem a composição da estrutura que a governança adquire e foram definidos com base no referencial teórico e nas pesquisas de campo.

Figura 1
Elementos-chave que compõem a estrutura de governança

No entanto, a ausência de pensamento estratégico e a ação coletiva não devem ser vistas como excludentes, mas sim como alvo de mais ações governamentais, visando, por meio do aprendizado, a potencializar estes elementos nas comunidades. Para que a ação coletiva e a estratégia influenciem positivamente a governança, é preciso que a comunidade compreenda esses elementos. Isto se dá pelas capacitações formais ou por outras ações que permitam difundir informações e qualificar os beneficiários, dando a eles maior capacidade de construir e gerenciar seus empreendimentos. O conhecimento formal, aliado ao local, possibilita que a comunidade identifique seus próprios rumos e as ações necessárias para atingi-los.

É importante ressaltar que a aprendizagem ocorre todo o tempo e em todas as situações em que as pessoas agem e interagem - refletem e pensam. Em se tratando de aprendizagem organizacional, os estudos apresentam diferentes perspectivas. Existe um enfoque ligado às habilidades tácitas, cognitivas, ou seja, à habilidade de pensamento dos membros individuais das organizações, e há, também, uma visão organizacional, que encara as organizações como sistemas, e uma perspectiva que reconhece que a aprendizagem nas organizações também têm aspecto social.

7 CONCLUSÃO

Na atualidade, observa-se a construção do conhecimento sobre a governança segundo um único ponto de vista. Entretanto, a estrutura da governança resulta da interação entre diversos fatores condicionantes. A observância de quais são esses fatores deve ser fruto de uma mudança de ponto de vista, ou seja, deve-se olhar a governança sob a ótica de outros públicos, como a sociedade civil, não somente sob o ponto de vista do Estado ou do mercado, por exemplo.

É fundamental uma compreensão epistemológica da governança, enfatizando a maneira como o conhecimento é construído, tendo em vista sua multiplicidade de atores e, consequentemente, de interesses. Isto significará uma análise da governança com base nas condições da produção do saber, sendo, para tal, necessária uma metodologia que comporte uma visão aprofundada do objeto estudado.

Para entender os objetivos comuns e os fatores que contribuíram para a governança do Programa Pará Rural, a pesquisa buscou mostrar as interferências das características locais e das escolhas estratégicas nas diferentes estruturas de governanças e condições sistêmicas (sociais, econômicas, culturais, históricas e participativas), impactando o desenvolvimento e o resultado dos projetos.

Desta forma, foram destacados dois fatores condicionantes: ação coletiva e estratégia. A pesquisa mostrou que a estratégia construída pela comunidade e a forma como a ação coletiva ocorre influenciam diretamente a governança estabelecida. A estrutura de governança identificada na pesquisa resulta da forma como ela é adquirida, considerando os elementos que a compõem, frutos da interação com o meio e com as instituições, e de sua adaptação às especificidades locais, de tal forma a garantir que seus objetivos sejam cumpridos.

Alianças devem ser construídas de forma a estabelecer uma rede caracterizada pela soma de esforços, em que cada agente, atuando em sua ação específica, contribui para um objetivo comum a todos. Para que isso ocorra, é necessário que haja interdisciplinaridade, traduzindo saberes e estabelecendo vasos comunicantes, que interliguem as diferentes formas de conhecimento.

Por fim, recomenda-se que novos estudos analisem a governança como resultado dos fatores condicionantes, identificando-os em cada caso específico e atuando na busca de potencializar os resultados e o alcance de objetivos dentro da estrutura da governança.

  • 2
    [...] Governance has been arising in response to perceived, dramatic changes in the analytical and conceptual toolkit with which a discipline has been theorizing the idea of “order.” As was further seen, such changes have been associated with the transformation of state-based regulation within the nation-state as well as with the transformation of state-based sovereignty and rule-making in areas that by their very nature cut across diferente national boundaries”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    02 Jun 2023
  • Aceito
    08 Jun 2023
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